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Com um título impreciso, o jornal Folha de S.Paulo publicou, em 10 de janeiro, a matéria intitulada “Homens gays podem ser padres desde que não transem, diz Vaticano”. A manchete gerou grande repercussão e debates nas redes digitais. Bereia verificou a publicação para apurar a coerência entre a manchete e o conteúdo publicado, uma vez que boa parte dos compartilhamentos dessa matéria tinha por base apenas o título divulgado.
Segundo a matéria, o Vaticano teria publicado novas diretrizes para seminários, e permitia que homens gays se tornassem padres, desde que seguissem o celibato. O texto também afirma que o documento, elaborado pela Conferência Episcopal Italiana (CEI), modifica a orientação de 2016, que restringia a admissão de candidatos com “tendências homossexuais profundas”.
Imagem: reprodução/Instagram da Folha de São Paulo.
Após a divulgação do documento, a imprensa brasileira repercutiu, em diversos veículos de comunicação, uma interpretação equivocada. Alguns meios italianos também afirmaram que a CEI teria “aberto os seminários aos gays”, desde que observassem a abstinência sexual. No Brasil, algumas publicações atribuíram essa decisão diretamente ao Vaticano, o que não é verdadeiro.
Imagens: reprodução/CNN Brasil, G1, Veja
Equívoco que engana
A informação da Folha de S. Paulo e de outras mídias de notícias sobre o caso é enganosa. O documento, que não é do Vaticano, apenas reafirma diretrizes já estabelecidas pela Igreja Católica, e inclui aquelas mantidas durante o pontificado do papa Francisco.
O documento “Orientações e normas para os seminários” foi aprovado em novembro de 2023, pela Conferência Episcopal Italiana, em assembleia geral naquele período. O decreto do Dicastério para o Clero, órgão do Vaticano responsável pelas diretrizes sobre a atividade sacerdotal, foi assinado em 8 de dezembro do mesmo ano. A promulgação foi realizada pelo presidente da CEI cardeal Matteo Zuppi, em 1º de janeiro de 2025, e a publicação on-line ocorreu dias depois.
O trecho que tem sido alvo de desinformação é o item 44, inserido no capítulo sobre “o itinerário formativo” dos seminaristas. Diz o texto:
“Em relação às pessoas com tendências homossexuais que se aproximam dos seminários, ou que descobrem tal situação no decurso da formação, em coerência com o próprio Magistério, ‘a Igreja, embora respeitando profundamente as pessoas em questão, não pode admitir ao seminário e às Ordens Sagradas aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apoiam a chamada cultura gay. Estas pessoas encontram-se, de fato, numa situação que constitui um grave obstáculo a um correto relacionamento com homens e mulheres’”. (…)
“No processo formativo, quando se faz referências a tendências homossexuais, é importante não reduzir o discernimento apenas a esse aspecto, mas, assim como para qualquer outro candidato, entender seu significado no quadro global da personalidade do jovem, para que, conhecendo-se e integrando os objetivos próprios da vocação humana e sacerdotal, chegue a uma harmonia geral. O objetivo da formação do candidato ao sacerdócio no âmbito afetivo-sexual é a capacidade de acolher como dom, de escolher livremente e viver com responsabilidade a castidade no celibato”.
Segundo a ACI Digital, serviço de notícias em português da rede católica estadunidense EWTN [Eternal Word Television Network], o presidente da Comissão Episcopal para o Clero e a Vida Consagrada da CEI, o bispo de Fiesole (Itália) dom Stefano Manetti, , afirmou ao jornal Avvenire que a interpretação do documento estava sendo feita de maneira incorreta.
Segundo ele, o jesuíta americano James Martin, conhecido por sua defesa da causa LGBT, fundador do grupo pró-LGBT Outreach, e alguns meios de comunicação seculares interpretaram o documento como uma abertura à ordenação de homens com tendências homossexuais, o que é enganoso.
James Martin, se manifestou na sua página pessoal do X: “A minha leitura disso (e é só a minha leitura) é que, se um homem homossexual for capaz de levar uma vida saudável, casta e celibatária, ele pode ser considerado para admissão no seminário. Então, a meu ver, esse é um passo à frente”.
Imagens: reprodução/X
Segundo dom Manetti, essa interpretação não é correta, pois o parágrafo 44 “reitera as normas do magistério desde o início”. O bispo ainda afirma que o parágrafo “reitera, palavra por palavra”, o que foi estabelecido no parágrafo nº199 do documento Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis – O dom da vocação sacerdotal, publicado pela Congregação para o Clero da Santa Sé, em 8 de dezembro de 2016. O líder católico explica que este texto,, por sua vez, retoma o conteúdo de uma instrução da Congregação para a Educação Católica de 2005.
É estabelecido, então, em ambos os documentos, que pessoas com “tendências homossexuais profundamente enraizadas” não podem ser admitidas nos seminários.
Histórico de declarações do Papa Francisco e desinformação sobre a Igreja Católica
Informações relacionadas à comunidade LGBT+ costumam gerar ampla repercussão quando envolvem a Igreja Católica. Bereia já realizou diversas verificações sobre o tema, analisou discursos do Papa Francisco e conferiu conteúdos que se espalharam pelas redes digitais.
Em 2020, após um atentado que deixou 53 mortos na boate Pulse, nos Estados Unidos, Francisco condenou o ataque como um “ato de ódio sem sentido”. Na mesma época, começou a circular uma imagem em que ele supostamente segurava uma bandeira do movimento LGBT+, acompanhada de mensagens que o parabenizavam por defender a causa. A foto, no entanto, era uma montagem.
A imagem original, capturada pelo fotógrafo Stefano Rellandini para a agência de notícias AP, em 25 de julho de 2013, mostrava o Papa com a bandeira da Argentina durante a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. O registro foi alterado digitalmente para incluir a bandeira arco-íris e tem sido utilizado em publicações enganosas desde então.
Em março de 2024, uma publicação da deputada federal Bia Kicis (PL-DF) viralizou em espaços religiosos digitais. No post, a parlamentar reproduziu uma fala do Papa Francisco contra a chamada “ideologia de gênero”, utilizada por grupos ultraconservadores católicos e evangélicos. A checagem do Bereia classificou a publicação como verdadeira, pois a declaração do pontífice ocorreu durante uma conferência no Vaticano.
Apesar de se posicionar favoravelmente ao acolhimento de pessoas LGBT+ e defender maior participação das mulheres na Igreja, Francisco mantém um discurso alinhado ao conservadorismo religioso quando trata das pautas de gênero. O Papa rejeita a abordagem científica sobre o tema e utiliza a expressão “ideologia de gênero” de forma pejorativa, recurso frequente em discursos de grupos ultraconservadores.
Esses episódios reforçam a recorrência de desinformação sobre a postura do Papa Francisco em relação à comunidade LGBT+ e às pautas de gênero, frequentemente explorada por diferentes grupos políticos e religiosos.
Bereia conclui que a matéria publicada pela Folha de S.Paulo, que afirma que o Vaticano declarou que “homens gays podem ser padres desde que não transem”, apresenta um conteúdo enganoso. A reportagem induz o público a uma interpretação equivocada sobre a posição do Vaticano. O documento Orientações e Normas para os Seminários contém informações verdadeiras, porém, a forma como o item 44 foi apresentado gerou distorções e interpretações equivocadas sobre as diretrizes da Igreja Católica.
Referências de checagem:
Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/vaticano-nao-liberou-padres-gays-entenda-documento-cnbb-italiana/. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025.
Acidigital. https://www.acidigital.com/noticia/60871/bispo-nega-que-esteja-autorizada-a-ordenacao-de-homens-com-tendencias-homossexuais-na-italia. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025.
Dicastero Per Il Clero.
https://www.clerus.va/it/news/2025/la-formazione-dei-presbiteri-nelle-chiese-in-italia-orientamenti.html. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025
https://www.clerus.va/content/dam/clerus/notizie/2025/Ratio_Nationalis-2025.pdf. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025.
Coletivo Bereia.
https://coletivobereia.com.br/e-falso-que-papa-francisco-segura-bandeira-gay-em-foto/. Acesso em 11 de fevereiro de 2025.
https://coletivobereia.com.br/deputada-catolica-repercute-afirmacao-do-papa-sobre-ideologia-de-genero-ameacar-a-humanidade/. Acesso em 11 de fevereiro de 2025.
Foto de capa: Jerome Clarisse / Pixabay