A descredibilização da vacinação por governantes extremistas no Brasil: os processos judiciais que denunciam as ameaças à saúde pública
Uma decisão tomada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), em junho passado, gerou reações negativas de parlamentares cristãos. A decisão manteve a determinação da 2ª Vara Cível da Comarca de São Bento do Sul, que impôs uma multa entre R$ 100 e R$ 10 mil se um casal não providenciar a imunização de suas duas filhas no prazo de 60 dias. Bereia publicou a primeira parte desta reportagem, em 6 de julho, na qual apresenta o caso, a repercussão nas mídias sociais e a opinião de especialistas da área da saúde e do direito quanto à obrigatoriedade da vacinação. O debate surgiu após a inclusão da dose no cronograma do Programa Nacional de Imunizações (PNI), a partir de 2024.
Nesta segunda parte, Bereia aprofunda a verificação dos processos sobre a vacinação de menores, para tentar compreender a relação deles com a descredibilização das vacinas desde a pandemia de covid-19.
As denúncias
Em pesquisa no portal do Ministério Público de Santa Catarina, Bereia verificou que, além do caso que repercutiu nas mídias sociais e na imprensa, há muitos outros processos relacionados à vacinação infantil, em tramitação no estado catarinense desde o início de 2023. Na busca, é possível observar que o foco dos processos varia, embora várias dessas situações estejam ligadas à imunização de covid-19, existem acionamentos judiciais voltados para a vacinação contra poliomielite ou paralisia infantil, uma doença causada por um vírus que pode infectar crianças e adultos, cuja imunização é a única forma de evitar.
Além das famílias que se negam a vacinar suas crianças por desconfiarem da eficácia e dos efeitos colaterais dos imunizantes, os estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais também enfrentam desafios impostos por autoridades que desqualificam a importância da vacinação para a saúde pública.
O Superior Tribunal Federal (STF) suspendeu decretos de 20 municípios catarinenses que dispensavam a exigência do comprovante de vacinação contra a covid-19 para matrícula e rematrícula na rede pública de ensino. O plenário da Corte referendou, em março passado, liminar concedida pelo ministro Cristiano Zanin, um mês antes, a pedido do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1123). No entendimento do ministro, “a decisão não é individual ou de cada unidade familiar, mas está relacionada ao dever geral de proteção que cabe a todos, especialmente ao Estado. Segundo Zanin, o direito assegurado a todos os brasileiros de conviver em um ambiente sanitariamente seguro sobrepõe-se a eventuais pretensões individuais de não se vacinar”.
O ministro do STF apresentou em sua arguição, uma Nota Técnica, de n°118/2023, em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que “a vacina Pfizer pediátrica é segura e recomenda sua aplicação em crianças”. Zanin ainda determinou que os prefeitos dos municípios em questão, e o governador de Santa Catarina Jorginho Mello (PL), “se abstenham” de promover atos que dificultem a execução do Programa Nacional de Imunização, em especial o da vacinação infantil contra a covid-19. Apesar de não ter impetrado nenhum decreto estadual a respeito, o governador catarinense também divulgou a decisão de não cobrar comprovante de vacinação para estudantes da rede estadual de ensino. Pelas redes digitais, ele afirmou que “nenhuma criança ficará fora da escola por não ter se vacinado contra covid-19”.
Imagem: Reprodução do site do STF
O MPSC também se manifestou e declarou a inconstitucionalidade dos decretos municipais. “O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), por meio de seus Centros de Apoio Operacional da Saúde Pública (CSP) e da Infância, Juventude e Educação (CIJE), defende que decretos municipais que excluem a vacina contra covid-19 do rol de vacinas obrigatórias são ilegais e inconstitucionais, por afrontarem as legislações estadual e federal, além de contrariar tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”, registrou em comunicado divulgado.
Imagem: Reprodução do site Exame
O PSOL também acionou o STF contra três municípios do Rio Grande do Sul para derrubar a dispensa de apresentação do comprovante de vacinação contra a covid-19 para matrícula em escolas públicas e privadas. A ADPF 1130 foi protocolada em 29 de fevereiro e questiona o decreto editado pelo prefeito do Município de Farroupilha (RS), Fabiano Feltrin (PP), que tira a obrigatoriedade da apresentação de certificado de vacinação contra a covid-19 para matrícula de crianças e adolescentes nos estabelecimentos de ensino públicos e privados da cidade.
Segundo as lideranças do PSOL, em outros municípios gaúchos, prefeitos optaram por não editarem decretos, mas têm se manifestado publicamente nas redes digitais, afirmando que o comprovante de vacinação infantil contra a doença não será exigido no momento da matrícula. Em Caxias do Sul, a Prefeitura publicou nota nesse sentido no site oficial, e na cidade de São Marcos, a dispensa de apresentação do comprovante teria sido noticiada na imprensa local, de acordo com o site do STF.
O partido pede ao STF que conceda uma liminar para invalidar o “decreto e atos públicos” apontados como inconstitucionais na ação, além de pedir que a Corte determine que os prefeitos dos municípios citados “se abstenham de promover quaisquer atos que possam dificultar a execução do Programa Nacional de Imunização, em especial da vacinação infantil da Covid-19”.
Nesta nova ADPF, o PSOL solicitou que a ação fosse relatada por Zanin, mas a Corte distribuiu a petição para o ministro Nunes Marques. Até o fechamento desta matéria, a última movimentação do caso foi o envio do processo ao “Advogado-Geral da União para que um(a) advogado(a) da União, um(a) procurador(a) federal ou um(a) procurador(a) da Fazenda Nacional” emita parecer.
Imagem: Reprodução do site do STF
Já em Minas Gerais, quem se manifestou contra a exigência do certificado foi o governador Romeu Zema (NOVO). Apesar de não ter editado nenhum decreto sobre o tema, o governador mineiro afirmou, em um vídeo gravado e divulgado nas redes, ao lado de parlamentares alinhados às suas políticas, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) e o senador Cleitinho (PL-MG), que não exigiria a regularidade do cartão vacinal para a matrícula de estudantes na rede pública. Ele usou as redes digitais para dizer que na rede estadual, não será exigido certificado de vacinação contra covid-19.
Após ser acionado por parlamentares do PSOL, o STF pediu explicações sobre a declaração do governador. O partido pediu ao Supremo a “remoção do vídeo com a declaração nas redes sociais, a fim de evitar a disseminação de conteúdo que desestimula a vacinação”. Na manifestação enviada ao ministro, o governador alegou que “limitou-se a afirmar que a administração educacional estadual não irá impor obstáculos burocráticos à efetivação da matrícula […] com fundamento em deficiências na comprovação da vacinação infantil”.
Imagem: Reprodução do site G1
O Partido Verde (PV) também entrou com uma ação no STFpara que o órgão proíba o governo de Minas Gerais de dispensar a apresentação do comprovante de vacina para a matrícula nas escolas públicas.
A legenda protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1127), que será relatada pelo ministro Dias Toffoli. Segundo o STF, o PV argumentou que a recusa em implementar o Plano Nacional de Imunizações (PNI) não tem embasamento legal e contraria a orientação federal que ampliou o plano de imunização contra a covid-19.
À pedido do STF, a Advocacia Geral da União (AGU) se manifestou a favor da argumentação do Partido Verde (PV) sobre a cobrança da vacinação em escolas de Minas Gerais. Na época da publicação, Zema disse que o “cartão de vacinação nunca foi obrigatório” em escolas do estado e que o vídeo era para informar as famílias a respeito dos “impedimentos à matrícula escolar”. A AGU, entretanto, defendeu o argumento de que as escolas podem cobrar a vacinação atualizada, seguindo jurisprudências e diretrizes nacionais de saúde pública.
O ministro da AGU Jorge Messias registra que se trata de uma medida de proteção à saúde coletiva, sobretudo de crianças e adolescentes, e que fortalece o Plano Nacional de Imunização. “As estratégias de mobilização em massa, como as que contribuíram para a erradicação da varíola no Brasil, são relevantes para a formação de uma ‘cultura de imunização’. Tal cultura exerce impacto benéfico e contínuo nas práticas atuais de saúde pública, de modo que a manutenção dessa mentalidade mostra-se imprescindível à promoção da saúde e à prevenção de graves doenças em nossa sociedade”, afirma o documento do órgão.
Agora, o processo está nas mãos da Procuradoria Geral da República para emissão de parecer.
Queda de adesão à vacinação
Ao mesmo tempo em que se observa o aumento do número de processos sobre vacinação no estado de Santa Catarina, desde 2023, é possível observar uma queda de adesão ao Programa Nacional de Imunização em todo o país nos últimos anos. Segundo dados do Observatório da Atenção Primária à Saúde da associação civil sem fins lucrativos Umane, entre 2001 e 2015, a média de cobertura vacinal era acima de 70%, contudo, em 2021, o número chegou a atingir 52,1%.
Há 34 anos, não há casos de poliomielite no Brasil, entretanto, devido à baixa cobertura vacinal, desde 2015, o país não atinge o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que é de 95%, por isso, há um sério risco do vírus voltar a circular em solo nacional. Em 2022, o percentual de vacinação era de 77%, nos últimos anos ele vem subindo e em 2023 atingiu a marca de 84,63%, de acordo com dados preliminares. Neste 2024, a porcentagem de doses aplicadas, até o fechamento desta matéria, está em 85,42, mas ainda está muito abaixo do recomendado pela OMS.
“Com o processo de imigração constante, com baixas coberturas vacinais, a continuidade do uso da vacina oral, saneamento inadequado, grupos antivacinas e falta de vigilância ambiental, vamos ter o retorno da pólio. O que é uma tragédia anunciada”, disse a presidente da Câmara Técnica de Poliomielite do Ministério da Saúde, Luiza Helena Falleiros, durante o 7th International Symposium on Immunobiologicals (ISI), que aconteceu em 2023.
Em entrevista à plataforma Agência Brasil, a superintendente-geral da Umane, Thaís Junqueira, destacou que existem diversos pontos a se considerar quando a cobertura vacinal é analisada no Brasil, como o engajamento da população e a infraestrutura nas regiões norte e nordeste. Junqueira reforçou a importância da conscientização sobre a vacinação “Precisamos retomar aquela visão e todo aquele envolvimento dos brasileiros e brasileiras em torno do tema da vacinação. E que nos últimos anos, no período que a gente vem vivendo a pandemia, teve uma queda preocupante”.
Uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2022, buscou compreender como aconteceu a redução da confiança na ciência e nas vacinas no Brasil durante a pandemia. O estudo realizado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia (INCT-CPCT), que pertence ao órgão, aponta que, apesar de 68,9% dos brasileiros confiarem na ciência, este número foi afetado negativamente por campanhas de desinformação organizadas que aconteceram desde 2020. Bereia checou casos de desinformação sobre a vacinação no período que circularam em ambientes digitais religiosos.
A pesquisa aponta ainda que a declaração de confiar ou não na ciência está relacionada à região de moradia, em especial entre pessoas residentes no Centro-Oeste. O nível de desconfiança também é maior entre evangélicos e pessoas que cursaram apenas o ensino fundamental. Os motivos são diversos, 46,4% das pessoas declaram desconfiar dos efeitos colaterais das vacinas e apresentam opiniões variadas sobre a transparência das empresas farmacêuticas.
Retomada do incentivo à vacinação
O aumento de doenças antes erradicadas no país foram motivo de preocupação para autoridades públicas de saúde. Desde 2022, medidas para incentivar a vacinação têm sido implementadas para controlar o reaparecimento de tais doenças, como o Plano de Ação Para Interrupção do Sarampo no Brasil.
Imagem: Reprodução do site do Instituto Butantan
O Ministério Público do Rio Grande do Sul e a Secretaria Estadual de Saúde gaúcha buscam dar visibilidade aos municípios que atingem as metas de cobertura vacinal. Em 2024 o foco será para as vacinas Pentavalentes, a Tríplice Viral e a vacina do HPV.
Imagem: Site do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Nova “Revolta da Vacina”?
É possível relacionar esta situação a um retrocesso histórico pois remete à “Revolta da Vacina”, um movimento de caráter popular que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1904. A campanha sanitarista foi liderada pelo médico Oswaldo Cruz e pretendia erradicar a varíola, a febre amarela e a peste bubônica. Para combater a primeira, foi proposta uma campanha de vacinação obrigatória, mas a população ficou insatisfeita.
Os protestos foram iniciados em 10 de novembro de 1904 e só encerraram em 16 de novembro, com a decretação de estado de sítio pelo governo do presidente Rodrigues Alves, que gerou ações violentas do com a resposta do Exército e da Polícia, e a revogação da lei que determinava a obrigatoriedade da imunização.
A vacina antivariólica já havia sido desenvolvida em 1796, pelo médico Edward Jenner, na Inglaterra. No Rio de Janeiro, a vacinação da doença era obrigatória para crianças, desde 1837, e para adultos, desde 1846, conforme o Código de Posturas do Município. No entanto, a regra não era cumprida porque a produção de vacinas era pequena, tendo alcançado escala comercial apenas em 1884. O imunizante também não era bem aceito pelo povo, ainda desacostumado com a própria ideia da vacinação, e diferentes boatos corriam na época, como o de que quem se vacinasse ganhava feições bovinas.
A aprovação da Lei nº 1.261, em 31 de outubro de 1904, sugerida por Oswaldo Cruz, tornava obrigatória a exigência de comprovantes de vacinação contra a varíola para a realização de matrículas nas escolas, obtenção de empregos e autorização para viagens e certidões de casamento. A medida previa também o pagamento de multas para quem resistisse à vacinação.
A Revolta da Vacina deixou um saldo de 945 prisões, 110 feridos e 30 mortos, segundo o Centro Cultural do Ministério da Saúde.
“Oswaldo Cruz escrevia tratados, artigos de jornal, textos de cunho acadêmico e científico que detalhavam como a vacina funcionava e os seus efeitos positivos. Mas a grande maioria da população era analfabeta ou semianalfabeta. Os críticos do médico se aproveitavam disso e utilizavam charges publicadas nos jornais, marchinhas e mesmo boatos para ironizar a iniciativa. Eram armas poderosíssimas que convenceram o povo”, explica o historiador e pesquisador do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, Carlos Fidelis da Ponte.
De acordo com o portal da Fundação Oswaldo Cruz, por causa da negativa da população em se vacinar, no ano de 1908, uma nova e intensa epidemia de varíola voltou a atingir a então capital brasileira, com mais de 6.500 casos. “Foi só então que a população começou a procurar voluntariamente os postos de saúde para se vacinar”. Apenas em 1971, o Brasil finalmente erradicou a doença.
Bereia indica o documentário produzido pela Fundação Oswaldo Cruz que apresenta a história da varíola, da vacina e da revolta popular de 1904, com teatro e imagens históricas. Revolta da Vacina
Referências:
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Foto de capa: Karolina Kaboompics/Pexels