A missa solene, realizada em 12 de outubro pelo arcebispo do Santuário de Aparecida (SP) D. Orlando Brandes, foi um dos assuntos mais comentados na última semana em mídias sociais. Durante a homilia, na manhã do dia consagrado à santa padroeira do Brasil, segundo a tradição católica romana, que é feriado nacional, o arcebispo pregou contra o armamento, o ódio e a propagação de fake news. Já na parte da tarde, outra missa contou com a presença do presidente da República Jair Bolsonaro, defensor de políticas pró-armamentistas, que recentemente, mais uma vez, criou controvérsia, ao expôr uma criança fardada portando uma arma de brinquedo durante evento oficial.
”Para ser pátria amada, seja uma pátria sem ódio. Para ser pátria amada, uma República sem mentira e sem fake news. Pátria amada sem corrupção”. Após a declaração gravada em vídeo amplamente compartilhada nas mídias sociais, o arcebispo de Aparecida foi acusado de ser comunista, por apoiadores do presidente, que se saíram a público em sua defesa.
Contudo, não é a primeira vez que isso acontece. Em 2019, após o Sínodo da Amazônia, convocado pelo Papa Francisco, arcebispo D. Orlando Brandes virou alvo de ataques após criticar o “dragão do conservadorismo” e acusar a direita de “violenta” e “injusta”. No ano seguinte, durante missa com templo vazio, por conta das medidas de prevenção da covid-19, voltou a citar os “dragões” e criticou as fake news. “Vamos usar a veste da verdade, não de fake news, não de mentiras, a couraça é nossa justiça”, convocou Brandes.
Apesar do ambiente de intolerância, o sacerdote não abre mão de exercer o “profetismo”. Em entrevista concedida à Band Vale, na época das eleições de 2020, ele foi categórico: “Não podemos deixar de falar pela defesa dos Direitos Humanos, da dignidade da vida, e de salvarmos o mundo através da Amazônia.” Sobre a sua compreensão política afirma que não se deve ver o mundo através das ideologias que, segundo ele, tendem aos interesses pessoais, mas defende que “nós temos um compromisso com a verdade, com aquele que é a Verdade: Jesus, verdade, caminho e vida.”
D. Orlando Brandes integra o quadro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que congrega bispos da Igreja Católica em todo país, e foi nomeado arcebispo de Aparecida pelo Papa Francisco, em novembro de 2016. Durante sua trajetória eclesiástica exerceu diversas funções, de professor a reitor de seminário teológico, e ocupou cargos de presidência dentro da própria CNBB, inclusive. Não existe na biografia recente do religioso associações a partidos ou declarações de preferências políticas. Ademais, a CNBB, em seu canal oficial, afirma que “não se identifica com nenhuma ideologia ou partido político.”
Comunismo e pânico moral
Os termos “comunismo” e “comunista” têm sido frequentemente usados em postagens de mídias sociais, desde os movimentos reacionários que emergiram no Brasil em 2013, relacionados ao termo “esquerda”. Segundo a pesquisadora e editora-geral do Bereia Magali Cunha (“Do púlpito às mídias sociais”, livro de 2019) é “um termômetro da atmosfera do tempo presente em que o imaginário do ‘perigo comunista’, da ‘ameaça vermelha’, presente historicamente na cultura brasileira é reavivado nos discursos da direita conservadora”.
Esta direita, a partir dos movimentos de junho de 2013, consolidando nos atos pró-impeachment da Presidente Dilma Rousseff (PT), em 2015 e 2016, evocou para si, segundo a pesquisadora, a simbologia das cores verde e amarela da identidade brasileira contra o vermelho da esquerda progressista. Os grupos religiosos conservadores, católico-romanos e evangélicos, se identificaram com tais discursos, como pode ser verificado em várias postagens em mídias sociais no período.
O comunismo, segundo o “Dicionário de Política” é um ideal político que tem origem na Grécia Antiga, na qual o filósofo Platão, traça um modelo da cidade ideal, que prevê “a supressão da propriedade privada, a fim de que desapareça qualquer conflito entre o interesse privado e o Estado, e a supressão da família, a fim de que os afetos não diminuam a devoção para o bem público” ( Dicionário, p. 204).
No verbete do “Dicionário de Política” sobre “comunismo”, é explicado que foi no âmbito da civilização cristã que floresceram os primeiros ideais comunistas, por conta da pregação dos Evangelhos sobre a partilha de bens, o despojamento, o valor dos pobres, os cristãos que tinham tudo em comum, e outras orientações encontradas no Novo Testamento e nos escritos dos Pais da Igreja. O texto explica que as utopias comunistas entraram pela Idade Moderna, se concretizaram na Revolução Inglesa do século 15 e emergiram no seio da grande Revolução Francesa, no século 18, a partir da qual floresceram escolas comunistas e socialistas na Europa.
Entretanto, foi com a concepção comunista dos pensadores Karl Marx e Fredrich Engels, no século 19, com o Manifesto Comunista (1848), que o período contemporâneo passa a discutir o tema. Marx e Engels fazem uma leitura do papel da burguesia, classe dominante, das minorias, na consolidação do capitalismo, critica a exploração da classe proletária, classe dominada, das maiorias. Para superação deste quadro, os pensadores pregam a revolução do proletariado para transformar a sociedade capitalista em sociedade comunista, na qual “o augusto direito burguês será superado e cada um dará segundo as próprias capacidades e receberá segundo suas necessidades. Para atingir este objetivo é, porém, necessário que as forças produtivas atinjam o máximo desenvolvimento e as fontes da riqueza social produzam com toda sua plenitude (Dicionário, p. 210).
A revolução russa (1917), com a liderança de Vladimir Ilyich Ulianov (conhecido como Lenin), tornou-se símbolo da aplicação dos ideais comunistas, gerando a União Soviética. A partir do governo de Joseph Stalin, encaminhamentos políticos deram destinos dramáticos a uma parcela do movimento comunista, com governos que impuseram a restrição de liberdades civis e a negação de regras sociais pluralistas.
Por isso, uma diversidade de expressões de partidos e regimes comunistas emergiram na Europa e em outros lugares do mundo, alinhados ou não com a dominante União Soviética. A Guerra Fria, tensão política que colocou Estados Unidos e União Soviética, e seus respectivos aliados, em concorrência, depois da Segunda Guerra Mundial (anos 1950 em diante), passou a alimentar uma disputa ideológica entre capitalistas e comunistas e a ideia de uma divisão dos países em Primeiro, Segundo Mundos, ficando no Terceiro Mundo aqueles considerados subdesenvolvidos. Na América Latina (parte do então Terceiro Mundo), partidos políticos com identidade comunista emergiram ao longo do século 20 e a Revolução Cubana (1956) tornou-se símbolo do movimento comunista no continente.
É neste período da Guerra Fria que emerge um forte sentimento anticomunista (que também é um verbete do “Dicionário de Política”). O termo ”comunista” passa a ser usado de forma pejorativa e acusatória, distante do sentido original da palavra relacionada ao movimento político que representava o comunismo. Partidários ou simpatizantes de regimes comunistas ou do ideal comunista passaram a ser tratados como inimigos da democracia.
O “inimigo das religiões”
Este sentimento foi alimentado de forma ameaçadora entre grupos religiosos, que eram apresentados como alvos do regime comunista, defensor da “religião como ópio do povo” (uma leitura reducionista de um dos escritos de Marx e Engels) e atuaria para pôr fim a todas as religiões.
Vários estudos indicam o lugar das mídias na demonização do comunismo e dos comunistas, em alinhamento com os Estados Unidos em seus aliados durante a Guerra Fria. No Brasil, segundo os estudos de Bethania Mariani, esta representação negativa se fixa no noticiário no Brasil dos anos 1930. Ela diz que as matérias jornalísticas da época não assinadas apresentavam o comunismo como uma “doutrina ou ideologia perigosa para o Brasil” e “os comunistas como inimigos astuciosos – os maus cidadãos ou como alguns brasileiros ingênuos que se deixaram levar por ideias falsas”. Por outro lado, os demais brasileiros, os não-comunistas, eram representados como patriotas e democratas.
Esta noção alcançou seu auge no período pré-ditadura civil-militar e alimentou o golpe de 1964 e os 21 anos do regime. A partir dos anos 80, com os processos de redemocratização do país, houve momentos de enfraquecimento desta compreensão (com a queda dos regimes socialistas no Leste Europeu e o fim da União Soviética) mas surgiram novos significados dados a elas, com a atribuição da noção de “ameaça vermelha” às esquerdas.
No entanto, é com o surgimento de militâncias de direita e extrema-direita, a partir de 2013, que levaram à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência, que apareceu o significado da salvação do Brasil de uma ditadura comunista que estava em processo de consolidação, como afirma a pesquisadora Helcimara Telles.
Nos discursos das manifestações de rua e de perfis em mídias sociais, uma nova configuração do anticomunismo se materializava: comunistas seriam todos os que propagam justiça econômica (defesa de programas de distribuição de renda, por exemplo), advogam os direitos humanos, em particular os das minorias, e reivindicam e atuam na superação de violência racial, cultural, de gênero, de classe. As esquerdas, em consonância com os governos do PT, são identificadas como as defensoras destas “políticas comunistas” e seus militantes classificados como anomalias sociais: “esquerdopatas”. Emerge uma nova face do anticomunismo: o antipetismo. Este discurso está intensamente presente nas postagens de perfis relacionados à direita e à extrema-direita em mídias sociais e são alimentadas por muitos grupos religiosos.
É neste contexto que emergem as acusações do tipo que foram publicadas contra D. Orlando Brades e circulam amplamente em espaços digitais contra opositores do governo de Jair Bolsonaro. Conforme os estudos aqui apresentados, elas servem para alimentar o pânico moral contra pessoas críticas da conjuntura política do país, especialmente entre grupos cristãos. Segundo tais (antigos) conteúdos, até os dias de hoje comunistas atuam para “fechar as igrejas” e proibir as religiões, o que se configura uma falsidade na forma como o movimento comunista historicamente se expressa no Brasil. São vários os historiadores que comprovam em pesquisas que nunca houve nem existe possibilidade de um regime comunista no Brasil.
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Bereia classifica como falsa a afirmação de que o arcebispo de Aparecida D. Orlando Brandes seja comunista. Não há registros da ligação do arcebispo católico com esta tendência política ou com partidos identificados como comunistas. O termo comunista tem sido utilizado de forma pejorativa, como falsa acusação que surge da intolerância a posições políticas divergentes e é uma ameaça à liberdade de expressão, alimentando medo na população através da sustentação de “bichos-papões” que buscam impedir o desenvolvimento de consciências e posturas críticas.
Referências:
Sermão 2020. https://www.youtube.com/watch?v=wjeXyW4qVZ8 Acesso 15: Out 2021.
Biografia. https://arqaparecida.org.br/Arquidiocese/Arcebispo Acesso 15: Out 2021.
Entrevista https://www.youtube.com/watch?v=e8IhyUtNQqQ Acesso 15: Out 2021.
Mensagem CNBB. https://www.cnbb.org.br/mensagem-da-cnbb-ao-povo-de-deus-aprovada-na-56a-ag/. Acesso em: 15 Out 2021.
Magali N. Cunha. Do púlpito às mídias sociais. Evangélicos na Política e ativismo digital. Curitiba, Appris, 2019.
Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/17973/material/Norberto-Bobbio-Dicionario-de-Politica.pdf Acesso em: 18 out 2021.
Bethania Sampaio Correa Mariani. O comunismo imaginário. Práticas discursivas da imprensa sobre o PCB (1922-1989). Tese de Doutorado (Curso de Linguística). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1996. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/270690 Acesso em: 18 out 2021.
Helcimara Telles. A Direita Vai às Ruas: o antipetismo, a corrupção e democracia nos protestos antigoverno. Ponto e Vírgula, 2016. https://revistas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/view/29895 Acesso em: 18 out 2021.
Correio do Povo, 8 nov. 2014. Disponível em: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2014/11/6646/a-psicologia-do-anticomunista-pos-tudo/ Acesso em 18 out 2021
Agência Pública, https://apublica.org/2019/04/1964-o-brasil-nao-estava-a-beira-do-comunismo-diz-historiador/ Acesso em: 18 out 2021.
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Foto de capa: Thiago Leon / Santuário Nacional de Aparecida/Divulgação