Balanço Janeiro 2025: grande jornal desinforma ao atribuir ao Vaticano documento de conferência italiana sobre padres gays

Com um título impreciso, o jornal Folha de S.Paulo publicou, em 10 de janeiro, a matéria intitulada “Homens gays podem ser padres desde que não transem, diz Vaticano”. A manchete gerou grande repercussão e debates nas redes digitais. Bereia verificou a publicação para apurar a coerência entre a manchete e o conteúdo publicado, uma vez que boa parte dos compartilhamentos dessa matéria tinha por base apenas o título divulgado.

Segundo a matéria, o Vaticano teria publicado novas diretrizes para seminários, e permitia que homens gays se tornassem padres, desde que seguissem o celibato. O texto também afirma que o documento, elaborado pela Conferência Episcopal Italiana (CEI), modifica a orientação de 2016, que restringia a admissão de candidatos com “tendências homossexuais profundas”.

Imagem: reprodução/Instagram da Folha de São Paulo.

Após a divulgação do documento, a imprensa brasileira repercutiu, em diversos veículos de comunicação, uma interpretação equivocada. Alguns meios italianos também  afirmaram que a CEI teria “aberto os seminários aos gays”, desde que observassem a abstinência sexual. No Brasil, algumas publicações atribuíram essa decisão diretamente ao Vaticano, o que não é verdadeiro.

Imagens: reprodução/CNN Brasil, G1, Veja

Equívoco que engana

A informação da Folha de S. Paulo e de outras mídias de notícias sobre o caso é enganosa. O documento, que não é do Vaticano, apenas reafirma diretrizes já estabelecidas pela Igreja Católica, e inclui aquelas mantidas durante o pontificado do papa Francisco.

O documento “Orientações e normas para os seminários” foi aprovado em novembro de 2023, pela  Conferência Episcopal Italiana, em assembleia geral naquele período. O decreto do Dicastério para o Clero, órgão do Vaticano responsável pelas diretrizes sobre a atividade sacerdotal, foi assinado em 8 de dezembro do mesmo ano. A promulgação foi realizada pelo presidente da CEI cardeal Matteo Zuppi, em 1º de janeiro de 2025, e a publicação on-line ocorreu dias depois.

O trecho que tem sido alvo de desinformação é o item 44, inserido no capítulo sobre “o itinerário formativo” dos seminaristas. Diz o texto:

Em relação às pessoas com tendências homossexuais que se aproximam dos seminários, ou que descobrem tal situação no decurso da formação, em coerência com o próprio Magistério, ‘a Igreja, embora respeitando profundamente as pessoas em questão, não pode admitir ao seminário e às Ordens Sagradas aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apoiam a chamada cultura gay. Estas pessoas encontram-se, de fato, numa situação que constitui um grave obstáculo a um correto relacionamento com homens e mulheres’”. (…)

“No processo formativo, quando se faz referências a tendências homossexuais, é importante não reduzir o discernimento apenas a esse aspecto, mas, assim como para qualquer outro candidato, entender seu significado no quadro global da personalidade do jovem, para que, conhecendo-se e integrando os objetivos próprios da vocação humana e sacerdotal, chegue a uma harmonia geral. O objetivo da formação do candidato ao sacerdócio no âmbito afetivo-sexual é a capacidade de acolher como dom, de escolher livremente e viver com responsabilidade a castidade no celibato”.

 Segundo a ACI Digital, serviço de notícias em português da rede católica estadunidense EWTN [Eternal Word Television Network], o presidente da Comissão Episcopal para o Clero e a Vida Consagrada da CEI, o bispo de Fiesole (Itália) dom Stefano Manetti, , afirmou ao jornal Avvenire que a interpretação do documento estava sendo feita de maneira incorreta.

Segundo ele, o jesuíta americano James Martin, conhecido por sua defesa da causa LGBT, fundador do grupo pró-LGBT Outreach, e alguns meios de comunicação seculares interpretaram o documento como uma abertura à ordenação de homens com tendências homossexuais, o que é enganoso.

James Martin, se manifestou na sua página pessoal do X: “A minha leitura disso (e é só a minha leitura) é que, se um homem homossexual for capaz de levar uma vida saudável, casta e celibatária, ele pode ser considerado para admissão no seminário. Então, a meu ver, esse é um passo à frente”. 

Imagens: reprodução/X

Segundo dom Manetti, essa interpretação não é correta, pois o parágrafo 44 “reitera as normas do magistério desde o início”. O bispo ainda afirma que o parágrafo “reitera, palavra por palavra”, o que foi estabelecido no parágrafo nº199 do documento Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis – O dom da vocação sacerdotal, publicado pela Congregação para o Clero da Santa Sé, em 8 de dezembro de 2016. O líder católico explica que este texto,, por sua vez, retoma o conteúdo de uma instrução da Congregação para a Educação Católica de 2005.

É estabelecido, então, em ambos os documentos, que pessoas com “tendências homossexuais profundamente enraizadas” não podem ser admitidas nos seminários.

Histórico de declarações do Papa Francisco e desinformação sobre a Igreja Católica

Informações relacionadas à comunidade LGBT+ costumam gerar ampla repercussão quando envolvem a Igreja Católica. Bereia já realizou diversas verificações sobre o tema, analisou discursos do Papa Francisco e conferiu conteúdos que se espalharam pelas redes digitais.

Em 2020, após um atentado que deixou 53 mortos na boate Pulse, nos Estados Unidos, Francisco condenou o ataque como um “ato de ódio sem sentido”. Na mesma época, começou a circular uma imagem em que ele supostamente segurava uma bandeira do movimento LGBT+, acompanhada de mensagens que o parabenizavam por defender a causa. A foto, no entanto, era uma montagem.

A imagem original, capturada pelo fotógrafo Stefano Rellandini para a agência de notícias AP, em 25 de julho de 2013, mostrava o Papa com a bandeira da Argentina durante a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. O registro foi alterado digitalmente para incluir a bandeira arco-íris e tem sido utilizado em publicações enganosas desde então.

Em março de 2024, uma publicação da deputada federal Bia Kicis (PL-DF) viralizou em espaços religiosos digitais. No post, a parlamentar reproduziu uma fala do Papa Francisco contra a chamada “ideologia de gênero”, utilizada por grupos ultraconservadores católicos e evangélicos. A checagem do Bereia classificou a publicação como verdadeira, pois a declaração do pontífice ocorreu durante uma conferência no Vaticano.

Apesar de se posicionar favoravelmente ao acolhimento de pessoas LGBT+ e defender maior participação das mulheres na Igreja, Francisco mantém um discurso alinhado ao conservadorismo religioso quando trata das pautas de gênero. O Papa rejeita a abordagem científica sobre o tema e utiliza a expressão “ideologia de gênero” de forma pejorativa, recurso frequente em discursos de grupos ultraconservadores.

Esses episódios reforçam a recorrência de desinformação sobre a postura do Papa Francisco em relação à comunidade LGBT+ e às pautas de gênero, frequentemente explorada por diferentes grupos políticos e religiosos.

Bereia conclui que a matéria publicada pela Folha de S.Paulo, que afirma que o Vaticano declarou que “homens gays podem ser padres desde que não transem”, apresenta um conteúdo enganoso. A reportagem induz o público a uma interpretação equivocada sobre a posição do Vaticano. O documento Orientações e Normas para os Seminários contém informações verdadeiras, porém, a forma como o item 44 foi apresentado gerou distorções e interpretações equivocadas sobre as diretrizes da Igreja Católica.

Referências de checagem: 

Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/vaticano-nao-liberou-padres-gays-entenda-documento-cnbb-italiana/. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025.

Acidigital. https://www.acidigital.com/noticia/60871/bispo-nega-que-esteja-autorizada-a-ordenacao-de-homens-com-tendencias-homossexuais-na-italia. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025.

Dicastero Per Il Clero.

https://www.clerus.va/it/news/2025/la-formazione-dei-presbiteri-nelle-chiese-in-italia-orientamenti.html. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025

https://www.clerus.va/content/dam/clerus/notizie/2025/Ratio_Nationalis-2025.pdf. Acesso em 10 de Fevereiro de 2025.

Coletivo Bereia.

https://coletivobereia.com.br/e-falso-que-papa-francisco-segura-bandeira-gay-em-foto/. Acesso em 11 de fevereiro de 2025.

https://coletivobereia.com.br/deputada-catolica-repercute-afirmacao-do-papa-sobre-ideologia-de-genero-ameacar-a-humanidade/. Acesso em 11 de fevereiro de 2025.

Foto de capa: Jerome Clarisse / Pixabay

Site gospel cria pânico sobre “remoção de nome da mãe” do CPF pela Receita Federal

O site Pleno News publicou, em 17 de fevereiro passado, matéria na qual afirma que a Receita Federal foi obrigada pela Justiça a remover “nome da mãe” do Cadastro de Pessoa Física, para que passe a constar a palavra “filiação”.

Imagem: reprodução Pleno News

Com o mesmo tom negativo do título que diz que a Justiça “obriga”, Pleno News afirma no corpo da matéria que a Justiça Federal de Curitiba “ordenou” a Receita Federal a fazer a alteração nos formulários. O site gospel indica que a determinação “atende a uma ação civil movida por entidades de defesa da diversidade sexual e de gênero, assim como representantes da comunidade LGBTQIAPN+”.

A decisão judicial

A Justiça Federal do Paraná determinou, no prazo de 180 dias, em sentença ainda sujeita a recurso, que a Receita Federal adeque os formulários de cadastramento e retificação do CPF, substituindo o campo “nome da mãe” por “filiação” e incluindo as opções de gênero “não especificado”, “não binário” e “intersexo”. 

A ordem judicial, com base em ação civil movida pela Defensoria Pública da União, pelo Ministério Público Federal e por entidades de defesa da diversidade sexual e de gênero,  tendo em vista o reconhecimento e a valorização da multiplicidade de arranjos familiares e identidades de gênero no Brasil. A ação civil pública buscou garantir a proteção e o reconhecimento legal dos direitos de indivíduos LGBTQIAPN+, com foco em questões como igualdade, não discriminação e respeito à diversidade de gênero.

A ação foi ajuizada em 2021, depois que a Receita Federal sob orientação do Ministério da Economia do mandato do presidente Jair Bolsonaro, não atendeu às demandas coletivas por alteração do relatório.

A juíza Anne Karina Stipp Amador Costa, que assina a decisão, considerou que o STF já reconheceu a união homoafetiva como núcleo familiar e determinou igual tratamento à união heteroafetiva e que a mudança nos formulários do CPF leva a Receita a respeitar a dignidade humana, “reconhecendo a diversidade de arranjos familiares e identidades de gênero em nosso país, bem como a condição de intersexualidade”, conforme os direitos fundamentais de personalidade, igualdade, liberdade, autodeterminação, entre outros.. 

A decisão destaca  ainda que tais adequações já foram realizadas pela Polícia Federal e pelos Cartórios quando da lavratura da certidão de nascimento, o que evidencia a necessidade de adequação do CPF, documento considerado central e de grande importância na vida do cidadão brasileiro. 

A determinação da Justiça Federal admite que a adequação dos formulários de CPF para incluir opções de gênero mais abrangentes e a substituição do termo “nome da mãe” por “filiação” reconhece oficialmente a existência e a legitimidade de arranjos familiares diversos, contribuindo para a redução do estigma e da discriminação. A decisão considera também que o encaminhamento facilita inúmeros processos legais e burocráticos para indivíduos cujas identidades não eram anteriormente reconhecidas e respeitadas. 

Pleno News e desinformação

Bereia classifica a matéria do site Pleno News como enganosa. A notícia oferece conteúdo de substância verdadeira, mas a forma como é apresentada contribui para confundir o leitor.  Dessa forma, representa desinformação e precisa de contextualização e correções. 

Pleno News apresenta a decisão do judiciário em tom que aponta suposta arbitrariedade do Poder Judiciário com o uso de termos “obriga” e “ordena”.  

A matéria também afirma que a Justiça Federal de Curitiba atendeu a uma ação civil movida por entidades de defesa da diversidade sexual e de gênero, bem como de representantes da comunidade LGBTQIAPN+, sem a devida contextualização. Isto pode levar a crer que este grupo é privilegiado pelo Judiciário em decisões, e reforçar a teoria da conspiração que afirma existir uma “ditadura gay” que impõe regras.

Dessa forma, o portal induz uma percepção negativa da decisão, omitindo seu contexto jurídico e social, bem como sua fundamentação constitucional. A escolha vocabular e a disposição dos enunciados no discurso têm por estratégia confundir e polarizar, distraindo o leitor da percepção do avanço significativo na inclusão e no respeito à diversidade.  A determinação não retira o nome da mãe do documento, mas visa garantir o direito de quaisquer interessados à retificação dos dados do CPF, se assim desejarem.

Matérias cujo conteúdo estão relacionados à temática de gênero, podem ser acessados em outras checagens desenvolvidas pelo Bereia

Referências de checagem:

Portal Unificado da Justiça Federal da 4ª Região https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=27870 Acesso em 19 FEV 2024 

Defensoria Pública da União https://direitoshumanos.dpu.def.br/acao-pede-reconhecimento-de-familias-homotransafetivas-no-registro-do-cpf/ Acesso em 19 FEV 2024 

Ação Civil Pública https://www.dpu.def.br/images/stories/foto_noticias/2021/20210913_Peticao_Inicial_CPF_-_final_para_assinaturas_-_COM_TARjA.pdf Acesso em 19 FEV 2024 

Supremo Tribunal Federal.

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=504856&ori=1#:~:text=Em%20maio%20de%202011%2C%20o,homoafetiva%20como%20um%20n%C3%BAcleo%20familiar. Acesso em 19 FEV 2024 

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633 Acesso em  FEV  2024

Superior Tribunal de Justiça https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/29012023-Decisoes-do-STJ-foram-marco-inicial-de-novas-regras-sobre-alteracao-no-registro-civil-de-transgeneros.aspx#:~:text=Decis%C3%B5es%20do%20STJ%20foram%20marco,no%20registro%20civil%20de%20transg%C3%AAneros&text=Atualmente%2C%20%C3%A9%20poss%C3%ADvel%20mudar%20o,realiza%C3%A7%C3%A3o%20de%20cirurgia%20de%20transgenitaliza%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 19 FEV 2024 

Bereia. https://coletivobereia.com.br/checagens-feitas-por-bereia-subsidiam-estudo-que-avalia-desinformacao-sobre-genero-e-sexualidade/ Acesso 22 FEV 2024

Metropoles. https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/depoimento-bolsonaro-pf-cis Acesso em FEV 2024

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Foto de capa: Agência Brasil

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