Um jogo para ensinar sobre falsidades na campanha eleitoral é a iniciativa da Agência Lupa, primeira agência de fact-checking do Brasil, em consórcio com a Politize!, organização dedicada à educação política, e a App Cívico, uma consultoria em projetos de tecnologia cívica. O jogo digital IAgora funciona como um simulador de uma campanha eleitoral. Na brincadeira, o jogador assume o papel de marqueteiro e coordenador da campanha de reeleição de um prefeito fictício, mas com desafios e estratégias familiares ao noticiário político brasileiro.
Imagem: IAgora.org
No IAgora, eleitores podem aprender, na prática, como identificar e se proteger das táticas e técnicas de manipulação usadas para enganar o público com o uso de ferramentas de inteligência artificial (IA). De acordo com os desenvolvedores, o jogo atua como uma “vacina” contra a desinformação: ao jogá-lo, o jogador desenvolve resistência cognitiva contra as formas comuns de desinformaçãoque poderá encontrar durante as eleições.
Identificar os inimigos da democracia
Em um fluxo de jogo simples e intuitivo, IAgora mostra ao usuário, no papel de coordenador de campanha, como usar cinco táticas de manipulação com grande potencial de ajudar seu candidato a ganhar uma eleição. São elas:
Emoção – marcada pelo uso de termos chamativos que remetem à urgência e provocam sentimentos intensos (medo, raiva, alegria, rejeição, identificação) no eleitor;
Teorias da Conspiração – utiliza ferramentas para provocar dúvidas, inseguranças, medos e desconfiança em relação às instituições e autoridades, inclusive no próprio processo eleitoral;
Polarização – combina a simplificação de questões complexas com a criação de supostos inimigos, reduzindo um tema ou um debate plural a apenas dois polos;
Trollagem – usa de conteúdos de humor para provocar agitação, ofensas e discórdia;
Falso Especialista – busca validar determinada visão sobre um tema polêmico por meio de um indivíduo ou grupo que se apresenta como autoridade no assunto, mas não possui conhecimento ou qualificação real.
Desse modo, o jogador é convidado a usar ferramentas de inteligência artificial para manipular imagens verdadeiras, produzir áudios, vídeos e perfis falsos durante a corrida eleitoral. Além de mostrar o impacto e as consequências do uso da desinformação, IAgora explica porque essa tática ainda é um recurso muito usado na política:
“Mesmo que parte da população saiba que o áudio é falso, a maioria das pessoas que recebeu essa mensagem não vai nem desconfiar da veracidade. Isso acontece porque as pessoas recebem os áudios em grupos de pessoas que confiam, como os grupos de família. Com isso, vão acreditar e relacionar inconscientemente uma imagem positiva do seu candidato à educação.”
Educação para IA e o exercício da cidadania
A indústria da desinformação ganhou escala nas últimas eleições com a ajuda da IA, comprometendo as democracias em diversos países pelo mundo. Nesse sentido, IAgora chega para preencher uma lacuna no campo da educação para o exercício da cidadania nas eleições no que diz respeito ao voto. A iniciativa reconhece que a liberdade para a escolha consciente dos candidatos vem sendo ameaçada pela disseminação da desinformação, o que é popularmente conhecido como fake news, mas inclui muito mais do que é falso, como o Bereia tem mostrado com as checagens.
O pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora João Pedro Chevi, no artigo Info-víduo: novas tecnologias geram novas demandas descreve com clareza a ideia básica de funcionamento daquilo que nos acostumamos a chamar de IA,
“[…] nada de radicalmente novo pode passar a existir através da IA, já que todas as possibilidades de mutações devem se situar dentro do espaço de possibilidades definido pelo programa. Para algo existir, precisa ser percebido no mundo exterior, portanto, se não percebemos e transcrevemos para a máquina, esta coisa não é uma possibilidade, uma vez que os programas consomem informações de bancos de dados. Logo, de acordo com biólogos e filósofos, apenas biologicamente seria possível a criação de novos sensores perceptivos.”
Dessa maneira, ainda que os algoritmos conhecidos como inteligência artificial não sejam capazes de raciocinar ou perceber o mundo como os seres humanos, todavia, podem predizer cenários e tendências, bem como influenciar as escolhas humanas. Seria possível até mesmo “construir” mundos paralelos, por conta da magnitude dos dados (entregues livremente pelos usuários) que alimentam esses sistemas digitais orientados a mecanismos estatísticos de altíssima complexidade.
É assim que a IA pode influenciar usuários de mídias sociais num cenário de eleições municipais, por exemplo. Isto ocorre na medida em que o perfil de cada usuário e seu mundo (características pessoais, relações sociais, gostos, desgostos, opções políticas, sociais, sexuais, culturais, etc) é copiado para dentro da base de dados manipulada pela inteligência artificial.
O professor Sérgio Amadeu da Silveira, da Universidade Federal do ABC, um dos maiores especialistas no assunto exemplifica bem este processo:
“[…] aqueles códigos invisíveis que agem na internet, orientando o resultado das buscas que fazemos, decidindo pelo usuário da rede social quem aparecerá na timeline dele ou para quais amigos suas postagens serão exibidas e ainda escolhendo os anúncios que milagrosamente aparecem nos sites e aplicativos – são também capazes de agir, ainda que indiretamente, sobre o comportamento e as posturas dos internautas.”
Obviamente, para o funcionamento eficiente dessas ferramentas sempre tem alguém ou algum grupo de interessados que definem as regras e os parâmetros de funcionamento de um sistema digital baseado em inteligência artificial. Não poucas vezes isso é usado para atingir objetivos de lucro ou poder a qualquer custo, sem respeito à realidade dos fatos ou a valores éticos, exatamente como acontece na realidade fictícia proposta pelo game.
Imagem: IAgora.org
É justamente neste contexto, de ausência de educação digital ou mesmo de ausência de uma educação para o manejo das mídias digitais, no cenário da comunicação social, sobretudo em tempos de pós-verdade, como o atual momento histórico, que a manipulação acontece em escala, com o auxílio da IA.
Razão porque existe o trabalho árduo de agências de checagem de notícias, como o Coletivo Bereia e a Agência Lupa, entre outros projetos, que, além de prestarem o necessário serviço de fact checking (checagem de notícias) à sociedade, também oferecem bons serviços de educação cidadã no campo do jornalismo e da comunicação social.
*Atualizada em 15/09 para acréscimo de informações
Um vídeo com informações controversas já checadas e desmentidas pelo Bereia circula desde a última semana em grupos de WhatsApp de igrejas e entidades religiosas cristãs brasileiras. Com a legenda: Vamos fazer uma campanha. Cada um que receber esse vídeo, enviar para 10 contatos, no mínimo. Posso contar com você? O material em tom alarmista traz personalidades católicas versando sobre qual seria o candidato ideal para ganhar o voto de um cristão.
Imagem: Reprodução de grupo no WhatsApp
Campanha eleitoral na Internet
Segundo o TSE, atualmente o Brasil tem mais de 155 milhões de eleitores aptos a votar em 2024, sendo que para 135 milhões o voto é obrigatório. Em contrapartida, o número de brasileiros com acesso a mídias sociais se aproxima do número de eleitores: o Instagram acumula mais de 113,5 milhões de usuários brasileiros, já o Facebook alcançou a marca de 109 milhões brasileiros neste ano.
A presença de brasileiros nas mídias sociais torna esse espaço um alvo para divulgação de campanha pró-candidaturas . De forma a evitar possíveis abusos quanto ao uso dessas plataformas, o TSE realizou alterações na Resolução nº 23.610/2019, para garantir o uso correto da internet na campanha eleitoral. As principais mudanças indicam a obrigatoriedade de repositórios públicos sobre as propagandas impulsionadas por candidatos/as em cada campanha, a proibição de propaganda eleitoral paga além da impulsionada legalmente e a remoção de conteúdos somente sob ordem judicial.
Contudo, a resolução publicada pelo TSE não indica a fiscalização de conteúdos produzidos por eleitores/as, que abordam o tema das eleições ou temáticas importantes para esse debate, tais como citações a projetos de leis. Desta forma, vídeos, textos e outros conteúdos que circulam pelas mídias sociais e em grupos religiosos, propagam desinformação sobre temas importantes para as eleições e apresentam um papel apelativo para reforçar pautas ultraconservadoras como a proibição do aborto legal, a criminalização do consumo de drogas, a falsa perseguição sistemática a cristãos no Brasil e a ameaça da “ideologia de gênero”, temas que aparecem no vídeo checado pelo Bereia.
Perseguição a cristãos e à igreja
“Não podemos orar pedindo a Deus a expansão do evangelho e depois votar em candidatos que querem fechar as igrejas e que são contra os valores evangélicos!”, disse no vídeo o cantor católico Diácono Júlio Neto. O alerta do cantor, entretanto, é infundado. Bereia já checouvárias publicações sobre a mesma temática e verificou que não há qualquer projeto ou movimento de fechamento de igrejas no Brasil, porque a liberdade de culto é garantida na Constituição Brasileira.
Além do alarde sobre o falso projeto de fechamento de igrejas, logo na abertura do vídeo, o fundador da Associação do Senhor Jesus e idealizador do canal de TV Rede Século 21 Pe. Eduardo Dougherty chama a atenção para a perseguição a cristãos por governos comunistas. “O sofrimento da perseguição religiosa por governos comunistas, não pode deixar de despertar nossa consciência nesta hora tão dramática das eleições!”, frisou o padre.
O uso do tema da perseguição a cristãos pelas esquerdas e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), em campanha eleitoral não é novo, remonta às eleições de 1989, quando o PT lançou Lula candidato pela primeira vez, usado por apoiadores de Fernando Collor de Mello. Usava-se o imaginário da ameaça comunista relacionada ao PT e o discurso de que fecharia as igrejas para apoiar Collor, que as protegeria. Este é um trecho de matéria do Bereia, publicada em 7 de setembro de 2022, na ocasião da última eleição presidencial.
Imagem: Site do Bereia
Bereia tem verificado que o discurso em torno de uma suposta perseguição aos fiéis evangélicos no país tem sido muito repetido e reafirmado por lideranças cristãs, especialmente em períodos eleitorais. Bereia publicou este trecho em matéria, em 7 de junho de 2024.
Imagem: Site do Bereia
Liberação do aborto
Um dos pontos abordados pelas personalidades católicas foi a questão do aborto, tema muito sensível para a comunidade cristã e muitas vezes checado pelo Bereia, por conta da enxurrada de desinformação que circunda o assunto. Um homem, cantor, pregador, missionário e apresentador Dunga foi quem falou sobre o tema. “Aborto não é uma questão de saúde pública. Aborto é crime”, apontou.
Apesar de ser classificado de fato como crime no Brasil, o aborto é sim uma questão de saúde pública, por isso, as exceções para a prática no país estão ligadas à condição de saúde física e mental da mulher. Trata-se do aborto legal, previsto em lei, desde 1940, nos casos de gravidez por estupro, e em resoluções da Supremo Tribunal Federal para salvar a vida da mãe, quando há gravidez de risco de morte, ou interromper a gestação de fetos anencéfalos, que nascerão sem vida.
Em junho passado foi estabelecida uma tentativa, no Congresso Nacional, de tipificar como criminosa estas exceções previstas no Código Penal Brasileiro. O Projeto de Lei 1.904/2024, de autoria do deputado federal evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e mais 33 parlamentares, equipara a interrupção da gravidez após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio e propõe aumentar a pena máxima para até 20 anos de prisão para os responsáveis pelo procedimento.
A aceleração da tramitação do Projeto de Lei 1.904/2024 na Câmara dos Deputados desencadeou uma onda de comentários e postagens nas mídias sociais, muitos deles com base em desinformação. (…) A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o aborto um procedimento de saúde seguro e descomplicado quando realizado adequadamente. Segundo a OMS, “as complicações são raras tanto com o aborto farmacológico como no cirúrgico, quando os abortos são seguros – o que significa que são realizados utilizando um método recomendado pela OMS, adequado à idade gestacional, e por alguém com as competências necessárias” Trecho de matéria publicada na página do Bereia, em 28 de junho de 2024.
“Ideologia de gênero”
Outro assunto frequentemente disseminado nas mídias digitais cristãs, com viés desinformativo, é a questão dos direitos de gênero e a educação sexual nas escolas. Foi uma mulher a escolhida para tratar o tema no vídeo de lideranças católicas, a cantora Eliana Ribeiro. “Não podemos orar pedindo a Deus pelos filhos e votar em quem quer impor ideologia de gênero e imoralidade sexual para nossas crianças”, afirmou Ribeiro. O tema já foi checado pelo Bereia em várias matérias, mas é em períodos eleitorais que ele surge com mais força.
Esta associação de pedofilia a movimentos de esquerda e grupos LGBTQIA+ é uma prática comum em conteúdos disseminados pela extrema direita, e explorada em espaços religiosos, como Bereia já checou. De forma semelhante, a noção inventada de “ideologia de gênero” é um dos temas mais usados por quem produz desinformação em espaços religiosos. Estes temas emergem com mais intensidade em períodos eleitorais, como estratégia de campanha.Texto publicado em 3 de junho de 2024, em matéria no site do Bereia.
Censura e controle dos meios de comunicação
“Não devemos orar por liberdade e democracia e depois votar em quem deseja a censura e o controle dos meios de comunicação”, é a afirmação da atriz e apresentadora de televisão Myrian Rios. O controle dos meios de comunicação e a censura são também tema de destaque em publicações do extremismo conservador, especialmente após os acontecimentos recentes que envolveram a proibição da rede X no Brasil.
Imagem: Site do Bereia
Outras notícias sobre a suposta censura praticada no País, já foram checadas pelo Bereia anteriormente envolvendo pessoas políticas, veículos e instituições religiosas. Nesses casos, a notícia não se aprofunda nas causas da proibição de divulgação ou atuação de determinadas organizações, como o caso do X. Também, as publicações neste tema se baseiam no direito à liberdade de expressão de forma irrestrita, sem limites éticos ou legais, e negam o lugar das instituições e da sociedade civil na regulação do que se veicula nas mídias, o que classificam como “censura”.
Preservação da moral e dos bons costumes
Além dos temas de vieses ultraconservadores e extremistas, o vídeo também apresenta, no final, uma palavra do cantor católico Luiz Felipe sobre menção escatológica do Papa João Paulo II. “O santo papa João Paulo II nos alertou: “Sabemos que estamos na luta final entre igreja e anti-igreja, evangelho e antievangelho, entre cristão e o anticristão”, e ainda, que a última batalha do anticristo será contra a família”.
A fala de Luiz Felipe reforça os temas apresentados pelas personalidades católicas que aparecem antes dele. Ao citar a “anti-igreja”, “anti-evangélio”, “anticristão” e dizer que “a última batalha será contra a família” ele reforça o pânico em torno da perseguição aos cristãos em torno da “família”, de forma genérica. A “proteção da família” é tema frequentemente usado por extremistas conservadores em processos eleitorais, diante do apelo emotivo que provoca, como mostram estudos de especialistas, como Fernanda Marina Feitosa Coelho.
Evangélicos
Lideranças evangélicas também não deixaram de lado o hábito das “Correntes de WhatsApp” para fazer política. Assim como no vídeo católico, circula nos grupos gospel uma mensagem que aponta os partidos de esquerda como os “inimigos” do país e dos cristãos, mantendo o terror alegando que o Brasil iria se “transformar em uma Venezuela”, caso os partidos de esquerda permaneçam no poder.
“Vamos tirar os Comunista e Socialista do Brasil ,vote no partido de direita. Quando o justo governa o povo se alegra, quando o ímpio governa o povo chora. Por isso estão criando muitos impostos para cobrir as corrupções e os rombos nos cofres públicos provérbios 29.2. Divulgue, compartilhe para que o Brasil não possa empobrecer como a Venezuela e (outros) países comunistas que tiram a liberdade do povo fazendo deles escravo não livre”, diz o texto acompanhado de uma imagem com o número de urna de cada partido progressista existentes no país.
Bereia verificou e tem verificado as informações do vídeo que circula nas mídias sociais. O conteúdo da produção é enganoso, pois distorce informações sensíveis, que apelam ao medo e ao pânico, como a perseguição a cristãos, o aborto e a ideologia de gênero para criar um cenário alarmista que não reflete a realidade. A corrente divulgada por grupos evangélicos tem o mesmo viés.
O uso de temas religiosos para justificar posições políticas e convencer eleitores a votar em candidatos/as da direita extremista é feito de maneira distorcida, sem respaldo jurídico ou factual, como no caso das alegações de censura. O conteúdo visa influenciar o público com desinformação e apelos sensacionalistas, explorando pautas conservadoras e mobilizando o eleitorado por meio de argumentos exagerados e alarmistas.
O abuso religioso vem crescendo no Brasil, e em tempos eleitorais os cidadãos precisam denunciar essa conduta de lideranças religiosas, partidos e candidatos. A opinião é da editora-geral do Bereia Magali Cunha, que participou do programa Entrevista da Hora, da TV Assembleia de Mato Grosso, em 1º de julho de 2024.
Segundo a pesquisadora, esse abuso ocorre quando personagens do mundo religioso e lideranças do mundo político que às vezes que não têm nada de religiosas fazem alianças com grupos religiosos utilizando-se de elementos simbólicos da fé e de argumentos para convencer emocionalmente pessoas por meio de um discurso de pânico moral e também demonizar candidatos e partidos.
Essa situação, já observada nas eleições presidenciais de 2018 e de 2022 e também nas eleições municipais de 2020, vem se repetindo em 2024, destaca Magali Cunha. “Isso não é saudável para a democracia nem para as religiões”, analisa.
O abuso religioso também leva à utilização de discursos extremistas e de ódio, especialmente nas mídias sociais. De acordo com a pesquisadora, pessoas, partidos, candidatos, grupos ativistas têm sido vítimas desse comportamento.
“A oposição política é saudável, mas deve ser feita dentro da civilidade, da democracia. Quando se parte para ataques, chamamentos a agressões, é muito negativo, e nesses casos é preciso enfrentar de forma muito dura, como o TSE tem feito nos últimos anos”, adverte. A íntegra da entrevista está disponível no YouTube.
O início oficial do período de propaganda eleitoral para Prefeituras e Câmaras de Vereadores, em todo o país, ocorreu em 16 de agosto. Durante as sete semanas deste período de campanha por votos, Bereia vaiacompanhar a forma como as religiões e temas religiosos são propagados, para verificar se há uso de desinformação. Em 2020 e 2022, Bereia identificou farta utilização de conteúdo falso, enganoso e impreciso como estratégia de campanha de candidatos e seus apoiadores para convencer eleitores ou para destruir a imagem de opositores e de partidos.
Aumento de candidaturas religiosas
Segundo pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa e Reputação de Imagem (IPRI), da FSB Holding, as candidaturas com Identidades Religiosas aumentaram 225% nas últimas sete eleições municipais. Os dados foram coletados a partir de um levantamento com dados disponíveis no portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao qual Bereia também recorreu. A análise realizada pelo IPRI aponta que o número de candidaturas com identidade religiosas saltou de 2.215 em 2000 para 7.206 em 2024.
Em entrevista para a plataforma Agência Brasil, o sócio-diretor do IRPI Marcelo Tokarski afirma que o aumento apresentado nos últimos 24 anos demonstra também um crescimento do apelo da religião na política. Sobre o tema, a Agência Brasil também ouviu a coordenadora da área de Religião e Política do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Lívia Reis, que indica existirem candidatos não religiosos que passam a se declarar como cristãos de modo genérico para comunicar um conjunto de valores ou pedir por voto em instituições religiosas.
“Se, por um lado, as candidaturas oficiais apoiadas por igrejas evangélicas continuam tendo bons resultados nas urnas, nem sempre elas mobilizam nome religioso nas urnas. Por outro lado, candidatos que não são religiosos passaram a se identificar como cristãos – assim, de modo genérico –, para comunicar ao eleitorado o conjunto de valores com os quais ele se identifica ou então para pedir voto em igrejas de pequeno e médio portes, que não têm suas candidaturas oficiais. Também é importante lembrar que, nas eleições municipais, as dinâmicas locais nos territórios são muito valorizadas e, muitas vezes, precisam ser combinadas com uma identidade religiosa para que aquela candidatura seja vencedora no pleito”, Lívia Reis disse à Agência Brasil.
O avanço do segmento evangélico no cenário político brasileiro tem raízes históricas, intensificada após a redemocratização e a Constituição de 1988, como aponta o estudo da pesquisadora da Religião e editora-geral do Bereia Magali Cunha. Outro fato significativo é o sucesso da campanha de religiosos nas eleições. A pesquisa do IPRI indica que candidaturas que mobilizam a religiosidade tendem a ser mais bem-sucedidas nas urnas, e ocupam, em média, mais de 51% das cadeiras nas Câmaras Municipais nas eleições de 2020.
Candidaturas com identidade religiosa nas capitais do Brasil
O levantamento do Bereia sobre as candidaturas com identidade confessional para as Prefeituras das 26 capitais brasileiras, em 2024, levou em conta os dados fornecidos pelo TSE. Foi contabilizado um total de 192 candidatos e candidatas, de 28 partidos. Para verificar quais deles têm identidade confessional, foi utilizada a base de dados do Instituto de Estudos da Religião (ISER) sobre as eleições de 2020 e 2022, para obter dados de candidaturas à reeleição e outras reapresentadas. Para as novas candidaturas, a equipe Bereia seguiu a metodologia do ISER de tomar por base as mídias sociais dos candidatos para conhecer como se autoidentificam e como expõem, ou não, uma confessionalidade, além da consulta a outros registros públicos.
Os dados levantados pelo Bereia mostram que 84 candidatos/as a prefeitos/as de capitais do país expõem publicamente sua confissão religiosa: 46 são católicos, 21 se identificam como cristãos de forma não determinada, 16 são evangélicos e um é espírita.
Este grupo que pleiteia as Prefeituras das capitais está dividido em 19 partidos: a maioria é da direita, com 41 candidatos, sendo 14 do PL, oito do União Brasil e 29 de outros nove partidos; são 21 candidatos com identidade confessional em cinco partidos ao centro. Já a esquerda tem 19 candidatos entre PT, PDT, PSB e PSOL.
Entre estas candidaturas, 13 tentam a reeleição e dois são vereadores que almejam Prefeituras. Há 15 deputados federais que se licenciaram para concorrer, dois senadores e 17 deputados estaduais.
Destaca-se o dado de que 25% dos candidatos às Prefeituras das capitais se identificam como cristãos de forma não determinada. As pesquisas do ISER mostram que a exposição de uma identidade cristã não determinada tem sido uma prática expressiva em campanhas eleitorais desde 2020.
Porém, 38% deste grupo de cristãos não determinados têm algum tipo de vínculo com uma igreja (dois católicos e cinco evangélicos) e até mesmo com uma outra religião. Como já citado na análise de Lívia Reis, estes candidatos optam por comunicar certos valores cristãos às suas bases eleitorais.
Um exemplo destacado neste grupo é o do candidato na cidade de São Paulo Pablo Marçal (PRTB). Em entrevista ao canal Antagonista, Marçal diz ser cristão, mas não se considera evangélico nem católico. Para ele o Cristianismo é um estilo de vida (lifestyle), não uma religião. Porém, mesmo negando um vínculo confessional, o acionamento de símbolos e discursos evangélicos e a aproximação do influenciador com pastores do segmento é bastante visibilizado.
Ex-coach, o influenciador digital atraiu uma legião de seguidores ao falar sobre fé, pensamento positivo e prosperidade financeira, marcas relevantes do discurso da Teologia da Prosperidade, bem conhecido entre os evangélicos brasileiros. Isto proporcionou que ele participasse de conferências e cultos ao lado dos pastores midiáticos Claudio Duarte, Josué Valandro Junior e André Valadão.
Imagem: reprodução/Youtube
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Em uma palestra voltada para pastores, Pablo Marçal cita a frase “Um monte de gente vai te criticar em nome de Jesus, manda esse povo se f*”, arrancando risos do público.
Durante a pandemia, o candidato paulistano participou de live com o também pastor midiático Caio Fábio, que é reconhecido no cenário do evangelicalismo brasileiro como progressista. Sobre a live, o pastor se diz crítico do ex-coach e explicou que se tratou de um pedido feito por amigos próximos e que não o conhecia previamente.
Além da identidade religiosa e do vínculo confessional, também foi verificado pelo Bereia se os candidatos já foram checados por terem propagado desinformação.
Dos 84 candidatos às Prefeituras das 26 capitais, quatro já foram checados pelo Bereia por propagarem desinformação. São eles, Cristina Graeml (PMB, Curitiba/PR, cristã não determinada), Assumção (PL, Vitória/ES, evangélico da Igreja Maranata), Pablo Marçal (PRTB, São Paulo/SP, cristão não determinado) e Eduardo Girão (Novo, Fortaleza/CE, cristão com vínculo espírita kardecista). Girão, que é senador da República (Novo-CE), teve várias verificações do Bereia, com destaque para a atuação dele com falsidades na CPMI da Covid e contra a política de vacinação, também na divulgação de conteúdos falsos sobre o Q-Anon e de informações falsas sobre o aborto legal.
Imagem: reprodução/site Bereia
Entre os 84 candidatos/as às Prefeituras das capitais com confissão religiosa identificada pelo Bereia, alguns também se destacam por menções negativas no noticiário, seja por checagens de mentiras divulgadas, seja por discurso de ódio ou por corrupção. É o caso do deputado federal licenciado para concorrer à Prefeitura de Cuiabá Abílio Brunini (PL-MT), conhecido como “Rei das Fake News”.
Imagem: reprodução/Diário de Cuiabá
Evangélico e neto de pastor das Assembleias de Deus, Abílio Brunini ganhou notoriedade durante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos Golpistas, em 2023, de onde teve, por várias vezes, a saída ordenada pela presidência da Comissão por conta de atitudes indecorosas. Eleito vereador de Cuiabá, pelo PSC, em 2016, ele teve o mandato cassado por quebra de decoro parlamentar, e naquele mesmo ano concorreu à Prefeitura da cidade, saindo derrotado no segundo turno.
A campanha de Abílio Brunini já foi multada na primeira semana do período eleitoral de 2024, por propagação de mentiras contra o candidato concorrente.
Imagem: reprodução/Diário de Cuiabá
Outro destaque no quesito desinformação é Janad Valcari (PL, Palmas/TO, evangélica de vinculação não identificada), com caso recente reportado pela plataforma Conjur. O veículo aponta que a candidata, licenciada como deputada estadual para concorrer à Prefeitura de Palmas (TO), moveu um processo para a retirada do site Diário do Centro do Mundo (DCM) do ar, que publicou reportagem que expunha ganhos milionários da deputada em contratos com Prefeituras para shows musicais. A juíza Edssandra Barbosa da Silva Lourenço, da 4ª Vara Cível da Comarca de Palmas, determinou o cumprimento do processo e o site foi suspenso. A medida foi criticada por juristas, lideranças políticas e jornalistas como censura prévia e um grave atentado à liberdade de imprensa e ao direito à informação.
Bereia seguirá no acompanhamento destas candidaturas com identidade religiosa confessional e de outras que acionarem temas religiosos como estratégia. Leitores e leitoras podem contribuir com o envio de materiais para checagem por meio dos canais de contato indicados no site Bereia.
A partir deste compromisso, foi lançada pelo Bereia em parceria com a CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço, o CEBI – Centro de Estudos Bíblicos e o CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs a campanha “Bote fé no Voto! Votar é um direito!” , com o objetivo de combater a desinformação nos meios e mídias religiosos durante as eleições municipais de 2024. A campanha ocorre ao longo de sete semanas e apresentará reflexões e dicas para ajudar os eleitores a fazer valer seu voto de forma consciente.
* Matéria atualizada em 25/08/2024 para ajuste no link ao final da página
As eleições municipais chegaram e o Bereia, em parceria com a CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço, o CEBI – Centro de Estudos Bíblicos e o CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, lançam, nesta quarta-feira (21), a campanha “Bote fé no Voto! Votar é um direito!”. Uma iniciativa de enfrentamento à desinformação nos meios e mídias religiosos, durante a caminhada até a escolha de prefeitos/as e vereadores/as que governarão os municípios brasileiros nos próximos quatro anos.
Esta já é a segunda campanha de combate à desinformação nas eleições promovida por uma parceria CESE, Bereia e CONIC. Ao longo das eleições presidenciais de 2022, as três organizações se reuniram para trazer dicas de como identificar conteúdos desinformativos e apresentar checagens de alguns que já amplamente difundidos. No ano de 2024, o CEBI se soma a iniciativa.
Desta vez, ao longo das 7 semanas em que candidatos/as estarão em campanha para as eleições municipais em 2024, a campanha “Bote fé no Voto! Votar é um direito!” trará 7 reflexões e dicas sobre como fazer valer o nosso voto para além da urna.
Acompanhe a campanha e os materiais no perfil do Bereia e das demais organizações promotoras no Instagram.
Não é novidade, e esse parece ser o espírito da coisa: muitos conteúdos desinformativos costumam ser reaproveitados em mídias e meios religiosos a cada ano de eleição para prejudicar ou favorecer determinado candidato ou corrente política. Bereia já checou (e provavelmente ainda vai checar) inúmeros casos.
Acompanhe conteúdos que tanto Bereia como outras iniciativas de checagem já abordaram e voltam a circular frequentemente nas mídias sociais, conforme nos mostram solicitações enviadas por leitores e leitoras:
É falso que Senado Federal analise lei para proibir pregações religiosas
Voltou a circular nas últimas semanas em mídias religiosas uma mensagem que se refere a uma suposta “lei de proteção doméstica” em debate no Senado Federal que proibiria a pregação religiosa. O conteúdo é falso e já foi checado por Bereia em 2019 e em 2022.
Não existe Projeto de Lei em discussão denominado “Proteção Doméstica”. O mais próximo texto em tramitação que Bereia encontrou, o PL 524/2015, também não diz respeito a “prisão religiosa”, proibições de pregações e visitas religiosas ou de leitura da Bíblia. A proposta refere-se, sim, a controle de volume de som exagerado em horários noturnos, o que já é feito por meio de diversas leis municipais e estaduais.
Além do Bereia, a informação já foi checada por Boatos.org, Agência Lupa e desmentida também pelo próprio Senado Federal uma, duas, três, quatro vezes. O desmentido foi publicado ainda pelo site religioso Folha Gospel.
Comunismo e “ameaça” comunista x patriotismo
Diversas checagens abordando suposta “ameaça” comunista em contraposição ao patriotismo costumam circular de tempos em tempos, mais ainda em ano eleitoral. Veja aqui o que Bereia já checou a respeito.
“Cristofobia” e perseguição a cristãos
Apesar de ser uma das religiões majoritárias do Brasil e com ampla liberdade de culto, reunião e até proselitismo em rádio e TV, a ideia de uma perseguição aos cristãos no país é tema de diversos conteúdos desinformativos. Bereia já checou vários, inclusive neste ano, confira.
Covid-19 e vacinas
Bereia surgiu a partir de uma pesquisa acadêmica sobre desinformação na área da saúde em meios religiosos. O tema nunca deixou de estar presente até hoje. É o que mostram as diversas checagens do Bereia a respeito.
A cinco meses das eleições municipais de 2024, temas que aparecem com frequência em espaços religiosos ganharam destaque nas últimas semanas: a imposição do medo de doutrinação ideológica em escolas e a já conhecida suposta perseguição contra cristãos e seus símbolos de fé.
Em 7 de junho, a vereadora de Campinas (SP) Débora Palermo (PL), membro da Igreja do Nazareno, convocou seus seguidores para uma reunião da Frente Parlamentar de Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes em Campinas, que discutiu os “riscos” do Plano Nacional de Educação (PNE) e do Sistema Nacional de Educação (SNE).
Em vídeo publicado em seu perfil do Instagram, a vereadora evangélica diz que “coisas terríveis” são propostas pelo Plano: “Você sabe quantas vezes é usado o termo ‘LGBTQIA+’ e ‘gênero’ nessa proposta? E você sabe quantas vezes é usado o termo ‘língua portuguesa’ e ‘matemática’? (…) É um plano que é contra as escolas cívico-militares, é contra as escolas cristãs, é uma ideologia, uma manipulação de nossas crianças e isso não pode ocorrer. Você tem que conhecer, tem que discutir junto conosco esse plano aqui na segunda-feira”.
Imagem: Reprodução do Instagram
Esta é uma das muitas menções críticas alarmistas, desde a realização da Conferência Nacional de Educação (Conae), em janeiro passado. Na época, por exemplo, o deputado federal Mario Frias (PL-SP) compartilhou um vídeo no Instagram com a frase “Esquerda projeta ditadura psicopedagógica para os próximos 10 anos” e a chamada que propaga pânico “Projetam seus filhos!!!”.
Imagem: Reprodução do Instagram
Estes discursos se assemelham ao proferido pela vereadora Débora Palermo e pelos palestrantes da 3ª reunião da Frente Parlamentar de Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes de Campinas.
A recorrência desses temas tem levado o Bereia a verificar informações e conteúdos que se relacionam direta ou indiretamente com os fatos que ganharam repercussão neste mês de junho. Veja, a seguir, a checagem das afirmações de políticos influentes em grupos religiosos sobre o Plano Nacional de Educação e a Conferência Nacional de Educação, que fez recomendações para o texto final.
A repetição de falsidades e pânico moral no evento organizado pela vereadora de Campinas
O conteúdo do vídeo divulgado pela vereadora Débora Palermo é apenas um extrato do conteúdo que permeou a reunião que a Câmara de Vereadores de Campinas realizou. Uma das palestrantes do evento é a advogada Adriana Marra, que foi candidata não eleita deputada federal pelo PROS de Minas Gerais em 2022, tendo recebido 1.230 votos. Durante a fala de Marra na reunião, ela afirma que o PNE é parte de um projeto de poder cujas estratégias podem envolver orgias com crianças de tenra idade.
“Essas estratégias que são usadas hoje aqui no Brasil elas já foram usadas, já estão descritas, conhecidas há mais de um século. A começar na caída do Império Russo, quando quando o comunismo ascendeu lá as estratégias eram alienar as famílias, embebedar os pais, trabalhar com pornografia e orgias com crianças de tenra idade, a afastar essa população das igrejas”, disse a advogada.
Bereia verificou que, além de não haver há qualquer registro histórico que comprove a alegação de Adriana Marra, a advogada recorre ao imaginário do “perigo comunista”, abordagem frequente entre partidários do extremismo de direita no Brasil.
Imagem: Reprodução do Youtube
Outra palestrante da reunião promovida pela vereadora Débora Palermo, foi a professora e proprietária do Centro Educacional CONSER (Rio Verde – GO) Osvaldina Paula de Oliveira. Ao buscar mais referências sobre a escola, Bereia identificou um perfil no Instagram que tem nos destaques uma aba “Igreja” entre outras que também incluem “CONAE”.
Imagem: Reprodução Instagram da Escola Conser
No destaque “CONAE” há muitas imagens e vídeos críticos à conferência, classificados como “absurdos”, entre eles um vídeo, no qual uma participante associa a professora e escritora bell hooks à pedofilia.
Imagem: Reprodução do Instagram da Escola Conser
A mulher relata no vídeo:
“Me chamou muito a atenção um colóquio com o título ‘Desconstruindo paradigmas na educação’, na perspectiva dessa senhora aqui [o nome bell hooks aparece na tela] Quem foi ela? Ela era uma feminista americana que escreveu mais de 30 livros e em um dos livros dela, o livro ‘Ensinando a transgredir – Educação Como Prática da Liberdade’,No capítulo onde trabalha ‘Eros, erotismo e o processo pedagógico’ ela conta que, em certo momento, ela sentiu atração erótica por um aluno e ela tinha aprendido a se reprimir, a se retrair, a negar esses sentimentos, porém ela decide encarar todas as paixões despertadas na sala de aula e a lidar com elas. Pois bem, era uma das salas, eu não podia participar de todas, alguns colegas participaram de outros colóquios e mostraram as suas perspectivas, essa é a minha experiência, e fica para que possamos pensar quais são esses paradigmas que se pretende desconstruir, erotismo? Sexualidade? Pedofilia? Eis a questão”.
Bereia verificou o capítulo do livro de bel hooks citado no vídeo e constatou que a fala oculta a informação de que o caso mencionado pela escritora se passa em uma universidade, o que não permite qualquer relação do caso refletido pela professora escritora com pedofilia.
Confira o trecho extraído das páginas 254 e 255 de “Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade”, de bel hooks:
“No primeiro semestre como professora de faculdade, havia na minha classe um aluno do sexo masculino que eu sempre parecia ver e não ver ao mesmo tempo. A certa altura, no meio do semestre, recebi um telefone de um terapeuta da faculdade que queria falar comigo sobre o modo como eu tratava esse aluno durante as aulas. O terapeuta me disse que os alunos haviam lhe contado que eu era anormalmente áspera, rude e simplesmente má quando me relacionava com aquele aluno. Eu não sabia exatamente de quem se tratava, não conseguia relacionar o nome dele com o rosto ou um corpo, mas depois, quando ele se identificou na sala de aula, percebi que eu sentia uma atração erótica por ele. E que meu jeito ingênuo de lidar com sentimentos que eu havia aprendido a nunca ter na sala de aula consistia em me esquivar (e por isso o tratava mal), reprimir e negar. Ultraconsciente, na época, de como a repressão e a negação podiam ‘ferir’ os alunos, eu estava determinada a encarar todas as paixões despertadas na sala de aula e a lidar com elas”.
Esta associação de pedofilia a movimentos de esquerda e grupos LGBTQIA+ é uma prática comum em conteúdos disseminados pela extrema direita, e explorada em espaços religiosos, como Bereia já checou. De forma semelhante, a noção inventada de “ideologia de gênero” é um dos temas mais usados por quem produz desinformação em espaços religiosos. Estes temas emergem com mais intensidade em períodos eleitorais, como estratégia de campanha e tem relação com a fala da vereadora Débora Palermo, gravada no vídeo checado pelo Bereia.
O que é o Plano Nacional de Educação (PNE)
A Constituição Federal estabelece, no artigo nº 214, a criação do Plano Nacional de Educação (PNE), um documento que deve reunir diretrizes, estratégias, objetivos e metas para o desenvolvimento da educação no país. Desse modo, a norma prevê, ainda, que todas as esferas federativas devem trabalhar juntas para alcançar os seguintes objetivos:
I – erradicação do analfabetismo;
II – universalização do atendimento escolar;
III – melhoria da qualidade do ensino;
IV – formação para o trabalho;
V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.
VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.
Nestas bases, o PNE define as metas da educação brasileira para os próximos dez anos, sendo revisto e discutido ao fim do período – quando uma nova versão deve ser aprovada pelo Congresso. O plano atual foi sancionado em 2014 e estabeleceu as seguintes diretrizes:
Erradicação do analfabetismo;
Universalização do atendimento escolar;
Superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da justiça social, da equidade e da não discriminação;
Melhoria da qualidade da educação;
Formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade;
Promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;
Promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país;
Estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade;
Valorização dos profissionais da educação;
Promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.
O documento com as propostas para a próxima edição do PNE, vigente de 2024 a 2034, foi aprovado em 30 de janeiro deste ano na Conferência Nacional de Educação (Conae), que foi alvo de uma intensa campanha de desinformação, como verificado por Bereia. De acordo com as checagens, influenciadores, associações de educação, parlamentares e perfis nas mídias sociais retrataram o evento como um avanço da esquerda “na doutrinação de crianças e adolescentes”.
No que diz respeito à fala da vereadora de Campinas Débora Palermo (PL), no vídeo divulgado, Bereia verificou que, de fato, o documento final da Conae propõe que o Sistema Nacional promova o “encerramento do processo de militarização das escolas públicas do país, ampliando os programas de combate à violência e ao uso de drogas”, com o devido embasamento de tal indicação. Porém, é falso afirmar que a Conferência se pronunciou contra a existência de escolas cristãs ou confessionais.
Além do documento final do evento público reafirmar a existência e o respeito aos direitos fundamentais das instituições confessionais, estas estiveram representadas no Fórum Nacional de Educação, que articula a Conae, pela Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (Anec) e pela Associação Brasileira de Instituições Educacionais Evangélicas (Abiee).
Reprodução: Reprodução Documento Final Conae 2024
Bereia verifica que, além de propagar conteúdo falso sobre suposta campanha contra escolas cristãs pelos participantes da Conae 2024, a vereadora Débora Palermo estimula a ideia da suposta perseguição a cristãos no Brasil, para alimentar seu discurso.
Discurso de perseguição a cristãos ganha espaço em mídia não-religiosa
Outro tema explorado em espaços digitais religiosos neste mês de junho foi, mais uma vez, o da perseguição a cristãos. O site O Antagonista publicou, no dia 9, a matéria intitulada “MP abre guerra contra a Bíblia”. No texto que aparenta ser informativo, mas tem redação opinativa, são criticadas decisões do Ministério Público de São Paulo sobre a obrigatoriedade da presença de Bíblias em bibliotecas públicas de São José do Rio Preto (SP) e o uso da frase “sob a proteção de Deus iniciamos nossos trabalhos” no início de sessões legislativas da cidade.
Bereia verificou que, o MP-SP, tais práticas criam preferências e um tratamento privilegiado parauma religião, o que não cabe ao Legislativo Municipal e vai contra o princípio da laicidade do Estado brasileiro. A matéria opinativa do site O Antagonista para reforçar a falsa ideia de perseguição a cristãos no Brasil, afirma que as decisões judiciais tentam igualar o Cristianismo, fé da maioria dos brasileiros, a outras religiões, e essa ideia seria uma forma de discriminação.
Imagem: Reprodução O Antagonista
A imagem que ilustra a suposta matéria informativa exibe um livro em chamas e reforça o tom alarmista usado no título: remete à ideia de que questionar a inconstitucionalidade de leis municipais significa declarar guerra ao símbolo da fé cristã, o que pode ser equivalente a lançá-lo ao fogo – ainda que as ações do MP não tratem sobre a circulação ou comercialização de Bíblias.
Um caso semelhante foi verificado pelo Bereia neste ano: em março, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) declarou como inconstitucional a Lei Municipal 7.205/04, de Sorocaba (SP), que torna obrigatória a inclusão de Bíblias entre as obras de Bibliotecas Municipais. Por conta da decisão, o prefeito da cidade Rodrigo Manga (Republicanos), missionário da Igreja Mundial do Poder de Deus, produziu vídeos com o discurso de que cristãos e a “obra de Deus” estavam sendo perseguidos.
Imagem: Reprodução Instagram
De acordo com a apuração, a decisão do TJ-SP não proíbe que bibliotecas públicas disponham de Bíblias, mas considera que a obrigatoriedade da inclusão do livro cristão, nesses espaços públicos, viola a laicidade do Estado. Este argumento também embasou o entendimento do STF, em 2021, sobre uma norma do Estado do Amazonas que estabelecida obrigatoriedade de Bíblias em escolas e bibliotecas públicas: foi declarada a inconstitucionalidade por conta de tal lei estimular e promover um conjunto de crenças e dogmas em prejuízo de outros.
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Bereia classifica como falsas as afirmações da vereadora de Campinas (SP) Débora Palermo (PL) e do site de notícias O Antagonista, que propagam, respectivamente, pânico relacionado à regulação da educação no País e à suposta perseguição a cristãos no país.
Em vídeo gravado, sobre as propostas encaminhadas pela Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada em janeiro passado, à redação do Plano Nacional de Educação (PNE), serem contrárias à existência de escolas cristãs no País. Como a checagem demonstra, o documento final da Conae recomenda o encerramento do sistema de escolas cívico- militares que não correspondem às necessidades educacionais do país, na avaliação dos docentes participantes da conferência. Porém, sobre escolas confessionais, o texto recomenda o respeito aos direitos constitucionais destas instituições. Além de propagar mentiras sobre a educação no país, a vereadora ainda contribui para a disseminação de pânico sobre a falsa perseguição a cristãos no Brasil.
A fala da parlamentar também é marcada pela associação do termo LGBTQIAP+ a um perigo para crianças, o que foi corroborado por outras falas na reunião que ela convocou por meio da Câmara de Vereadores de Campinas. Tal abordagem gera um clima de pânico que leva o público a ter julgamentos errôneos e sentimentos hostis por uma população que tem o direito de existir, de acordo com as leis do país mas é alvo de crimes de ódio: o Brasil ainda é o país com mais assassinatos de pessoas LGBTQIAP+.
Desse modo, informações disseminadas por outras opositoras ao documento elaborado pela Conae, convidadas para a reunião, geram o mesmo efeito, que colocam grupos progressista como alvo: primeiro com a afirmação falsa de que orgias com crianças eram promovidas na Rússia pós-revolução, e depois com o vídeo enganoso que distorce a obra da escritora bell hooks para associá-la à pedofilia.
No mesmo período, se soma a publicação de matéria do site O Antagonista que oferece conteúdo falso sobre suposta guerra da Justiça contra as Bíblias. Como Bereia verificou, esta afirmação não procede, pois o veículo, com texto opinativo com aparência de informação, acaba por servir como meio para propagação da falsa ideia de uma perseguição a cristãos no Brasil, como já checado em outras várias matérias.
Bereia chama a atenção de leitores e leitoras para o uso do pânico relacionado à educação no país e à falsa perseguição a cristãos no Brasil que são temas recorrentemente utilizados em campanhas digitais para captar apoios, em ambientes digitais religiosos, com uso do alarmismo e do medo. Tal prática, identificada em grupos extremistas da direita política, busca suporte a determinadas pautas e votos em processos eleitorais, como o municipal que será realizado no segundo semestre deste ano.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade; tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
Os deputados federais evangélicos Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) e Otoni de Paula (MDB-RJ) foram condenados pela Justiça por disseminar informações falsas durante as eleições municipais de 2020. Segundo o blog do jornalista Ancelmo Gois, do jornal O Globo, os parlamentares pré-candidatos à Prefeitura do Rio de Janeiro em 2024, deverão indenizar o Diretório Municipal do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), por terem acusado o partido de distribuir “kit gay” e associá-lo a pedofilia, naquele pleito.
O ex-prefeito do Rio e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo Crivella, e o ex-vice-líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados e pastor da Assembleia de Deus Otoni de Paula, tiveram uma pena imposta pela Justiça que inclui o pagamento de uma multa no valor de R$ 60 mil. Ainda cabe recurso contra a decisão.
Imagem: O Globo/Reprodução
Bereia checou o caso em 2020
Em novembro de 2020, dois vídeos de campanha de Marcelo Crivella foram divulgados nas mídias sociais. Em um deles, durante uma transmissão ao vivo, Crivella conversa com o deputado Otoni de Paula (PSC-RJ, à época) e afirma que, se seu opositor no segundo turno do pleito para a Prefeitura do Rio, Eduardo Paes (PSD hoje; DEM, à época) vencesse as eleições municipais, a secretaria de educação seria entregue ao deputado do PSOL Marcelo Freixo e a pedofilia passaria a ser praticada nas escolas.
O segundo vídeo, compartilhado, depois, por Otoni de Paula, mostra o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL; sem partido, à época) afirmando que havia um plano das esquerdas de sexualizar as crianças e legalizar a pedofilia. No vídeo, o deputado demonstra indignação e afirma estarem negociando a educação no Rio.
Imagem: Reprodução/O Globo
O conteúdo do vídeo de campanha foi divulgado naquele ano pelo site Pleno News, sem fornecer contexto ou informações precisas.
Imagem: Reprodução/Pleno News
O então deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ; hoje, PT), em uma transmissão ao vivo, negou haver qualquer negociação de cargos com Eduardo Paes e declarou a Marcelo Crivella: “Você vai ser processado, vai responder na Justiça. Isso é o desespero de quem vai tomar uma surra eleitoral. Você vai sair da prefeitura como um ser rastejante. Você é um ser político rastejante, Crivella”.
O candidato a vereador pelo PSOL, à época, Chico Alencar, citado no vídeo de Otoni de Paula, como exemplo, também denunciou em suas mídias sociais que as declarações do bispo eram mentirosas.
Imagem: Reprodução/Coletivo Bereia
Em 2020, Bereiaverificou o caso, e concluiu que a campanha de Marcelo Crivella utilizou os mesmos temas de conteúdos falsos que haviam sido empregados por Jair Bolsonaro, quando candidato à Presidência da República no pleito de 2018. Um desses temas foi o “kit gay”, desde então classificado como desinformação e propaganda enganosa.
Foi verificado, também, que desde as eleições de 2018, houve aumento das candidaturas que utilizavam mentiras em campanha, principalmente as que exploravam a moralidade sexual como forma de angariar o apoio de eleitores mais conservadores.
Imagem: Reprodução/Coletivo Bereia
Na matéria de checagem em 2020, Bereia consultou dois especialistas em religião e política para comentar sobre o caso. A antropóloga do ISER e da UFRJ Livia Reis explicou que, embora o “kit gay” fosse relacionado ao PT, o PSOL se destacava na defesa de pautas identitárias. Ela recordou que conservadores associam a pedofilia à discussão sobre identidade de gênero e direitos sexuais, e veem essas pautas como sexualização de crianças. Reis lembra que o PSOL levou ao STF a ação para enfrentar a homofobia nas escolas, e tornou-se alvo por seu crescimento e visibilidade na Câmara Municipal do Rio.
Já o sociólogo Alexandre Brasil Fonseca observou que Crivella adotou uma estratégia de tudo ou nada, semelhante à campanha de Bolsonaro em 2018, mas enfrentou alta rejeição e pouco tempo de campanha. Fonseca sugeriu ainda que a acusação de “pai da mentira”, que foi atribuída ao então Prefeito do Rio, por Eduardo Paes em debate na TV, poderia prejudicá-lo mais. O resultado das eleições, com a derrota de Crivella e a vitória de Paes, confirmou esta análise.
O processo
Em 2021, após as eleições, o PSOL acionou Marcelo Crivella e Otoni de Paula, na Justiça comum, por espalharem conteúdo mentiroso contra o partido (crime de calúnia, previsto no art. 138 do Código Penal). O PSOL demandou R$ 100 mil como compensação pelos danos.
O partido tinha a seu favor um parecer do Ministério Público Eleitoral do Rio de Janeiro (MPERJ), que havia considerado as ações do ex-prefeito como tentativas de causar medo psicológico e religioso. Na época, o parecer do MPERJ pediu ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) que Crivella publicasse a resposta do PSOL, em suas publicações de campanha, dentro de 12 horas após a condenação oficial. Por conta disso, o tribunal concedeu direito de resposta ao partido, mas o conteúdo nunca foi divulgado.
O TRE também decidiu que o candidato à reeleição à Prefeitura do Rio deveria remover o vídeo com as falsas acusações contra o partido, ou enfrentaria uma multa diária de R$ 10 mil até cumprir a decisão. “O vídeo publicado nas redes sociais causa desinformação e veicula ao público notícia sabidamente inverídica, tentando incutir na mente do eleitor tal informação de pedofilia nas escolas com assunção do PSOL”, explicava a sentença. Entretanto, as acusações contra o partido não foram retiradas.
Em entrevista ao UOL , a presidente do PSOL à época, Isabel Lessa, se pronunciou sobre o processo impetrado.
“Nosso objetivo com essa ação indenizatória é fazer prevalecer a verdade e a justiça, num momento em que a mentira e a desinformação se tornaram armas nas mãos de governos e grupos políticos com viés autoritário. A atitude desesperada do ex-prefeito, que sabia que perderia as eleições no ano passado, não atinge apenas ao PSOL, mas ao conjunto da sociedade, já que seu intuito era mobilizar o medo das pessoas através de afirmações mentirosas”.
Lessa ressaltou que a violência praticada neste caso tem como razão a perpetuação no poder de grupos políticos. “Uma vez que precisam sustentar uma base dita conservadora, com medo e mentiras para que continuem seu domínio, não só em termos de votos, mas também, financeira e ideologicamente, mesmo que isso seja negar a política. Ao nos acusar de praticar aquilo que, justamente, combatemos, o patriarcado fundamentalista tenta esconder hipocritamente as próprias ações e intenções”.
Após três anos, o caso foi julgado e a sentença que condena Crivella e Otoni por calúnia foi proferida.
Marcelo Crivella não se posicionou publicamente sobre o caso, até o fechamento desta matéria, Já o deputado Otoni de Paula, publicou na mídia social X uma resposta à postagem do deputado federal Tarcísio Motta (PSOL-RJ). Motta, após a divulgação da sentença, havia afirmado: “ Crivella e Otoni de Paula foram condenados pela Justiça a indenizar o PSOL. A causa foi o uso de informações falsas divulgadas durante a campanha eleitoral, quando acusaram o partido de distribuir um suposto “kit gay” e associaram a sigla à pedofilia. Terão de pagar R$ 60 mil”.
Na resposta, o pastor da Assembleia de Deus manteve as ideias condenadas pela Justiça: “Fake news que chama @MottaTarcisio? Quem lê pensa que eu e @MCrivella teremos que pagar a ‘turminha polenta’ algum dinheiro amanhã. Calma, o processo ainda não está transitado em julgado. Enquanto isso reafirmo que não deixarei de lutar para que vocês deixem nossas crianças em paz. Escola sem partido JÁ!”
Imagem: reprodução/X
Bereia ouviu o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) sobre o caso. Ele declarou que “cristão” como esses precisam ser contidos”. “Crivella e Otoni fizeram uma live na qual afirmaram que o PSOL iria compor a Secretaria de Educação em um eventual governo de Eduardo Paes (DEM), então adversário de Crivella, e que o partido seria conivente com a pedofilia. Paes, que assumiu a Prefeitura em 1º de janeiro de 2021, não indicou nomes ligados à legenda para a pasta.”
O deputado ainda citou o caso da distribuição de panfletos da campanha de Crivella para difamar a oposição, que também foi objeto de matéria do Bereia. “O PSOL informou na ação que a campanha de Crivella distribuiu 1 milhão de panfletos nas ruas da capital fluminense com as mesmas afirmações mentirosas”. Alencar relata que Crivella e Otoni de Paula terão que indenizar o PSOL em R$ 60 mil e que a desinformação deve ser combatida permanentemente, pois a Justiça tem dado razão aos “caluniados”.
O deputado recorda que não é a primeira vez que Otoni de Paula é condenado por atos como esse. “Ele até hoje paga uma indenização ao Jean Wyllys por associá-lo à tentativa de homicídio sofrida por Bolsonaro. Absurdo irresponsável e criminoso”.
Crivella, Otoni de Paula: deputados, líderes religiosos e acusados
Imagem: reprodução/O Globo
Marcelo Bezerra Crivella (Republicanos) é deputado federal, eleito em 2022, e foi senador (2003 a 2017) e Ministro da Pesca e Aquicultura do Brasil (2012-2014), nos governo Dilma Rousseff (PT). Em 2016, foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro, em uma gestão marcada por escândalos de corrupção, pedidos de impeachment na Câmara Legislativa, por sua prisão, pouco antes de finalizar seu mandato, e por acusações de favorecimento à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).
Crivella é bispo licenciado da IURD, e é sobrinho do fundador e líder maior, o Bispo Edir Macedo. O caso mais emblemático do favorecimento à igreja foi a gravação do áudio de uma fala do então prefeito, na sede da Prefeitura, em que afirmava que os fieis e pastores evangélicos poderiam procurar uma das suas assessoras, Márcia Pereira da Rosa Nunes, para facilitar a marcação de cirurgias de catarata e varizes, ou para a assistência do pagamento do IPTU das igrejas.
Com posições conservadoras, de defesa da família tradicional, dos valores cristãos e críticas às pautas progressistas, especialmente sobre direitos LGBTQ+, Marcelo Crivella esteve ligado a outros casos de disseminação de informações falsas, especialmente em suas campanhas eleitorais, como relatado ao Bereia pelo deputado Chico Alencar.
O TRE-RJ cassou-lhe o mandato de deputado, em 2023, pelo caso “Guardiões do Crivella”, que utilizava servidores públicos municipais para “monitorar e impedir a interlocução de cidadãos com profissionais de imprensa” e evitar a entrevista e gravação de reportagens que abordaram a situação do sistema de Saúde do Rio em período eleitoral. Nesse processo, além da cassação, ainda foi tornado inelegível por oito anos.
Porém os efeitos da decisão foram suspensos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao julgar recurso de Crivella. O deputado federal já se coloca novamente como pré-candidato para a Prefeitura do Rio de Janeiro para as eleições de 2024.
Imagem: reprodução/g1
Otoni Moura De Paulo Junior, mais conhecido como Otoni de Paula, é deputado federal pelo MDB do Rio de Janeiro, atualmente em seu segundo mandato na Câmara dos Deputados. Ele foi eleito, inicialmente, em 2018, pelo PSC, e, durante o governo de Jair Bolsonaro, esteve na linha de frente da bancada governista, chegando a ser vice-líder do governo na casa legislativa. O deputado também é pastor da Assembleia de Deus, mesma denominação de seu pai, Otoni de Paula Pai, pastor e político de longa carreira, que faleceu em maio de 2023, em decorrência de um câncer, enquanto exercia o cargo de vereador da cidade do Rio de Janeiro, eleito no pleito de 2020.
Nos últimos anos, Otoni de Paula tem se envolvido em controvérsias e processos judiciais. Em 2020, ele atacou o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), durante transmissões ao vivo em suas redes digitais. Esses ataques ocorreram após Moraes autorizar a quebra dos sigilos bancário e fiscal do deputado em investigações sobre os atos antidemocráticos ocorridos em janeiro de 2023.
As declarações de Otoni de Paula resultaram em uma denúncia pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por injúria, difamação e coação no curso do processo. Além do inquérito dos Atos Antidemocráticos, o deputado, também pré-candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, é investigado no STF no âmbito do Inquérito das Fakes News, de relatoria do ministro Alexandre de Morais.
O parlamentar se apresentou, há alguns meses, como pré-candidato do MDB à Prefeitura do Rio. Entretanto, em 14 de junho, o jornal O Globo divulgou uma nota que afirma que ele decidiu não mais se candidatar a prefeito do Rio de Janeiro, e que vai colaborar na campanha de Eduardo Paes (PSD). Como pastor na Assembleia de Deus de Madureira, Otoni de Paula declarou que vai liderar a campanha do prefeito entre evangélicos.
Pessoas próximas ao deputado do MDB, que foram ouvidas pelo O Globo, dizem que ele desistiu de concorrer porque o partido decidiu não apoiá-lo sem conversar com ele primeiro, o que o fez se sentir desconsiderado. Fontes ligadas ao deputado afirmam que ele estabeleceu algumas condições para apoiar o prefeito, incluindo não criticar publicamente o ex-presidente Jair Bolsonaro, que é seu aliado há muito tempo.
Os anos eleitorais recentes têm sido palco da intensificação da propagação de fake news, segundo avaliou a editora-geral do Bereia e pesquisadora Magali Cunha em reportagem publicada em 20 de março pela Agência Brasil intitulada “Entenda como a nova onda de fake news influencia a guerra digital”.
A pesquisadora chamou a atenção para as eleições ocorridas recentemente. “Os anos de 2018, 2020 e 2022 foram muito intensos com desinformação nos ambientes digitais. Já entre 2019 e 2021, houve deliberadamente uma política de desinformar, promovida pelo governo [do presidente Jair] Bolsonaro (PL). Mas desde outubro do anos passado, é cada vez mais alta a intensidade e quantidade de notícias falsas”, afirmou Magali Cunha.
Na opinião da editora-geral do Bereia, essa guerra digital das fake news é estimulada por diversos atores. “O nosso monitoramento de grupos de influenciadores religiosos aponta um verdadeiro bombardeio de conteúdos falsos, que depois acaba sendo alimentado pela própria grande mídia, com notícias com títulos enganosos que podem induzir leitores a construir pensamentos e ações negativas sobre determinadas pautas”, destacou. Ela acrescentou que “muitos políticos também têm seu papel negativo nesse ecossistema, porque municiam a desinformação com conteúdo não verdadeiro, que depois é trabalhado por esses grupos”.
Você relacionaria fake news com estratégias de campanha eleitoral de candidatos com identidade religiosa? Esse foi o esforço empreendido por Magali do Nascimento Cunha, pesquisadora e editora-geral do Coletivo Bereia, em trabalho apresentado durante a 46ª edição do Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação (Intercom).
A análise, que focou as eleições municipais de 2020, se baseou em dados quantitativos e qualitativos resultantes de pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Os discursos contidos em materiais de campanha foram examinados, com a identificação dos principais conteúdos falsos e enganosos que circularam nos pronunciamentos de tais candidatos.
Magali Cunha concluiu que três núcleos temáticos de concentração de desinformação e fake news foram predominantes: ideologia de gênero, pânico em torno da educação e cristofobia.
Clique aqui e confira na íntegra o artigo, intitulado “Fake news como estratégia de campanha de candidatos com identidade religiosa: um olhar sobre as eleições municipais de 2020”.
O candidato representante da extrema-direita afirmou: “o Papa faz política. Ele tem uma forte influência política. Ele também mostrou grande afinidade com ditadores como Castro e Maduro. Em outras palavras, ele está do lado de ditaduras sangrentas”.
Milei também disse que o Papa Francisco considera a justiça social um elemento central, e “isso é muito complicado, porque justiça social é roubar o fruto do trabalho de uma pessoa e dar a outra”.
As críticas ao Papa Francisco, como a “afinidade com comunistas assassinos” receberam destaque na matéria publicada pelo portal gospel Pleno.News, em 15 de setembro passado. O material foi compartilhado centenas de vezes e circulou por diversos grupos de mensagens de igrejas e entre perfis religiosos.
Imagem: Matéria do Pleno.News checada pelo Bereia
Quem é Javier Milei e por que um site de notícias gospel do Brasil lhe dá destaque
De acordo com o jornal El Observador, que analisou as dez últimas pesquisas eleitorais, o economista ultraliberal e deputado do parlamento argentino Javier Milei lidera as pesquisas de intenção de voto em todos os cenários para a corrida presidencial no país.
Segundo os números mais recentes, ele tem entre 36% e 40,4% dos votos e está à frente do atual ministro da Economia, Sergio Massa, representante do presidente Alberto Fernandez. O candidato do governo tem de 27,4% a 33%. Já a ex-ministra de Segurança Patrícia Bullrich, apoiada pelo ex-presidente Maurício Macri, alcança entre 23,1% a 29,7%. Se os números forem confirmados nas urnas, o candidato da extrema-direita estará no segundo turno.
Milei se autointitula libertário e promete “acabar com a classe política do país”. O livro “La rebeldia se volvió de derecha”, do historiador argentino Pablo Stefanoni, expõe como a chamada “nova direita” surgiu no cenário político com a apresentação de uma suposta rebeldia contra “o sistema”. O capítulo “o que querem os libertários e por que deram um giro à direita?” apresenta a trajetória de Milei e mostra como os temas morais que caracterizam a retórica das chamadas “guerras culturais” se conectam e se entrelaçam com o ultraliberalismo econômico. Este mesmo processo ocorreu nos Estados Unidos e no Brasil, com as campanhas vencedoras de Donald Trump (2016) e de Jair Bolsonaro (2018)
O libertarianismo, movimento nascido nos EUA nos anos 1990, estabeleceu pontes entre a direita e à esquerda políticas, pelo viés dos extremos. O Estado é sempre um inimigo que une as correntes libertárias.
Por isso, o discurso gira em torno do fortalecimento das instituições tradicionais que estimulem a vida pública: a família, a igreja e as empresas, com o descarte do Estado. A autoridade social deve ser representada por essas instituições.
Nessa lógica, explica o livro de Stephanoni, o mercado livre é um imperativo moral e prático. Já o Estado de bem-estar social é um roubo organizado, a ética igualitária é moralmente condenável por ser destrutiva da propriedade e da autoridade social, qualquer “privilégio” racial e de grupo deve ser os valores judaico-cristãos são essenciais para uma ordem livre e civilizada.
Para chegar ao poder, explica o historiador argentino, estes libertários extremistas abraçaram o populismo de direita com teorias que envolvem satanismo, pedófilos, partidos de esquerda e o Papa, entre outros, todos conspirando, em um “sistema”, contra “o povo”. Nos Estados Unidos, o grupo apresentou um salvador para conter esta trama, Donald Trump, e na Argentina, agora, se apresenta Javier Milei.
No Brasil, Jair Bolsonaro também foi apresentado como um político antissistema que prometia governar sem acordos ou concessões à classe política. As mídias sociais colaboram para a propagação desse perfil, mesmo tendo o militar ocupado uma cadeira de deputado federal por décadas e passado por diversos partidos políticos.
O professor da Universidade de Buenos Aires, Ariel Goldstein, explica: “enquanto Bolsonaro se apresentava como um representante conservador da família tradicional e tentava o apoio dos mercados com Paulo Guedes, Milei se apresenta, de cara, como um representante dos mercados e que, agora, faz um movimento mais em direção a faixas conservadoras”.
O portal gospel Pleno News, alinhado a essas políticas econômicas e pautas conservadoras deu amplo espaço à campanha e às declaração de Jair Bolsonaro e agora dá a mesma visibilidade a Javier Milei.
O que Milei falou em entrevista de campanha contra o Papa
Imagem: Reprodução da entrevista de Carlson com Milei no X
Os temas destacados – ideologia de gênero, aborto, afinidade do Papa com ditadores, entre outros – representam o caminho trilhado por Milei e Tucker Carlson durante a entrevista: pânico moral e teorias da conspiração.
Estudos mostram que as posturas do Papa Francisco em sua maneira de conduzir a Igreja Católica tem incomodado políticos de direita, em especial extremistas ultraliberais, e personagens da própria igreja. O líder religioso e chefe do Estado do Vaticano denuncia constantemente as condições precárias dos trabalhadores, o racismo e a liberdade de movimento para os imigrantes. Além disso, “defendendo que a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia’, o bispo de Roma ganhou fama de herege”. Francisco também tem relativizado o direito absoluto à propriedade privada e, por isso, tem sido chamado de comunista.
Com estas bases é possível compreender os ataques do candidato argentino ao Papa Francisco, divulgados na matéria do Pleno News. Na entrevista ao jornalista dos Estados Unidos, objeto do texto, ele expôs publicamente que o pontífice é um “representante maligno na terra”, atrelou-o à esquerda e manteve a comum acusação de que o Papa é comunista.
Bereia ouviu o pastor da Igreja Metodista na Argentina, jornalista e presidente da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC) Leonardo Felix sobre o ataque público do candidato ao Papa Francisco. Felix explica que “[Jorge Mario] Bergoglio [o Papa Francisco] sempre representou, quando era cardeal da cidade de Buenos Aires, uma abordagem clara na síntese do peronismo [o ex-presidente Juan Domingo Perón procurou avançar através três pilares: justiça social, independência econômica e soberania política. Para alcançar um consenso mais amplo, elaborou propostas relacionadas ao tema da justiça social, na busca da paz baseada no amor ao próximo], com as diversas tendências do peronismo, mais até à direita. Porém, para a ultradireita na Argentina, isto não é bem visto”.
O diretor da WACC informa que como reação ao discurso de ataque de Milei ao Papa, houve missas em desagravo, em “villas”, espaços equivalentes às favelas no Brasil. De acordo com Felix, “Milei acusa o Papa no campo político, já que o conectou imediatamente com o peronismo e com a esquerda e por fim com o comunismo, coisa que não pode ser assim vista de nenhum ponto de vista. No caso de Francisco, não há nenhuma ideia que permita entender isso além da retórica do Evangelho.”
Quem é o entrevistador de Milei, Tucker Carlson
O jornalista Tucker Carlson comandava um dos programas de maior audiência nos EUA, pela rede de TV Fox News, notoriamente identificada com a direita política. A rede de TV, inclusive, foi acusada de espalhar informações falsas de que as urnas foram manipuladas para impedir a vitória de Trump nas eleições. Carlson já esteve no Brasil para entrevistar o ex-presidente Jair Bolsonaro em junho de 2022.
A popularidade de Carlson e sua influência definiam a agenda dos conservadores estadunidenses e consequentemente do Partido Republicano. O programa exibido pela Fox News oferecia abordagens conservadoras populistas em questões como imigração, criminalidade, raça, gênero e sexualidade e a chamada ideologia “woke”.
O termo woke tornou-se sinônimo de políticas liberais ou de esquerda, que defendem temas como igualdade racial e social, feminismo, o movimento LGBTQIA+, o uso de pronomes de gênero neutro, o multiculturalismo, a vacinação, o ativismo ecológico e o direito ao aborto. São políticas associadas, nos Estados Unidos, ao Partido Democrata do presidente Joe Biden e à ala mais liberal.
O analista político Guga Chacra afirma que Carlson só perde em popularidade para Donald Trump, entre eleitores do Partido Republicano. Chacra acrescenta que o papel fo jornalista foi fundamental para moldar a nova ideologia do partido e “com um discurso isolacionista e focado na classe trabalhadora branca em temas sociais e econômicos, alterou em parte o discurso conservador americano, antes focado mais em questões fiscais na economia e bélico em questões internacionais”.
Carlson foi demitido da Fox News e passou a atuar nas mídias sociais digitais. Seu último programa na rede TV estadunidense foi transmitido em 21 de abril deste ano. Atualmente tem um programa de entrevistas independente na plataforma X (antigo Twitter), no qual conta com dez milhões de seguidores. A entrevista concedida por Milei e destacada pelo portal Pleno.News foi concedida no programa de Carlson no Twitter.
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Bereia avalia que os ataques de Javier Milei ao Papa Francisco se valem de falsidades, estão no campo da política e funcionam como estratégia eleitoral, na direção do que é praticado comumente por lideranças da extrema-direita.
Ao se apresentar como candidato antipolítico e relacionar o Papa com o peronismo e o comunismo, atrelando-os à esquerda, que busca confrontar, Milei alcança uma grande parcela da população que nega a política e os políticos.
O Papa Francisco, reconhecido por suas posições progressistas na Igreja Católica, está no espectro político oposto ao de Javier Milei, que busca colocar todos os outros políticos e personagens com atuação política como inimigos, na linha das práticas de extrema-direita.
Como não há registros de declarações do Papa sobre apoiar qualquer ditadura, as acusações de Milei podem ser consideradas mais uma teoria da conspiração, ferramenta tão difundida por políticos de extrema-direita em todo o mundo.
Bereia classifica, portanto, a matéria do site religioso, Pleno News como desinformativa, pois não oferece apuração do que o candidato argentino pronuncia na entrevista a Tucker Carlson, apenas reproduz. Desta forma, Pleno News atua como promotor da campanha política de Milei.
Acordei na segunda feira, 31 de outubro de 2022, com a sensação de espanto e a surpresa dos sobreviventes. As eleições haviam acontecido e o Brasil tinha novo presidente. O ar parecia mais puro e era possível respirar. O medo se fazia longínquo e a vida retomava seu curso. Lula era o presidente.
O tempo que precedeu esta segunda-feira foi de muita dor. O estresse era geral e agudo. As pessoas viviam tensas e amedrontadas. E de que tinham medo? Que o pesadelo que já durava quatro anos continuasse. E seguisse. E se perpetuasse.
As mensagens de ódio e violência se sucediam na internet, amigos rompiam relações, familiares se afastavam. A divisão – sinal claro e inequívoco segundo a Bíblia cristã do sufocamento do Espírito da paz, da alegria e do amor – reinava impune, separando, fragmentando e destruindo.
Na véspera do pleito, o fôlego e o alento eram artigos raros, luxo para poucos. A ansiedade fazia o ar espesso e irrespirável. Nada parecia fazer sentido na angústia de não dar certo o imenso esforço de tantos para superar o momento vivido que se arrastava. O horizonte em vez de aproximar-se, fazia-se mais distante e fugidio. O desânimo se agigantava e crescia a letargia que não permitia esboçar sequer um gesto, um suspiro, pronunciar uma palavra.
À noite, decidida a tentar dormir, fui olhar pela última vez o computador. Ali tudo mudou. Li as palavras: “Honre os mortos com seu voto”. “Vote por eles e por elas”. “680 mil pessoas não são um número.” E tudo começou a fazer sentido. Não, não era possível que tudo aquilo tivesse sido em vão. Não era possível que o desprezo e o pouco caso que foi cuspido em cima da dor de mães, de filhos e filhas, de irmãos e irmãs, pudessem vencer. Não era possível que os mortos que não puderam ser chorados e homenageados permanecessem insepultos e que sua memória fosse uma e outra vez pisoteada e escarnecida pela insensibilidade cruel que tomou conta do país durante e após a pandemia, ceifando, além de vidas, a dignidade e a honradez dos sobreviventes.
O que foi dito ao profeta Ezequiel diante dos ossos ressequidos em que se tinha transformado a casa de Israel enquanto atravessava o exílio foi repetido a meus ouvidos: “Filho do homem, poderiam esses ossos retornar à vida?” Sentia-me tão desprovida de fé quanto o profeta, mas a pergunta era insistente. E o coração escutava mais que os ouvidos.
Foi então que aconteceu uma profunda comunhão. Eu não estava mais sozinha, debatendo-me com um voto em cuja eficácia não acreditava. Comigo estavam eles e elas. O padre jovem e dedicado, colega de docência, que morreu logo no começo da pandemia porque não abriu mão de distribuir alimento para os pobres de sua paróquia. A mãe da amiga que disse à filha na porta do hospital “Fala para seu pai não se preocupar não. Já já volto para casa”. E nunca mais foi vista nem ouvida pelo esposo desolado e pela filha em prantos. A menina de 15 anos que a televisão mostrou em foto, ao mesmo tempo em que revelava o desespero dos pais ao saber que não havia resistido ao vírus.
Estavam igualmente os médicos cuja face já fazia uma unidade indissolúvel com a máscara cirúrgica e que, às vezes, não suportavam e choravam. Ou caíam doentes eles também. E eram levados junto a seus pacientes para o misterioso país das lágrimas, deixando atrás o grito de dor e o desespero impotente dos seres queridos. Estavam todos, uns e outros, eles e elas.
E os que queriam abrir os caixões, os que se debruçavam sobre eles, fechados sobre os rostos amados. E os que sufocavam em Manaus enquanto o oxigênio não chegava. E os que se deitavam no chão das enfermarias porque leitos não mais havia.
E a enfermeira Mônica, que qual nova Eva, deu à luz a esperança, filha menor do Bom Deus ao receber em seu braço a primeira picada salvadora da vacina graças à teimosia de um governador que enfrentou as forças do mal.
Votar por eles e por elas. Com eles e com elas. Isso tinha sentido, fazia todo sentido. Realizar o gesto de pressionar a tecla que se uniria a tantas outras e que significaria o fim da barbárie e a nova estação da liberdade e do cuidado com a vida. Os mortos não eram destinados à cova escura como pretendia o discurso abominável de quem os tratou com desdém e frieza. Estavam vivos e eram multidão. Eles ganharam essa eleição. O Brasil nunca poderá pagar a dívida que com eles contraiu.
O Deus da vida que permitiu aos ossos dos israelitas exilados readquirir força e vigor fez ouvir sua voz e sentir a força de seu braço no Brasil. “ Ó meu povo, vou abrir os vossos túmulos;…Sabereis, então, que eu é que sou o Senhor, ó meu povo, quando eu abrir os vossos túmulos e vos fizer sair deles, quando eu colocar em vós o meu espírito para vos fazer voltar à vida…”
Com todos esses filhos do povo brasileiro, votamos com sentido. Que o Senhor da vida nos permita, a partir de agora, viver com sentido, experimentando em nossa boca o agridoce sabor da liberdade e reconstruir a memória e a alma desta combalida nação.
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Imagem de capa: TSE/Divulgação
* Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia
* Matéria atualizada em 21/10/2022 às 12:21 para inserção de novas informações
Na noite da quarta-feira, 19 de outubro, o cantor e pastor da Igreja Batista da Lagoinha André Valadão publicou um vídeo nas suas mídias sociais. Nele, segurava um papel que afirmava ser uma intimação do ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Alexandre de Moraes para que se retratasse sobre afirmações falsas publicadas contra a campanha eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em suas mídias sociais.
O cantor e pastor afirma que o vídeo seria, então, a retratação exigida. Em cenário de fundo preto, com roupas pretas e fisionomia consternada que inspira repressão, Valadão passa a pronunciar afirmações corrigidas, contrárias ao que havia publicado de forma crítica sobre o candidato Lula. O vídeo teve milhões de visualizações, curtidas e compartilhamentos desde a publicação.
O TSE afirmou, horas depois da publicação do vídeo, ao G1, ao UOL, ao Estadão e outros veículos que não emitiu parecer ou intimação a Valadão e que tal sentença não existe.
Ao contrário do que afirma no vídeo publicado, o único processo eleitoral contra o pastor e cantor André Valadão no TSE está sob relatoria da juíza auxiliar – a ministra Maria Claudia Bucchianeri. Trata-se de um pedido de direito de resposta da campanha de Lula contra mentiras e falsidades proferidas por Valadão em suas mídias sociais que seriam “extrapolação do direito de crítica” e “abuso da liberdade de expressão” por meio de falsidades que não são “mera crítica política”.
O que é o papel que André Valadão segura no vídeo?
Bereia verificou que o documento que Valadão exibe no vídeo se trata de uma “Citação” (informação do Tribunal de que a pessoa foi citada em um processo) sobre o pedido de direito de resposta, ação emitida por advogados da Coligação Brasil da Esperança, em 6 de outubro de 2022, em relação a publicações do pastor sobre o ex-presidente Lula que se demonstram falsas e podem interferir negativamente e de forma injusta no processo eleitoral. Diz o documento:
Objetivamente, o Representado extrapolou o direito de crítica ao afirmar que o ex-presidente Lula seria:
(i) “a favor do aborto”;
(ii) “é a favor da descriminalização das drogas”;
(iii) “é a favor de liberar pequenos furtos, os trombadinhas entrar (sic) na sua casa
e roubar sua tv, roubar seu celular, você correr o risco de vida e nada acontecer
com eles“;
(iv) “ele é a favor literalmente de colocar uma regulação na mídia, onde você vai
perder o poder de poder expressar sua opinião, expressar o seu culto”, dentre
Consultada pelo Bereia sobre o que significa o documento enviado a Andre Valadão, a advogada Victoria Gama explica que a Citação foi realizada pelo próprio cartório eleitoral, cumprindo procedimento de praxe, a mando da ministra responsável pelo processo, Maria Cláudia Bucchianeri.
Alexandre de Moraes intimou André Valadão?
Não há no TSE documentos que provem uma intimação do ministro Alexandre de Moraes para Valadão. O único momento em que o nome do ministro é citado no documento analisado é quando se informa a quem se dirige a ação. Ou seja, André Valadão segura a petição da Coligação Brasil da Esperança, documento que foi direcionado a Alexandre de Moraes, como presidente do TSE, de acordo com o protocolo de requerimento, para apreciação. O documento não foi publicado pelo ministro, como afirma o vídeo do pastor.
“O pedido de resposta nasce do chamado direito de resposta, que é um direito constitucional de proteção à honra e à imagem de cada pessoa. Isso, obviamente, está atrelado apenas a críticas públicas, não se aplica no âmbito privado, como numa conversa com família e amigos. Ainda, vale dizer que não é Lula o autor da ação, mas sim a Coligação Brasil da Esperança”, complementa Victoria Gama.
O documento que André Valadão recebeu com cópia do pedido de direito de resposta, e consta nos arquivos do TSE, é uma “Citação”, e não uma intimação. Ele foi encaminhado ao cantor e pastor, no mesmo 6 de outubro. O texto comunica que ele foi citado em uma petição de direito de resposta nos espaços em que ele publicou conteúdo a ser investigado pelo tribunal. Foi dado a ele o direito de se manifestar sobre o caso no prazo de um dia. Findo esse prazo, o TSE segue com o processo, com avaliação do pedido da Coligação e da resposta do citado. Em 19 de outubro, os registros indicavam que o processo ainda está em tramitação. Não há sentença ou liminar. Ninguém foi intimado a tomar qualquer atitude.
Em 20 de outubro, depois de vários veículos jornalísticos terem publicado que o TSE desconhece intimação ou exigência de que André Valadão gravasse tal resposta, o pastor da Igreja Batista da Lagoinha publicou a seguinte explicação:
Recebi citação do TSE para que me manifestasse, no prazo de 1 (um) dia, sobre representação da Coligação do Lula, em que eles pediam que houvesse direito de resposta a um vídeo em que falei sobre a relação entre Lula e temas como aborto, descriminalização das drogas, furtos, regulação da mídia e liberdade de expressão. Desejavam que, pelo mesmo veículo (meu perfil no Instagram), eu desdissesse o que havia gravado.
A fim de que o pedido perdesse o objeto, para que não houvesse invasão ao meu perfil, sob o manto de um pseudo direito de resposta, gravei o vídeo em sentido contrário ao inicialmente feito.
Encaminhei o caso aos meus advogados.
Deus abençoe o Brasil.
ATUALIZAÇÃO: o vídeo está filtrado no Instagram como informação falsa tanto na conta de Valadão quanto na conta de quem compartilha (imagens abaixo):
Bereia avalia que Valadão mente ao afirmar que “desejavam que ele desdissesse o que havia gravado”. Como indicado acima, o pastor não recebeu uma sentença com indicação do que ele deveria fazer, mas uma “Citação”, documento que apenas informa que ele foi citado em uma petição com o prazo de um dia, regra protocolar, para se manifestar sobre o caso.
Valadão declara, ainda, que se antecipou a uma possível sentença e gravou o vídeo publicado com conteúdo no sentido contrário do que ele inicialmente fez. Ele diz, portanto, que não esperou a sentença, mesmo que ela seja desfavorável à Coligação Brasil da Esperança e nada seja exigido dele, e criou, antecipadamente, uma situação que lhe fosse favorável nas mídias.
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Bereia classifica o conteúdo do vídeo do cantor e pastor André Valadão como enganoso. Ele fez uso de um documento que apenas informa que ele foi citado em um pedido de resposta protocolado no TSE para criar pânico entre seus seguidores e, com terror verbal, dizer que foi “intimado” pelo ministro Alexandre de Moraes, presidente do órgão. Tal intimação, segundo Valadão seriam uma exigência de retratação diante de publicações contra o candidato Lula em suas mídias digitais.
Bereia verificou que não há sentença sobre o processo em que o pastor foi citado.
Bereia alerta os leitores para as estratégias de disseminação de pânico e medo entre pessoas religiosas nestas eleições. Personagens midiáticas têm apregoado que quando são impedidos de mentir e caluniar estão sofrendo censura e que isto será feito com todas as igrejas e cristãos que serão impedidos de falar e até de cultuar. Estas pessoas estão mentindo e infringindo as leis. Além de Valadão, outros influenciadores religiosos têm procedido da mesma forma.
Bereia reafirma sua atuação contra a desinformação na forma de quaisquer mentiras e falsidades publicadas em espaços digitais religiosos. Este tipo de conteúdo extrapola o direito à liberdade de expressão e se configura abuso deste direito na forma de uma comunicação indigna. Bereia também conclama leitores e leitoras a participarem destas ações por meio do envio de materiais que receberem neste sentido para o WhatsApp número 21 – 99305-4579.
* Com colaboração de André Mello. Matéria atualizada às 12:43 e às 15:40 para complementação de informações.
Passou a circular com intensidade nas mídias sociais, na noite deste 18 de outubro, postagens com imagens de suposta invasão de militantes de esquerda ao templo da Paróquia da Paz da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB), em Joinville (SC).
Imagem: Uma das postagens em mídias sociais e os comentários em apoio
O portal evangélico Gospelmente publicou matéria sobre a suposta invasão, com as imagens acusatórias ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à Central Única dos Trabalhadores (CUT), com base em postagens em mídias sociais, incluindo menção ao Instagram da igreja, sem apuração.
O site GP1, cuja aparência é semelhante à do portal G1, da Globo, também repercutiu:
A notória veiculadora de desinformação, revista Oeste, também publicou matéria, sob a vinheta “Eleições 2022”, com base nas postagens em mídias sociais, incluindo menção ao Instagram da igreja, sem apuração.
Ambas matérias dizem que os militantes invadiram a paróquia, interromperam o culto e tocaram o sino da igreja. Estas matérias estão sendo repercutidas nas mídias sociais com discursos de campanha eleitoral antipetistas, antiesquerda e pró-candidatura do presidente Jair Bolsonaro.
Bereia checou o episódio que gerou as imagens que foram base para tais publicações e ouviu lideranças da paróquia sobre o ocorrido. O presidente (leigo conforme a organização da IECLB) Álvaro Kleper Filho explicou que a Igreja da Paz e o Instituto Educacional Luterano de Santa Catarina (Faculdades IELUSC) dividem o mesmo espaço, um pátio. Ele conta que houve um protesto de alunos do curso de Jornalismo contra a demissão de uma professora com o apoio de outros grupos da cidade. A manifestação ocorreu no horário das aulas, mesmo momento em que acontecia um culto na igreja. Os discursos por megafone, segundo o presidente da paróquia, de fato, atrapalharam o culto que ocorria e, depois, a saída das pessoas ao término, mas diz que não houve qualquer tipo de invasão à área interna da igreja. As imagens em que aparecem pessoas dentro de um espaço, de acordo com Álvaro Kleper Filho, não são da igreja mas das faculdades, do IELUSC.
O IELUSC, instituição de ensino superior com dez cursos de graduação, mais oito de especialização e um mestrado, é parte da Associação Educacional Luterana Bom Jesus IELUSC, em Joinville, à qual está integrado o Colégio Bonja. O culto na Igreja da Paz, ao lado da instituição, estava sendo dirigido pela pastora Camila Faber Kerber. O outro pastor da paróquia Cleo Martin declarou: Não entraram na Igreja. Apenas ficaram do lado de fora durante o culto com megafone, apitos, algazarra. A Pastora Camila conduziu o culto até o fim, mas de fato terminou com 15 minutos, pois as pessoas ficaram apreensivas. Entraram sim, na Deutscheschulle [termo usado na tradição alemã luterana para “escola alemã~] e obstruiram a saída das pessoas que estavam no culto no portão principal. Os integrantes do coral não puderam entrar no estacionamento. Essa situação durou uns 20 minutos, até a chegada da Polícia Militar, esta liberou o trânsito. A manifestação foi basicamente contra a demissão de uma docente do Colégio Bom Jesus que se posicionou contra a motociata do presidente em Joinville. A manifestação foi de alunos e de agremiações políticas.
A direção da instituição divulgou esclarecimento sobre o fato para a liderança da igreja:
Mensagem por WhatsApp enviada pela direção do IELUSC à paróquia
A Paróquia da Paz divulgou nota oficial sobre o assunto afirmando que não houve invasão:
Bereia também ouviu dois professores do IELUSC que não querem ser identificados, por conta da perseguição que está sendo imposta a docentes mais críticos na instituição. Eles declararam ao Bereia:
“Eu estava lá ontem à noite e ninguém invadiu nada! Aqui saiu a notícia falsa de que a CUT e o PT haviam invadido a igreja e tocado o sino! Rir para não chorar, pois os sinos aqui são automáticos e tocam a cada meia hora e, também, inteira! É impressionante como mentem. Foi tudo pacífico! A manifestação foi por conta da demissão de uma colega professora que desabafou nas redes sociais contra os bolsonaristas! Foi tudo pacífico! Fizeram a manifestação e depois se aquietaram e foram para as aulas!”
“Eu estava lá… um monte de mentiras está sendo contado. Primeiro que os estudantes não invadiram nada. Eles foram fazer uma manifestação em solidariedade à professora que foi demitida por se posicionar contra o presidente Bolsonaro. Segundo, não invadiram igreja nenhuma, não pararam o culto e não tocaram o sino… o sino toca automaticamente na Paróquia da Paz. Terceiro, a CUT e o PT não ajudaram. Fizeram a manifestação depois se aquietaram e foram para as aulas. Tudo pacífico, ordeiro. Eu estava lá! É rir para não chorar”.
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Bereia classifica como FALSAS as publicações que afirmam que houve uma invasão à Igreja da Paróquia Luterana da Paz em Joinville na noite de 18 de outubro. Como apurado por nossa equipe o que ocorreu foi uma manifestação de estudantes contra a demissão de uma professora por conta de posicionamento político.
O Estado de Santa Catarina é apontado em pesquisas eleitorais como reduto da campanha pela reeleição do presidente Jair Bolsonaro (alcança 63% de apoio do eleitorado, conforme pesquisa do IPEC divulgada neste 18 de outubro).
As postagens falsas foram produzidas por apoiadores de Jair Bolsonaro para acirrar os medos em torno do fechamento de igrejas, recurso de convencimento com cristãos utilizado nestas eleições, como Bereia já tratou em matéria especial. Este é o tema com mais incidência de mentiras nesta campanha eleitoral.
Veículos como sites gospel e outros propagadores de desinformação, como o Gospelmente e a revista Oeste têm explorado a temática. Neste caso de Joinville, os dois veículos chegaram a forjar que o caso foi divulgado no Instagram da Igreja da Paz, o que é mentira. Gospelmente, na certeza de que seus leitores não checam desinformação, chegou a indicar um nome de perfil no Instagram, que, checado por Bereia, não existe:
Levantamento do Bereia a partir de suas checagens no período eleitoral iniciado em 2021 até o primeiro turno realizado em 2 de outubro passado, mostra que cinco temas estiveram entre as postagens com mais conteúdo falso e enganoso circulante em espaços digitais religiosos. Os temas apresentados em matérias-coletânea pelo Bereia são: perseguição a cristãos, covid-19, “ideologia de gênero”/moralidade sexual, supostos feitos do presidente Jair Bolsonaro, tópicos específicos referentes às eleições (Tribunal Superior Eleitoral, urnas, pesquisas).
Na pesquisa sobre o que foi checado no período eleitoral, Bereia identificou que o velho temor do comunismo e do marxismo permeia todos os cinco principais temas citados acima. É utilizado como base para a ideia de perseguição a cristãos, como explicação para a China ter supostamente criado o coronavírus em laboratório para a China ter supostamente criado o coronavírus em laboratório. O seu enfrentamento é colocado como motivação para as ações do governo Bolsonaro e como justificativa para a suposta tentativa de alteração de resultados nas urnas eletrônicas. Comunismo e a noção inventada de “marxismo cultural” são apresentados como fundamento para a constituição da “ideologia de gênero” e da doutrinação de crianças e jovens por professores em escolas.
Jornalistas e especialistas mostram que esta justificativa usada até hoje esconde documentos do próprio Exército que mostram que a “ameaça comunista” no país não era real.
Pesquisa do UOL Confere diz:
“[Nos anos 1960] O mundo vivia em meio ao contexto da Guerra Fria, cenário de polarização internacional que teve, entre outros elementos, embates sobre capitalismo, socialismo e comunismo. A agenda reformista do então presidente João Goulart levou alas conservadoras a temerem uma proximidade com regimes comunistas implementados em outros países, como Cuba. Mas um informe do SNI (Serviço Nacional de Informações) já citava o desgaste do comunismo na Europa Ocidental. Os militares também analisaram que não havia clima para a instalação do comunismo por conta das contradições “por demais violentas” do Brasil e que o povo não aceitaria “pacificamente as influências externas”.
Historiador e professor da UFRJ, Carlos Fico disse à BBC, em 2019, que tentativas de implantar o comunismo no Brasil partiram de movimento tímidos e sem apoio da maioria da população. Ele também avaliou que mesmo as ações armadas de movimentos de esquerda não foram suficientes para ameaçar os militares.
Em 2018, o “ressurgimento” do tema emergiu como pauta de campanhado então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro. Associado frequentemente a adjetivos pejorativos, ser “comunista”, tornou-se um sinônimo do posicionamento políticode esquerda, da corrupção e de degradação moral.O comunismo tornou-se um assunto frequente em produções midiaticas, sobretudo fake news, que circulam em mídias sociais a partir daquele ano.
Quando associado à religião, nota-se que a “ameaça comunista” assume uma interpretação para além da economia e da política, ese torna um ponto de enfrentamento moral/espiritual. A partir detemas como direitos sexuais e reprodutivos, perseguição religiosa, supostos malfeitos presidenciais e outros temas, o combate à “ameaça comunista” é um mote frequentemente mencionado. Esta lógica acompanha a compreensão imaginária mais generalizada construída pela extrema-direita que associa “ser comunista” a qualquer defensor/a da justiça e dos direito.
Na maioria, as fake news produzidas pela junção dos temas comunismo +religião abordam o comunismo como uma ameaça à família, à Igreja, à economia e ao bem-estar individual. Criou-se, com isso, uma oposição do comunismo às religiões cristãs, instrumentalizado pela direita e pela extrema-direita no imaginário popular, especialmente em períodos eleitorais.
As checagens do Bereia realizadas a partir de desinformação sobre este tema em ambientes digitais religiosos centram-se em dois polos: o patriotismo nacional – sob a imagem de Bolsonaro (um defensor dos valores morais da família cristã); a ameaça comunista – sob a imagem do Partido dos Trabalhadores (PT) e Lula, muito especialmente, mas também toda a esquerda política. Termos como “máfia esquerdista”; “demônios vermelhos”; “esquerdopata”; “petralhas”; “esquerda bandida”, são usados ainda hoje como parte do vocabulário para se referir ao comunismo.
Seguem as principais matérias dos últimos quatro anos sobre o tema que ganharam relevância nas mídias:
Levantamento do Bereia a partir de suas checagens no período eleitoral iniciado em 2021 até o primeiro turno realizado em 2 de outubro passado, mostra que “cristofobia”, perseguição a cristãos e ameaças de fechamento de igrejas estiveram entre os temas com mais conteúdo falso e enganoso circulante em espaços digitais religiosos.
A perseguição a cristãos, casada com o tema da “cristofobia” e do “fechamento de igrejas” tem sido o tema mais abordado no período eleitoral, presente em 26 das matérias de checagem publicadas pelo Bereia entre fevereiro de 2021 e outubro de 2022. É registrada maior incidência deste tema a partir de agosto de 2021, quando pesquisas eleitorais passaram a mostrar a força da campanha do Partido dos Trabalhadores (PT) e maior rejeição a Jair Bolsonaro. Cresceu, então, o número de publicações verificadas pelo Bereia que enfatizam a ameaça de fechamento de igrejas com a possível vitória das esquerdas, mais supostas tentativas de silenciamento de lideranças religiosas e de diretores de escola e professores cristãos opostos a pautas referentes à diversidade sexual e à pluralidade religiosa.
A perseguição a cristãos no Brasil, sob o rótulo de “cristofobia”, tem apelo porque é um discurso que responde à ideia do cristão perseguido como prova de fidelidade ao Evangelho. Porém, o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no país, onde há plena liberdade de prática da fé para este grupo, conforme explica, em artigo para o Bereia, a pesquisadora das religiões Brenda Carranza. Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político.
Isto se configura uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que pedem mais liberdade e usam desta expressão para garantirem voz contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”, em especial sexuais e reprodutivos e os de comunidades quilombolas e indígenas. Histórias relacionadas a situações ocorridas no exterior são amplamente utilizadas para reforçar a ameaça de que o que se passa fora pode ocorrer no Brasil.
Bereia selecionou reportagens e checagem do último triênio sobre o tema perseguição religiosa que ganharam relevância nas mídias:
Desinformação sobre suposta perseguição a cristãos no Brasil
Um dos conteúdos falsos e enganosos mais explorados em espaços digitais religiosos em períodos eleitorais no período recente é o da “ideologia de gênero”. Surgido no ambiente católico e abraçado por distintos grupos evangélicos, que reagem negativamente aos avanços políticos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações diversas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”.
Nessa lógica, a “ideologia de gênero” é falsamente apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional” com educação sexual para “depravação sexual” e conversão à “homossexualidade”, “defesa do aborto e da pedofilia”, com geração de pânico moral e terrorismo verbal entre grupos religiosos.
De acordo com o pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados da Universidade de Brasília (UnB) Rogério Diniz Junqueira, “a maioria dos estudiosos do tema concorda que o sintagma [a expressão] ‘ideologia de gênero’ é uma invenção católica que emergiu sob os desígnios do Pontifício Conselho para a Família e da Congregação para a Doutrina da Fé, entre meados da década de 1990 e no início dos 2000”.
Instrumentalizado pela extrema direita nas eleições de 2018, o tema da “ideologia de gênero” abriu espaço para a escalada ultraconservadora cristã (diga-se católicos e evangélicos de direita), articulado a outras pautas nas eleições de 2022.
O Bereia selecionou as checagens com o tema da ideologia de gênero, que desde as eleições de 2018 ganharam força nas mídias:
Desinformação sobre “ideologia de gênero” nas escolas e universidades e como ameaça a crianças
Desde o início do segundo turno das eleições presidenciais as mídias sociais foram inundadas de conteúdos falsos. Como parte do nosso compromisso com a verdade nas redes, o Bereia assina a Nota Pública sobre Desinformação Eleitoral, elaborada pela Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD) e apoiada por instituições, empresas de comunicação, coletivos, grupos e núcleos de pesquisas e demais atores da área de comunicação.
A Rede cobra das plataformas de mídias o enfrentamento à desinformação, ao discurso de ódio e à violência política. Segundo a nota, o movimento Democracia Pede Socorro “já apontava a fragilidade do cenário eleitoral, além disso, o próprio Tribunal Superior Eleitoral-TSE e inúmeras organizações publicaram relatórios, debateram o papel das plataformas e apontaram como poderiam atuar para minimizar os efeitos nocivos da circulação em grande quantidade e velocidade de mensagens com desinformação”.
Leia a nota na íntegra:
NOTA PÚBLICA SOBRE DESINFORMAÇÃO ELEITORAL
Plataformas digitais devem coibir a desinformação eleitoral urgentemente
Canais diretos e agilidade nas respostas são caminhos possíveis para um segundo turno mais saudável e com enfrentamento real à desinformação.
Em menos de 48 horas após o resultado eleitoral do primeiro turno das eleições de 2022 nos deparamos com um cenário já conhecido: uma enxurrada de desinformação que perpassa desde a pauta de costumes a ataque às pesquisas e urnas eletrônicas. O que mais nos surpreende diante disso tudo é que, infelizmente, a tragédia já estava anunciada. A Rede Nacional de Combate à Desinformação, portanto, vem a público trazer o alerta e, principalmente, cobrar a responsabilidade de alguns atores envolvidos diretamente nessa desenfreada propagação de desinformação, são eles: as plataformas digitais e o poder público.
Não é de forma ingênua que cobramos as plataformas no enfrentamento à desinformação, ao discurso de ódio e à violência política. Um movimento da sociedade civil organizada denominado Democracia Pede Socorro já apontava a fragilidade do cenário eleitoral, além disso, o próprio Tribunal Superior Eleitoral-TSE e inúmeras organizações publicaram relatórios, debateram o papel das plataformas e apontaram como poderiam atuar para minimizar os efeitos nocivos da circulação em grande quantidade e velocidade de mensagens com desinformação.
No entanto, estamos cientes das ‘limitações’ das plataformas em uma atuação efetiva de combate, visto que medidas mais eficazes podem interferir diretamente em seu modelo de negócios. As plataformas lucram com a desinformação. Não à toa, como informado recentemente pela CNN, o custo por mil visualizações (CPM) de propagandas na internet aumentou mais de 1.800% nos primeiros quinze dias de campanha eleitoral. Os dados foram levantados na plataforma do Facebook Ads, que é o gerenciador de anúncios do Facebook e do Instagram. Segundo dados registrados no TSE até esta sexta-feira (7), os candidatos gastaram cerca de R$ 191 milhões com impulsionamento de publicações nas redes sociais e demais plataformas digitais. Sabemos que conteúdos desinformativos geram mais engajamento, e, em consequência, geram mais lucros a esses grupos econômicos.
Diante desse reconhecimento de poder e concentração do debate na esfera pública virtual, o que fazemos aqui é solicitar que as plataformas ajam de forma responsável, defendendo a democracia como propagam e respondendo de forma imediata e ainda dentro do cenário eleitoral para que possamos garantir minimamente um ambiente de informação saudável.
Diante do exposto, indicamos duas principais formas: reações mais céleres às denúncias desvelando de forma transparente a moderação de conteúdo e abertura de canais mais diretos aos especialistas da área que subscrevem essa nota, em especial, os componentes dessa Rede.
Para a sociedade em geral e seus representantes eleitos para o próximo pleito fica o apelo ao apoio e aprovação ao projeto de Lei 2630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, para que esse cenário não se repita a cada dois anos e fiquemos à mercê das escolhas autorreguladas das plataformas. Precisamos agir de maneira coletiva responsabilizando os responsáveis, mas cientes de que para enfrentar a desinformação precisamos de um pacto coletivo entre todos os atores.
Subscrevem essa nota:
Instituições, Empresas de Comunicação, Coletivos, Grupos e Núcleos de Pesquisas e demais atores Pesquisadores e Especialistas.
Bereia recebeu de leitores indicação de checagem de um vídeo de um influencer digital que se identifica como “satanista”, que faz a previsão de uma vitória de Lula no primeiro turno das eleições brasileiras de 2022. O vídeo viralizou, especialmente entre cristãos, com acusações a Lula de ser vinculado e ter o apoio de satanistas e causou muitas reações nas mídias digitais.
O homem que fala no vídeo é Vicky Vanilla, influenciador digital, com quase 1 milhão de seguidores no TikTok e que se apresenta como “mestre e líder da Igreja de Lúcifer do Novo Aeon”.
No vídeo que viralizou, Vanilla aparece em local com bandeira de Lula ao fundo, fala sobre suposta união de diferentes religiões, de segmentos satanistas e do ocultismo em nome da vitória do ex-presidente no primeiro turno de 2 de outubro.
O conteúdo foi publicado na sexta-feira, 30 de setembro, dois dias antes do pleito, e passou a ser compartilhado nas redes bolsonaristas no domingo, quando o resultado se encaminhava para definição por um segundo turno.
O Portal de Notícias da Record R7 e sites gospel como o Pleno News deram destaque ao vídeo.
Vídeo falso, conteúdo manipulado
Antes mesmo que Bereia concluísse a pesquisa deste conteúdo, vários projetos de checagem de conteúdo, como Aos Fatos, e veículos jornalísticos, como o Correio Braziliense, já haviam publicado uma verificação indicando a falsidade de tal material.
Na tarde do dia 3 de outubro, a campanha de Lula publicou nota intitulada “Lula é cristão. Não existe qualquer relação com satanismo”. No texto, a campanha afirma: “A verdade, como já repetimos antes, é que Lula é cristão, católico, crismado, casado e frequentador da igreja. Não existe relação entre Lula e o satanismo” (…) Quem espalha isso é desonesto e abusa da boa-fé das pessoas. O vídeo circulou em muitos canais do Telegram e grupos de WhatsApp e comprova como os apoiadores de Bolsonaro abusam da boa-fé das pessoas”.
O próprio envolvido no conteúdo, Vicky Vanilla, publicou um vídeo para desmentir o caso e declarar que foi feita uma montagem a partir de imagens tiradas de contexto e chama a publicação que viralizou de “fake news”. “Está sendo espalhado como uma fake news tanto a meu respeito, quanto a respeito do candidato Lula, que não tem qualquer ligação com a nossa casa espiritual”, completou Vanilla. O influenciador disse ainda que recebeu diversas ameaças depois que o material foi espalhado: “o bastante para fazer um boletim de ocorrência e entrar com representação judicial contra meus agressores”, destacou.
No perfil de Vicky Vanilla no TikTok, são encontrados conteúdo pró-Lula e anti-Bolsonaro. Porém há postagens em que ele ataca o candidato do PT de forma intensa e chega a associá-lo ao nazismo.
Viralização
Além de ter sido divulgado pelo Portal da Rede Record R7, por sites gospel e mídias sociais de lideranças e fiéis religiosos, o vídeo falso foi publicado pela deputada federal reeleita Carla Zambelli (PL-SP), que o utilizou para chamar seguidores para uma “guerra espiritual” no segundo turno das eleições, “do bem contra o mal”. Ainda na terça-feira, 4 de outubro, mesmo depois do desmentido da campanha de Lula e do próprio Vicky Vanilla, o senador eleito Cleitinho (PSC-MG) divulgou o material falso para convocar o voto “dos mais de 40 milhões de brasileiros que se abstiveram no primeiro turno por Jair Bolsonaro” (na verdade, foram cerca de 32 milhões de abstenções).
Até o momento em que esta matéria foi concluída o conteúdo falso ainda estava visível em todos estes espaços digitais.
ATUALIZAÇÃO: O Tribunal Superior Eleitoral determinou que o vídeo fosse tirado do ar nesta quinta, 6 de outubro.
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Bereia reafirma o que já foi publicado por agências de checagem e veículos de mídias: o vídeo que ainda circula vinculando o ex-presidente Lula a uma seita satânica é FALSO. Além de tal vinculação ter sido negada pela campanha do candidato, o próprio envolvido no conteúdo desmentiu sua participação e denunciou a montagem.
Bereia alerta seus leitores e leitoras para materiais divulgados durante o processo eleitoral para destruir a imagem de candidatos. Quem receber este tipo de conteúdo não deve compartilhar sem antes verificar a veracidade.
O site evangélico Pleno News publicou, em 29 de setembro de 2022, pesquisa de intenção de votos realizada pelo Instituto Equilíbrio Brasil. Nos dados oferecidos na matéria “Bolsonaro lidera em pesquisa mais ampla que Ipec e Datafolha”, Jair Bolsonaro teria 44% da preferência do eleitorado, contra 39% de Lula.
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Equilíbrio Brasil: metodologia contestada
Pleno News destaca que o levantamento realizado é mais amplo do que aquelas que têm sido apresentadas por institutos credenciados como o Ipec (formado por ex-executivos do Ibope) e o Datafolha. A matéria diz que o instituto Equilíbrio Brasil, ouviu 11.500 pessoas em 1.286 cidades, entre os dias 20 e 22 de setembro, com margem de erro de três pontos percentuais.
O desconhecido Equilíbrio Brasil se coloca ao lado de outro, o controverso Brasmarket, até então o único instituto de pesquisa do país a apresentar Jair Bolsonaro na liderança da corrida presidencial. Brasmarket e seus métodos foram alvo de checagem do Bereia.
De acordo com o Art. 33 da Lei nº 9.504/1997as entidades e empresas que realizarem pesquisas de opinião pública relativas às eleições ou aos candidatos, para conhecimento público, são obrigadas, a registrar na Justiça Eleitoral, para cada pesquisa, até cinco dias antes da divulgação, as seguintes informações:
I – quem contratou a pesquisa;
II – valor e origem dos recursos despendidos no trabalho;
III – metodologia e período de realização da pesquisa;
IV – plano amostral e ponderação quanto a sexo, idade, grau de instrução, nível econômico e área física de realização do trabalho a ser executado, intervalo de confiança e margem de erro;
V – sistema interno de controle e verificação, conferência e fiscalização da coleta de dados e do trabalho de campo;
VI – questionário completo aplicado ou a ser aplicado;
VII – nome de quem pagou pela realização do trabalho e cópia da respectiva nota fiscal.
Equilíbrio Brasil ou Multi Mercado LTDA: financiamento criticado
Numa pesquisa mais detalhada no site do Tribunal Superior Eleitoral, verificamos que o próprio instituto foi o “contratante” da pesquisa. e mesmo com elevado número de entrevistas feitas por telefone, 11.500 contatos, o levantamento custou R$ 28.000,00.
Esta modalidade de financiamento, o “autofinanciamento” de pesquisas eleitorais, mesmo permitida por lei, levanta suspeitas, pois permite que institutos não divulguem a origem dinheiro que pagou as sondagens e a divulgação da nota fiscal não é obrigatória. Todas as pesquisas realizadas por Equilíbrio Brasil foram “autofinanciadas”.
Equilíbrio Brasil X Datafolha
Tomando-se um dos institutos citados pelo Pleno News em comparação, o levantamento do Instituto Datafolha realizou 6.800 entrevistas presenciais e o valor da foi de R$ 473.780,00. Quase dez vezes o custo da pesquisa do Instituto Equilíbrio Brasil (Multi Mercado LTDA)
Seguindo a tendência dos principais institutos do país, o Datafolha mostra o ex-presidente na liderança. Lula oscilou de 45% para 47% das intenções de voto na disputa pela Presidência da República e ampliou a liderança sobre o segundo colocado, Jair Bolsonaro, que se manteve com a preferência por 33% dos eleitores brasileiros.
Este resultado se aproxima dos números do agregador de pesquisas do jornal Estado de São Paulo que leva em conta pesquisas sobre a corrida presidencial divulgadas nos últimos seis meses e tem atualização diária. O cálculo considera as linhas de tendência de cada candidato (se estão estáveis, subindo ou caindo) e atribui pesos diferentes às pesquisas segundo sua “idade” (a data de realização) e metodologia (na média, os resultados são mais precisos quando os eleitores são entrevistados de forma presencial, em vez de por telefone).
Bereia conclui que a pesquisa divulgada pelo portal Pleno News não pode ter seus dados corroborados, por isso a matéria desinforma por ser imprecisa. A metodologia utilizada no levantamento é contestada e o financiamento, mesmo não sendo ilegal, levanta dúvidas quanto à isenção dos dados.
Um trabalho que envolve mais de 11 mil contatos com eleitores, mesmo por telefone, apresentaria um custo muito elevado. Já os institutos desqualificados pela matéria Pleno News, Ipec e Datafolha oferecem todas as informações exigidas para o credenciamento de uma pesquisa e têm os levantamentos registrados no TSE, como exigido por lei, além de executivos respeitados e histórico confiável de pesquisas eleitorais.
Circula em sites de notícias identificados com a extrema-direita política conteúdo publicado pelo jornal Folha Universal e pelo Portal Universal, em 25 de setembro, que contrapõe material eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) destinado a evangélicos.
O impresso do PT foi lançado em 9 de setembro passado, quando o candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com lideranças e fiéis evangélicos em São Gonçalo (RJ). O panfleto é intitulado “O que os evangélicos realmente querem para o Brasil” e apresenta temas da campanha de Lula a partir da palavra-chave “Queremos”, com a indicação de que são evangélicos que apresentam o conteúdo.
Os temas do panfleto contêm pautas clássicas da esquerda política: aposentadoria, valorização das mulheres, defesa da paz, emprego e renda, fim da fome trabalho digno, educação de qualidade, saúde para todos. Foram incluídos também abordagens para elementos do discurso de campanha conservador como liberdade e defesa da família. Já a pauta ambiental é apresentada em linguagem religiosa como “cuidado com a criação de Deus”. Cada plataforma temática é acompanhada por um versículo da Bíblia.
A matéria do jornal Folha Universal ocupa duas páginas da publicação, e tem versão on line no Portal Universal, sob o título “Panfleto do PT tenta enganar eleitor evangélico”. O texto chama a atenção de leitores e leitoras para a estratégia do PT de buscar mudança de votos entre evangélicos de Jair Bolsonaro (PL) para Lula, com um discurso que o jornal denomina, no texto não assinado, “para inglês ver”.
Na introdução, a matéria do jornal Folha Universal afirma que “em uma leitura desatenta, o conteúdo [do panfleto] pode até envolver os eleitores e por isso é preciso colocar luz sobre os temas abordados e mostrar a realidade que tentam esconder deles”. O texto leva leitores e leitoras à expectativa de uma checagem de cada tema apresentado no panfleto do PT, que mostraria o que é enganoso e a realidade em oposição.
Uma contestação dos temas
O conteúdo, porém, não é uma checagem. Como leitores e leitoras do Bereia podem identificar no trabalho de checagem de conteúdo que é aqui realizado, bem como por outros projetos de enfrentamento da desinformação, tal procedimento demanda pesquisa de diferentes fontes, consulta a especialistas e levantamento de dados. Estes elementos compõem um protocolo fundamental, segundo as orientações da IFCN (sigla em inglês para Rede Internacional de Checagem de Notícias), para que determinado texto ou matéria de qualquer projeto de confrontação de conteúdo desinformativo divulgado seja considerado.
Cada um dos onze temas-propostas do panfleto do PT dirigido a evangélicos foi confrontado no texto do jornal Folha Universal de forma opinativa e por meio de conteúdo falso ou enganoso, sem qualquer referência objetiva que fundamente tais abordagens.
Por exemplo, contra o tema “defesa da família”, a Folha Universal diz, sem citar a fonte, data e local: “o ex-presidente afirmou recentemente em um evento que ‘a pauta da família, pauta dos valores, é uma coisa muito atrasada’. Bereia tem insistido com leitores e leitoras que qualquer informação comprometida com a veracidade de fatos e dados deve apresentar fonte para as citações (origem do conteúdo, data e local em que foi produzido ou pronunciado).
Ainda no tema da defesa da família, o jornal acrescenta de forma crítica que “em outra ocasião [Lula] afirmou que o aborto é “questão de saúde pública”. Além de vaga, fora do contexto (outro elemento que caracteriza desinformação), não há complementação da ideia que justifique engano em tal afirmação.
A contestação da forma como o panfleto apresenta a “defesa da família” também apresenta conteúdo vago, sem base factual ou documentação, na frase caracterizada pela estratégia discursiva do pânico moral: “outras bandeiras defendidas pela ideologia são o fim da monogamia e do casamento convencional e a defesa da união de várias pessoas, o chamado poliamor”.
No item sobre “defesa da liberdade”, a Folha Universal afirma que o folheto do PT omite “a intenção amplamente divulgada do candidato à Presidência de regulamentar a imprensa e as mídias, inclusive a internet, uma pretensão autoritária para supostamente evitar mentiras. Essa atitude é muito semelhante aos primeiros passos da censura vista em países com governos parceiros”.
O jornal pratica, neste caso, a emissão de opinião sobre o que significa “regulamentação das mídias”. Longe de ser censura, “regulamentação das mídias” já existe no Brasil há décadas por meio de mais de 650 portarias, decretos e leis que regulamentam o setor de comunicação social, não só rádio e TV como impresso, aos quais se soma o Marco Civil da Internet.
O que é defendido em vários espaços da sociedade civil é a ampliação da regulação, pois a atual legislação é defasada. Uma das principais pautas, levantada pelo Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC), é o fim dos monopólios (concentração nas mãos de poucas empresas, que dominam o mercado das mídias).
Países como Alemanha, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos regulam suas mídias com vistas à garantia da participação democrática nestes espaços. Isto significa envolver a sociedade civil no controle das concessões, do que é transmitido e da forma como se veicula. Assim como existem agências reguladores de saúde (ANS), de telefonia (ANATEL), de aviação civil (ANAC), entre outras, por exemplo, para defender os interesses do Estado e dos usuários, a FNDC defende que exista uma agência reguladora das mídias, o que nunca foi desenvolvido no pais.
O tema é pauta no Congresso Nacional e no Judiciário e não apenas de um partido ou candidato, uma vez que é interesse cidadão. Porém, há muita resistência à discussão do projeto por parte de proprietários de mídias, como a Igreja Universal. Sempre que o tema aparece, especialmente em períodos eleitorais, ele é criticado e desqualificado como censura, uma vez que os empresários de mídias não têm interesse na participação da sociedade no que diz respeito aos conteúdos veiculados.
Tema do meio-ambiente é o único com dados de referência
Na única das contestações em que apresentou dados, a Folha Universal se colocou contrária à abordagem do panfleto do PT sobre meio-ambiente, sob o tema “Criação de Deus”. Diz o jornal: “O candidato petista à Presidência também tem falado que seu governo foi o que mais preservou a Amazônia, afirmação que não condiz com a realidade. Enquanto no governo atual houve registro de desmatamento anual médio de 11,4 mil km², o petista ficou na casa de 15,6 mil km², com destaque para o ano de 2004, quando a destruição florestal superou os 27 mil km²”.
A Folha Universal contesta o panfleto do PT com dados enganosos pois o que é verdadeiro é usado de forma distorcida. O dado bruto está correto: o desmatamento acumulado na Amazônia nos primeiros três anos sob Lula (2003-05), segundo o órgão oficial de monitoramento, o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) 72.128 km, foi pouco mais que o dobro do que o ocorrido de 2019 a 2021, 34.018 km². O jornal, porém, não contextualizou que a taxa alta daqueles três primeiros anos de Lula, foi herdada dos governos de Fernando Henrique Cardoso.
O índice começou a cair a partir de 2005, depois de três anos de políticas ambientais de enfrentamento do desmatamento. Alcançou o pico em 2004, com os 27 mil km² citados pela Folha Universal, mas ficou em queda até o segundo mandato. Quando entregou a faixa presidencial a Dilma Rousseff (PT), os índices oficiais registram 7 mil km². Até 2015, quando o PT esteve na Presidência, o desmatamento ficou na casa dos 6.207 km². De 2016 em diante voltou a crescer e disparou a partir de 2019. Veja o mapa com os dados do INPE:
Em matéria do UOL Confere, que checou o tema quando tratado durante um debate de candidatos às eleições presidenciais de 2022, o engenheiro florestal coordenador do MapBiomas Tasso Azevedo diz que o panorama da proteção da Amazônia em 2002 era muito diferente do que havia em 2018. Por isso, segundo ele, não cabe comparar os números brutos entre os dois governos.
Azevedo explicou ainda: “Os primeiros anos do governo Lula são os anos em que o país herdou aquele desmatamento e houve um esforço de controle desse desmatamento, que derrubou ele para baixo dos sete mil quilômetros quadrados. Então essa comparação é completamente estapafúrdia. O fato é que o desmatamento caiu lá atrás, e caiu muito, e agora está aumentando muito”.
Diferentemente do que afirma a Folha Universal, o governo de Jair Bolsonaro vem registrando altas sucessivas de desmatamento da Amazônia desde 2019, com aceleração da curva de crescimento dos índices como se pode observar no mapa acima. O aumento acumulado do desmatamento sob Bolsonaro é de 73%, segundo o INPE. As denúncias de tais práticas levaram à demissão do ex-diretor do órgão Ricardo Galvão. Na checagem do UOL Confere, Galvão explicou que o alto desmatamento da Amazônia é uma herança da ditadura militar. O INPE passou a monitorar a região em 1988 e identificou uma devastação de 21.050 km², taxa semelhante à que Lula encontrou 15 anos depois quando assumiu a Presidência da República.
“A razão inicial para o aumento do desmatamento veio da política de ocupação da Amazônia instituída durante a ditadura militar, de ‘avançar seguindo as patas do boi’ Era necessário desmatar e ocupar a terra com gado para ter o título de sua posse. Por isso, as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por grandes empreendimentos com alto impacto ambiental, como a Transamazônica, que abriu o caminho para o desmatamento e penetração na selva”, explicou físico ex-diretor do INPE.
Opinião x informação
Bereia expõe aqui três dos temas do panfleto do PT contestados na matéria da Folha Universal mas checou todos os onze e o recurso é o mesmo dos itens verificados em amostra: o que o jornal publica é opinião contrária às propostas contidas no folheto do PT com base em elementos vagos e desinformativos pois não contêm dados, aspectos factuais ou documentais. No único trecho em que o jornal apresenta dados eles foram distorcidos.
Bereia classifica a matéria da Folha Universal como enganosa. O jornal contesta um material de campanha para evangélicos com texto que simula uma checagem de conteúdo, porém apresenta opiniões com base em desinformação.
Bereia considera legítimo que o jornal, institucional, apresente opiniões contrárias em uma discussão que se coloque na arena política e oriente seus fiéis/adeptos/seguidores com base na ideologia com a qual se identifica e define. Para isto, jornais contém espaço para o editorial e para artigos de opinião.
Bereia alerta, porém, para o caráter desinformativo de matérias que são opinativas, mas não se declaram como tal. Pelo contrário, para influenciar opiniões, há certos veículos que oferecem textos para levar leitores e leitoras a assimilarem conteúdo como se fosse objetivo, quando, na verdade, é subjetivo, meramente discordante.
Dezenas de sites e mídias digitais evangélicas divulgaram uma controversa pesquisa eleitoral realizada pelo Instituto Brasmarket sobre intenção de votos para a Presidência da República. A pesquisa é polêmica pois vai de encontro a todos os demais levantados dos principais institutos de pesquisa do país.
De acordo com os dados apresentados pelo Brasmarket, o presidente Jair Bolsonaro (PL) estaria liderando a corrida eleitoral com 44,9% (37% no levantamento anterior), enquanto Lula teria 31% (27%, no levantamento anterior). Além disso, quando o corte é por religião, os cristãos católicos e evangélicos rejeitaram em sua maioria o ex-presidente Lula (PT). A pesquisa foi registrada no TSE com o número BR-00580/2022.
Além das pesquisas eleitorais para presidente, três delas contratadas pela Associação de Supermercados do Rio de Janeiro, as demais foram custeadas pelo próprio Brasmarket. O Instituto realizou outras pesquisas este ano: para o governo de Goiás, contratado pela ASSOCIAÇÃO GOIANA DO NELORE, governo de Tocantins, custeada pela própria empresa, para o governo do Rio Grande do Norte, contratada pela CPF/CNPJ: 25450212000100 – BG MÍDIAS E ASSESSORIA DIGITAIS EIRELI, para o governo de Mato Grosso do Sul, contratada pela CPF/CNPJ: 03976495000187 – RADIO CAPITAL DO SOM LTDA / Origem do Recurso: (Recursos próprios). As pesquisas para os governos estaduais foram acompanhadas de pesquisa levantamento de intenção de voto para Presidente da República apenas naquele estado.
Matéria da Revista Veja de janeiro de 2022 apresenta uma suposta pesquisa realizada ainda em 2021 pelo Brasmarket que chegou ao conhecimento público sem o devido registro no TSE e rapidamente inundou as mídias digitais de direita. De acordo com a matéria, o Instituto está envolvido em diversas controvérsias e mistérios.
A metodologia de pesquisa utilizada foi a quantitativa, por meio de entrevistas telefônicas, com aplicação de questionários estruturados e padronizados junto a amostra representativa da população pesquisada. Foram 2.400 entrevistados de 116 municípios.
A pesquisa realizada pelo Instituto Brasmarket chama atenção por ser o único levantamento que aponta o presidente Jair Bolsonaro como favorito e pelo resultado bem diferente dos apresentados pelos Institutos mais conhecidos e renomados do país: Datafolha e Ipec (formado por ex-executivos do Ibope).
O agregador de pesquisas eleitorais do Estadão usa dados dos levantamentos de 14 empresas, considerando suas peculiaridades metodológicas, para calcular a Média Estadão Dados e o cenário mais provável da disputa eleitoral. Lula aparece com 47% e Jair Bolsonaro fica com 33% na média de todos os levantamentos nos últimos seis meses.
O Datafolha não faz pesquisas sob encomenda para políticos ou partidos. Todos os levantamentos são realizados para divulgação e uso público de grandes veículos de comunicação. Quando um meio de comunicação contrata uma pesquisa eleitoral do instituto, uma de suas obrigações é tornar público o resultado desse levantamento.
De acordo com a seção de perguntas e respostas disponibilizada no site, a validade de uma pesquisa eleitoral feita por telefone, como a realizada pelo Instituto Brasmarket, fica comprometida pois “é inviável realizar pesquisas eleitorais telefônicas no Brasil que sejam representativas do total do eleitorado, já que apenas 40% dos brasileiros possuem linha telefônica fixa em casa. Por isso os institutos abordam os eleitores pessoalmente”.
A última pesquisa Datafolha para presidente foi divulgada em 22/09, dia anterior à divulgação da pesquisa do Instituto Brasmarket, com o número de identificação no TSE BR-04180/2022. O custo total da pesquisa foi de R$ 473.780,00. (o levantamento de Brasmarket custou R$ 32.000,00)
Contratantes: EMPRESA FOLHA DA MANHÃ e GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S/A/TV/REDE/CANAIS/G2C+GLOBO GLOBO.COM GLOBOPLAY.
A metodologia de pesquisa utilizada foi a pesquisa do tipo quantitativo, por amostragem, com aplicação de questionário estruturado e abordagem pessoal em pontos de fluxo populacional. O conjunto do eleitorado brasileiro foi tomado como universo da pesquisa. 6.734 entrevistados em 285 municípios. (Brasmarket entrevistou 2.400 pessoas de 116 municípios).
Resultado pesquisa Datafolha.
Fonte: Datafolha
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De acordo com todas as informações levantadas, o Bereia considera que a pesquisa realizada por Brasmarket, que está sendo amplamente divulgada nas mídias digitais da extrema-direita, é enganosa.
O instituto começou efetivamente suas atividades há quatro meses, e suas pesquisas são as únicas em todo o país a apresentarem resultados divergentes, e mesmo com o registro no TSE, apresenta disparidades em relação às demais pesquisas, como o custo muito baixo dos levantamentos, metodologia e pouco detalhamento de seus resultados.
Desta maneira, esta pesquisa parece funcionar mais como uma ferramenta para batalhas discursivas na campanha política neste pleito 2022, a fim de confundir eleitores.
Em 1998 Sergio Arau dirigiu o brilhante curta-metragem “Um dia sem mexicanos”. Alguns anos depois, em 2004, o curta se tornou um filme não tão bom, mas que popularizou a ideia que o roteiro da atriz Yareli Arizmendi desenvolveu e que é inusitada: na Califórnia, em uma manhã aparentemente normal não havia mais mexicanos nos EUA. Eles haviam sumido. O que seria da Califórnia, Estado em que 30% da população é mexicana, sem a presença desses responsáveis principalmente pelos serviços e outros trabalhos fundamentais para que as coisas funcionem?
Pensar numa situação inusitada como essas pode dar a oportunidade para importantes reflexões e a impressão que tenho é de que suprimir um segmento similar da população, no caso brasileiro os 30% de evangélicos que aqui residem, seria o desejo de alguns, especialmente no dia 2 de outubro. Ter esse dia sem evangélicos parece ser o necessário para aqueles que não querem a reeleição e que esperam ver a alternância de poder na Presidência.
Se sem mexicanos a Califórnia pararia, as pesquisas parecem indicar que sem evangélicos seria certa a eleição de Lula no primeiro turno. São 150 milhões de eleitores habilitados a votar, se tirarmos os 30% de evangélicos, pelos dados do agregador do Estadão, teríamos Lula com cerca de 60% dos votos válidos. Uma vitória no primeiro turno estaria garantida.
Alguns, erradamente, teimam em atribuir uma pretensa culpa pela vitória de Bolsonaro em 2018 a este segmento. Naquela época escrevi um artigo em que busquei demonstrar que obviamente houve um importante papel do grupo na vitória, porém foi mais um dos vários componentes mobilizados pela campanha que redundou na vitória do candidato nas urnas (eletrônicas). Também cabe lembrar que ninguém é só evangélico, as pessoas são múltiplas e vários elementos contribuem para a nossa identidade e tomada de decisão.
Os evangélicos são o grupo religioso que mais considera a opinião de seus líderes na hora de decidir o seu voto, pesquisas indicam que cerca de 1/3 leva a opinião do líder em consideração. Os evangélicos também possuem impressionantes capilaridade social e organicidade, promovendo regularmente reuniões, sendo mais rápida e efetiva a comunicação voltada para esse grande contingente da população.
No mundo digital também se destacam, 92% destes afirmaram possuir grupos de WhatsApp ligados à sua igreja ou religião. E possuem vários grupos, como demonstrou a pesquisa “Caminhos da Desinformação”. Entre católicos esse percentual foi de 70% e em outras religiões abaixo dos 50%. Essa profusão de grupos são um caminho aberto para a circulação de informação, propaganda eleitoral e, não podemos esquecer, desinformação.
Um outro elemento importante é uma significativa presença de confiança interpessoal entre evangélicos, dessa forma a tomada de decisão relacionada a “em quem votar”, se reveste de uma grande oportunidade para diálogos e trocas que consideram o compartilhamento de uma percepção de projeto que tem na igreja e nos irmãos e irmãs um importante elemento.
Ter o voto desses fiéis exige investimento de recursos e de tempo dos candidatos, salientando que por haver uma maior importância das lideranças se estabelece um outro patamar de complexidade. Em um artigo publicado em 1996 explorei isso a partir da antropologia política evocando a importância da brokerage e de como a Igreja Universal inovava em um modelo de clientelismo em que a própria igreja desempenhava um papel de intermediária na relação entre eleitor e candidato.
Porém é importante frisar de que penso estarmos longe disso ter um sentido determinístico ou de alimentar teses sobre alienação e dominação. Podemos estar diante, em alguns casos, de situações que têm sido chamadas de “voto de cajado”, em uma atualização do “voto de cabresto” tão bem retratado na literatura sociológica por Victor Nunes Leal. Se isso é fato, por outro lado, também estamos diante do reconhecimento da presença e relevância social de um setor da população que há pouco tempo recebia em muitos casos olhares de desprezo por sua menor escolaridade, origem humilde e posição subalterna. As formas de alcançar esse público estão por ser descobertas e exigem atenção.
Parece que alguma coisa mudou por aqui e, talvez, da mesma forma que ao final do filme os moradores da Califórnia chegaram à conclusão de que não podiam viver sem os mexicanos, pode ser que nessas eleições de 2022 finalmente os partidos estejam devidamente conscientes de que precisam fazer campanha e dialogar com os/as evangélicos/as e suas lideranças de uma forma atenta e estruturada.
Já que não é possível uma eleição sem evangélicos, a disputa passa por garantir o aumento de votos neste segmento, isso parece ser um foco por parte das duas candidaturas à frente nas pesquisas. Isso se torna especialmente central para Bolsonaro, pois todas as suas tentativas de obter mais votos fracassaram em meio aos auxílios e à PEC Kamikaze. Parece que nessa reta final só lhe resta aumentar seus votos junto a este público que lhe deu ampla vantagem em 2018 e que tem dado sinais de uma certa manutenção da fidelidade. A candidatura do atual presidente sabe que precisa ampliar sua presença no segmento e que somente com ela será possível enfrentar Lula em um segundo turno.
Já para Lula a questão é a mesma, só que com o polo invertido. Isso se torna particularmente necessário diante da situação em que algumas das lideranças midiáticas e denominacionais atuam de forma dedicada na defesa da candidatura de Bolsonaro e, por meio de ações variadas como o acionamento de suas redes e instituições em uns casos e em outros até mesmo pela utilização de meios coercitivos, tomam lado e fazem campanha contra Lula. Um desempenho melhor entre evangélicos pode representar a chancela necessária para uma vitória no primeiro turno. O desafio envolve, então, a definição de um “modo petista” de se fazer campanha para/com evangélicos. Esta é uma condição que se coloca não só para essa, como também para as próximas eleições.
Em um culto em Belo Horizonte para homenagear um pastor, no começo de agosto, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, ao lado do marido, disse que há no Brasil uma “guerra do bem contra o mal” e que o Palácio do Planalto já foi um lugar “consagrado aos demônios”.
Também em agosto, o pastor bolsonarista Marco Feliciano disse que o PT é expressão do mal e que, se Lula ganhar, vai fechar templos e igrejas e calar os pastores.
O jornal Folha Universal, no ano passado, fez vários editoriais comparando o ex-presidente Lula ao demônio e ao mal.
Em janeiro deste ano, circulou pelas redes sociais um vídeo editado para simular que o ex-presidente Lula conversava com o demônio.
A ideia do demônio, como vemos, volta com força à cena nacional e ao processo eleitoral, por vários atores. Uma ideia forte que se alinha muito bem ao potente sistema de desinformação que sacode o Brasil com intensidade desde as últimas eleições, em 2018. Nesse contexto, eu quero convidar vocês a percorrerem o caminho da construção discursiva do demônio no escopo do ecossistema das fake news para entendermos por que, de fato, ele é um “personagem” importante.
Um poderoso ecossistema
O Brasil vivencia, com as eleições de 2018, a intensificação de um processo de desinformação que se torna pouco controlável a partir de 2020, com a pandemia de Covid-19. É um processo bem estruturado, que não se restringe ao Brasil, um fenômeno mundial que solapa democracias de Norte a Sul. Nesse contexto, a desinformação precisa ser entendida como um fenômeno estruturado, intencional, que se consolida nas sociedades contemporâneas e que tem fortes impactos em vários contextos – social, político, econômico, de saúde –, o que compromete seriamente o funcionamento da esfera pública, como ressalta Carlsson (2019).
Partindo desse sistema macro, eu situo o ecossistema brasileiro de fake news, que tem características bem marcantes: aporte e sustentação do poder público e de setores do empresariado, grande financiamento, produção intencional e profissional de conteúdo falso envolvendo diversos atores (por exemplo, sites com estrutura de produção de conteúdo, influenciadores que recebem benesses, representantes do poder público, entre outros) e enorme capilaridade para disseminar o conteúdo. Esse ecossistema, que nada tem de aleatório ou casual – pois é muito bem estruturado –, encontrou no país um campo bastante fértil para se desenvolver (lembrando que a capilaridade envolve a interface com outros sistemas – portanto, não se trata somente de “espalhar conteúdo” pela internet).
É um ecossistema que, com essas características, tem conseguido causar enormes estragos ao Brasil, em vários setores. Recentemente, está contribuindo para tumultuar bastante o processo eleitoral, colocando em xeque instituições já consolidadas em sua atuação e processos exitosos, como é o caso do sistema eleitoral brasileiro, além de propagar ataques a atores institucionais, como ministros do STF e do TSE.
O fenômeno das fake news, em seu ecossistema brasileiro, não se esgota, portanto, apenas na disseminação das notícias falsas ou falseadas – há um processo de produção profissional de conteúdo que envolve muitos atores e financiamento. Além disso, esse ecossistema se retroalimenta e está em interface com outros sistemas, como o de informação (tradicional – mídia corporativa) e o religioso, numa capilaridade gigantesca.
E então voltamos ao demônio da primeira-dama e seu papel nas eleições.
O demônio é o inimigo a combater
O demônio, como construção discursiva, liga-se à ideia de um inimigo poderoso e que precisa ser combatido. Nós, ao nos comunicarmos, não pronunciamos palavras somente – pronunciamos verdades ou mentiras, coisas boas ou más, certezas inquestionáveis, pois a palavra comporta valores e crenças e visões de mundo. Portanto, o demônio trazido à tona recentemente pela primeira-dama e por outros atores funciona muito bem nesse ecossistema de fake news, já que o termo cristaliza a ideia de um inimigo a combater a partir de um apelo a valores cristãos e num cenário de disputas polarizadas.
Essa ideia se consolida e se espalha por várias instâncias, numa retroalimentação que envolve vários sistemas – o demônio como ideia não se restringe à fala de Michelle naquele momento no culto, mas se espalha pelas redes sociais, pelos sites bolsonaristas, pela pregação do pastor na igreja, pelos artigos no jornal de maior circulação no país (que é da igreja). Portanto, não é uma expressão aleatória e nem um demônio qualquer – é uma entidade capaz de provocar os eleitores religiosos ainda indecisos, ou que estavam migrando para outros candidatos que não Bolsonaro, e interpelar fortemente esse eleitor naquilo que é sua crença ou seu medo.
As categorias religiosas não são levadas aleatoriamente para o discurso num país bastante religioso como o Brasil. Elas dialogam de perto com as crenças, os valores, os medos, as incertezas das pessoas, e por isso são tão presentes no escopo das fake news – vale lembrar que a visão de mundo dos indivíduos não é racional todo o tempo. E em tempos de incertezas, medo do futuro, precarização da vida, a ideia de um demônio a combater pode ser efetiva sim.
E no bem estruturado ecossistema brasileiro de fake news, essas construções discursivas encontram um caminho para se consolidarem, para se dissiparem, para se reproduzirem, para alcançarem mais e mais pessoas, fortalecendo-se contra os desmentidos e provocando a manifestação apenas reativa e tardia dos atingidos.
Portanto, é imperioso entendermos o demônio de Michelle no contexto desse ecossistema brasileiro de fake news no cenário de um acachapante sistema de desinformação – estruturado e estruturante. Uma ideia de bem contra o mal, de combate ao inimigo que destrói famílias; ideia que é trazida por uma mulher jovem, que defende a família, que se posta ao lado do marido presidente, aquele que perdeu uma parte expressiva do eleitorado feminino exatamente por ser abertamente machista e misógino.
Sobretudo, o discurso que traz o demônio à cena nacional serve muito bem para consolidar a agenda ultra-conservadora da extrema-direita e para tirar o foco de temas e pautas que realmente interessam ao país e que deveriam estar sendo muito discutidas: fome, desemprego, economia estagnada, aumento acentuado da depressão na população, corte de verbas públicas para a educação e a saúde, entrega da Petrobras, privatização da Eletrobrás, entre tantos outros.
Mas, por ora, metaforicamente ou não, o capeta está roubando a cena no Brasil de Bolsonaro.
Voltou a circular entre mídias sociais de grupos religiosos que teria sido distribuído em escolas públicas em governos do PT o livro “Aparelho Sexual e Cia – Um guia inusitado para crianças descoladas”. Segundo um dos vídeos, o livro foi entregue para turmas de crianças pequenas, como uma que segura um exemplar enquanto é filmada.
Fake news “requentada”
“Aparelho Sexual e Cia – Um guia inusitado para crianças descoladas”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, de autoria dos educadores da Suíça e França, Phillipe Chappuis, com o codinome ZEP e Hélène Bruller, surgiu na cena pública há quatro anos. Foi quando o então candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro afirmou, em entrevista ao Jornal Nacional, que o livro foi comprado pelo Ministério da Educação, durante a gestão de Fernando Haddad, e distribuído nas escolas.
Conforme Bereia já checou, o livro nunca foi comprado pelo Ministério da Educação, nem foi distribuído em escolas. A obra publicada pela Companhia das Letras é destinada a crianças e jovens de 11 a 15 anos, e não para crianças a partir de 6 anos, como circulou nas mídias sociais e foi reforçado por Jair Bolsonaro na entrevista.
Bereia pontua que, novamente, as campanhas de desinformação buscam mobilizar grupos de eleitores alinhados a pautas conservadoras contra líderes de esquerda. A estratégia de voltar às pautas morais exploradas na campanha eleitoral de 2018 (e retomadas também no pleito municipal de 2020) é uma tentativa de repetir êxitos e surpresas daquele ano.
O site de extrema direita Gente Decente, publicou uma série de informações falsas a respeito de uma suposta intervenção militar nas eleições deste ano. Bereia checou as informações em duas partes. (Leia aqui a parte 1).
A matéria de Gente Decente desinforma e propaga pânico neste já conturbado período pré-eleitoral. O site afirma que todas as preocupações com o que pode acontecer com o Brasil em caso da derrota eleitoral do atual presidente estão sendo intensamente discutidas pelas FFAAs, como visto no Projeto de Nação – 2035.
O encerramento da matéria “tranquiliza” os leitores, pois, segundo Gente Decente, “nossas FFAAs estão muito atentas e sabem, exatamente, o que deve ser feito para livrar o Brasil de uma desgraça chamada Lula”.
Governo Bolsonaro e Forças Armadas – Militarização da Burocracia
O conteúdo da publicação do site Gente Decente fomenta a ideia de um projeto de nação, no qual as Forças Armadas atuariam aparelhando o governo atual, militarizando a burocracia..
Com o objetivo de apresentar dados sobre a presença de militares na ocupação de cargos em comissão no Poder Executivo Federal Brasileiro, o Ipea apresenta estatísticas descritivas que permitem, de forma inédita, até onde foi possível ter conhecimento, observar longitudinalmente a trajetória da presença desse grupo especial de servidores na ocupação de cargos no Executivo Federal, entre os anos de 2013 e 2021.
Constatou-se que a presença agregada de militares em cargos e funções comissionadas teve trajetória de aumento de 59% no período analisado, tanto pelo aumento do número de cargos e funções militares em si como pelo aumento da presença de militares em cargos e funções civis. Consideradas apenas funções de natureza civil, o número de militares nesses postos aumentou 193% no período analisado.
No caso dos cargos de Natureza Especial os percentuais de militares no total de cargos são mais proeminentes, saindo de 6,3% em 2013 para quase 16% em 2021. A composição dos cargos ocupados se alterou no período, cabendo destaque para os níveis 5 e 6, de mais alto poder decisório, que passaram a ter percentuais mais significativos no conjunto de cargos ocupados a partir de 2019.
A autora do estudo, a Técnica de Planejamento e Pesquisa em exercício na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea (Diest) Flávia de Holanda Schmidt, foi exonerada da Direção em março de 2022, pouco antes da publicação da nota técnica. Nessa oportunidade, além de Flávia de Holanda, o presidente do Instituto e outros seis diretores também perderam seus cargos.
O documento apresenta uma situação hipotética e desafios a serem vencidos no Brasil de 2035. De acordo com o Projeto de Nação, o Brasil de 2035 é ocupado por novas lideranças políticas surgidas dos movimentos de pressão popular das décadas anteriores. Estas lideranças ocuparam espaços onde antes “prevaleciam as antigas lideranças patrimonialistas e fisiológicas, em grande medida envolvidas em corrupção”. E mesmo que existam nichos onde estas nefastas antigas lideranças ainda tenham influência, o sistema democrático de 2035 está fortalecido. Muito deste avanço democrático se deve aos currículos da educação “desideologizados” durante os últimos anos.
Dentre os cenários previstos, a influência do Movimento Globalista Mundial nas decisões do Estado brasileiro aparece com um grande desafio ainda a ser vencido em 2035. O documento caracteriza o globalismo como “um movimento internacionalista, cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la; determinar, dirigir e controlar, tanto as relações internacionais, quanto as dos cidadãos entre si, por meio de intervenções e decretos autoritários. No centro do movimento estaria a Elite Financeira Mundial, ator não estatal constituído por mega investidores, bancos transnacionais e outros entes mega capitalistas, com extraordinários recursos financeiros e econômicos.
Além disso, seria visível a união de esforços entre determinadas entidades brasileiras e o movimento globalista, inclusive com o apoio de relevantes atores internacionais, visando interferir nas decisões de governantes e legisladores, especialmente em pautas destinadas a conceder benesses a determinadas minorias, em detrimento da maioria da população, a exercer ingerência em nosso desenvolvimento econômico, usando pautas ambientalistas a reboque de seus interesses e não pela necessária preservação da natureza, e a provocar crises que enfraquecem a Nação em sua busca pelo desenvolvimento.
E ainda, o globalismo teria uma outra face, mais sofisticada, que, segundo o Projeto de Nação, pode ser caracterizada como “o ativismo judicial político-partidário”, pelo qual parcela do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública atuam sob um prisma exclusivamente ideológico reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição brasileira.
Alguns conflitos que no “Entorno Estratégico” abalariam o Brasil, como a “predatória” exploração de minerais na Guiana, que causará um conflito com os EUA após “forte reação de entidades ambientalistas internacionais e de direitos humanos, tendo em vista as condições degradantes dos empregados” . Uma nova pandemia, desta vez do “Xvírus” também seria, segundo o site, um desafio logo superado entre 2027 e 2028.
Globalismo
A teoria da conspiração conhecida como Globalismo e apresentada no Projeto de Nação é uma das bandeiras do atual governo e seus apoiadores. O documento segue a mesma linha dos pensamentos do guru conservador Olavo de Carvalho e do ex-chanceler Ernesto Araújo, “olavista” convicto.
Olavo de Carvalho sempre teve um bom trânsito nos meios militares e suas teorias foram transmitidas de geração para geração. Piero Leirner conta em sua obra “ O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida” como Carvalho, em grande medida, subsidiou as teses sustentadas pelos militares nos dias atuais, dentre estas, o Globalismo.
O documento cita ainda “o ativismo judicial”, como uma outra face do Globalismo. Esta passagem serve de munição para os ataques ao judiciário brasileiro e alimenta falsas informações com as apresentadas pelo site Gente Decente.
A referência à China como um fator de desestabilização da região com a “exploração predatório” na Guiana e maus tratos aos empregados durante este processo chama atenção pois, segundo Plano de Nação, a forte reação das “entidades ambientalistas internacionais e de direitos humanos” provocaram a intervenção dos EUA e aliados na região. De acordo com o Globalismo, estas entidades são ligadas aos metacapitalistas e elites mundiais na cruzada para estabelecer um governo mundial.
Segundo as informações apresentadas , é possível caracterizar estes “acontecimentos” que fazem parte do “Projeto de Nação”, como uma “Grande Inversão”. O antropólogo Piero Leirner explica que se trata de um método dialético: uma constante projeção que certos agentes realizam nos seus inimigos invertendo suas posições. A ideologia, neste caso, que assume um tom de conspiração e pertence aos outros, revela mais sobre o documento produzido do que os processos e projeções que descreve. “Ela revela um uso consciente dessas inversões de realidade visando provocar reações inconscientes que afetam o real de forma programada. Militares chamam isso de “operações de bandeira falsa”. (O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida. p.19)
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Bereia concluiu na primeira parte da checagem que as informações apresentadas por Gente Decente não eram verdadeiras. Porém, reconhece que ao citar o Plano de Nação – Brasil 2035, o site buscou subsídios em um documento real, mas que faz exatamente o que afirma criticar: uma “ideologização” da visão de país, a construção de inimigos (China, Rússia e antigas lideranças políticas nacionais), teorias da conspiração (Globalismo) e uma retórica que captura termos como “democracia”e “liberdade de expressão” e as utiliza num contexto que quer dizer exatamente o contrário. No momento de publicação desta checagem, o site Gente Decente, bem como o canal de YouTube, encontram-se fora do ar.
Circula em mídias sociais de grupos religiosos conteúdo divulgado pelo site Gente Decente, afirmando que “Já está completamente definido o plano de ação militar no processo eleitoral ele será compulsório. A decisão foi tomada após [o presidente do Tribunal Superior eleitoral ministro Edson] Fachin afirmar que as negociações com as FFAAs estavam encerradas e de voltar a ignorar as sugestões por elas oferecidas. A decisão foi tomada por todos os comandantes militares e mais o alto-comando militar em decisão unânime. A forma como se dará esta atuação está sendo estudada. Pensa-se em uma [Garantia da Lei e da Ordem] GLO específica, associada ou não à adoção doartigo 142.”
Gente Decente diz ainda que “chegou-se inclusive a ser proposto que todos os técnicos do TSE sejam substituídos por técnicos militares” e ainda o adiamento das eleições para maio de 2023.
Essas informações circularam em mídias digitais, aplicativos de mensagens e meios religiosos. Bereia checou a matéria publicada por Gente Decente e a quantidade de informações equivocadas, falsas, fora de contexto, distorcidas e insinuações, como a aplicação do artigo 142, fazem do texto um exemplo da desinformação que acompanha o período pré-eleitoral e do que está por vir.
Imagem: reprodução da internet
Gente Decente
Em seu canal do Youtube, Gente Decente, cujo nome é o mesmo do website do grupo , o slogan é “Gente decente – a verdade acima de tudo”. O espaço digital se define como “apenas um canal CONSERVADOR sempre em busca da verdade, do combate a fake news, do respeito à DEMOCRACIA e às leis, dos sagrados direitos CONSTITUCIONAIS e da LIBERDADE DE PENSAMENTO e OPINIÃO” (destaques no original). É liderado por Manoel Santos, que se apresenta como engenheiro civil, especializado em Marketing, ex-oficial do Exército, ex-executivo da área comercial em empresas multinacionais, se diz “CONSERVADOR ROXO” (destaque no original) e “abelhudo” na análise política, autor de discursos nos vídeos do canal.
O canal tem como foco principal divulgar conteúdos que mostram a suposta aliança das Forças Armadas com o governo Bolsonaro, como também faz críticas ao STF e a outras instituições.
Nesta matéria, Bereia apresenta a primeira parte da checagem do conteúdo que ganhou repercussão em espaços religiosos.
“Já está completamente definido o plano de ação militar no processo eleitoral e ele será compulsório.”
Em 2021, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) criou a Comissão de Transparência das Eleições (CTE), instituída pelo então presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, por meio da Portaria TSE nº 578/2021 O intuito da Comissão é aumentar a participação de especialistas, representantes da sociedade civil e instituições públicas na fiscalização e auditoria do processo eleitoral, contribuindo, assim, para resguardar a integridade das eleições.
A composição da CTE é formada por: representante das instituições e órgãos públicos, a senador Antonio Anastasia (PSD-MG)o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União (TCU); representante das Forças Armadas, General Heber Garcia Portella, comandante de Defesa Cibernética; pelaa Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a conselheira Luciana Diniz Nepomuceno; o perito criminal Paulo César Hermann Wanner, do Serviço de Perícias em Informática da Polícia Federal; e o vice procurador-geral eleitoral Paulo Gustavo Gonet Branco, pelo Ministério Público Eleitoral (MPE), além de representantes da sociedade civil.
Desta maneira, não existe um plano das Forças Armadas para as eleições e menos ainda um plano compulsório. O representante do órgão na Comissão de Transparência das Eleições do TSE é o General Heber Garcia Portella, comandante de Defesa Cibernética.
“Negociações com as FFAAs estavam encerradas e se voltar a ignorar as sugestões por elas oferecidas…”
Foram 80 perguntas específicas com pedidos de informações para compreender o funcionamento das urnas eletrônicas, sem qualquer comentário ou juízo de valor sobre segurança ou vulnerabilidades.
As questões, de natureza técnica, foram respondidas detalhadamente pela Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE em um documento com 69 páginas e três anexos, somando pouco mais de 700 páginas. Contudo, a íntegra do documento não foi divulgada por estar sob sigilo a pedido dos autores das perguntas.
Não existiram “negociações” entre as Forças Armadas e o TSE e as sugestões e questionamentos enviados foram respondidos de forma institucional.
“[Garantia da Lei e da Ordem] GLO específica, associada ou não à adoção do artigo 142.”
O artigo 142 da Constituição Federal é seguidamente citado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro como sendo uma previsão legal para uma intervenção militar no Brasil. Este entendimento, mesmo refutado diversas vezes por especialistas, ministros de tribunais superiores e pelo Congresso Nacional, continua a fazer parte da retórica bolsonarista e do imaginário dos seus apoiadores.
As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Realizadas exclusivamente por ordem expressa da Presidência da República, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem.
Reguladas pela Constituição Federal, em seu artigo 142, pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, as operações de GLO concedem provisoriamente aos militares a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade.
Nessas ações, as Forças Armadas agem de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições.
Exemplo de uso das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem foi o emprego de tropas em operações de pacificação do governo estadual em diferentes comunidades do Rio de Janeiro, em 2007, 2010 e 2017. Também, recentemente, o uso de tropas federais nos estados do Rio Grande Norte e do Espírito Santo, em 2017 devido ao esgotamento dos meios de segurança pública, para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
As Forças Armadas também atuaram nos limites legais da GLO durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro (Rio + 20), em 2012; na Copa das Confederações da FIFA e na visita do Papa Francisco a Aparecida (SP) e ao Rio de Janeiro durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2013; na Copa do Mundo 2014 e nos Jogos Olímpicos Rio 2016, ambos no Brasil.
Além disso, operações de GLO são adotadas para assegurar a tranquilidade e lisura de processos eleitorais em municípios sob risco de perturbação da ordem.
Visto isso, publicar que uma GLO “específica” para o processo eleitoral em “conjunto” ou não com o art. 142 seria planejada é falsa, pois da maneira como essas informações são apresentadas pelo site Gente Decente, as Forças Armadas estariam articulando um ato contra a democracia, pois as operações de GLO e o art. 142 não têm qualquer relação com o processo eleitoral.
“Técnicos do TSE sejam substituídos por técnicos militares”
A Justiça Eleitoral é um órgão de jurisdição especializada que integra o Poder Judiciário e cuida da organização do processo eleitoral (alistamento eleitoral, votação, apuração dos votos, diplomação dos eleitos, entre outros). Logo, trabalha para garantir o respeito à soberania popular e à cidadania.
Para que esses fundamentos constitucionais – previstos no art. 1º da CF/1988 – sejam devidamente assegurados, são distribuídas competências e funções entre os órgãos que formam a Justiça Eleitoral. São eles: o Tribunal Superior Eleitoral, os tribunais regionais eleitorais, os juízes eleitorais e as juntas eleitorais.
A Justiça Eleitoral tem ampla atuação descrita em lei, ( Art. 92 da CF/1988 e Arts. 22 , 23 29, 30, 35, 40 do Código Eleitoral), o que permite que de fato, sejam preservadas a ordem e a lisura do processo eleitoral, e, assim, assegurados os fundamentos constitucionais da soberania popular e da cidadania.
Portanto, as funções da Justiça Eleitoral e de seus integrantes são previstas em lei e não existe a possibilidade de técnicos do TSE serem substituídos por “técnicos” da Forças Armadas, visto que isto não encontra respaldo na Constituição Federal e em qualquer lei.
A emenda deve ser proposta por no mínimo um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; pelo Presidente da República; ou por mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa (isto é, maioria simples) de seus membros.
O processo legislativo até a promulgação de uma PEC é extremamente longo e trabalhoso, discussão e votação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada quando obtiver, em ambos, o mínimo de três quintos dos votos dos membros de cada uma delas (art. 60, § 2º), isto é, 308 deputados e 49 senadores;
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Bereia conclui que a notícia publicada pelo site Gente Decente é falsa. Não apresenta fontes e os dados expostos não encontram qualquer respaldo em informações oficiais. As constantes ações do Tribunal Superior Eleitoral são ignoradas pela publicação, que baseia sua matéria em falsidades e teorias da conspiração.
Gente Decente busca desinformar sobre o processo eleitoral e afirma que as Forças Armadas planejam atos contra a democracia, informações graves que contradizem conteúdo oficial e publicações do Ministério da Defesa e dos comandantes militares.
As Forças Armadas em diversas oportunidades emitiram sinais de apoio ao processo democrático e ao Estado de Direito. A publicação de Gente Decente, um site sem qualquer credencial para ser tomado como informativo, busca turvar o transparente processo eleitoral brasileiro ao propagar notícias falsas e alarmantes.
A imagem de um print de matéria com característica visual do portal de notícias G1, do Grupo Globo, com o título “Lula diz: ‘No meu governo, Bíblia vai adotar pronome neutro e não terá mais o nome de Jesus”, circulou intensamente em grupos de igrejas no WhatsApp e em perfis e páginas de mídias sociais com identidade religiosa na terceira semana deste mês de junho. Com data de 7 de maio de 2022, a postagem, que não divulga a matéria na íntegra, mas apenas a seção “Política”, o título e a autoria de “Astolfo Mendes”, com data, hora e período de atualização, continha a linha fina (com erro ortográfico) “Ex-presidente profere a fala enquanto estava acompanhado por liderenças do Candomblé”.
O G1 e a assessoria de comunicação do ex-presidente Lula desmentiram o conteúdo da imagem, mas, ainda assim, ela continuou sendo compartilhada por vários dias. O projeto de checagem “Fato ou Fake” do G1 afirmou que o portal “não publicou reportagem com esse título” e que “a imagem que circula nas redes sociais é uma montagem obtida por meio de fraude”. Já o projeto de checagem da campanha do ex-presidente “Verdade na Rede” declarou que a postagem é mentirosa e que ela “é coisa de bolsonarista que bota foto de político no livro sagrado”.
De fato, não há registros de qualquer manifestação pública de Lula sobre este tema para se inferir que o candidato à Presidência nas eleições de 2022 tencione realizar tal projeto. Além disto, este tipo de afirmação, baseada em terrorismo verbal para capturar a atenção e gerar compartilhamentos entre cristãos contrários à eleição do ex-presidente, pode ser classificada como bizarra. Conforme instruções básicas para identificação de conteúdo desinformativo nas mídias sociais, material “bizarro”, que cause estranheza por tratar de algo anormal, incomum, absurdo, que chegue a causar incômodo por conta disto, deve ser sempre tratado com suspeita. Neste caso, é anormal, incomum, que um líder político se revista do poder ou se incumba da tarefa de, agindo de forma autoritária, alterar as escrituras de qualquer religião que adote um livro sagrado.
Ademais, o conteúdo induz à intolerância religiosa pois atrela a falsa intenção de alteração da Bíblia à companhia de lideranças do Candomblé.
Juntamente com outros projetos de checagem de conteúdo que verificaram a suposta matéria do portal de notícias G1, Bereia classifica a postagem que induz a pensar que Lula mudará a Bíblia como falsa.
Bereia também alerta leitores e leitoras sobre este tipo de desinformação que circula em torno das eleições 2022 para enganar cristãos e cristãs com pânico e terrorismo verbal. Qualquer conteúdo que tenha caráter bizarro como “mudar a Bíblia” ou “acabar com/fechar as igrejas” deve ser desacreditado e denunciado. A intenção de quem publica este tipo de conteúdo de forma intencional é desqualificar opositores com mentiras e enganos e usar cristãos, pessoas de boa vontade, tomando-os por crentes ingênuos. Esta ação, que repete ocorridos nas eleições de 2018, representa desprezo à prática democrática em processos eleitorais que devem passar pelo debate de ideias e de projetos de nação.
Bereia revisou mais uma das questões levantadas pelo representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições (CTE), enviadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que respondeu a todas em 11 de maio, no documento intitulado “Respostas Técnicas do Supremo Tribunal Eleitoral ao Ofício n.007/2022”.
O documento enviado ao TSE pelo representante das Forças Armadas na CTE, General Heber Garcia Portela, levantou uma questão sobre fiscalização e auditoria por parte das entidades fiscalizadoras e afirmou: “…tem-se uma opinião no sentido de que fica prejudicado o trabalho de auditoria por parte das referidas entidades, tendo em vista a Resolução TSE nº 23. 673/2021 restringir o escopo dos trabalhos de auditoria, a independência e a autonomia técnicas da equipe de auditoria”. O representante das Forças Armadas questiona ainda o TSE: “A atividade de fiscalização não substitui uma auditoria. Convém que os Partidos Políticos sejam estimulados a exercer sua atividade de auditoria por conta própria ou por contratação de uma parte independente. O próprio TSE poderia também proceder da mesma maneira”.
A manifestação técnica do TSE à questão levantada informa que a citada Resolução tem uma conceituação de auditoria restrita aos seus próprios fins e que para “os efeitos desta Resolução e de suas regulamentações, aplicam-se as seguintes definições: auditoria: exame sistemático sobre o funcionamento de softwares, que averigua se estão implementados de acordo com as normas legais, e procedimentos, para aferir suas conformidades; fiscalização: ato de verificar se algo está ocorrendo como fora previsto, ou seja, em conformidade. Observa-se que, segundo a norma, auditoria possui um sentido sistêmico e a fiscalização é procedimento de constatação da conformidade de eventos”.
Sendo assim, o TSE explica que a Resolução nº. 23.673/2021 prevê etapas que “constituem e garantem a auditabilidade do voto e a fiscalização do processo eleitoral pelas partes interessadas”. Conforme a resposta do TSE: “tais medidas não são externas ao processo eleitoral. Elas integram o processo eleitoral, senão vejamos os seus elementos conceituais: teste de autenticidade dos sistemas eleitorais (evento de auditoria de verificação de autenticidade dos sistemas eleitorais instalados nas urnas eletrônicas, a ser realizado no dia da votação); teste de integridade das urnas eletrônicas (evento de auditoria de verificação de funcionamento das urnas eletrônicas em condições normais de uso); Teste Público de Segurança (TPS)”.
Diversas fases de auditoria já existem
A resposta técnica que o TSE dá à questão, que pode ser lida no site da instituição, mostra que para garantir a auditabilidade do voto já acontecem várias fases de auditoria durante todo o processo eleitoral. O que, entretanto, não impede que a instituição mantenha instâncias de governança e auditoria interna e que não possa passar por controle externo, que vem sendo feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que de acordo com o art. 71 da Constituição Federal, é o órgão que exerce o controle externo e a fiscalização no exercício da atribuição do Congresso Nacional. De acordo com a Constituição, “o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União”.
Assim, na resposta técnica, o TSE informa que “tramita junto ao TCU uma auditoria voltada especificamente à análise do processo eleitoral brasileiro (TC 014.328/2021-6, Relatoria Ministro Bruno Dantas)”, o que significa que o Poder Legislativo já exerce a tarefa de auditoria, que “está em andamento e tem atestado a integridade do processo eleitoral brasileiro”.
O TSE lembra também que os partidos políticos que exercem a representação parlamentar no Congresso Nacional têm sido incentivados pela Corte a atuar como entidades fiscalizadoras e convidados a compor o Observatório de Transparência das Eleições.
O TSE explica ainda que a auditoria interna é realizada por uma unidade específica de forma independente e que faz isso através da avaliação da eficácia dos processos de gerenciamento de riscos, integridade e governança do Tribunal. Esta unidade do órgão “realiza a atividade independente e objetiva de avaliação e consultoria voltada a agregar valor às operações da organização e auxiliar na concretização dos objetivos do TSE”.
Atualmente, a auditoria do TSE trabalha alinhada às melhores práticas de governança e “responde diretamente à presidência da Corte, conforme disposto na Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº. 308, de 2020”. O TSE finaliza esta resposta técnica ao representante das Forças Armadas e afirma que seus próprios processos de trabalho passam por ininterrupta avaliação, inclusive “no que tange ao processo eleitoral”. Um exemplo dado sobre a rigorosa auditoria do TCU sobre o processo eleitoral é o treinamento de mesários cuja análise já consta no Plano Anual de Auditoria do TSE para este ano.
Bereia conclama leitores e leitoras a tomar o parecer técnico do TSE, a instituição historicamente responsável pelo processo eleitoral, que atua pela Justiça Brasileira, como referência para o enfrentamento de qualquer conteúdo que insista em divulgar falsidades que ameacem o direito ao voto e, consequentemente, o Estado Democrático de Direito.
Na última semana, ganhou destaque em sites de notícias gospel a retirada do ar do canal Enlace, único canal de Tv cristão por satélite na Nicarágua. O fato ocorreu em 10 de novembro de 2021, três dias após as conturbadas eleições presidenciais no país que resultaram na reeleição de Daniel Ortega (Frente Sandinista de Libertação Nacional), há 14 anos consecutivos no poder.
Canal Enlace teve a licença de operação cancelada por órgão governamental
De acordo com o veículo local Nicaragua Investiga, o governo de Ortega cancelou não só a licença de operação do canal Enlace, como também a da Rádio Nexo, ambos pertencentes ao ex-presidenciável Reverendo Guillermo Osorno.
Atualmente dirigido por Nahima Díaz, filha do diretor da Polícia Nacional Francisco Díaz e cunhada do filho de Daniel Ortega, o Telcor alegou que foram encontradas anomalias na operação dos veículos midiáticos. Conforme comunicado publicado pelo Canal Enlace, foram apresentadas ao escritório do Instituto evidências que comprovavam a normalidade das operações do canal, que ainda assim teve sua licença cancelada.
O Canal Enlace e a frequência da Rádio Nexo foram atribuídos ao Reverendo Osorno em 1991, sob o governo de Violeta Chamorro. O canal saiu do ar em 12 de novembro e até a conclusão desta checagem, a programação continuava a ser transmitida por meio de seu website.
Outros meios de comunicação censurados no regime Ortega-Murillo
A postura assumida pelo presidente da Nicarágua Daniel Ortega torna perplexo quem acompanhou sua trajetória. Ele se tornou líder do país pela primeira vez, em 1981, dois anos depois da Revolução Sandinista (1979), que livrou o país da ditadura do general Anastásio Somoza e filhos, que durou 32 anos. Naquele ano, Ortega foi eleito coordenador do Conselho de Administração. Em 1984, ele ganhou as eleições presidenciais e ocupou a presidência até 1990. Voltou ao poder em 2007 e se manteve no cargo até o presente. Desde então, analistas de várias tendências consideram que houve um desmantelamento do Estado nicaraguense em nome de um governo que ganhou “mão de ferro”.
Matéria do jornal alemão DW, de 23 de novembro, traduzida para o IHU On Line, ainda não confirmava, até o fechamento do texto, a prisão de Edgard Parrales, que foi embaixador da Nicarágua na Organização dos Estados Americanos no primeiro governo de Daniel Ortega. Ele foi capturado na segunda-feira, 22 de novembro, por desconhecidos em frente à sua casa em Manágua. Parrales, de 79 anos, havia participado em um programa de televisão em que se falou da decisão do governo nicaraguense de retirar o país da OEA. Não era a primeira vez que o ex-padre, que um dia se somou às fileiras sandinistas e ocupou vários cargos depois da ditadura de Somoza, se pronunciava publicamente fazendo críticas ao regime de Daniel Ortega. Assim como Ernesto e Fernando Cardenal e Miguel d’Escoto, Parrelas foi suspenso, em 1984, do exercício sacerdotal da Igreja Católica por abraçar a Teologia da Libertação.
A matéria do DW afirma que figuras que outrora apoiaram o sandinismo, agora são perseguidas. “Edgard Parrales foi preso por pessoas que não usavam uniforme de polícia, e não havia uma ordem de prisão contra ele. Então foi como um sequestro”, disse Barbara Lucas, do Informationsbüro Nicarágua, uma associação alemã com sede em Wuppertal que leva mais de quatro décadas informando sobre esse país. “A prisão de Edgard Parrales é outro sinal de que qualquer um que se pronunciar publicamente está arriscando sua liberdade. E este senhor tem 79 anos, isso é um perigo para sua vida”, destaca.
As coisas mudaram muito desde os tempos da revolução sandinista, na qual muitos religiosos tomaram partido contra Somoza até o presente. Quando os protestos de 2018 explodiram, foi a Igreja Católica nicaraguense que intercedeu ante o governo. “Foi um forte apoio para a população, sobretudo para os jovens que estavam sendo tratados com uma violência terrível. Havia certo respeito pela Igreja Católica. Muitos cardeais se colocaram a favor do povo, mas também houve palavras de mediação. Intercediam também para que o governo da Nicarágua cessasse com a violência desnecessária”, disse Betina Beate, diretora do departamento de América Latina de Misereor, uma organização de ajuda ao desenvolvimento do episcopado alemão.
Barbara Lucas afirma que na Nicarágua “existe uma ditadura, um estado policial”, sem liberdade de expressão. “Para mim, pessoalmente, é um caminho muito doloroso, porque nos anos 1980 havia muita esperança, muitos sonhos, muito idealismo, e aos poucos vimos como os espaços para uma sociedade justa e mais solidária foram fechando”, diz. Mesmo assim, ela acredita que a Igreja ainda tem um papel importante. “Mas, neste momento, é um papel um pouco abaixo da superfície, porque atuar em público pode ser muito perigoso”, estima, e lembra o que acabou de acontecer com Edgard Parrales.
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Bereia classifica como verdadeiro o cancelamento do Enlace, único canal cristão de TV por satélite da Nicarágua. A retirada do ar se deu em um momento de grandes tensões políticas no país, que acaba de sediar um complexo processo eleitoral, e vai ao encontro de medidas autoritárias perpetuadas pelo governo de Ortega no que se refere à imprensa local.
Circula em mídias sociais de perfis religiosos um trecho de vídeo utilizado para afirmar que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ameaça padres e pastores. No sábado, 28 de agosto, o diretor do Colégio Batista Getsêmani, pastor Jorge Linhares, líder da Igreja Batista Getsêmani, em Belo Horizonte (MG), se pronunciou sobre o trecho de vídeo e divulgou sua própria produção intitulada “Lula manda recado a Pastores e padres”. O vídeo de Jorge Linhares foi transformado em matéria pelo site Gospel Prime.
O trecho de vídeo que circula nas mídias sociais, criticado pelo pastor mineiro, reproduz a gravação de uma coletiva de imprensa realizada na cidade de Natal (RN), em 25 de agosto. No vídeo original, o ex-presidente responde a uma pergunta sobre as Forças Armadas e militares se envolverem na política, portanto, não se refere a religiosos. Na íntegra, o que Lula disse, aos 48 minutos e 30 segundos da gravação foi:
“…E tem gente que pergunta: mas Lula, você vai conversar com as Forças Armadas? Eu estou conversando com as Forças Armadas agora, com essa resposta que eu estou dando para você. Eu estou conversando com quem é das Forças Armadas, eu estou conversando com quem é do Ministério Público, eu estou conversando com quem é da Polícia Federal, eu estou conversando com quem é pastor, com quem é padre, com quem é ateu. Eu vou conversar com todo mundo enquanto povo brasileiro, enquanto eleitores. Se eu ganhar as eleições, aí eu vou conversar com os militares como chefe das Forças Armadas, como chefe supremo, para dizer qual é o papel deles: não é se intrometer na política, porque isso não está certo….”
O conteúdo falso divulgado pelo Pastor Jorge Linhares e pelo Gospel Prime, na forma de montagem de vídeo, foi postado originalmente na mídia TikTok pelo jornalista do Rio Grande do Sul Élinton Machado. A montagem exclui os trechos em que Lula cita as Forças Armadas e os militares. A fala manipulada do ex-presidente foi transformada na seguinte afirmação:
“Olha com todo o respeito que eu tenho pelas instituições brasileiras, eu estou conversando com quem é pastor, com quem é padre. Vou conversar com todo mundo enquanto povo brasileiro enquanto eleitores. Se eu ganhar as eleições, aí eu vou conversar como chefe supremo pra dizer qual é o papel deles.”
Os vídeos falsos que circulam no Facebook reúnem diversas visualizações e compartilhamentos. Apesar de o vídeo ter sido apagado da conta de Élinton Machado no TikTok, foi mantido no perfil dele no Facebook, onde são registrados mais de 100 compartilhamentos e quase mil visualizações até a conclusão desta matéria.
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Bereia conclui que a afirmação do pastor Jorge Linhares, transformada em matéria pelo Gospel Prime, de que o ex-presidente Lula está perseguindo pastores e padres é falsa. O conteúdo divulgado pelo pastor resulta de manipulação e não condiz com as afirmações originais de Lula. No vídeo original, de entrevista coletiva na cidade de Natal (RN), em 25 de agosto, o ex-presidente se refere às Forças Armadas e seu engajamento em política.
Bereia alerta leitores e leitoras para o tráfico de conteúdo falso pelas mídias sociais neste período conturbado da política nacional. A polarização política é legítima em qualquer democracia e deve gerar debates de conteúdo positivo e não a produção de material falso para causar danos à imagem de lideranças consideradas de oposição. Bereia defende que líderes religiosos têm papel fundamental no enfrentamento do tráfico de falsidades. O pastor Jorge Linhares já foi objeto de outro episódio que envolve desinformação, verificado pelo Bereia.
Esta matéria foi encaminhada ao Bereia por um leitor. O coletivo está aberto a receber novas indicações de verificação para seguirmos no compromisso de informar e enfrentar o tráfico de desinformação em espaços religiosos.
Bereia recebeu uma solicitação de checagem a respeito de uma suposta nota de jornal sobre candidatos beneficiados por votos de cédulas falsas nas eleições de 1994, cuja imagem foi postada pelo perfil Fatos Nacionais no Twitter. O texto traz relatos de irregularidades ocorridas em várias zonas eleitorais do Rio de Janeiro. Em uma delas, o juiz Nelson Carvalhal, da 24a. zona, afirma ter encontrado quatro cédulas falsas beneficiando os candidatos a deputado federal a seguir: Jair Bolsonaro, Álvaro Valle, Vanessa Felipe e Francisco Silva. As cédulas seriam mais finas que as originais.
Bereia classifica, portanto, a nota como verdadeira. A postagem do perfil Fatos Nacionais foi publicada na edição do Jornal do Brasil, em data indicada na imagem compartilhada e foi motivada pelo debate em curso no país sobre os temas do voto em papel e do voto impresso, retomados periodicamente pelo presidente Jair Bolsonaro e seus partidários. Em breve Bereia publicará reportagem sobre estes temas, tendo em vista a ampla circulação de desinformação em torno deles.
O site evangélico de notícias Gospel Prime publicou matéria, em 7 de novembro, intitulada: “Joe Biden vence eleições nos EUA em disputa com suspeita de fraude”, apresentando um panorama de como se deu o pleito.
Inicialmente, Gospel Prime trouxe os números das eleições atualizados em 05 de novembro. Segundo a publicação, em uma disputa acirrada pela Casa Branca, Joe Biden foi eleito presidente dos Estados Unidos com 284 delegados e 50,6% dos votos populares, contra 214 delegados e 47,7% dos votos populares do republicano Donald Trump. Para além dos números, a matéria apontou a possibilidade de fraude no processo de apuração. “Biden usou sua conta no Twitter para se declarar vencedor, apesar de ainda ter de enfrentar uma longa batalha judicial que será travada pelo seu adversário, Donald Trump, atual presidente do país e que aponta indícios de fraudes”, ressaltou a publicação, que afirmou também que, ainda durante o processo de contagem, Trump chegou a usar o Twitter para colocar em dúvidas a apuração, dizendo que estava liderando em vários estados-chave controlados por democratas, mas que essas vantagens desapareceram após “cargas surpresas de votos” serem contabilizadas.
Gospel Prime afirmou que o republicano alertou que os democratas estariam “tentando roubar” as eleições e sugeriu que entraria com ação na Suprema Corte do país, já que havia suspeita de fraudes. Trump disse ainda na madrugada que, por direito, havia ganhado a eleição e que entraria com a ação para impedir uma “fraude”. Como já evidenciado anteriormente, apesar da Suprema Corte poder ser solicitada a intervir, as alegações parecem não ter qualquer perspectiva de sucesso.
Apenas repetindo o que é veiculado pela campanha de Trump, sem pesquisa e verificação próprias do jornalismo, a publicação no site evangélico ainda retomou as alegações infundadas do presidente dos Estados Unidos sobre o estado de Wisconsin, onde diversas denúncias de fraudes começaram a surgir na internet. De acordo com a matéria, o diretor de campanha de Trump, Bill Stepien, teria informado que o republicano pediria recontagem de votos naquele estado. “Wisconsin tem sido uma disputa frágil como sempre soubemos que seria. Tem surgido relatos de irregularidades em vários condados de Wisconsin, que levantam sérias dúvidas sobre a validade dos resultados. O presidente está bem dentro do limite para solicitar uma recontagem e faremos isso imediatamente”, reproduziu Gospel Prime a partir da afirmação em nota divulgada por Bill Stepien.
O processo eleitoral nos EUA
A matéria do site Gospel Prime, já mencionado em diversas checagens do Bereia categorizadas como falsas e enganosas, se junta a outros conteúdos sobre as eleições dos EUA, veiculados em espaços digitais religiosos no Brasil e no exterior, classificados como desinformação. Boa parte desses conteúdos diz respeito a supostas fraudes no processo eleitoral daquele país para favorecer o candidato Joe Biden (Partido Democrata).
Até a data de apuração desta reportagem, em 13 de novembro de 2020, as eleições presidenciais dos Estados Unidos ainda não contavam com um vencedor oficial, embora o democrata Joe Biden venha sendo amplamente aclamado presidente eleito do país. Segundo matéria da BBC, no último dia 07, de acordo com as projeções de resultados, o candidato ultrapassou o número de 270 votos do Colégio Eleitoral (de 538) necessários para chegar à presidência. No mesmo dia, Biden e sua companheira de chapa à vice-presidência Kamala Harris, à frente na apuração, fizeram discursos comemorando a vitória e, desde então, falaram sobre planos de governo.
Com comparecimento recorde, não visto no decorrer de 120 anos, Biden foi o candidato que mais recebeu votos na história recente do país, ultrapassando a marca anterior, de 69,5 milhões de votos recebidos pelo democrata Barack Obama em 2008.
De acordo com matéria publicada pela BBC News Brasil, a disputa foi apertada, uma vez que, nos Estados Unidos, o presidente é eleito de forma indireta, pelo Colégio Eleitoral, e receber a maioria do voto popular não desponta como sucesso garantido. A disputa pelos 270 votos do Colégio Eleitoral, necessários para ganhar a Presidência, segundo a BBC, foi acirrada e incerta até o último momento.
O cenário aponta para o fato de que, apesar de ter sido derrotado, Trump teve desempenho melhor do que o esperado e, segundo números parciais, recebeu neste ano mais de sete milhões de votos a mais do que havia recebido em 2016, quando também perdeu o voto popular, mas conquistou os votos necessários no Colégio Eleitoral para chegar à Casa Branca.
BBC News Brasil indicou ainda que, contrariando as expectativas dos democratas, o Partido Republicano ampliou a presença na Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil), recuperando algumas das cadeiras perdidas na eleição legislativa de 2018.
A expectativa de que o Partido Democrata conseguiria a maioria no Senado também foi colocada em xeque, apontou a mesma publicação. Assim, com poucas cadeiras ainda sem resultado confirmado, a única esperança do partido é vencer em janeiro duas disputas de segundo turno na Geórgia, Estado tradicionalmente republicano, apesar de Joe Biden aparecer à frente na apuração da eleição presidencial.
A base eleitoral fiel e o apoio de quase metade do país devem fazer com que, mesmo fora da Casa Branca, Trump continue sendo um líder influente no Partido Republicano. “O resultado desta eleição demonstra que o trumpismo continua firme e forte”, disse à BBC News Brasil o cientista político Justin Gest, professor da Universidade George Mason, na Virgínia. “Mesmo perdendo, será uma forte influência sobre os americanos e o futuro do Partido Republicano daqui para a frente”, afirmou o cientista político, autor do livro The New Minority: White Working Class Politics in an Age of Immigration and Inequality (A Nova Minoria: Política da Classe Trabalhadora Branca em uma Era de Imigração e Desigualdade, em tradução livre).
Enquanto isso, todo o mundo acompanha os desdobramentos do pleito, cuja previsão de finalização corresponde a 08 de dezembro, segundo estabelecido pela lei federal americana.
O pontapé das denúncias infundadas de fraude
Antes mesmo do início da contagem dos votos, o atual presidente Donald Trump já fazia alegações sobre fraudes nas eleições presidenciais, mesmo sem provas. Ele chegou a citar os votos antecipados pelos correios como possível brecha para fraudes, e chegou a afirmar que entraria com um processo para parar as contagens de votos recebidos pelo serviço postal após o dia 03 de novembro, quando ocorreu a eleição.
Em seu perfil no Twitter, diversos posts do dia 04 de novembro apontavam para supostas ações fraudulentas:
“Eles estão encontrando votos de Biden em todos os lugares – na Pensilvânia, Wisconsin e Michigan. Tão ruim para o nosso país!”, dizia em um dos posts, que contou com quase 180 mil comentários, 200 mil retuítes e cerca de 630 mil curtidas.
No dia 05 de novembro, a apuração na Filadélfia, maior cidade do estado da Pensilvânia, foi suspensa para que a Justiça tomasse decisão sobre qual deve ser o papel dos observadores dos partidos. Segundo informado em matéria publicada no G1, os partidos podem indicar representantes para acompanhar a abertura e a contagem dos votos nos centros de apuração. Após um homem, aparentemente do Partido Republicano, reclamar que não conseguia enxergar as informações escritas do lado de fora de uma das cédulas, a campanha de Trump protocolou – e ganhou – uma ação na Justiça estadual. A distância permitida para os observadores acompanharem a contagem foi reduzida para seis pés (cerca de 1,5 metro). A decisão judicial veio na manhã da quinta-feira, 05 de novembro.
No dia posterior, o presidente acusou, via perfil no Twitter, o Estado da Pensilvânia de má conduta nas eleições. “Legislatura. Eles simplesmente ignoraram isso, ignoraram a Constituição. Agora nós trazemos isso para as casas de contagem e, escandalosamente, os observadores, que são as sentinelas da integridade e transparência, foram excluídos. A Pensilvânia tem se conduzido de uma maneira horrível e sem lei, e espero que isso seja corrigido na Suprema Corte dos Estados Unidos. Além disso, essas votações tardias após o dia das eleições são ilegais, exatamente o que o presidente tem dito. O Supremo Tribunal, em circunstâncias extraordinárias, foi capaz de proferir decisões em questão de dias”, dizia Trump.
A administração da cidade, comandada por democratas, no entanto, recorreu a uma instância superior para reverter a decisão, mas o recurso ainda não foi julgado. A disputa judicial fez com que os trabalhos de contagem ficassem parados de uma a duas horas, segundo o jornal “Philadelphia Inquirer“.
Depois da aparente derrota, um movimento se iniciou nas redes sociais quando Trump afirmou que milhares de votos haviam sido recebidos “ilegalmente” na Pensilvânia e em outros estados-chave das eleições.
Publicação do Portal UOL do dia 12 de novembro apontou outras proposições sobre as medidas do presidente Trump e seus aliados para reverter os resultados. Segundo a matéria, eles insistem por diferentes meios, a exemplo do Twitter, de entrevistas e de comunicados, que todas essas investigações em torno das urnas levarão à reversão do resultado das eleições. UOL afirma que, no dia seguinte à eleição, após falar em fraude eleitoral sem provas, Trump anunciou: “Iremos ao Supremo Tribunal Federal”. Mas para que isso aconteça, várias etapas anteriores devem ser superadas. As equipes jurídicas precisam primeiro contestar o resultado nos tribunais estaduais, ainda que o procurador-geral do país também tenha aprovado “investigações preliminares” por procuradores federais, uma medida bastante incomum nos EUA.
Os juízes estaduais teriam então que decidir a favor da disputa e ordenar uma recontagem. Neste sentido, a Suprema Corte poderia ser solicitada a intervir. Mas, por mais que a campanha de desinformação em torno de Trump diga o contrário, nenhum dos casos acima mencionados parece ter qualquer perspectiva de sucesso.
O ponto comum entre todas essas ações judiciais que já foram indeferidas por juízes ao redor do país é que os advogados de Trump acabam, por falta de provas, apresentando no tribunal uma versão bem mais branda das acusações que o presidente faz em público. Enquanto o presidente fala sem provas no Twitter em “fraude desenfreada”, os advogados, ao contrário de Trump, têm de fundamentar suas alegações perante o juiz, o que desponta como uma difícil missão.
Na mesma semana, circulou em mídias sociais uma postagem mostrando supostas cédulas de votação das eleições dos Estados Unidos despejadas em uma estrada. Segundo a publicação, a imagem foi feita pelo FBI, que teria descoberto que houve fraude no pleito. Por meio de filtro de verificação de notícias do Facebook, usuários do aplicativo solicitaram que esse material fosse analisado, o que foi checado pela Agência Lupa, que categorizou a informação como falsa.
A imagem é de setembro de 2018 e trata-se, na verdade, de correspondências que foram encontradas despejadas no chão por um funcionário dos correios na região de Pennsauken, em Nova Jersey, Estados Unidos. Portanto, não há qualquer relação com as eleições presidenciais norte americanas de 2020.
Segundo reportagem do The Philadelphia Inquirer, a foto enganosa foi feita por um morador da região, que publicou a cena em seu Facebook em 30 de setembro de 2018, com a seguinte legenda: “Se você está procurando sua carta, talvez esteja na estrada do rio pela estação 36…Compartilhe esse post”. De acordo com o texto do Philadelphia Inquirer, o carteiro responsável pela entrega pediu demissão do serviço. “O Correio da Estação Roxborough vai entregar a correspondência”, informou o Escritório do Inspetor Geral dos Correios dos EUA, na ocasião.
A peça de desinformação vem sendo compartilhada nos Estados Unidos desde setembro deste ano e já tinha sido desmentida por diversos veículos internacionais, a exemplo da NBC. Entretanto, voltou a ser usada para se disseminar desinformação s em mídias sociais, após a campanha do presidente Donald Trump pedir a recontagem de votos nos estados de Wisconsin e Michigan. Devido à pandemia da Covid-19, milhões de eleitores votaram por correio.
Desinformações sobre as eleições americanas continuam a circular em sites brasileiros
Mesmo sem o resultado do pleito à presidência dos EUA, iniciado em 03 de novembro, no Brasil, notícias falsas e enganosas continuam a circular nas redes sociais digitais e sites noticiosos.
No dia 10 de novembro, o portal G1 publicou matéria sobre a utilização da plataforma que se mostrou capaz de detectar centenas de contas brasileiras no Twitter disseminadoras de desinformações sobre a eleição americana.
De acordo com o criador do sistema que monitora robôs Christopher Bouzy, os autores das contas nem ao menos tentam disfarçar a origem, deixando claro que são brasileiras.
A plataforma Bot Sentinel, que monitora atividade de robôs no Twitter, alertou no dia 10 de novembro, a existência de mais de mil contas brasileiras tentando espalhar desinformação sobre a eleição americana na rede social. Entre os exemplos apresentados estão contas que repetidamente publicam a hashtag #BidenWasNotElected (“Biden não foi eleito”), mensagem de apoio às alegações sem provas de Donald Trump sobre um suposto “roubo” na disputa presidencial para beneficiar o democrata Joe Biden.
À reportagem da GloboNews, Bouzy informou: “Desde a semana passada, acompanhamos as atividades das eleições e, desde o primeiro dia, percebemos que contas brasileiras estavam espalhando desinformação. Mas na semana passada eram aproximadamente 370-400 contas brasileiras no Twitter. Agora são bem mais de 1000 se aproximando de 2000″. O depoimento também foi publicado na matéria do portal G1.
Segundo o portal, o estadunidense nota que muitas das contas repetem insistentemente as mesmas mensagens de desinformação. “O curioso e bizarro é que não estão tentando esconder seu país de origem. A maioria dos atores estrangeiros que estão disseminando desinformação tenta se disfarçar como alguém dos Estados Unidos. Mas esses [brasileiros] estão fazendo isso à vista de todos”, comentou. “Contas estrangeiras no Twitter que disseminam desinformação sobre as eleições nos EUA não são raras, mas é incomum que haja um número significativo de contas brasileiras no Twitter que tentam semear a discórdia em uma eleição presidencial dos EUA”, disse o criador do Bot Sentinel à reportagem.
Em sua conta no Twitter, Bouzy também publicou as constatações evidenciadas pela plataforma de checagem:
Neste cenário, sites religiosos como o Gospel Prime entram novamente no rol da desinformação.
Entenda como será definido resultado das eleições
Ao contrário de muitos outros países, os Estados Unidos não têm um órgão eleitoral central que decide e certifica os resultados das eleições nacionais — o equivalente ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no Brasil, por exemplo. Vale ressaltar que cada um dos 50 Estados tem suas próprias regras e prazos diferentes, o que explica os desarranjos dos últimos dias, com foco em alguns Estados em disputa.
Em 2020, porém, enfrenta-se uma situação incomum por vários motivos. Por um lado, a pandemia do coronavírus e as precauções necessárias fizeram com que a votação pelo correio disparasse, o que desacelerou a contagem em alguns lugares.
Por outro lado, de acordo com matéria da BBC “há um presidente que não quer assumir as projeções de Estados que dão vitória a Biden, rompendo com uma tradição em que o perdedor reconhece a derrota e oferece sua colaboração ao presidente eleito”. Segundo a publicação, ao invés disso, a campanha de Trump e sua equipe jurídica entraram com ações judiciais em Estados importantes para bloquear o processo pelo qual as autoridades eleitorais certificam os resultados.
É importante entender ainda o conceito de Certificação de Resultados, ou seja, a comprovação que os Estados emitem confirmando o vencedor das eleições naquele território. Embora o processo varie por Estado, a certificação geralmente é concluída nas semanas seguintes às eleições, antes que a delegação de cada Estado no Colégio Eleitoral se reúna, em meados de dezembro, para emitir seus votos.
Os resultados geralmente divulgados na noite das eleições são considerados não oficiais e as autoridades de cada Estado levam algum tempo após as eleições para encerrar a contagem dos votos.
Para verificar os resultados, os funcionários checam os dados da contagem dos votos e confirmam se o manuseio das cédulas foi correto. O ato de certificação é normalmente realizado pelo chefe do órgão eleitoral estadual, pelo governador ou por uma junta de membros de campanha.
Cada Estado tem processos diferentes para verificar a contagem final dos votos antes que as autoridades certifiquem formalmente os resultados, o que pode demorar algumas semanas, com cada condado certificando os resultados de sua região e enviando-os às autoridades eleitorais estaduais em um prazo que varia de local para local.
Muitos dos Estados já concluíram esse processo, mas em muitos deles o período de certificação permanece aberto. Nos atemos aos prazos dos seguintes Estados, apurados pela BBC:
Nevada – Prazo termina em 16 de novembro.
Wisconsin – Condados devem fornecer resultados certificados à comissão eleitoral estadual até 17 de novembro.
Geórgia – Prazo termina em 20 de novembro.
Michigan e Pensilvânia – Condados devem certificar os resultados até 23 de novembro.
Arizona – Prazo termina em 30 de novembro.
Segundo a mesma publicação da BBC, em dois desses Estados, Wisconsin e Geórgia, foi anunciado que haverá uma recontagem de votos, uma ação que só pode começar depois que a certificação for feita.
As autoridades eleitorais de cada Estado verificam os resultados para garantir a precisão da contagem final e detectar possíveis problemas técnicos, erros humanos ou fraudes (que, segundo dados históricos, são muito raras nos Estados Unidos).
Vale lembrar que essas etapas de verificação e o ato de certificação geralmente não produzem mudanças drásticas nas projeções.
Segundo estabelecido pela lei federal estadunidense, existe uma data como prazo final para as contagens denominada de “porto seguro”, que neste ano corresponde a 08 de dezembro. Até lá, de acordo com a lei federal, todas as informações de resultados estaduais devem ter alcançado o “porto seguro”, ou seja, devem ter sido entregues pelas autoridades eleitorais de cada Estado.
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Bereia categoriza a matéria de Gospel Prime, que afirma suspeitas de fraude nas eleições dos Estados Unidos, como enganosa. Isso porque, segundo apurações de importantes veículos que seguem acompanhando o andamento das eleições, como a BBC, até 12 de novembro, nenhuma evidência de fraude apareceu.
Não se pode descartar que, devido às alegações do presidente de suposta fraude, algumas legislaturas estaduais em mãos dos republicanos decidam não aceitar como válidos os resultados das eleições em seu próprio Estado. Assim, no dia 14 de dezembro poderia ocorrer, no Colégio Eleitoral, uma divisão entre delegados de um mesmo Estado, com um grupo dando seu voto ao vencedor nas urnas do Estado e o outro, seguindo a orientação do legislativo do Estado. Nesse caso, a lei estabelece que cabe ao Congresso dos Estados Unidos escolher entre os dois grupos de delegados enviados pelo Estado, o que não acontece desde 1876.
A matéria de Gospel Prime também falha ao não informar seus leitores/as sobre os processos que envolvem a finalização da eleição e o papel da Suprema Corte americana em relação à intervenção na contagem dos votos, o que poderia elucidar a clareza nas apurações dos votos.
Um manifesto pela democracia, pelo exercício consciente do voto e da participação popular, com a devida distinção de papéis entre Estado e Igreja. É isto que propõe a Rede FALE, uma organização de promoção da transformação social e de esforços pela justiça social, dignidade humana e defesa dos direitos humanos.
A organização propôs o Manifesto contra o Voto de Cajado no dia 28 de outubro de 2020, que, entre outros pontos, denunciou as práticas de uso do púlpito religioso como espaço de campanha direta ou indireta para candidatos ou partidos, a bênção a um candidato ou partido por líderes religiosos, a venda de apoio político por denominações ou comunidades, a definição de candidaturas “oficiais” de igrejas, a utilização da Bíblia como instrumento para legitimar ou demonizar a candidatura de quaisquer candidatos e qualquer esquema de produção de desinformação.
O Coletivo Bereia, iniciativa de enfrentamento à desinformação em ambientes digitais religiosos, endossa a necessidade do compromisso inegociável com a verdade para que as eleições sejam limpas e justas.
O Manifesto contra o Voto de Cajado na íntegra
Leia o Manifesto da Rede Fale na íntegra abaixo:
1. É chegado mais um momento de corrida eleitoral na democracia brasileira. Tradicionalmente, as eleições são, para muitas pessoas, os únicos momentos em que se propõem debater a participação política. Lamentamos que a reflexão sobre nossa realidade política não seja parte do dia a dia, no acompanhamento de parlamentares, na discussão das grandes questões nacionais, na participação social e no acompanhamento de políticas públicas, o que nos permitiria dar um salto qualitativo na construção de nossa democracia e num projeto de nação mais justo e igualitário, com ética na política e boa governança nas políticas públicas.
2. Como observado desde a redemocratização e de forma crescente nos últimos anos, o voto evangélico é um dos componentes de grande destaque do processo eleitoral. Fruto da maciça expansão evangélica ocorrida nos últimos anos, a participação cada vez mais ativa de figuras evangélicas das mais variadas formas e concepções políticas, bem como de linhas teológicas na política brasileira impõe um desafio de análise a todos que desejam compreender a conjuntura eleitoral. Se, por um lado, o tradicional desinteresse evangélico pela política já foi superado e cada vez mais os crentes deixam de voltar seus olhares apenas para o porvir; por outro, o investimento evangélico na política comporta uma série de práticas distintas e heterodoxas que não estão em consonância nem com a melhor tradição cristã de participação política como William Wilberforce, Martin Luther King Jr., José Míguez Bonino, Guaracy Silveira, Paulo Wright; nem com valores republicanos e democráticos.
3. No Brasil, há dois perigos diante do cristão que compreende que precisa atuar politicamente: O primeiro é achar que simplesmente por “ser crente” está abençoado para a política. Essa é a concepção que leva milhões de brasileiros a votar no “pastor” ou no “irmão abençoado pelo pastor”. Como consequência, muitos parlamentares são eleitos sem compromisso com a justiça ou a democracia, sem coerência partidária, programática ou ideológica, votando sempre para a expansão do poder de suas igrejas, associações, rádios e empresas. Por fim, acaba-se acreditando que a única – e mais rápida – solução para o Brasil é eleger um governante ou parlamentar “crente”, e declarar de boca que “o Brasil é do Senhor Jesus Cristo”. O segundo problema tem maior profundidade: é quando os cristãos acham que podem transformar a declaração fundamental do “eu creio” da sua fé em lei a ser imposta pelo Estado. Isso ocorre quando queremos reduzir o que consideramos a Revelação de Deus a mera proposição de solução para nossos problemas cotidianos, acreditando que existe uma “política cristã” ou uma “economia cristã”; ou seja, que sistemas políticos e econômicos podem expressar “fé”. No entanto, nossa participação deve atender as necessidades estruturais do país, com justiça, mas não podem expressar fé no sentido da revelação de forma pura e simples.
4. Nós da Rede FALE, cidadãs e cidadãos cristãos compreendemos e identificamos nossa missão na defesa dos direitos humanos e da justiça, temos denunciado há cerca de uma década o “voto de cajado”, assim conceituado a partir de uma metáfora que carrega em si o emblema da modernização conservadora que tanto nos assola: trata-se da releitura das velhas práticas de exercício do poder, incidindo de forma autoritária sobre o comportamento eleitoral da população (consagrado na literatura política como “voto de cabresto”), agora replicadas por pastores evangélicos junto a seus rebanhos nos arraiais evangélicos de todo o país. Evidentemente, nossa denúncia tem por alvo certas formas específicas de interseção entre as campanhas eleitorais e o eleitorado evangélico. Queremos afirmar novamente, de forma clara e inequívoca, nossa perspectiva sobre o que consideramos como “voto de cajado” e uma aberta condenação desta prática como traição à melhor tradição cristã de participação política.
5. Declaramos que a fé não pode ser tratada como moeda para se conseguir vantagens materiais ou simbólicas e, lamentamos que a sede de poder seja ainda hoje uma tentação para muitas lideranças cristãs. Pactos espúrios com partidos ou candidatos para conseguir benefícios para igrejas ou denominações, infelizmente costumam acontecer “por trás dos púlpitos”, durante as campanhas eleitorais. No entanto, o papel da Igreja na sociedade, como bem disse o pastor batista Martin Luther King Jr., não é servir ao Estado ou ser seu senhor, mas zelar para ser sua consciência crítica. Portanto, entendemos que a Igreja, deve estar pronta para o Serviço, para a busca da Justiça e para a propagação do Amor, valores capazes de transformar as estruturas da sociedade.
6. Somos a favor de que haja nas igrejas um processo comunitário de reflexão, oração, que a investigação da estrutura democrática seja costumeira, para que seus membros votem com ética e discernimento.
7. Denunciamos, portanto, como “voto de cajado”, as seguintes práticas e outras similares que atentem contra a democracia. – O uso do poder pastoral para guiar a consciência dos fiéis, em benefício de qualquer candidato. – A utilização das Sagradas Escrituras ou de imagens bíblicas, a fim de legitimar a candidatura de uns e demonizar a candidatura de outras figuras públicas. – A venda da consciência e dos votos dos membros da igreja a algum candidato, em troca de recompensas materiais feitas à liderança, congregação ou denominação. – A permissão do uso do púlpito como plataforma de propaganda partidária ou de apresentação de quaisquer candidatos para fins eleitorais. – A transferência da imagem de pastores ou líderes religiosos para candidatos em propaganda eleitoral, afirmando-os como candidatos escolhidos por Deus ou demonizando seus concorrentes. – O compromisso com a verdade e portanto com o combate ao uso de informações falsas, o combate a destruição de reputações baseada em mentiras. Precisamos identificar e denunciar todo esquema de produção de “fake news”, o que na prática nada mais é do que produção de mentiras.
8. Convocamos os irmãos e irmãs a terem cuidado com lideranças que defendem que as Igrejas tenham “candidatos oficiais”.Que avaliem propostas e programas de governo, que investiguem a trajetória dos candidatos, compreendam quais as principais funções e papéis que serão desempenhados pelos candidatos, votando portanto, com sua consciência!
9. Cumpramos com integridade e espírito público nossa vocação de cidadãos e cidadãs brasileiros. Para os nossos irmãos e irmãs de fé, nosso estímulo é: “Pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus” (Miquéias 6.8).
“As mentiras que têm circulado contribuem para a tomada de decisão das pessoas e atualmente elas estão expostas a mensagens conflitantes que partem, de um lado, do presidente da República e, de outro, de um conjunto de organismo internacionais, cientistas, imprensa e alguns governadores de estado.”
O papel da disseminação das chamadas fake news durante as eleições foi algo fartamente documentado e verificado, tendo ocorrido principalmente por meio do uso de aplicativos como o WhatsApp. É a chamada desinformação que tem mobilizado vários países e governos diante da compreensão dos prejuízos que a circulação de mentiras tem causado aos países e pessoas.
Isso ganha contornos extremamente preocupantes em meio a uma pandemia. Alguns continuam atuando como se envolvidos em meio à uma disputa de narrativas e, para tanto, disseminando suas mentiras como se fossem verdades de forma coordenada e intensa visando alcançar uma grande rede de pessoas que confiam naqueles que são portadores dessas mentiras.
O problema que se estabelece nesse momento é a gravidade das consequências. Essas mentiras também contribuem para a tomada de decisão das pessoas e atualmente elas estão expostas a mensagens conflitantes que partem, de um lado, do presidente da República e, de outro, de um conjunto de organismo internacionais, cientistas, imprensa e alguns governadores de estado.
Mentira e sua infinidade de contornos
É a filósofa Hannah Arendt que nos lembra que a mentira é muito mais facilmente assimilada, pois, enquanto a verdade é única, a mentira pode assumir uma infinidade de contornos e conteúdo.
No momento, o que temos visto no Brasil, patrocinado por Jair Bolsonaro e seus apoiadores, é algo desesperador e lamentável. O mundo todo passa por um difícil momento de luto com óbvias e preocupantes implicações econômicas, mas, principalmente, passa por uma emergência de saúde pública que exige respostas e ação imediata.
Não é nada disso que vemos no Brasil. Há uma condução caótica por parte do governo federal, grande dificuldade de gestão dos dados e de condução de respostas, sejam na área da saúde, sejam na área social. Não há uma coesão em torno do desafio que assola a população. E pior: há um conjunto de mensagens contraditórias e erráticas sendo disseminadas de forma permanente. Tudo isso ganha contornos desesperadores quando enfrentamos uma doença com alta letalidade e com enorme potencial de infecção. Toda a população mundial está suscetível a contrair a covid-19, sem exceções. Isso representa a possibilidade do colapso de vários sistemas.
O que temos então? A necessidade de uma atuação do Estado para garantir a proteção e sobrevivência dos mais vulneráveis, junto a manutenção dos serviços essenciais, com o oferecimento dos necessários Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e a realização de isolamento social para o maior conjunto possível da população. Fora isso não há mágica ou outra opção disponível no momento. A situação é urgente e essa é a única opção disponível e imediata a ser feita.
Hoje me deparei com uma mensagem sobre o falecimento de um jovem de 35 anos devido a infecção por covid-19. Era uma postagem no Twitter e a pessoa que postou argumentou que o rapaz em questão fazia postagens há semanas contra o isolamento. Resolvi olhar o perfil até mesmo para identificar se havia alguma menção ao novo coronavírus. Vi muitas postagens contrárias ao isolamento e de reprodução da narrativa de Bolsonaro. Isso tudo em uma janela de 30 dias. No dia 16 é a sua última postagem e a partir daí é possível acompanhar no perfil de sua namorada a apreensão com o estado de saúde dele, e da mãe dela, ambos com infecção por covid-19. A namorada, então, pede para que as pessoas façam isolamento social, afirma que a coisa é realmente séria. Até que ela coloca em seu perfil uma mensagem de luto no dia 1º de maio. Seu namorado faleceu 15 dias após a última postagem dele, que foi um meme sobre isolamento social e uso de máscaras.
Percorrer a timeline dele é algo que dá angústia, revolta e tristeza. Ele assimila, concorda e reproduz o discurso verbalizado pelo presidente da República, a quem ele admira e atribui liderança. Bolsonaro como homem público, mandatário máximo da nação precisa ser responsabilizado, não só pelos erros de sua gestão, mas também pela disseminação das mentiras e pela condução irresponsável que tem tido nessa grave crise.
Responsabilidade
Nem todos assuntos que comentarei aparecem no perfil dessa pessoa. Ela me ajudou a perceber como se deu na temporalidade a adoção dos discursos feitos e defendidos pelo presidente. O perfil em questão me pareceu como o de alguém que admira e identifica em Bolsonaro uma liderança. Ele é presidente do Brasil e é alguém admirado por muitos. Aqui para mim é o ponto central. A responsabilidade de Bolsonaro precisa ser assumida, já passou do tempo de ele assumir a tão exigida “liturgia do cargo”. Os resultados dessa postura errática neste momento são concretamente a morte de pessoas e isso é inaceitável. O que eu vi foi algo similar – com um rosto, nome e sobrenome – do gráfico com o número de mortes e as frases ditas por Bolsonaro. O “E daí?” se torna algo ainda mais revoltante, dolorido e triste.
O primeiro movimento de Bolsonaro em meio à pandemia foi a defesa do uso da cloroquina, isso foi no dia 21 de março. O perfil em questão não tece comentários sobre o assunto. Sabemos de pessoas que correram às farmácias para comprar o medicamento. A irresponsabilidade desse primeiro movimento foi absurda e teve implicações econômicas por meio do aumento da produção desse medicamento, provavelmente algo desnecessário. Um ponto a lembrar é que nunca houve proibição ao uso do medicamento, somente não se chegou à convicção de que ele seria a única e mais eficiente solução. Era uma alternativa a ser considerada. A primeira desinformação dada por Bolsonaro foi afirmar de que uma cura estava sendo providenciada e termina um vídeo afirmando: “tenhamos fé que brevemente ficaremos livres desse vírus”. Neste dia os dados apontavam para 18 óbitos, hoje passam de treze mil.
São cerca de duas dezenas as postagens no perfil relacionadas à pandemia. A primeira é de 23 de março, dois dias após o início da quarentena na cidade de São Paulo e na véspera do início da quarentena no Estado de São Paulo. Na postagem o comentário dele é que está seguindo o isolamento social.
Dois dias depois ele posta matéria em que Doria fala da importância das indústrias não pararem e comenta sobre o fato de Bolsonaro ter razão. Aqui foi um segundo movimento do discurso de desinformação promovido pelo presidente ao se posicionar de forma enfática contrário ao isolamento. É posta sobre a mesa uma falsa tensão entre economia e saúde. Algo inexistente e descabido. Tem início a identificação de inimigos a serem combatidos. O vírus em si, infelizmente, não é considerado nessa cruzada. Os primeiros eleitos são os governadores dos estados que decretam quarentena e que estariam atuando contra a economia e contra Bolsonaro.
No dia 27 de março o perfil analisado compartilha um vídeo gravado na véspera em frente ao Palácio da Alvorada, nele o presidente se dirige à imprensa e afirma:
“Atenção, povo do Brasil, esse pessoal aqui diz que eu estou errado porque tenho que ficar em casa. Agora eu pergunto: o que que vocês estão fazendo aqui? Imprensa brasileira, o que vocês estão fazendo aqui? Não tão com medo do coronavírus, não? Vão para casa. Todo mundo sem máscara”.
Bolsonaro ignora que a imprensa exerce serviço considerado essencial e indica para seus apoiadores mais um inimigo a ser combatido e ao qual não se deve confiar, a imprensa. Afinal eles falam uma coisa e fazem outra e se estão ali, sem medo, é porque a coisa não deve ser tão grave assim.
Também no dia 27 de março compartilha meme com o rosto do Bolsonaro em um corpo de fisiculturista em que repete parte do pronunciamento feito no dia 23 de março:
“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.
É a versão de que a epidemia é algo menor, fraco e, logicamente, pessoas de bem e os que são igualmente fortes como o presidente resistirão sem maiores dificuldades. A imprensa não tem medo, não há motivos para se preocupar.
No dia 28 de março um novo inimigo é definido, Rodrigo Maia é mostrado em foto com o governador de São Paulo e o comentário é de que os dois atuam conjuntamente para derrubar Bolsonaro. Líderes do executivo estadual estariam em conluio com o poder legislativo visando apenas prejudicar Bolsonaro. Essa interpretação esquece completamente que passamos por uma pandemia e que o mundo padece diante de milhares de mortes. Tudo se restringe a uma narrativa apequenada e totalmente megalomaníaca que é reproduzida a exaustão por vários dos apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp.
Também nesse dia compartilha longa explicação sobre a “quarentena vertical”, algo que inexiste e sem base científica confiável ou comprovada. Talvez esse desejo de Bolsonaro não levado adiante possa ter contribuído, inclusive, para ele demitir o ministro da Saúde. Sobre isso Bolsonaro chegou a expressar que foi algo que ele queria que fosse feito, conforme entrevista do dia 25 de março na frente do Alvorada:
“Conversei por alto com o Mandetta (…) A orientação vai ser o vertical daqui para frente. Vou conversar com ele e tomar a decisão. Não escreva que já decidi, não. Vou conversar com Mandetta”.
O que ele sinaliza aqui, juntamente com a cloroquina, é um ponto central em seu discurso: existem opções. Há alternativas. Essa postura é pura desinformação, totalmente descolada do consenso que é compartilhado no mundo.
Comunismo
Uma cereja do bolo surge ainda no dia 28 de março, quando o rapaz compartilha um texto sem autoria que circulou bastante em várias mídias sociais e WhatsApp sobre como a quarentena representaria uma “amostra grátis” do comunismo. Aqui entra uma perspectiva que dá um caráter ideológico a narrativa posta. Há um grupo de inimigos reunidos – governadores, deputados e a imprensa – que juntos atuam para derrubar Bolsonaro e implementar o comunismo. Isso, cerca de um mês depois, seria novamente elaborado por meio de texto escrito pelo Chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, em que ele afirma estarmos diante de um “comunavírus”.
No dia 2 de abril posta em sua página o vídeo que Bolsonaro compartilhou dizendo ser o apelo de uma professora. Na verdade, uma empresária que faz depoimento emocionando afirmando entre outras coisas que precisava ir para o trabalho. Ela também pede que o exército seja colocado nas ruas e afirma serem os ministros do STF “bandidos de toga”. O grupo de inimigos fica completo com a inclusão do judiciário e a convocação do exército para nos defender disso tudo e do comunismo que foi anteriormente evocado.
Daí no dia 6 de abril ao compartilhar uma notícia sobre o anúncio, pelo governador Doria, da prorrogação da quarentena a única postura possível e necessária, a reação dele é de revolta. Para ele e tantos outros que seguem o presidente da República, que se informam confiando em sua liderança qualquer coisa que esteja associada ao isolamento social não tem mais credibilidade. Basta ser forte, não é tão sério, há alternativas e é preciso não enfraquecer a economia. Qualquer coisa que não caminhe nessa direção é um erro, uma afronta e tem como objetivo tanto derrubar Bolsonaro como implementar uma ideologia alienígena no Brasil.
É possível ver no perfil do rapaz duas postagens sobre o uso de máscaras até que na sua última postagem, feita no dia 16 de abril, ele comenta sobre um meme que faz referência tanto ao isolamento social como ao uso de máscaras. Três dias depois a sua namorada faz um pedido por orações por ele e por sua mãe, ambos com infecção por covid-19. Ela escreve: “achamos que este vírus está longe e ele está cada vez mais próximo”.
No dia 20 de abril ela posta na página do namorado. Compartilha sua preocupação dele não estar tendo apetite. Ele está internado e ela tem acesso restrito a ele. No dia 22 de abril ela faz texto pedindo para que as pessoas fiquem em casa:
“Para aqueles que também como eu não acreditavam que esse vírus age do jeito que age, cheguei até ouvir pessoas falarem que tudo isso era coisa de política, que não era para tanto. (…) Infelizmente ele atingiu os meus (…) hoje o que eu tenho para pedir é para que fiquem em casa (…), fiquem em casa e se protejam.”
Nos dias 27 e 29 de abril ela posta mensagem defendendo a necessidade de isolamento social e um vídeo de arrependimento do apresentador de TV Sikeira Jr que era enfático contra o isolamento e que também sofreu com a infecção. Infelizmente, menos de 15 dias após a última postagem do namorado, ela troca a foto de perfil por uma de luto. Ele havia falecido na madrugada do dia 1º de maio. Um dia antes do seu aniversário. A mãe dela segue internada, elas se comunicam pelo celular e, além das condolências, fica o desejo por sua total recuperação.
Dentro da questão das narrativas a comunicação oficial do governo optou por afirmar o número de pacientes recuperados, como se não estivéssemos diante de uma pandemia com milhares de mortos em um país que possui uma das menores coberturas em termos de testagem da população. Assim com a mudança no ministério, além de alterações no “dress code” com a saída do jaleco do SUS e a entrada de ternos bem cortados, vemos gestores públicos falando mais na quantidade de curados enquanto os números de óbitos aumentam de forma vertiginosa. Os números que passam a ser reproduzidos nas mensagens das redes sociais do governo federal são graficamente expressos no “Placar da Vida”, no qual as mortes são ignoradas e onde vemos a reprodução de um discurso desprovido de qualquer relevância em função da fragilidade dos dados. Sobre as centenas de mortes diárias o governo parece ter somente uma resposta: “E daí?”
Há também erros em relação à proteção social, formação de filas desnecessárias e uma gestão temerária em relação a necessária assistência à população vulnerável. Os desafios são imensos e exigem dedicação e envolvimento de toda a sociedade. Enquanto isso o que vemos são disputas políticas, disseminação de mentiras e o estabelecimento de uma narrativa que pouca acrescenta ao enfrentamento da grave crise de saúde e social pela qual o mundo passa. Que possamos atuar de forma efetiva em nosso cotidiano em atos de solidariedade, mas que também a sociedade brasileira possa reagir e dar fim a propagação da desinformação que também mata e traz ainda mais sofrimento a tantas pessoas. Bolsonaro é responsável por essas mortes e pelo caminho que o país tem seguido em meio à pandemia. É tempo que uma grande e ampla união ocorra e faça frente à forma errática que tem marcado a condução do país. É preciso, em nome da preservação de vidas, dar um basta a tudo isso.
Segundo um levantamento feito pela organização International Center for Journalists no estudo “A Short Guide To History of Fake News” publicado em julho de 2018, o uso da desinformação como ferramenta para a manipulação da opinião pública tem seus primeiros registros datados do século IV a.C.
O uso de desinformação como ferramenta política ganhou força na última década e influenciou significativamente grandes acontecimentos e eleições ao redor do mundo. No entanto, engana-se quem pensa que essa estratégia é recente.
Ao longo da história, as conspirações e farsas circularam entre todas as classes sociais, sendo parte indissociável dos governos de reis, imperadores, democratas e ditadores, navegando pelo globo desde os papiros e pergaminhos até o surgimento das redes sociais.
Segundo um levantamento feito pela organização International Center for Journalists no estudo “A Short Guide To History of Fake News” publicado em julho de 2018, o uso da desinformação como ferramenta para a manipulação da opinião pública tem seus primeiros registros datados do século IV a.C.
Seu alcance foi ampliado pela criação da imprensa, inventada pelo grafista alemão Johannes Gernsfleisch Gutenberg, que, a partir de 1493, revolucionou a produção e o acesso a conteúdos escritos ou grafados.
Escolha um inimigo por vez
“Uma mentira repetida mil vezes torna-se realidade”. Esta frase é de Paul Joseph Goebbels, fundador e líder do Ministério do Esclarecimento e da Propaganda do nazismo, regime que durou de 1933 a 1945, na Alemanha.
Embora seja lembrado como um dos maiores propagandistas da história, aos 27 anos Goebbels se descrevia como um “destroço em um banco de areia”. Doutor em literatura, tentou a vida como escritor. No entanto, seu romance semi-autobiográfico, “Michael”, foi um fracasso. Para externalizar a depressão, exercitava a escrita em diários que o acompanharam até às últimas semanas de vida.
Naquela época, início da década de 1920, o cenário político alemão tinha tudo para agravar seus ânimos. A economia estava em frangalhos e a hiperinflação chegou a 1000%, fazendo com que a moeda alemã não valesse nada.
Cada bem e serviço custava trilhões de marcos (moeda alemã antes do euro). O dólar americano estava cotado a 4,2 trilhões de marcos e o penny (moeda de um cent) americano custava 42 bilhões.
Em 1924, Goebbels ingressou na política filiando-se ao partido nazista, iniciando assim uma ascensão meteórica que, de acordo com Peter Longerich, autor de umas das mais importantes biografias do propagandista, se deu pelo seu “excesso de autoconfiança, compulsão incansável pelo trabalho, submissão incondicional a um ídolo, desprezo pelas relações humanas e a disposição de passar por cima das normas morais geralmente aceitas.”
Sob o comando da máquina de propaganda nazista, Goebbels embasava a atuação do ministério em 11 princípios cunhados por ele mesmo, alguns promovendo o uso claro da desinformação. Entre seus objetivos de governo, o aparelhamento da imprensa era um dos maiores. Além da censura, algumas das táticas adotadas passavam por exagerar boatos para que fossem noticiados, bombardear a população com novas notícias sobre um único inimigo e discutir informações com especialistas que compartilhassem o mesmo ponto de vista.
Para monopolizar a opinião pública, os nazistas se apropriaram de toda a produção cultural do país. A burocratização deste controle aconteceu pela criação da Câmara de Cultura do Império que, por sua vez, era dividida nas áreas de Letras, Imprensa, Rádio, Teatro, Cinema, Música e Artes Plásticas.
Encantado por Hitler e sedento por sua aprovação, o ministro criou o lema “um Füher, um povo”, utilizando o rádio e o cinema, principais mídias da época, como canais de disseminação da sua ideologia.
De acordo com o historiador Wolfgang Benz, autor de “História do Terceiro Reich”, apenas os filiados ao partido nazista é que podiam exercer os ofícios de jornalista, escritor e cineasta. A regra, instaurada em 1933, proibiu a presença de judeus ou de quaisquer outras pessoas que criticassem o regime.
Nós contra eles
O nazismo, assim como o fascismo e outras formas autoritárias de poder, governam alicerçados na ruptura da sociedade, dividindo a população entre “nós” e “eles”. A distinção pode ser feita com base em diferenças étnicas, censitárias, religiosas ou raciais. Esta é a tese defendida por Jason Stanley, filósofo americano e estudioso do neo-fascismo.
A criação de um passado mítico faz parte dessa estratégia. Por meio da propaganda e do anti-intelectualismo, os governos fascistas ou neo-fascistas desacreditam a compreensão geral da história.
“Depois de um tempo com essas técnicas, a política fascista acaba por criar um estado de irrealidade, em que as teorias da conspiração e as notícias falsas tomam o lugar de um debate fundamentado”, analisa o autor no livro “Como Funciona o Fascismo”, lançado em dezembro de 2018.
Para Stanley, o ataque às universidades e aos sistemas educacionais são muito importantes nos governos autoritários, porque desacreditam instituições que poderiam contestar suas ideias. Em entrevista ao jornal El País, em 2019, ele citou o Brasil como um exemplo, entre vários Estados, de aparelhamento do setor educacional.
“Basta olhar a situação hoje no Brasil ou ler o que Masha Gessen escreveu sobre o furioso ataque ao politicamente correto nos EUA. Esse ataque ocorre no âmbito internacional; as universidades se transformam em zona de guerra”, afirma Stanley.
Nos últimos anos, a disputa acerca do “viés ideológico” presente nos conteúdos ensinados em instituições de ensino brasileiras se intensificou. O movimento Escola Sem Partido, que busca denunciar uma suposta “doutrinação política e ideológica de esquerda por parte dos professores”, ganhou notoriedade.
Fundado pelo advogado paulistano Miguel Nagib, em 2004, o grupo inspirou mais de 60 projetos de lei em câmaras municipais e assembleias legislativas pelo país. Em um vídeo publicado no site do movimento, Nagib afirma que “é muito fácil entender por que os sindicatos dos professores, que nem sempre representam seus interesses, e partidos de esquerda, em especial o Partido dos Trabalhadores (PT), são contra programa”, sugerindo que estas entidades são responsáveis por um processo de doutrinação nas escolas.
Em setembro de 2019, o ministro Abraham Weintraub lançou um projeto com visíveis influências do Escola sem Partido. No lançamento desta campanha, intitulada “Escola para Todos”, o Ministério da Educação enviou ofícios para todas as secretarias municipais e estaduais de ensino do país, determinando que as instituições de ensino adotem o “pluralismo de ideais e concepções pedagógicas, evitando o que a equipe classifica como propagandas-político-partidárias.”
Para Sabine Righetti, doutora em política científica, jornalista e professora da Unicamp, as universidades públicas brasileiras, assim como outras “instituições pensantes”, estão sendo agredidas por políticos com informações falsas, postura que incentiva parte da população a fazer o mesmo.
“Não é uma crítica do tipo ‘precisamos melhorar tal aspecto’, porque seria muito legal se o governo falasse ‘temos evasão alta, precisamos melhorar’. Elas [as universidades] estão sendo agredidas com informações falsas. O Bolsonaro dá uma entrevista falando que só universidades privadas produzem pesquisa no Brasil, o que é mentira. Depois o ministro fala que as universidades fazem balbúrdia no lugar de desempenhar academicamente, o que também é mentira”, afirmou.
A declaração de Bolsonaro, dada em entrevista ao programa Pânico da rádio Jovem Pan em abril de 2019, era de que “não tem pesquisa nas universidades” e “dessas poucas, a grande parte tá na iniciativa privada”. Informação incorreta, já que, segundo a Academia Brasileira de Ciências, mais de 95% da produção científica do país vêm de universidades públicas.
Na visão da professora, as pessoas que criticam a universidade, assim como as que atacam a imprensa, chamando-as de “vagabundas” e mentirosas, sempre pensaram assim. “Eu não acho que alguém que lia um jornal, de repente vai deixar de ler um jornal porque o presidente falou que o jornal mente”, destaca.
No entanto, segundo ela, o discurso adotado pelo governo pode incentivar ataques a instituições. “As pessoas começaram a falar mais isso, talvez empoderados ou encorajados pelo próprio governo do Brasil, dos Estados Unidos, que são governos que estão descredibilizando instituições pensantes. Isso está acontecendo em vários países.”
Além das constantes críticas às universidades e à imprensa, outras práticas, como o uso assíduo das redes sociais e os ataques à oposição e às minorias, aproximam as estratégias de desinformação utilizadas por Trump e Bolsonaro. Tanto durante suas campanhas eleitorais quanto no exercício de seus cargos como líderes do executivo, os dois políticos protagonizaram diversos momentos de disseminação de informações mentirosas ou exageradas.
Muito além das fake news
Em 2017, fake news foi eleita a “palavra do ano” pelo dicionário britânico Collins. Naquele ano, o uso da expressão na internet cresceu 365%. As chamadas notícias falsas podem ser descritas como informações falsas, geralmente sensacionalistas, disseminadas sob o disfarce de reportagens.
No entanto, o uso indiscriminado desse termo, é questionado por aqueles que estudam e combatem a desinformação.
Para Francisco Rofsen Belda, jornalista, professor da Unesp e presidente do Projor, organização responsável pelo Projeto Credibilidade, fake news é uma expressão imprecisa, “principalmente porque a ideia que carrega é ambígua e simplista demais para descrever a diversidade de desinformação que existe atualmente na internet”, explica.
Baseando-se nisso e observando a rapidez com que informações falsas se espalham entre grandes grupos de pessoas, a dupla de pesquisadores britânicos Claire Wardle e Hossein Derakshan criaram o conceito de ecossistema da desinformação, dividindo os conteúdos maliciosos em três categorias:
Informação errada (em inglês, mis-information): quando informações falsas são compartilhadas, mas sem intenção de causar danos.
Desinformação (em inglês, dis-information): quando informações falsas são compartilhadas com a intenção de causar danos.
Informação má (em inglês, mal-information): informação baseada na realidade, mas usada para infligir danos a uma pessoa, organização ou país.
De acordo com Wardle, uma parte importante do combate às informações falsas passa pela distinção correta da intenção por trás daquele conteúdo. “Estamos falando de uma sátira ou paródia que não possui a intenção de prejudicar? De um erro de apuração jornalística? Ou sobre um conteúdo fabricado, 100% falso, criado para enganar e convencer?”, questiona em sua palestra “Mais do que fake news – Entendendo o ecossistema da desinformação.”
Nesta análise, as fake news se enquadram no tipo de desinformação criada com más intenções, muito distantes do jornalismo e das notícias reais.
“Se é notícia, não poderia ser falsa, uma vez que o jornalismo profissional tem um compromisso primordial com o relato dos fatos da realidade. Se não há este compromisso, então não é jornalismo, não é notícia, mas sim um relato enganoso, de propaganda, por exemplo, que se utiliza da linguagem jornalística para confundir ou manipular o receptor”, afirma Belda. Assim, quando uma notícia está errada, incorretamente apurada, o que caberia é a correção e retratação por parte de seus autores.
Além da necessidade de pensar seu real significado, outra problemática relacionada ao uso do termo e apontada por especialistas da comunicação é a sua apropriação por políticos – e outros agentes de governo – para rotular notícias (verdadeiras) que os critiquem ou desagradem.
O verdadeiro poder é o medo
“You are fake news”. Essa foi a resposta do então recém-eleito Donald Trump a Jim Acosta, repórter da CNN, na coletiva de imprensa que antecedeu a posse do 45º presidente dos Estados Unidos. Além de atacar o jornalista, Trump ainda o mandou ficar quieto diversas vezes. A hostilidade do republicano com a imprensa já deixava clara a tônica que seu governo assumiria nos quatro anos seguintes. Entre seus inúmeros alvos, destacam-se o jornalista Bob Woodward e o jornal The Washington Post.
Em 1974, Woordward e seu colega de redação Carl Bernstein foram designados a cobrir um acontecimento aparentemente comum: um roubo em um dos escritórios do Comitê Nacional Democrata, no complexo de prédios Watergate, em Washington.
A apuração do crime culminou na revelação do que ficou conhecido como o Escândalo de Watergate, o mais famoso caso de corrupção dos Estados Unidos, responsável pela renúncia do então presidente Richard Nixon.
A obra mais recente de Woodward sobre política é o livro-reportagem “Medo – Trump na Casa Branca”. Durante a produção, o jornalista passou dois anos observando os movimentos do presidente de perto. Por meio de entrevistas, conversou com conselheiros e pessoas próximas ao governo que, anonimamente, relataram os conflitos de seus bastidores.
Vermelho x azul
A eleição disputada em 2016 pelo republicano Donald Trump e a democrata Hillary Clinton, favorita da imprensa norte-americana, é um dos episódios recentes mais bem-sucedidos no que se refere ao uso de mentiras em campanhas políticas. O pleito foi marcado pela ação massiva de trolls (autores de notícias falsas), bots (robôs) e pela interferência russa, ainda não muito bem explicada.
O Facebook chegou a admitir, recentemente, que um terço da população estadunidense, cerca de 126 milhões de pessoas, foi exposta a publicações da Internet Research Agency (IRA), empresa ligada à sede do governo russo, durante o período eleitoral.
Esse ecossistema de desinformação foi fundamental para impulsionar a campanha de Trump. Desde a crise do subprime, que em 2008 lançou o mundo no pior colapso financeiro desde a década de 1930, os Estados Unidos veem crescerem as desigualdades sociais, a pobreza e o número de desempregados. Somam-se a esses fatores o discurso anti-imigração, anti-globalização, a polarização e as incertezas políticas e econômicas. Essa miscelânea, aliada à máquina de mentiras do empresário “anti-establishment”, ajuda a explicar o sucesso de Trump, que surpreendeu não só a imprensa norte-americana, mas o mundo todo.
O declínio da verdade
Um levantamento feito pelo jornal Washington Post analisou que Trump mente de forma sistemática. Somente em seu primeiro ano de governo, em 2017, o presidente fez 2.140 alegações falsas ou enganosas – uma média de 5,9 mentiras por dia. Além das mentiras, ataques ao sistema de justiça, às agências de inteligência, ao sistema eleitoral, aos funcionários públicos e, claro, à imprensa são comuns na agenda do republicano. Ao todo, desde a posse (em 20 de janeiro de 2017) até o final de outubro de 2018, foram 6.420 informações falsas ou imprecisas.
Steve Bannon, ex-estrategista-chefe de Trump, revelou que o presidente “só lê o que reafirma suas crenças”. A VICE News também divulgou que Trump recebe, duas vezes por dia, um clipping (recorte) com diversos elogios a ele, incluindo “tuítes de admiradores, trechos de entrevistas bajuladoras na TV, matérias jornalísticas repletas de elogios e, de vez em quando, fotos dele na TV parecendo poderoso.”
O boom das redes sociais
Se a desinformação sempre foi usada como tática política, o que mudou hoje foi a inserção da tecnologia. Para Francisco Belda, “temos, de um lado, o uso muito mais intenso de instrumentos tecnológicos capazes de potencializar o alcance dessas mensagens enganosas e, de outro, uma sociedade desconfiada e confundida pelo excesso de informação, cada vez menos capaz de distinguir entre o que é fato, o que é versão e o que é simplesmente inverdade.”
De fato, a tecnologia e a evolução das redes sociais tiveram um profundo impacto na produção e no consumo de notícias. Há 10 anos seria impossível imaginar que um presidente usaria o Twitter, rede cujo número máximo de caracteres é 280, como ferramenta oficial para se comunicar com a sociedade.
Contrários à atuação da imprensa, líderes como Trump e, mais recentemente, Bolsonaro, utilizam suas contas nas redes sociais para tentar minar a credibilidade jornalística. Desde a posse (1º de janeiro) até março de 2019, a mídia foi alvo de Bolsonaro no Twitter a cada 3 dias, com mensagens de teor irônico e crítico.
Até 2008, a internet tinha pouca ou quase nenhuma relevância em campanhas políticas. A mudança de paradigma aconteceu na disputa eleitoral entre Barack Obama e John McCain. À época, Obama utilizou o Myspace, Facebook e YouTube para fazer campanha e arrecadar fundos. A equipe do democrata, liderada por Chris Hughes, um dos fundadores do Facebook, chegou a investir 7,5 milhões de dólares no Google, em anúncios e links patrocinados. A estratégia funcionou, e as redes sociais tiveram papel determinante na eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos.
Desde então, as plataformas digitais ganharam cada vez mais destaque em diversos acontecimentos políticos. A Primavera Árabe, série de protestos e revoltas ocorridos em 2011 na Líbia, Egito, Tunísia e outros países do Oriente Médio, não teria sido possível sem as redes sociais. Um relatório divulgado pela Dubai School of Government revelou a importância que o Twitter e o Facebook tiveram na disseminação e no fortalecimento do movimento.
Somente na Tunísia, ponto de partida das revoltas, o número de usuários do Facebook aumentou em 200 mil em apenas dois meses, entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, período inicial do movimento. O Twitter também registrou pico de acessos dos tunisianos quando o presidente Zine el Abidine Ben Ali renunciou ao cargo e fugiu para a Arábia Saudita.
No Brasil, as Jornadas de Junho de 2013, manifestações populares que surgiram, inicialmente, em protesto ao aumento de 20 centavos na passagem do transporte público e que ganharam outros contornos políticos, são resultado do ativismo online. Naquele mês, mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas em mais de 130 cidades. A pesquisa IBOPE de 2014 revelou que 77% dos manifestantes tomaram conhecimento dos protestos por meio do Facebook.
Na eleição de 2014, a mais disputada dos últimos 25 anos no Brasil, novamente as redes sociais tiveram papel crucial na disseminação de notícias, na promoção de debates e na propagação de mentiras. Durante o período eleitoral, os brasileiros interagiram mais de 670 milhões de vezes no Facebook. No Twitter, foram quase 40 milhões de mensagens publicadas durante a campanha. Em diversos momentos das eleições, as hashtags de Dilma Rousseff (#DilmaMudaMais) e Aécio Neves (#Aecio45PeloBrasil) ficaram nos Trending Topics mundiais da plataforma.
Na Europa, a internet também ganhou protagonismo político. O acordo do Brexit, polêmico plebiscito que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia, teve forte influência do Facebook. Combinado com o crescimento do nacionalismo e da xenofobia, a desinformação encontrou terreno fértil nas redes sociais.
A pesquisa YouGov, encomendada pela Reuters Institute for the Study of Journalism, da Universidade de Oxford, revelou que as redes sociais ultrapassaram os jornais tradicionais como fontes de notícia no Reino Unido entre 2015 e 2016 (ano em que o plebiscito foi votado e que o “sim” ganhou com 51,9% dos votos). O estudo também analisou o consumo de mídia em 26 países, inclusive o Brasil, e descobriu que 51% dos entrevistados usam as redes sociais como fonte de informação.
Antropólogo da tecnologia e professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, David Nemer diz que as fake news se espalham pelas redes sociais graças à facilidade e eficiência, características da internet. “Antes, para ter a notícia, você tinha que ir numa banca, comprar o jornal, fazer uma assinatura, então além de o acesso ser mais dificultado, o custo era mais alto. Hoje em dia nós temos o WhatsApp, as coisas são entregues a nós na hora, em qualquer lugar, em qualquer momento”, aponta.
Vem de zap
Na eleição brasileira de 2018, o WhatsApp foi o grande protagonista. Com mais de 120 milhões de usuários, o aplicativo de mensagens instantâneas foi decisivo para que mentiras como o “kit gay”, a “ideologia de gênero” e a “doutrinação comunista”, temas explorados na campanha de Jair Bolsonaro (PSL), viralizassem nas redes sociais.
Aliada ao antipetismo e à polarização política, a desinformação, que circulou sem nenhum controle pelos grupos do Whatsapp, foi fundamental para eleger Bolsonaro. Alguns dias antes da votação, a Folha de S. Paulo divulgou que um grupo de empresários comprou um pacote de disparo de mensagens em massa contra o PT. Bolsonaro processou o jornal, mas foi derrotado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ainda durante as eleições, Bolsonaro recebeu uma suspensão de conteúdo do Tribunal. Em outubro de 2018, o ministro Carlos Horbach determinou que textos e vídeos sobre o “kit gay” fossem removidos.
Usado amplamente nas campanhas de 2018, o “kit” foi o apelido que diversos congressistas e políticos conservadores deram ao material do programa “Escola sem Homofobia”, uma cartilha idealizada em 2011 pelo MEC, mas vetada pela presidente Dilma Rousseff, após pressão das bancadas evangélica e católica.
O material, destinado somente a professores, explicava conceitos como gênero e sexualidade, além de sugerir atividades para que os alunos refletissem sobre comportamentos preconceituosos.
Apesar de estar calcado em informações mentirosas e descontextualizadas, o uso de discursos como o do “kit” pode ser uma ferramenta eficaz de promoção política, como demonstrou a pesquisa do IDEIA Big Data Avaaz, realizada em novembro de 2018. De acordo com o estudo, 84% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na existência deste conteúdo.
Frequentemente disseminadas em correntes de mensagens pelo WhatsApp, as informações falsas alcançam um grande número de pessoas.
De acordo com levantamento feito em 2018 pelo Datafolha, 47% dos eleitores que usam o WhatsApp disseram acreditar em notícias compartilhadas pelo aplicativo. Além disso, essa é a rede mais utilizada pelos eleitores: 65% têm conta e 24% o utilizam para compartilhar notícias sobre política.
Ainda de acordo com o instituto, o segmento mais ativo no aplicativo de mensagens é o de eleitores de Jair Bolsonaro, tanto em alcance quanto em taxa de engajamento.
Sempre carregadas de forte apelo emocional, as fake news costumam ter outras características em comum: fogem à norma culta da língua portuguesa, são sensacionalistas, alarmistas, fazem menção a questões morais, sexuais e religiosas e as fontes, quando citadas, são bastante duvidosas.
É mentira, tá ok?
A exemplo de Donald Trump, Bolsonaro também transformou a mentira em prática cotidiana. Mesmo após o fim das eleições, o presidente – que foge dos jornalistas – continua desinformando. A agência Aos Fatos revelou que de janeiro a outubro deste ano Bolsonaro deu 400 declarações falsas ou distorcidas, uma média de 1,4 mentira por dia. Os temas mais abordados por ele foram economia e meio ambiente.
Embora as declarações do presidente ultraconservador sejam contestadas por diversos veículos de imprensa, parte do séquito de seguidores que o elegeu continua ativo e ainda mais radical.
O professor David Nemer diz que os grupos de bolsonaristas no WhatsApp, antes mais coesos, se dividiram, agora, em três categorias. O primeiro se concentra na propaganda de governo, cujos membros não permitem que os atos do presidente sejam questionados. O segundo é o da insurgência, que reúne pessoas que se tornaram opositoras de Bolsonaro, considerando-o traidor por ter se alinhado à velha política. O terceiro e último grupo é o da supremacia social, que está mais interessado em enaltecer o discurso de extrema-direita do presidente do que, necessariamente, discutir suas ações de governo. De acordo com Nemer, este último é o grupo mais perigoso e radical.
“Eles estão mais radicalizados, estão em números menores, mas que podem fazer um estrago maior. Estão em constante processo de recrutamento, querem expandir mais os grupos deles, os grupos mais extremistas. Eles não estão muito preocupados com a política do dia a dia, mas se capitalizam em cima do discurso de extrema-direita dele e do Flávio [um dos filhos do presidente], principalmente”, destaca.
Apesar do já conhecido uso do WhatsApp para fins políticos, somente em outubro deste ano a empresa admitiu o envio maciço de mensagens, inclusive com sistemas automatizados, durante a eleição brasileira de 2018. A empresa também disse condenar os grupos públicos acessados por meio de links, que compartilham conteúdos políticos.
Conservadorismo
Assim como na administração de Barack Obama, nos Estados Unidos, o Brasil também vivenciou, durante os governos petistas, um período de implementação de políticas sociais. Para Nemer, a inclusão social pode explicar a eleição de candidatos outsiders, como Trump e Bolsonaro.
“O governo Obama, principalmente no segundo mandato, foi bem audacioso em políticas de inclusão, sobretudo inclusão para as minorias. Por isso, eu acredito que o conservador americano, que é bem forte aqui, se sentiu ameaçado. Se sentiu ameaçado pelo politicamente correto. É mais ou menos o movimento que ocorreu no Brasil”, revela.
Em ambos os países, governos mais progressistas deram lugar a políticos autoritários, que desprezam o jornalismo profissional, distorcem a realidade, polarizam a sociedade e atacam qualquer “instituição pensante”. Tanto Trump quanto Bolsonaro lançam mão de diversas estratégias de desinformação para pôr em prática seus planos de governo – no mínimo – impopulares.
Pensamento crítico
Na era da comunicação instantânea, na qual as informações circulam em demasia, sobretudo pelas redes sociais, é fundamental saber reconhecer discursos e conteúdos falaciosos. A educação midiática, conceito relativamente novo para a maior parte da população, busca dar ferramentas para que as pessoas consigam identificar conteúdos falsos e fazer uma leitura crítica das informações que recebem.
Daniela Machado, jornalista e coordenadora do EducaMídia, programa que busca sensibilizar a sociedade para a importância da educação midiática, diz que proibir a divulgação de fake news não ajuda a solucionar o problema, “o que resolve é educar”.
“Acho que a educação midiática é fundamental. Não há uma única solução que seja a bala de prata que vai acabar com a desinformação, mas acho que a educação midiática é sim o caminho mais preciso e talvez um dos mais seguros para que a gente consiga melhorar o ambiente informacional. (…) É importante que a gente esteja preparado, que seja uma formação de todos os jovens, ter habitualmente condições de interrogar a informação, de fazer essa leitura crítica”.
Para ela, a educação midiática é um processo que se constrói ao longo da vida toda, não em um único ano ou semestre. “Devemos perseguir esse objetivo o tempo todo na escola. É algo que vai nos dar a habilidade de conseguir fazer uma leitura reflexiva de toda essa informação que vai chegar até nós”, destaca Daniela.
Jornalismo profissional
Além do investimento em educação, componente básico para a formação crítica de qualquer indivíduo, também é fundamental reconhecer a importância do jornalismo profissional no combate à desinformação. Profissionais capacitados, éticos e compromissados com a veracidade das informações são essenciais à manutenção da democracia.
Fortalecer os veículos profissionais de comunicação, desde as recentes agências de checagem até os jornais mais tradicionais, é imprescindível para fazer frente ao ecossistema de desinformação que domina a sociedade hiperconectada do século XXI.
FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-desinformacao-influencia-eleicoes-ao-redor-do-mundo/