Cristofobia, projeto de poder e as resistências da luta cristã

* Publicado originalmente no TheTricontinental.org por Angelica Tostes e Delana Corazza

No dia 22 de setembro, em seu discurso de abertura na 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Jair Bolsonaro afirmou que “a liberdade é o bem maior da humanidade. Faço um apelo a toda comunidade internacional: pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”.

Nos últimos anos, a palavra cristofobia tem estado presente nas discussões políticas, nas diversas mídias sociais e também nos espaços religiosos. A construção do “conceito” da cristofobia passa pela narrativa de que algo ameaça e persegue a fé cristã e seus seguidores. Em alguns países isso pode ser aplicável, porém, o termo é incabível no Brasil. A razão disso é que mais de 80% da população brasileira se declara cristã, segundo uma pesquisa do Datafolha de janeiro de 2020.

A cristofobia citada por Bolsonaro contradiz pesquisas brasileiras sobre intolerância e perseguição religiosa. Os dados mais recentes, divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, liderado pela ministra Damares Alves, demonstram que a maioria das denúncias de intolerância religiosa foram realizadas por fiéis de tradições de matriz africanas. Vale ressaltar que mesmo assim esses números são imprecisos, já que muitos não denunciam em órgãos públicos as agressões.

Os discursos que vão sendo elaborados se misturam com as práticas de um governo neoliberal de caráter fundamentalista, que se utiliza da religião e da fé das pessoas para propagar medo e terror. Brenda Caranza, professora e pesquisadora de antropologia da religião da Unicamp, buscou datar os usos da cristofobia no embate público e relembra as ações e discursos do pastor e deputado federal Marco Feliciano, que desde 2011, na Câmara dos Deputados, vem destilando homofobias diversas.

Em 2015, Feliciano passa a maldizer a Parada de Orgulho LGBTI+, propagando ideias de que as expressões da diversidade sexual e de gênero são “aberrações morais e desvios de comportamentos”. Nessas eleições, o deputado afirmou recentemente que cristão não vota no PT, PcdoB ou PSOL. “Ah, pastor, mas o meu irmão, o irmão da minha igreja foi pra lá porque deram legenda pra ele. Não vote nele. Ele tá lá dentro, é um infiltrado, vai nos ajudar. Não vai. Eles não concordam com o pensamento cristão”, disse o deputado.

A frase emblemática e falaciosa de Bolsonaro na ONU foi alvo de piadas de parte de seus opositores, principalmente setores progressistas e de esquerda. Entretanto, o uso da cristofobia é estratégico, não é algo por acaso e muito menos um elemento para se fazer chacota, já que isso faz parte de um projeto de poder bem articulado. A pesquisadora Esther Solano, em sua página no Facebook, fez uma reflexão interessante sobre o uso do termo por Bolsonaro e o cuidado que o campo progressista deve ter ao se manifestar sobre esse assunto:

“Foi construída uma retórica bolsonarista muito forte de que a esquerda é inimiga da religião e isso faz com que muitas pessoas se sintam atacadas pessoalmente pelo campo progressista. Durante a campanha de 2018 entrevistei varias mulheres periféricas que sentiam um medo enorme de uma possível vitória do PT porque tinham certeza que estando este no poder tentaria destruir sua fé. Foi por isso que estas mulheres que entrevistei votaram em Bolsonaro. O que a gente trata como folclore, como caricatura ridícula, faz sentido para milhões de brasileiros, influencia sua opinião e seu voto. Se a gente só fizer piada e não levar estas questões a sério, não disputar estes valores, Bolsonaro, Damares, os pastores continuarão falando e convencendo.”

Esther Solano

Para o pesquisador e teólogo Ronilso Pacheco, a “cristofobia” não é conceito, foi uma palavra inventada por conservadores e fundamentalistas cristãos para rechaçar a realidade de perseguição, violência e preconceito vivenciados por muitas pessoas da comunidade LGBTQI+.

“Nesse momento, a Cristofobia aparece como uma estratégia eleitoral para candidaturas ultraconservadoras e uma supremacia cristã. Essa temática tem se tornado palanque para pré-candidaturas conservadoras, como a deputada federal católica Chris Tonietto (PSL-RJ), que afirmou que vem acontecendo ‘investidas anticristãs’ e que há uma tendência, no Brasil e no mundo, de um “espírito laicista’”.

Ronilso Pacheco

É importante relacionar a cristofobia com a chamada “Guerra Espiritual” que a teologia da prosperidade apregoa. Na recente pesquisa publicada pela jornalista Magali Cunha, “Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação”, a autora elabora que a guerra espiritual é uma ideia da destruição de todo o mal que impede as bênçãos da prosperidade, guerra contra potestades do mal, normalmente vinculadas às religiões de povos originários e tradições africanas (2020). No último mês, duas igrejas católicas no Chile foram incendiadas. Utilizando-se desse fato, Bolsonaro voltou a falar de Cristofobia um dia após o incêndio, afirmando em seu Twitter que o crime foi realizado por grupos de esquerda. O incêndio foi o gatilho para que jornais mais conservadores acusassem a esquerda como, historicamente, inimiga do Cristianismo, muitas vezes embasados em fatos pontuais e descontextualizados.

Os setores fundamentalistas, aliados ao neoliberalismo, há muito tempo constroem essa visão de uma impossibilidade da fé cristã caminhar junto com a esquerda, algo que a própria história da América Latina desmente. Em conversa informal sobre o tema, escutamos de um ex-integrante da Igreja Presbiteriana do Brasil:

“Duas lembranças são marcantes para mim em relação à ideia de perseguição dos evangélicos pela esquerda: a primeira em 1989, segundo turno entre Collor e Lula. Vou com minha mãe e meu pai para votar e vendo a loucura pergunto em quem iriam votar. Falaram sem pensar, ‘vamos votar no Collor, ele não é o melhor, mas se o Lula ganhar ele vai fechar as igrejas’. Depois, meu pai tinha uma biblioteca de livros evangélicos e eu pedi um livro para ler. Ele me deu o ‘Cristo em cadeias comunistas’, que era os relatos do missionário evangélico na URSS. Era o grande exemplo do meu pai e reforçou o quanto a esquerda era o mau do mundo”.

ex-integrante da Igreja Presbiteriana do Brasil

No esforço de desconstruir essas narrativas, que por diversas vezes confundiram parte significativa da classe trabalhadora cristã, Magali Cunha tem resgatado a relação histórica do progressismo da América Latina com o Cristianismo, a princípio com a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR). Importante ressaltar o trabalho dos movimentos ecumênicos progressistas, como a Igreja e Sociedade na América Latina, influenciados pelo Evangelho Social e Cristianismo prático, que desembocou na Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação surge como resposta das diversas organizações populares formadas no período de avanço da industrialização, quando a massa camponesa se proletariza, aprofundando as desigualdades sociais estruturantes de nosso continente (CUNHA, 2020).

A década de 1970 consolida essa nova Teologia que dará suporte às organizações populares para que, a partir da leitura de um Jesus histórico, construam suas práticas na luta contra as injustiças e pela libertação do povo pobre e oprimido. Com o avanço dos trabalhos pastorais, surge em 1975 a Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Brasil, com a tarefa de organizar as lutas do campo a partir de uma opção radical pelos pobres, entendendo a justiça, o amor e a liberdade como alimento de suas ações por meio de uma leitura política e histórica da Bíblia – mais do que uma leitura, passa a ser um projeto de vida coletiva em construção. Esses projetos ecumênicos de igrejas evangélicas e católicas foram interrompidos pelas ditaduras militares que aconteceram em diversos países da América Latina. Foram tempos de repressão, denúncias, torturas, perseguições e mortes aos religiosos/as que construíam uma “militância cristã ativa”, nas palavras de Magali (2020). Apesar de todas as dificuldades, ainda em meados de 1980, foram criadas organizações, conselhos e grupos ecumênicos, como o Conselho Latino-Americano de Igrejas e o florescimento da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base.

Entretanto, com o tempo, alguns processos foram sendo perdidos, além de um distanciamento e resistência de alguns setores da esquerda por pautas que abordassem a fé e religiosidade. Com isso, perdeu-se o contato direto com o povo e com o trabalho de base. Em entrevista ao Instituto Tricontinental, Atiliana Brunetto, da direção nacional do MST, pontua a relação da religiosidade e o povo, ao dizer que “nós perdemos um pouco esse processo e acho que isso fez nos afastar um pouco [do povo], e agora a gente volta a ter esse debate da religião”. Lucineia Freitas, do setor de gênero do MST/RJ, faz a seguinte reflexão sobre o movimento popular e a fé:

“Nosso povo é religioso. O brasileiro é, e o campesinato, muito intensamente. Nesse sentido, um dos desafios é como a gente faz esse diálogo. A partir da sua fé, mostrar que há um processo de resistência vinculada a fé. Por exemplo, o cristianismo – por mais que tenha sido usado como um instrumento de dominação dos povos – também serviu como elemento de resistência, o próprio surgimento da teologia da libertação. No Brasil, na época da ditadura, vários movimentos vinculados diretamente na religião, como a CEBS, que foi muito fundamental na articulação dos povos, inclusive de grandes movimentos como o MST, a CPT, até mesmo o PT. E foram formações que se deram dentro do seio religioso, ao beber da fonte do Deus da Vida, como Dom Pedro Casaldáliga falava. Esse Deus da Vida alimentou os sonhos de muita gente debaixo do barraco de lona”.

Lucineia Freitas

A fé e a luta sempre caminharam lado a lado no nosso continente. O que aconteceu foram esforços imperialistas para acabar com o protagonismo dos movimentos religiosos na luta e construção da democracia e direitos humanos. Destruir essa história dos movimentos sociais e do cristianismo é a tentativa de apagar a luta e memória de inúmeros cristãos e cristãs perseguidos/as e mortos/as por ditaduras na América Latina. É o projeto de poder fundamentalista e imperialista que visa distanciar a fé da luta pelos direitos e, como disse o diretor do Tricontinental, Vijay Prashad, pregam o “Evangelho da empresa individual e não da justiça social”.

Não podemos negligenciar os movimentos e organizações baseadas na fé que estão à margem desse discurso religioso fundamentalista. Pessoas que desafiam, questionam e ressoam os gritos da justiça e luta por direitos. A esquerda não é inimiga da fé, nem a fé da esquerda. Elas se encontram na história do nosso povo, na arte e cultura, na mística que abastece a vida cotidiana. O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e as Brigadas do Congresso do Povo estão organizando o Seminário “Trabalho de Base e os Neopentecostais”, contando com diversas participações de ativistas e pesquisadores, grande parte deles cristãos, para buscar essa compreensão do fenômeno religioso para além das mídias oficiais e pastores que destilam ódio.

Os usos diabólicos da religião (no sentido original do termo, de separação dos povos) e a promoção de mentiras acerca da chamada cristofobia para palanque eleitoral e manutenção de um inimigo, são campos que devemos nos engajar na batalha das ideias: i) compreendendo o projeto de poder dos setores fundamentalistas no Brasil (confira o resumo mensal de notícias do mundo evangélico); ii) na inserção de ações cotidianas nos territórios mais empobrecidos e no diálogo e afeto construídos junto ao povo, lembrando que a base evangélica é cheia de contradições, mas também – e principalmente – de muita solidariedade e, por fim iii) conhecendo a história da religiosidade popular da América Latina e das tantas referências cristãs dessa história. Não é possível compreendermos os processos de resistência e luta da América Latina, que seguem vivos até hoje, sem passarmos por nomes como o padre colombiano Camilo Torres, a freira feminista Ivone Gebara, o teólogo católico Leonardo Boff, a pastora metodista Nancy Cardoso, o pastor presbiteriano Rubem Alves, entre tantos nomes de homens e mulheres que, identificados com as lutas e resistências contra a direita conservadora e ultraconservadora, fizeram da fé cristã instrumento para transformar a realidade de nosso povo.

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Foto de capa: The Tricontinental/Reprodução

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