Ainda sobre Frei Gilson: um agente nodal no catolicismo brasileiro
Na última semana, o caso Frei Gilson ultrapassou os limites da chamada “bolha católica” e ganhou destaque nas mídias progressistas e conservadoras, conquistando amplo espaço no debate público brasileiro. Muito já foi dito sobre o fenômeno Frei Gilson, algo que o catolicismo brasileiro conhece mais amplamente desde a pandemia. O que pretendo destacar aqui, entretanto, são os efeitos internos desse episódio, ou seja, um pouco de suas repercussões dentro do próprio catolicismo brasileiro.
Frei Gilson, membro da Congregação Carmelitas Mensageiros do Espírito Santo, é um sacerdote católico da Diocese de Santo Amaro (SP) e ligado à Renovação Carismática Católica (RCC). Popularizou-se no Brasil durante a pandemia por meio de suas transmissões ao vivo e pregações nas redes sociais. Sua atuação conquistou uma base fiel de milhões de seguidores, tendo alcançado, na última semana, o extraordinário feito de reunir mais de 1 milhão e 300 mil pessoas ao vivo em sua live de oração do Rosário, que se inicia às quatro horas da manhã.
Os ataques sofridos por Frei Gilson rapidamente foram denunciados por vozes influentes da direita católica, como Bernardo Küster, influencer que insinuou, expondo prints de WhatsApp, a existência de uma articulação de difamação por trás desses ataques, liderada pelos chamados “Padres da Caminhada”, herdeiros espirituais da tradição progressista de Dom Pedro Casaldáliga. Para esses setores conservadores, tais ataques ultrapassam as disputas políticas ou ideológicas comuns, representando a manifestação visível de uma profunda e antiga guerra espiritual entre forças celestes e infernais dentro da Igreja, que, em sua visão, está infiltrada por comunistas.
Nesse contexto, é notável que Frei Gilson tenha conseguido algo raro: contribuir para a coalizão de grupos historicamente antagônicos dentro do catolicismo brasileiro — os tradicionalistas e os carismáticos. Embora ligado à Renovação Carismática Católica (RCC), movimento frequentemente considerado pelos tradicionalistas como excessivamente moderno e pouco rigoroso doutrinariamente, Frei Gilson conquistou amplo respeito desses mesmos tradicionalistas ao promover fervorosamente a oração pública do Rosário. Essa prática é profundamente valorizada pelos tradicionalistas e recomendada por santos fundamentais para sua espiritualidade, como São Luís Maria Grignion de Montfort. Assim, o Rosário rezado publicamente por Frei Gilson é visto como um sinal claro — ao lado da crescente procura pela Missa Antiga — do renascimento do “verdadeiro catolicismo tradicional” no Brasil.
Parece-me, assim, que Frei Gilson se aproxima daquilo que tem sido denominado internamente pelos católicos conservadores como o fenômeno “tradismático”: fiéis e sacerdotes que, embora ligados à espiritualidade carismática e celebrantes da Missa de Paulo VI, se interessam por ou conseguem atrair o respeito e a admiração de setores tradicionalistas. Dessa forma, figuras como Frei Gilson, assim como Padre Paulo Ricardo e Padre José Eduardo, tornam-se agentes nodais capazes de reunir forças anteriormente dispersas ou mesmo antagônicas.
Por outro lado, setores progressistas dentro da Igreja reagiram destacando falas do Papa Francisco como referência crítica contra práticas consideradas demasiado conservadoras ou tradicionalistas. Paralelamente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi duramente cobrada por seu silêncio diante do caso, sendo novamente acusada, por setores da direita católica, de conivência ou alinhamento ideológico com a esquerda.
Nesse embate, o ataque específico à prática do Rosário ganhou contornos de perseguição religiosa anticrística — ou “cristofóbica” — na percepção desses setores conservadores, aprofundando ainda mais as tensões internas. A reação a essa perseguição levou o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP) a propor um projeto de lei que criminaliza ataques contra líderes religiosos nas redes sociais, prevendo pena de seis meses a dois anos de detenção e multa.
Frei Gilson, portanto, não é apenas uma figura religiosa controversa ou popular nas mídias sociais. Tornou-se, talvez involuntariamente, o epicentro de um intenso conflito interno, revelando as complexas dinâmicas do catolicismo contemporâneo no Brasil.
**Artigo publicado pelo Bereia em parceria com o Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp
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