Extremismo religioso na política: STF recebe mensagem com ameaça ilustrada com símbolos católicos

* Matéria atualizada em 27/11/2024 às 22:28 para acréscimo de informações

O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu oito e-mails com ameaças, em 14 de novembro, um dia após o atentado a bomba em Brasília, contra o STF, que resultou na morte do autor, Francisco Luiz, caso ainda sob investigação das Polícias Civil e Federal. 

Entre as mensagens ao STF, posteriores ao atentado, uma, enviada por remetentes anônimos, contém uma fotografia que mostra uma arma de fogo ao lado de livros de temática católica, acompanhada de ameaças explícitas de futuros ataques ao tribunal. 

A informação foi divulgada pela jornalista Daniela Lima e confirmada pelo diretor-geral da Polícia Federal Andrei Passos Rodrigues.

Bereia verificou que Os dois livros que aparecem na imagem  junto a uma arma de fogo são: o ‘Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem’, de São Luís Maria Grignion de Montfort, e o ‘Catecismo da Igreja Católica’, compilado durante o pontificado do Papa João Paulo II. 

O texto associado à fotografia afirma: “Esclarecemos-vos que Francisco Luiz, agora no céu junto com o Pai, foi apenas um dos inúmeros mártires de nossa luta contra vós, a escória satânica do STF. Não descansaremos até acabar com a escória de Satanás.”

Imagem: Reprodução de e-mail enviado em forma de ameaça ao STF. Divulgação à imprensa

​​Bereia checou a possibilidade deste conteúdo ter sido produzido por um ou mais ultraconservadores católicos.

Raízes históricas do extremismo católico

Segundo pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER), o conservadorismo católico no Brasil tem raízes profundas que remontam a 1922, com a fundação do Centro Dom Vital por Jackson de Figueiredo. De acordo com o estudo desenvolvido pelo doutor em Ciências da Religião Victor Almeida Gama para o ISER, esse centro foi o irradiador de um pensamento católico autoritário, antiliberal e antissocialista, que postulava uma revolução espiritual.

Desta tradição nasceram movimentos como a Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada por Plinio Corrêa de Oliveira, que manteve forte influência na mídia brasileira através de colunas na Folha de São Paulo. Com a morte de Corrêa de Oliveira em 1995, o movimento passou por um período de adormecimento até a emergência do astrólogo católico,  conhecido como filósofo da direita radical, Olavo de Carvalho. Ele passou a ser tomado como nova referência do conservadorismo católico no Brasil.

Extremismo contemporâneo

A doutoranda em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco Ana Carolina de Oliveira Marsicano, em artigo para o ISER-Nexo Políticas Públicas-, identifica que essa tradição conservadora católica persiste hoje por meio de novos movimentos, como o Centro Dom Bosco (sediado na cidade do Rio de Janeiro), que remasterizou ideias e práticas de penetração no espaço público existentes há mais de 60 anos.

Uma personagem emblemática dessa articulação é o padre da Arquidiocese de Cuiabá Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, que representa a convergência entre o Catolicismo conservador e a Renovação Carismática Católica (RCC). 

Formado em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, o religioso mantém forte influência nas mídias digitais e tem sido uma referência para grupos extremistas. Em seus posicionamentos, defende pautas como a liberação de armas e dissemina teorias conspiratórias sobre a educação brasileira.

Imagem: reprodução/Arquivo Pessoal

O Catolicismo radical também tem expressão no meio jurídico, como exemplifica o caso do ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, ligado à instituição conservadora católica Opus Dei. Em 2017, ele recebeu apoio tanto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) quanto de lideranças evangélicas para ocupar uma vaga no STF, defendendo posições ultraconservadoras sobre família e direitos trabalhistas.

Especialistas comentam sobre o extremismo conservador católico

Bereia conversou com três especialistas em Catolicismo ultraconservador, Manuela Mayrink, Andrea Brasilio e Rodrigo Toniol, que abordaram o tema do extremismo católico na política. A doutoranda em Comunicação da Universidade Federal Fluminense Manuela Mayrink aponta que nomes como Brasil Paralelo, Olavo de Carvalho, padre Paulo Ricardo e os influenciadores digitais Bernardo Küster, Deia e Tiba têm algo em comum: além de serem produtores de conteúdo na internet, são católicos e transmitem suas ideias com base na proposta de construção de uma intelectualidade conservadora. 

“Não apenas propagam seus ensinamentos, como reforçam a importância de que seu público engaje na construção de uma intelectualidade de direita, tendo seus conteúdos como porta de entrada e base cientifica para a construção do conhecimento. Um discurso que se mostra muito forte neste grupo de pensadores conservadores é o da chamada ‘perda das virtudes’ que o mundo contemporâneo viveria. E é aí que se encaixa a forte presença católica nos movimentos conservadores atuais: a busca incessante pelas tradições e virtudes perdidas diante da ‘invasão comunista’”, avalia Mayrink.

A pesquisadora também observa que a ação de conservadores católicos, no entanto, muitas vezes é deixada em segundo plano, sufocada pela profusão de análises – importantes e necessárias, ela destaca – sobre o crescimento exponencial no número de evangélicos no país e sua presença na política.

Além disso, a doutoranda em Comunicação pontua que, embora mais discretos e menos presentes na mídia, os católicos, historicamente, mantiveram uma estreita relação com a alta cúpula da política nacional, e conquistaram fiéis ao longo das décadas do século 20. 

A pesquisadora ainda ressalta que as plataformas de redes sociais ajudam a potencializar discursos que sempre estiveram presentes na história do Brasil, o que faz com que sejam acessados não só por integrantes da elite intelectual e política brasileira, como por cidadãos comuns, criados a partir dessa construção conservadora em suas paróquias por todo o país. 

“Este histórico – e a análise recente do Catolicismo nos últimos anos – faz com que não seja exatamente surpreendente que a primeira ameaça recebida pelo STF pós homem-bomba em Brasília tenha sido um e-mail cujo anexo consistia em uma foto de um catecismo da Igreja Católica, um devocional mariano e uma pistola. Para os católicos radicais, o  Catecismo da Igreja Católica tem tanta ou mais relevância quanto a própria Bíblia. É algo como uma Constituição com todas as regras a serem seguidas por um bom católico. E um bom católico precisaria, em última instância, lutar pela existência de uma sociedade católica”,  finaliza Manuela Mayrink.

A doutora em Estudos da Cultura Contemporânea e professora da Universidade Federal do Mato Grosso  Andrea Basilio explica que esse fenômeno não é restrito a um único grupo religioso, mas se manifesta tanto entre católicos quanto entre evangélicos, sendo mais pronunciado entre os católicos conservadores.

Basilio menciona que a extrema direita tem utilizado de maneira intensa esse discurso político-religioso, e apropriou-se de símbolos e valores cristãos para criar um “discurso cívico-religioso” que busca mesclar pautas religiosas com pautas partidárias. 

A professora da UFMT alerta para os perigos desse fenômeno, principalmente no que diz respeito à radicalização. “Quando as pessoas começam a ver o adversário político não apenas como um adversário, mas como um inimigo, algo demoníaco, que precisa ser eliminado, isso configura um risco enorme para a sociedade”.

Outro ponto destacado por Basilio é a maneira como essa mistura entre religião e política torna muito difícil a contestação das ideias defendidas pelos membros da extrema direita religiosa. Como as pautas políticas passam a ser encaradas como parte de uma missão religiosa, questionar essas ideias se torna algo visto quase como um pecado, o que cria uma blindagem em torno dos membros desse espectro. 

Em resposta ao Bereia o doutor em Antropologia Social e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Rodrigo Toniol também destaca a presença significativa do Catolicismo no campo do conservadorismo religioso no Brasil, uma presença que frequentemente é ofuscada pelas análises que se concentram mais na influência dos evangélicos, na linha do que disse Manuela Mayrink. 

Para Toniol, é crucial reconhecer que os católicos têm atuado de maneira muito ativa nesse debate, pois utilizam suas próprias redes e estratégias, muitas das quais se assemelham às dos evangélicos, principalmente naos espaços digitais. Entre essas estratégias, ele aponta a disseminação de informações falsas e a construção de uma narrativa antidemocrática.

Toniol ressalta que algumas dessas ações se manifestaram em estruturas de comunicação voltadas para a propagação de desinformação, que geraram um clima de apoio a atitudes anti-democráticas no país. “É importante lembrar que, no contexto dos recentes inquéritos sobre o golpe, um dos indiciados foi o padre José Eduardo Oliveira Silva, um padre de Osasco, que teria participado de reuniões no Palácio do Planalto e ajudado a formatar a minuta do golpe”, comenta Toniol. O caso, segundo ele, é emblemático da atuação de figuras católicas no cenário político atual, e serve como um lembrete de como certos membros da Igreja Católica podem estar envolvidos em ações profundamente antidemocráticas.

O professor também faz questão de enfatizar que, embora não se deva fazer uma associação direta entre Catolicismo e conservadorismo evangélico, é inegável que há redes católicas ativas na disseminação de informações falsas e na promoção de uma agenda política alinhada a práticas antidemocráticas. Mesmo após o fim do governo Bolsonaro, essas redes continuam a operar e, como exemplificado pelo indiciamento do padre José Eduardo, essas atividades continuam a ganhar materialidade nas investigações em curso.

Padres citados no inquérito sobre atos golpistas

A divulgação do conteúdo do inquérito das investigações da Polícia Federal (PF), sobre a tentativa de golpe de Estado que culminou com os atos violentos de 8 de janeiro de 2023. trouxeram novos elementos sobre a atuação de lideranças católicas conservadoras. O padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, citado anteriormente como figura do  Catolicismo conservador, aparece em dois momentos cruciais no relatório final do inquérito.

A PF identificou trocas de mensagens entre o padre da paróquia Cristo Rei, em Várzea Grande (Mato Grosso), Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, da Diocese de Osasco. Enquanto Paulo Ricardo é um padre midiático, lançado pela TV Canção Nova, Oliveira é outro expoente do conservadorismo católico radical que mantém mais de 500 mil assinantes em suas páginas nas mídias digitais. 

Em uma das comunicações levantadas pela investigação, datada de 4 de dezembro de 2022, Paulo Ricardo confirma manter contato com o então assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins. De acordo com o relatório da PF, “os investigados ainda nutriam a esperança de consumação do golpe de Estado”.

Em correspondência eletrônica anterior enviada a Filipe Martins, o padre José Eduardo solicita audiência com o então presidente Jair Bolsonaro e menciona a participação de Paulo Ricardo. Os religiosos manifestam interesse em discutir “iniciativas que podem ser tomadas imediatamente pelo Poder Executivo” sobre a pauta contra o aborto.

O envolvimento do padre José Eduardo com as articulações antidemocráticas teve início ainda em 2018, quando prestou atendimento espiritual a Bolsonaro após o atentado sofrido durante a campanha eleitoral. A PF aponta o sacerdote como integrante do Núcleo Jurídico do esquema golpista, tendo participado de reunião no Palácio do Planalto para discutir planos de impedimento da posse do presidente eleito. O religioso chegou a elaborar uma “oração do golpe”, pedindo a Deus que “desse coragem” a generais para “salvar o Brasil”.

Histórico de ameaças e medidas de segurança 

O recebimento de ameaças tornou-se uma ocorrência constante no STF. A Corte tem enfrentado uma crescente onda de ataques verbais e digitais. De acordo com a assessoria do Tribunal, a maioria das ameaças é feita por e-mail, que utilizam tecnologias para garantir o anonimato dos remetentes. Também há registros de ameaças via ouvidoria e correspondências postais.

Desde do atentado à democracia de 8 de janeiro de 2023, o STF tem registrado uma média de três ameaças diárias, o que totaliza aproximadamente mil ocorrências até o momento, o que tem gerado preocupações sobre a segurança e a integridade da Corte.

Em resposta ao atentado, o STF intensificou suas medidas de segurança, e suspendeu as visitas públicas, além de realizar varreduras no edifício-sede e nas residências dos ministros. A administração também determinou a reinstalação de grades de proteção e o reforço no controle de acesso às dependências.

O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, em entrevista à imprensa, destacou que o responsável pelo atentado com explosivos afirmou em suas publicações nas redes que havia uma “luta contra o Supremo” e que não haveria descanso até que a Suprema Corte fosse eliminada. 

Rodrigues também comentou sobre a radicalização dos envolvidos, e destacou que havia uma preparação para o ataque e uma forte vinculação com grupos extremistas. O diretor-geral ressaltou ainda que as redes sociais, atualmente, se tornaram “território de ninguém”, onde publicações extremistas são feitas com a sensação de impunidade.

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Bereia confirma, portanto, que a notícia sobre um e-mail com discurso de ódio dirigido ao STF ser baseado em símbolos católicos, é verdadeira. O extremismo de direita também envolve pessoas e grupos com identidade católica. O ultraconservadorismo católico tem longa história no Brasil e hoje se encontra reavivado, em especial por ações nas midias sociais.

Referências de checagem:

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/tags/8-de-janeiro Acesso em: 18 nov 2024

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/saiba-quem-e-homem-que-morreu-apos-explosoes-na-praca-dos-tres-poderes/ Acesso em: 18 nov 2024

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ameacas-stf-recebe-e-mails-anonimos-apos-atentado/ Acesso em: 18 nov 2024

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/homem-bomba-saiba-tudo-o-que-aconteceu-nas-24-horas-seguintes-ao-ataque/ Acesso em: 18 nov 2024

Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/11/stf-recebeu-tambem-ameacas-por-email-diz-chefe-da-pf.shtml Acesso em: 18 nov 2024

G1. https://g1.globo.com/politica/blog/daniela-lima/post/2024/11/14/apos-o-atentado-stf-recebe-ameaca-por-e-mail.ghtml. Acesso em 18 de novembro de 2024.

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Notícias STF. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/nota-do-stf-sobre-incidente-na-praca-dos-tres-poderes/ Acesso em: 19 nov 2024

Notícias STF. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ministros-repudiam-atenta%E2%80%A6forcam-necessidade-de-responsabilizacao-por-atos-contra-democracia/ Acesso em: 19 nov 2024

CBN. https://cbn.globo.com/brasil/noticia/2024/11/15/stf-recebe-mais-de-uma-ameca-por-dia-desde-8-de-janeiro-de-2023-nove-emails-foram-enviados-a-corte-apos-atentado-de-quarta-feira-13.ghtml Acesso em: 19 nov 2024

Poder360. https://www.poder360.com.br/poder-justica/stf-recebeu-cerca-de-1-000-ameacas-desde-o-8-de-janeiro/ Acesso em: 19 nov 2024

BCC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp9zj2r3jkyo. Acesso em 22 de novembro de 2024.

G1. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/11/21/padre-de-osasco-e-um-dos-37-indiciados-em-inquerito-sobre-tentativa-de-golpe-ele-e-citado-como-integrante-do-nucleo-juridico-do-esquema.ghtml. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

Mídia Ninja. https://midianinja.org/opiniao/padre-paulo-ricardo-cavaleiro-de-batina-do-apocalipse-pandemico/. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

Nexo. https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/10/25/catolicos-e-reacionarios-o-catolicismo-como-motor-explicativo-do-conservadorismo-no-brasil. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

Nexo. https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2024/03/06/direitas-catolicas-no-brasil-um-projeto-de-longa-duracao. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

Foto de capa: Agência Senado

Eleições 2024: as principais mentiras circulantes na reta final do segundo turno em três capitais

Na reta final das eleições municipais de 2024, a disseminação de informações falsas se intensificou, o que levanta reflexões para garantir a integridade de futuros processos eleitorais. Bereia checou o que circulou em ambientes digitais religiosos – tanto em mídias de notícias, perfis em mídias sociais e em grupos de WhatsApp. Foi verificado que, em Belo Horizonte, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL) fez graves acusações contra o prefeito reeleito Fuad Noman (PSD), associando-o a conteúdos impróprios, o que levou a uma decisão judicial que determinou a remoção de um vídeo do parlamentar em campanha pelo oponente, Bruno Engler (PL), considerado enganoso. 

Em Fortaleza, alegações falsas sobre a substituição de urnas eletrônicas e a manipulação de áudios que envolveram compra de votos também circularam. Este cenário se agravou em São Paulo, onde mentiras sobre o apoio controverso a candidatos e promessas inexistentes permearam as redes digitais, o que evidencia a urgência de checagens rigorosas para combater as mentiras que podem influenciar a escolha dos eleitores.

Pânico moral disseminado em Belo Horizonte

O deputado federal de identidade evangélica Nikolas Ferreira (PL) divulgou, em seus perfis das redes digitais, em 24 de outubro, um vídeo com acusações ao prefeito candidato à reeleição de Belo Horizonte Fuad Noman (PSD). Na gravação, o parlamentar associa um livro escrito por Fuad a conteúdos de pornografia com “trechos explicitos de sexo que narram o estrupo de uma criança de 12 anos”. 

No vídeo, Nikolas Ferreira também criticou a realização do já tradicional 12° Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, e afirmou que o evento expõe crianças e adolescentes a material inapropriado. “O problema é quando a ficção vira realidade e, pior, chega até seu filho. Em maio deste ano, 2024, na gestão de Fuad, a prefeitura ajudou a realizar o evento”, declarou o deputado, ao insinuar a relação da prefeitura na divulgação de conteúdos inadequados no evento.

Para reforçar o ataque, o deputado recupera a antiga desinformação sobre a suposta distribuição de um “kit gay” pelo governo da presidente Dilma Rousseff  e afirma que escolas distribuem obras “que ensinam sobre a linguagem neutra e abordam a virgindade apenas como uma lenda para controle”. 

O livro criticado por Nikolas Ferreira, de autoria do candidato à reeleição à Prefeitura de Belo Horizonte Fuad Noman, é intitulado Cobiça. Na obra, é contada a história de Sueli em uma viagem ao interior de Minas Gerais, onde ela revive memórias familiares e descobre segredos do seu passado. O livro foi publicado em 30 de junho de 2020 e aborda a ganância humana e suas consequências sociais e políticas. O texto explora como o desejo insaciável por poder e recursos pode corromper indivíduos e instituições, gerando impactos negativos na sociedade.

Durante uma entrevista gravada para o Estado de Minas, Fuad Noman defendeu-se das acusações de Nikolas Ferreira, e afirmou que a divulgação de informações sobre o livro de ficção foi uma tentativa de desqualificá-lo. “Pegaram um livro de ficção, inventaram uma porção de coisa (…) ou leram outro livro, porque o meu livro não fala aquilo que eles tavam falando, mas livro é uma ficção, livro é um romance (…) então isso aí é desespero de quem não tem o que o apresentar, é desespero de quem não conseguiu descobrir nada que afete minha vida. Eu tenho 56 anos de vida pública, 77 anos de idade, minha vida é limpa, clara, transparente, sem nenhum escândalo, sem nenhum momento de nada, sem nenhuma corrupção, então ‘ah vou arrumar um escândalo’ ‘ah, vou inventar, inventaram o livro’”.

Imagem: reprodução/Instagram

Sobre a antiga desinformação sobre “kit gay”, desde 2019 Bereia tem checado o uso do termo, usualmente empregado por políticos ultraconservadores. Ele surgiu como um apelido dado por deputados federais ao material resultante da campanha “Brasil sem Homofobia”, lançada durante governo primeiro governo Lula (em 2004), aprovada no Congresso Nacional. 

O material direcionado a escolas, finalizado em 2011, seria dirigido aos professores e não a crianças e adolescentes. A cartilha explicava conceitos como gênero e sexualidade e sugeria atividades em sala de aula para os alunos refletirem sobre temas como comportamento preconceituoso e analisarem, por exemplo, expressões sexistas na língua portuguesa. Também havia sugestão de materiais audiovisuais para a sala de aula. Organizado por profissionais de educação, gestores e representantes da sociedade civil, o material era composto de um caderno, uma série de seis boletins, cartaz, cartas de apresentação para os gestores e educadores e três vídeos. A pressão dos deputados da base ultraconservadora na Câmara forçou o governo de Dilma Rousseff a suspender a distribuição. 

Desde as eleições de 2018, o caso tem sido usado com discurso enganoso, para criar pânico moral contra candidatos alinhados à esquerda. Afirma-se que o material foi distribuído em escolas para crianças, a fim de propagar uma “ditadura gay”.

A Justiça Eleitoral de Belo Horizonte determinou a remoção do vídeo de Nikolas Ferreira, em 25 de outubro. A decisão respondeu a um pedido de direito de resposta da Coligação BH Sempre em Frente. O juiz da 331ª Zona Eleitoral alegou que o conteúdo continha informações descontextualizadas e inverídicas, com a intenção clara de prejudicar a imagem do candidato. O magistrado esclareceu que o livro em questão, Cobiça, é uma obra de ficção e que o trecho utilizado por Nikolas foi retirado de seu contexto original, que não indica  apoio à violência sexual. 

Quanto ao festival de quadrinhos, a decisão ressaltou que as atividades com alunos da rede municipal foram realizadas sob supervisão pedagógica e que medidas foram implementadas para garantir a adequação do material exposto. A Justiça estabeleceu um prazo de 24 horas para a remoção do vídeo, sob pena de multa de R$ 5 mil por hora de descumprimento. Também foi garantido que a discussão da obra literária não seria censurada, mas a distorção de informações para fins eleitorais seria considerada propaganda disfarçada. A decisão visou combater a propagação de informações inverídicas. As plataformas Meta, X e YouTube também foram notificadas para excluir as publicações.

Em 27 de outubro, Fuad Noman foi reeleito prefeito de Belo Horizonte, com 53,73% dos votos válidos, o que equivale a 670.574 votos, enquanto seu adversário, Bruno Engler (PL), recebeu 577.537 votos, equivalente a 46,27%.

As três falsidades que agitaram a reta final do segundo turno em Fortaleza 

Candidato do PL acusa adversário por uso de IA 

Desinformação que circulou uma semana antes do segundo turno em Fortaleza (CE)  estava em um áudio disseminado em grupos e páginas favoráveis ao candidato de identidade católica Evandro Leitão (PT). Nele, uma voz semelhante à do candidato opositor, o de identidade evangélica André Fernandes (PL), sugere a compra de votos. Em resposta, Fernandes solicitou ao Ministério Público Eleitoral do Ceará e à Polícia Federal a abertura de um inquérito contra seu adversário e mais três pessoas. O candidato alegou que a campanha de Leitão disseminou “conteúdo sabidamente falso e alterado mediante emprego ardiloso de inteligência artificial”.

No áudio, que o candidato do PL afirma ser uma deepfake (técnica que utiliza inteligência artificial para criar vídeos ou áudios falsos, nos quais a imagem ou a voz de uma pessoa é manipulada), é dito: “Daqui pra domingo é derramar dinheiro na mão de pastor, líder comunitário, o que tiver”. Evandro Leitão negou qualquer envolvimento na disseminação do conteúdo e respondeu às acusações, por meio de um vídeo publicado em seu perfil no Instagram, alegando ser André Fernandes o “rei das fake news”, já tendo sido condenado por isto.

Imagem: reprodução/Instagram 

Os advogados de Fernandes apresentaram duas evidências para sustentar a responsabilidade de Leitão na produção do suposto áudio falso: a primeira é que o conteúdo foi inicialmente publicado em um grupo administrado pela campanha do candidato do PT, denominado Zap de Evandro #4; a segunda é que o áudio foi compartilhado no Instagram por um filiado do PT da cidade de Eusébio (CE). Porém, não foram apresentadas provas substanciais que comprovem que o áudio foi gerado por inteligência artificial. Além disso, não foram realizadas perícias sobre o áudio em questão.

Vídeo enganoso distorce reportagens para associar políticos do Ceará ao PCC

Outro conteúdo enganoso que circulou nas redes durante a reta final para o segundo turno em Fortaleza, foi um vídeo manipulado que utiliza imagens do programa Domingo Espetacular, da TV Record, para disseminar uma informação falsa. O conteúdo editado mostra imagens do apresentador Sérgio Aguiar e inclui um texto fictício que liga políticos associados ao governador Elmano de Freitas (PT) à facção criminosa de São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC). A TV Record afirmou, em nota, que o vídeo é uma “manipulação digital” e que as informações nele contidas não foram exibidas em qualquer telejornal do canal.

O vídeo é nitidamente uma montagem: começa com conteúdo original do programa, mas apresenta cortes de áudio e imagem logo aos três segundos. A narração utilizada pertence a matéria, veiculada pela emissora em 2021,  sobre policiais civis e militares flagrados na prática de extorsão de traficantes. Diferente do vídeo falso, que sugere ligações com o PCC, a matéria original mostra a operação policial denominada Gênesis, e não menciona participação da Polícia Federal, como indicado no vídeo manipulado. Além disso, as marcas d’água da emissora desaparecem no terceiro segundo no vídeo falso. As imagens exibidas são diferentes das que constam na reportagem original da TV Record, que mostra gravações de entrevistas e mantém a logomarca da emissora. 

O conteúdo usa principalmente imagens estáticas, e incluem reproduções de portais da internet e fotos, o que é característico das montagens falsas. Além disso, apresenta uma única imagem em movimento da TV Bandeirantes, com sua marca d’água e logotipo. A narração do vídeo manipulado continua utilizando a imagem do apresentador do Domingo Espetacular Sergio Aguiar. 

Mentiras sobre manipulação de urnas eletrônicas no segundo turno 

Conteúdo que acusou a substituição de mais de mil urnas eletrônicas que retiraram votos de André Fernandes foi divulgado por apoiadores do candidato, que foi derrotado por Evandro Leitão. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) relatou, no entanto, que das 5.274 urnas utilizadas no segundo turno em Fortaleza, somente três foram substituídas. A Corte informou, ainda, que nenhum voto computado foi perdido, pois os equipamentos possuem mecanismos de contingência que garantem a preservação dos votos. Dessa forma, é falso que mais de mil urnas tenham sido trocadas

Evandro Leitão (PT) venceu as eleições com 50,38% dos votos válidos, enquanto André Fernandes obteve 49,62%, uma diferença de 10.838 votos. 

São Paulo: campanha final pela reeleição de Ricardo Nunes (MDB) é marcada por disseminação de conteúdo falso 

Avaliado por analistas como o caso mais grave de disseminação de mentira em campanha nas eleições de 2024,  a declaração do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos), em 27 de outubro, no dia das eleições para o segundo turno na capital do estado, gerou muitas reações. Freitas disse em entrevista, sem apresentar provas, que interceptações do serviço de inteligência do estado revelaram que membros de uma facção criminosa orientaram pessoas a votar em Guilherme Boulos (PSOL) para a Prefeitura de São Paulo. 

A informação já havia sido publicada na véspera das eleições, noite de sábado, 26 de outubro, em matéria do Metrópoles, que afirmava que a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo teria interceptado, no mês de setembro, ao menos quatro bilhetes de membros da facção que orientavam voto na chapa do PSOL. “A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo interceptou pelo menos cinco comunicados assinados por membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) orientando o voto da facção nas cidades, na capital paulista e em Santos. No ‘Salve das Eleições’, as ordens são destinadas a familiares, amigos e outros membros da facção”. No dia seguinte, o governador confirmou o fato à imprensa.

O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) informou que não recebeu qualquer relatório sobre o tema e que soube do assunto por meio da imprensa, enquanto a Secretaria de Segurança Pública confirmou que mensagens atribuídas a uma facção criminosa foram interceptadas, sugerindo a escolha de candidatos em várias cidades, inclusive São Paulo. Em defesa, Boulos publicou um vídeo no Instagram, no qual negou qualquer vínculo com o PCC e anunciou que entraria na Justiça para solicitar a cassação de Tarcísio e a inelegibilidade do candidato de identidade católica Ricardo Nunes (MDB), beneficiário da divulgação deste tipo de acusação no dia das eleições.

Imagem: reprodução/Instagram

O secretário nacional de Segurança Pública Mario Sarrubbo contradisse a afirmação de Tarcísio de Freitas, e informou que não houve, entre as investigações relacionadas às eleições, detecção de recomendações de facções para apoiar candidatos durante o segundo turno. Boulos protocolou uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) na 1ª Zona Eleitoral, com a alegação de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. O processo registrado é o de número 0601230-56.2024.6.26.0001. Ricardo Nunes conquistou a reeleição para o cargo de prefeito de São Paulo, com 59,35% dos votos válidos. Guilherme Boulos (PSOL) recebeu 40,65% dos votos. 

Houve, ainda, a propagação de outros conteúdos desinformativos nos últimos dias da campanha para a Prefeitura de São Paulo.

Apoio de  Pablo Marçal (PRTB) a Boulos 

Às vésperas do segundo turno para a eleição à Prefeitura de São Paulo, circulou nas redes conteúdo que afirmava que o candidato derrotado no primeiro turno, Pablo Marçal (PRTB), terceiro colocado, teria declarado apoio a Guilherme Boulos. Não foram identificados registros públicos de que Marçal tivesse manifestado tal apoio

Em entrevista em 25 de outubro, ele afirmou que pretendia anular o voto. As publicações enganosas, que acumularam 150 mil visualizações no TikTok e também circulam no Kwai, afirmaram incorretamente que Marçal apoiaria Boulos. Além disso, essas peças manipulam uma imagem de uma coletiva de imprensa, realizada em 8 de outubro, apresentando-a como um momento de apoio, o que não ocorreu. 

Implantação de linguagem neutra nas escolas por Guilherme Boulos 

Circulou também um conteúdo baseado em pânico moral, que alegava que Guilherme Boulos havia prometido implementar a linguagem neutra nas escolas municipais de São Paulo, caso fosse eleito prefeito. No entanto, tal projeto não consta em seu plano de governo nem em seus discursos, e o próprio candidato desmentiu essa informação durante a campanha. 

A assessoria de Boulos esclareceu que ele “não vai adotar linguagem neutra na rede municipal de ensino, nem nunca propôs algo semelhante”, conforme consta no programa de governo apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O plano incluiu ações para combater a violência e discriminação, expandir programas de apoio à comunidade LGBTQIA+ e melhorar o atendimento à saúde, mas não menciona a adoção da linguagem neutra.

Proposta de taxa para o enterramento de fios feita por Nunes em 2023 nunca foi colocada em prática

Ao final da campanha do segundo turno em São Paulo, a cidade foi atingida por uma forte tempestade que causou queda de árvores, danificou fiação elétrica e prejudicou o fornecimento de energia. O episódio gerou críticas e denúncias contra o atual prefeito, então em campanha pela reeleição Ricardo Nunes de descaso em relação à falta de poda das árvores e à infraestrutura urbana. 

Em meio à crise, o prefeito Ricardo Nunes fez declarações sobre um projeto de aterramento dos fios, e mencionou  uma possível contribuição voluntária de moradores interessados na melhoria. No entanto, emergiram informações que alegam que o prefeito havia sugerido a criação de uma taxa obrigatória na conta de luz para financiar esse projeto. Nunes desmentiu a informação, e esclareceu que a contribuição seria opcional, não obrigatória, e que em “hipótese nenhuma” haveria cobrança compulsória, conforme reafirmado após a repercussão negativa.

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É observada a consolidação do uso de desinformação como estratégia eleitoral. Este processo foi iniciado com as eleições de 2018 e continuou em 2020 e 2022 e nestas eleições municipais se mostra aperfeiçoado e mais intensificado. Bereia alerta leitores e leitoras para a importância da confrontação deste tipo de prática eleitoral que não apenas ameaça a democracia mas retira do eleitorado o direito à informação digna e construtiva. 

Referências:

O Fator. https://ofator.com.br/informacao/justica-determina-remocao-de-video-de-nikolas-ferreira-sobre-livro-de-fuad-noman/. Acesso em: 29 de outubro de 2024.

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G1.https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2024/10/25/justica-eleitoral-remocao-video-nikolas-ferreira-livro-fuad-noman.ghtml. Acesso em: 29 de outubro de 2024.

G1.https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/eleicoes/2024/noticia/2024/10/27/fuad-noman-e-reeleito-prefeito-de-belo-horizonte.ghtml. Acesso em: 29 de outubro de 2024.

G1. https://g1.globo.com/ce/ceara/eleicoes/2024/noticia/2024/10/27/evandro-leitao-e-eleito-prefeito-em-fortaleza.ghtml.  Acesso em: 29 de outubro de 2024.

G1. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/eleicoes/2024/noticia/2024/10/27/tarcisio-diz-que-policia-interceptou-mensagem-de-faccao-orientando-voto-em-boulos-tre-nega-ter-recebido-relatorio.ghtml. Acesso em: 29 de outubro de 2024.

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Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=O2bMyfsOHfM&ab_channel=DomingoEspetacular. Acesso em: 29 de outubro de 2024.

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Metrópoles.https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/bilhetes-interceptados-mostram-indicacoes-de-voto-do-pcc-em-sao-paulo. Acesso em 04 de novembro de 2024. 

Imagem: Tara Winstead/Pexels