Deputada católica repercute afirmação do Papa sobre “ideologia de gênero” ameaçar a humanidade

Circula em espaços religiosos digitais publicação da deputada católica Bia Kicis, em seus perfis de mídias sociais, em que divulga uma fala do Papa Francisco. O conteúdo reforça a campanha de grupos católicos e evangélicos ultraconservadores e de políticos e apoiadores da extrema direita contra a chamada “ideologia de gênero”.

Fonte: X (antigo Twitter) deputada federal Bia Kicis

O que o Papa falou sobre o tema?

O discurso do Papa Francisco foi dirigido em audiência especial com os participantes da  conferência, realizada no Vaticano, nos dias 1º e 2 de março, intitulada “Homem-Mulher: imagem de Deus, para uma antropologia das vocações”, promovida pelo Centro de Pesquisa e Antropologia das Vocações. Já no início do discurso proferido, que foi lido pelo seu colaborador monsenhor Ciampanelli, dado o pontífice estar resfriado, os participantes foram chamados a atenção para os riscos associados à “ideologia de gênero”, argumentando que ela pode apagar as diferenças fundamentais entre homens e mulheres, que são essenciais para a humanidade.  

… gostaria de realçar algo: é muito importante que se realize este encontro, um encontro entre homens e mulheres, porque hoje o perigo mais horrível é a ideologia do género , que anula as diferenças. Pedi que se façam estudos sobre esta ideologia horrível do nosso tempo, que anula as diferenças nivelando tudo; anular a diferença significa anular a humanidade. O homem e a mulher, ao contrário, vivem em fecunda “tensão”. 

Em plateia formada por religiosos e religiosas católicos, Francisco afirmou:

O objetivo desta Conferência é, em primeiro lugar, considerar e valorizar a dimensão antropológica  de cada vocação. Isto remete-nos para uma verdade elementar e fundamental, que hoje precisamos redescobrir em toda a sua beleza: a vida do ser humano é vocação . Não esqueçamos: a dimensão antropológica, que está na base de cada chamada no âmbito da comunidade, tem a ver com uma caraterística essencial do ser humano como tal: ou seja, que o próprio homem é vocação.

No Brasil, políticos conservadores têm divulgado essa fala do Papa como reforço às críticas à chamada “ideologia de gênero”. O termo surgiu surgiu no ambiente da Igreja Católica como reação aos avanços, inicialmente dos movimentos feministas, depois, da pauta LGBTQ+, explicitados no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e no casamento igualitário.

Ideologia de gênero: o Vaticano reage aos avanços de pautas feministas

De acordo com com o teólogo, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa Marcio Ornat, a expressão “ideologia de gênero” começou a ser mencionada nos anos 90, especialmente em textos da Igreja Católica que questionavam a ênfase do conceito de“gênero”pela Organização das Nações Unidas (ONU). 

A introdução do conceito de gênero nas Conferências Internacionais da ONU  sobre Mulheres, em Pequim, e sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, ambas ocorridas na década de 1990, representou um marco significativo na luta contra a desigualdade  entre homens e mulheres, por meio da adoção do conceito de “gênero”. 

O conceito de gênero emergiu no interior das políticas feministas, nos anos 1970. Pesquisadoras da temática articularam diferentes vertentes teóricas e ativismos, que questionaram a vinculação do caráter biológico ao destino social das mulheres, questionando os essencialismos persistentes na vida social. Gênero, nesse contexto, surge como um termo que se contrapõe ao sexo biológico e considera que as desigualdades na distribuição do poder corroboram para a manutenção de preconceitos, opressões e discriminações. 

Contudo, a adoção do conceito nas conferências da ONU não foi recebida de maneira consensual, provocando divergências evidenciadas pelas objeções formalizadas por delegações de diversos países. Em particular, a Santa Sé destacou-se nesse cenário, posicionando-se contrariamente aos direitos sexuais e reprodutivos femininos, e expressando uma oposição enfática ao conceito de gênero proposto nas conferências da ONU, marcando um episódio notável de tensão em debates globais sobre direitos e igualdade de gênero.Com a expansão das discussões sobre a temática de gênero, estas pautas passaram a ser classificadas como ideológicas e contrárias às famílias, uma vez que questionavam a formação familiar nuclear tradicional.

A discussão sobre o termo ganhou destaque na Europa, sobretudo após a publicação do “Lexicon” – Léxico dos termos ambíguos e controversos sobre a vida, a família e as questões éticas, pelo Pontifício Conselho da Família, em 2003, uma obra encomendada pelo Vaticano que aborda gênero, sexualidade e bioética, e ajudou a disseminar o termo na política de vários países, incluindo o Brasil.

“Inicialmente conduzido por representantes do Vaticano, tais críticas ao conceito de gênero entraram na esfera pública por meio de textos escritos pelo então Arcebispo Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, a partir de 1997. Nos textos, o cardeal acusa a ‘cultura moderna’ de promover ideologias que se distanciavam dos preceitos cristãos da família nuclear e seus pressupostos, sustentados na reprodução dos ideais de boa esposa e mãe virtuosa.”

Como Bereia já checou em várias matérias, desde seu surgimento, a expressão “ideologia de gênero” carrega um sentido pejorativo. Por meio dela, setores mais conservadores da sociedade protestam contra atividades que buscam falar sobre a questão de gênero e assuntos relacionados, como sexualidade nas escolas. As pessoas que concordam com o sentido negativo empregado no termo “ideologia de gênero” geralmente temem que, ao falar sobre as questões mencionadas, a escola vá contra os valores da família.

A expressão “ideologia de gênero” não é admitida no mundo acadêmico. Nas universidades, apenas o termo teoria de gênero é reconhecido, e estabelece que gênero e orientação sexual são construções sociais e não apenas determinações biológicas. 

Já para segmentos da extrema-direita, a “ideologia de gênero” é um ataque ao conceito tradicional de família.

Como afirmou a pesquisadora Valéria Vilhena, ouvida pelo Bereia, em 2020:
Essa narrativa foi construída para se opor aos direitos da mulher e da população LGBT. Eles constroem esse discurso para mais uma vez se posicionarem e reforçarem a negação da dignidade humana. Essa é a questão. Porque não existe uma “ideologia de gênero” – algo que se referem como uma “crença”, uma crença que se impõe para destruir a família. 

Na verdade, não existe e nunca existiu uma ideologia de gênero. O que há é a construção de uma narrativa se utilizando do conceito “gênero” que vem dos estudos de gênero, mas que não tem nada a ver com o que dizem. É muito interessante como eles constroem algo em cima do inexistente. 

“Ideologia de gênero” no Brasil 

No Brasil, o termo ganhou notoriedade em  2014, durante os debates no Congresso Nacional para aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE). O   texto   do   relator,   deputado   Angelo Vanhoni (PT-SC) propunha estimular “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da  igualdade  racial,  regional,  de  gênero  e  de  orientação  sexual”. Contudo, encontrou forte resistência de grupos conservadores e religiosos, resultando na retirada desses termos do plano após intensos protestos. 

Fonte: Boitempo

Desde então, a expressão “ideologia de gênero” tem sido usada frequentemente em discursos políticos, principalmente por representantes da direita ultraconservadora, como uma crítica a políticas de igualdade de gênero e direitos LGBTQIAP+. 

A discussão em torno do termo tem sido marcada por controvérsias, acusações de tentativa de imposição de uma visão específica sobre gênero e sexualidade, enquanto defensores argumentam que a educação e discussões sobre gênero são cruciais para combater desigualdades e promover o respeito à diversidade.

Esta trajetória complexa do termo “ideologia de gênero” ilustra a polarização em torno de questões de gênero e sexualidade na sociedade contemporânea, mostrando como conceitos acadêmicos e políticas públicas podem ser interpretados e utilizados de maneira diversa, dependendo dos contextos políticos e sociais.

Papa Francisco e a “ideologia de gênero”

Visto como progressista por muitas de suas posturas em diversos assuntos de interesse público, incluindo a acolhida à comunidade LGBTQIAP+, no entanto, as posições do Papa Francisco em relação às pautas que envolvem a temática de gênero de forma mais ampla não fogem do que o Vaticano estabeleceu com Bento XVI. 

Em diferentes ocasiões, o Papa Francisco denominou a “ideologia de gênero” de “colonização ideológica”, uma “expressão de frustração e resignação”, uma “guerra ao casamento”. Dessa forma, Francisco reafirma o tom pejorativo relacionando gênero a uma “ideologia”, associando-o ao pânico moral: “um perigo para as famílias”.

Meses antes da conferência de março com religiosos e religiosas, em janeiro de 2024, no dia da audiência do Papa com o Corpo Diplomático credenciado junto ao Vaticano, Francisco declarou: “a teoria de gênero é perigosíssima, apaga as diferenças”. Em reportagem do jornal La Stampa, Domenico Agasso, reproduzida pelo IHU-On Line, é avaliado: “Depois de um outono de aberturas ‘progressistas’, em particular para o mundo LGBTQIAPN+, o Pontífice intervém em temas éticos com a firmeza pregada pelos conservadores”. 

Conclusão

Bereia avalia a  publicação da deputada federal Bia Kicis como verdadeira. O conteúdo veiculado pela deputada corresponde à fala do Papa Francisco em conferência realizada no Vaticano, com religiosos e religiosas, neste mês de março. Apesar de o Pontífice manifestar posições progressistas em muitos temas de interesse público, e apregoar o acolhimento da igreja à comunidade LGBTQIA+ e a mulheres, o tratamento que oferece às pautas de gênero seguem o padrão dos conservadorismos político-religiosos, checados por Bereia em outras matérias: negação da abordagem científica da temática de gênero, atribuindo-a a qualificação pejorativa de “ideologia” e uso do pânico moral para convencer.

Referências de checagem:

Vatican News https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2024-03/papa-francisco-ideologia-genero-homem-mulher-antropologia-perigo.html Acesso em 04 MAR 2024 

https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html Acesso em 04 MAR 2024

Vaticano
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2024/march/documents/20240301-convegno-uomo-donna.html 

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/e-falso-que-papa-francisco-segura-bandeira-gay-em-foto/ Acesso em 04 MAR 2024

https://coletivobereia.com.br/igreja-catolica-permite-que-transexuais-sejam-batizados-e-apadrinhem/ Acesso em 04 MAR 2024

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-estrategia-discursiva-e-arma-politica/ Acesso em 04 MAR 2024

https://coletivobereia.com.br/candidato-extremista-nas-eleicoes-argentinas-javier-milei-usa-falsidades-contra-o-papa-francisco-em-campanha/ Acesso em 04 MAR 2024

Instituto de Estudos da Religião

https://iser.org.br/wp-content/uploads/2023/10/Dicionario-para-entender-o-campo-religioso-Volume-1.pdf Acesso em 04 MAR 2024

BBC News Brasil

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/07/130729_papa_gays_entrevista_jp Acesso em 04 MAR 2024

IHU-On line https://ihu.unisinos.br/633393-papa-francisco-se-reune-com-grupo-lgbt-dos-eua-anteriormente-denunciado-pelo-vaticano Acesso em 04 MAR 2024

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/637023-francisco-pedi-para-realizar-estudos-sobre-a-ideologia-de-genero-o-perigo-mais-feio-hoje Acesso em 07 MAR 2024

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/635842-a-teoria-do-genero-e-perigosa-nao-a-substituicao-afirma-papa-francisco#:~:text=%E2%80%9CA%20teoria%20do%20g%C3%AAnero%20%C3%A9,Francisco%20%2D%20Instituto%20Humanitas%20Unisinos%20%2D%20IHU, Acesso em 11 mar 2024

Artigo. Lilian Sales (lilian.sales@unifesp.br). professora Adjunta de Antropologia na Universidade Federal de São Paulo. Mestre e Doutora em Antropologia Social pela USP. https://www.scielo.br/j/ref/a/TvyfD5SHWcmwjHWk5VGYpgH/ Acesso em 04 MAR 2024

DUARTE DE SOUZA, S. O gênero da discórdia. A Igreja Católica e a campanha contra os direitos das mulheres na política internacional: uma abordagem a partir das conferências do Cairo e de Pequim. Religare: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, [S. l.], v. 15, n. 2, p. 483–504, 2019. DOI: 10.22478/ufpb.1982-6605.2018v15n2.42234. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/religare/article/view/42234. Acesso em: 5 mar. 2024.

ROSADO-NUNES, M. J. F. A “ideologia de gênero” na discussão do PNE. A intervenção da hierarquia católica. HORIZONTE – Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 13, n. 39, p. 1237-1260, 30 set. 2015.Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/9499  Acesso em: 5 mar. 2024.

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Foto de capa: Prensa Total/Flickr

Igreja Católica permite que transexuais sejam batizados e apadrinhem

* Matéria atualizada em 18/12/2023 às 14:50

Na primeira semana deste novembro, passaram a circular publicações, em diversos veículos digitais,  com compartilhamentos em perfis de mídias sociais religiosos a respeito da liberação, por parte do Papa Francisco, do batismo de pessoas transexuais e homoafetivas. As publicações também citam a aprovação de que estas pessoas possam apadrinhar casamentos realizados no âmbito católico.

Imagem: reprodução do Instagram

Mídias noticiosas também deram destaque à informação:

Imagens: reprodução do UOL e do Correio Braziliense

Por conta do amplo número de compartilhamentos das publicações e da repercussão de tom crítico com a associação à figura do Papa Francisco, alvo frequente de desinformação, Bereia checou o caso.

Imagem: reprodução do X

Onde surgiu a informação

Bereia consultou diretamente o site do Vaticano  e verificou que, em 14 de julho de 2023, o Dicastério (nome dado aos departamentos do governo da Igreja Católica, que compõem a Cúria Romana) recebeu uma carta de Dom José Negri, Bispo de Santo Amaro (bairro da cidade de São Paulo), contendo questões sobre a possível participação nos sacramentos do Batismo e do Matrimônio, por parte de pessoas transexuais e de pessoas homoafetivas. 

Dom José Negri levantou questões que tinham relação com situações vividas em sua Diocese: “Um transexual pode ser batizado? Um transexual pode ser padrinho ou madrinha de Batismo? Um transexual pode ser testemunha de um matrimônio?.

O documento que registra as respostas referentes às perguntas, foi encaminhado pelo cardeal Víctor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, principal órgão doutrinário da Santa Sé. 

A posição da Igreja Católica

De acordo com o documento, a posição da Igreja Católica sobre o tema reflete o entendimento de que um transexual – que tenha sido submetido a tratamento hormonal e à intervenção cirúrgica de reatribuição de sexo – pode receber o batismo nas mesmas condições dos demais fiéis. Entretanto, deve-se observar situações em que possa gerar escândalo público ou confusão entre os fiéis.

Sobre a função de padrinho ou madrinha, em determinada condições, pode-se um transexual adulto, ainda que tenha sido submetido a tratamento hormonal e à intervenção cirúrgica de reatribuição de sexo. No entanto, como tal função não constitui um direito, a ponderação pastoral exige que isso não seja permitido quando houver perigo de escândalo, gerando desorientação da comunidade eclesial em âmbito educativo. Por fim, em relação a uma pessoa transexual ser testemunha de um matrimônio, o documento afirma que não existe nada na vigente legislação canônica universal, que proíba a uma pessoa transexual de ser testemunha de um matrimônio. 

ATUALIZAÇÃO: O Vaticano também autorizou que padres concedam a bênção a casais de mesmo sexo. Conforme noticiado em seu site oficial, a bênção ainda estaria” fora de qualquer ritualização e imitação do matrimônio. A doutrina sobre o matrimônio não muda, a bênção não significa aprovação da união”. Os padres podem recusar-se a conceder a bênção, se quiserem.

“Ideologia de gênero” e o Vaticano

A publicação oficial da Igreja Católica sobre assuntos que colocam em questão a moralidade cristã,  é significativa no momento em que a discussão sobre a ideia inventada de “ideologia de gênero” é frequentemente acionada. Bereia checou outras diversas matérias sobre o tema, nas quais pode-se observar que a temática de gênero (e as pautas relacionadas) têm livre circulação nas mídias religiosas.

Bereia classifica a afirmação sobre a liberação da Igreja Católica às pessoas transexuais, de se batizar, de poder ser padrinho ou madrinha de Batismo, e poder ser testemunha de um matrimônio, como verdadeira. 

Bereia, porém,  alerta para a associação da orientação com a figura do Papa, com motivações críticas. A orientação foi encaminhada pela Cúria Romana, seguindo os trâmites de seus departamentos, e não é uma decisão isolada do Papa Francisco.

Referências de checagem:

Correio Braziliense.

https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2023/11/6652674-vaticano-permite-batismo-de-pessoas-trans-na-igreja-catolica.html Acesso em 13 NOV 23

Instituto Humanitas

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/634078-a-recomendacao-do-papa-aos-bispos-para-serem-mais-inclusivos-foi-clara-e-categorica Acesso em 13 NOV 23

https://www.ihu.unisinos.br/630703-victor-fernandez-e-grzegorz-rys-os-novos-cardeais-em-quem-os-grupos-lgtbi-mais-confiam Acesso em 13 NOV 23

Vaticano

https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/index_po.htm Acesso em 12 NOV 23

https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_ddf_20231031-documento-mons-negri_po.pdf Acesso em 12 NOV 23

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-12/declaracao-doutrina-da-fe-bencaos-para-casais-irregulares.html Acesso em 18 DEZ 23

Editora Cléofas

https://cleofas.com.br/novo-chefe-de-doutrina-da-santa-se-esta-aberto-ao-debate-mas-alerta-sobre-riscos-de-cisma/ Acesso em 13 NOV 23

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/panico-moral-sobre-ideologia-de-genero-aborto-erotizacao-de-criancas-e-defesa-da-familia-e-usado-para-disputa-eleitoral-com-base-em-desinformacao/ Acesso em 13 NOV 23

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-e-um-dos-temas-explorados-por-quem-produz-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/ Acesso em 13 NOV 23

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Foto de capa: Wikicommons

Um Brasil em fazimento

*Extrato de artigo enviado ao Bereia

Que Brasil queremos” nunca sai da pauta de nossas discussões, especialmente na bases que sofrem o peso de um tipo de Brasil marcado por imensas desigualdades.

Para dar consistência ao projeto-Brasil, importa trabalhar  sobre três eixos dialeticamente imbricados: a educação libertadora, a democracia integral e o desenvolvimento socio-ecológico. Resumidamente, é mister  desenvolver  uma educação libertadora que nos abra para uma democracia integral, capaz de produzir um tipo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentado.

Partimos do pressuposto de que a Terra não tem mais condições de aguentar a depredação produzida pela voracidade produtivista e consumista do ethos do capital. Esta ordem na desordem somente perdura porque se utiliza a força dura e doce  para manter as grandes maiorias  em estado de penúria crônica. Dezoito por cento da população mundial consome, irresponsavelmente, 80% dos recursos não-renováveis com nenhum  sentido de solidariedade geracional e de respeito ao patrimônio natural de toda a vida. 

Com acerto assinalava Celso Furtado: “O  desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de  tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos” (Brasil, A construção interrompida, Paz e Terra 1993. p.76).

Novo paradigma de desenvolvimento

O que  aqui se postula é uma mudança no paradigma do desenvolvimento, indispensável para resguardar a natureza, salvar a humanidade e possibilitar um projeto-Brasil alternativo. A Declaração Sobre o Direito dos Povos ao Desenvolvimento da ONU de 18 de outubro de 1993 assimilava já esta necessidade ao definir que o desenvolvimento é “um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante melhoramento do bem-estar de toda a população e de cada indivíduo na base de sua participação ativa, livre e significativa, e na justa distribuição dos benefícios resultantes dele” (Declaration on the Right to Development, ECOSOC  18.10.1993). Nos acrescentaríamos ainda, no sentido da integralidade, a dimensão psicológica e espiritual.

Portanto, postula-se que a economia, como produção dos bens materiais é meio para a possibilitar o desenvolvimento cultural, social e espiritual do ser humano. Errônea e com funestas consequências  é a visão que entende o ser humano apenas como um ser de necessidades e de desejo de acumulação ilimitada, e por isso da economia como crescimento ilimitado, como se ele fosse meramente um animal faminto e não um ser criativo, com fome de beleza, de comunhão e de espiritualidade. O Papa Francisco, na encíclica Laudato Si, chama este pressuposição de “mentira” (n.106).

Faz-se mister produzir e consumir o que é necessário e decente, e não produzir e consumir o que é supérfluo, excessivo e abusivo. Precisamos passar de um economia da produção ilimitada para uma economia multidimensional da produção do suficiente generoso, para todos os humanos  e também para os demais seres da comunidade de vida à qual pertencemos.

O sujeito central do desenvolvimento, portanto, não  é a mercadoria, o mercado, o capital, o setor privado e o estado, mas o ser humano e os demais seres vivos como os principais documentos sobre a ecologia o enfatizam.

Construção da democracia integral

É dentro deste  contexto que se planteia a questão da democracia integral. Primeiro como valor universal a ser vivido em todos os âmbitos onde o ser humano se encontra com outro ser humano, nas relações familiares, comunitárias, produtivas e sociais. Em seguida como forma de organização política. Seria o sistema  que garante a cada um e a todos os cidadãos a participação  ativa e criativa em todas as esferas de poder e de saber da sociedade. Essa democracia seria, por definição, popular (mais ampla que a democracia burguesa e liberal), solidária (não excluiria ninguém, em razão de gênero, de  raça ou ideologia), respeitadora das diferenças (pluralista e ecumênica), sócio-ecológica (porque incluiria como cidadãos e sujeitos de direitos também o meio-ambiente, as paisagens, os rios, as plantas e os animais).  Numa palavra, uma democracia verdadeiramente integral.

Para ser cidadão-sujeito são exigidos três processos: o primeiro, o empoderamento, isto  é, a conquista de poder  para ser sujeito pessoal e coletivo de todos os processos relacionados com o seu desenvolvimento pessoal e coletivo; o segundo  é  a cooperação para além da competição  e da concorrência, motor da cultura do capital, que faz dos cidadãos protagonistas do bem comum. O terceiro, a autoeducação contínua para exercer sua cidadania e con-cidadania junto com outros sujeitos. Como asseverava Hannah Arendt: alguém pode  conhecer a vida inteira sem se auto-educar.

Educação da práxis

É nesse ponto que o desenvolvimento centrado no ser humano e na democracia integral   se articula com  a educação integral. A educação integral é um processo pedagógico permanente que abrange a todos os cidadãos em suas várias dimensões e que visa educá-los no exercício sempre mais pleno do poder, tanto na esfera de sua subjetividade quanto na de suas relações sociais.  Sem esse exercício de poder solidário e cooperativo não surgirá uma democracia integral nem um desenvolvimento centrado na pessoa e na natureza e por isso  o único verdadeiramente sustentado.

A prática, portanto, é a fonte originária do aprendizado e do conhecimento humano, pois o ser humano é, por natureza constitutiva, um ser prático. Ele não tem a existência como um dado, mas como um feito, como uma tarefa que exige uma prática de permanente construção. Não tendo nenhum órgão especializado, tem que continuamente se construir a si mesmo e ao seu habitat pela prática cultural, social, técnica e espiritual. Isso sublinhou com profundidade o economista e educador popular Marcos Arruda, discípulo de Paulo  Freire, em seu  livro Tornar o real possível (Vozes 2003).

Cabe reconhecer que  conhecimento sozinho não transforma a realidade; transforma a realidade somente  a conversão do conhecimento em ação. Entendemos por práxis exatamente esse movimento dialético entre  a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão da ação transformadora em conhecimento. Essa conversão não apenas muda a realidade, mas muda também o sujeito. 

Práxis, portanto, é o caminho de todos na construção da consciência humana e universal. É acessível a todos os humanos que têm uma prática. O trabalhador manual, portanto, não precisa,  para aprender,  memorizar uma quantidade ilimitada de conteúdos. O essencial é que aprenda a pensar a sua prática individual e social, articulando o local com o global e vice-versa.

A educação da práxis visa atingir esses três objetivos principais:

1. A  apropriação dos instrumentos adequados para pensar a sua prática individual;

2. Apropriação do conhecimento científico, político, cultural e espiritual acumulado pela humanidade ao longo da história para garantir-lhe a satisfação de suas necessidades e realizar suas aspirações;

3. Apropriação dos instrumentos de avaliação crítica do conhecimento acumulado, para reciclá-lo e acrescentar-lhe novos conhecimentos que incluam a afetividade, a intuição, a memória biológica e histórica contida no próprio corpo e na psiqué, os sentidos espirituais como da ética, o da unidade do Todo, da beleza, da transcendência e do amor.

Educação: a maior revolução

Investir em educação, como sempre repetia Darcy Ribeiro, é inaugurar a maior revolução que se poderá realizar na história, a revolução da consciência que se abre ao mundo, à sua complexidade e aos desafios de ordenação que apresenta. Investir na educação é fundar a autonomia de um povo e garantir-lhe as bases permanentes de seu refazimento face a crises que o podem abalar  ou desestruturar. Investir em educação é investir na qualidade de vida social e espiritual do povo. Investir em educação é investir em mão de obra qualificada. Investir em educação é garantir uma produtividade maior. 

O estado brasileiro nunca promoveu a revolução educacional. É refém histórico das elites proprietárias que precisam manter o povo na ignorância e na incultura para ocultar a perversidade de seu projeto social, que é reproduzir seus privilégios e perpetuar-se no poder.

O projeto-Brasil, do Brasil em fazimento, fará da revolução educacional sua alavanca maior, criando o espaço para o povo poder expressar sua alta capacidade de criação artística e inventividade prática, finalmente, para plasmar-se a si mesmo como gostaria de se plasmar.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Vinicius Vieira/Pexels

Suposta matéria do portal G1 sobre Lula mudar a Bíblia viraliza em grupos religiosos

A imagem de um print de matéria com característica visual do portal de notícias G1, do Grupo Globo, com o título “Lula diz: ‘No meu governo, Bíblia vai adotar pronome neutro e não terá mais o nome de Jesus”, circulou intensamente em grupos de igrejas no WhatsApp e em perfis e páginas de mídias sociais com identidade religiosa na terceira semana deste mês de junho.  Com data de 7 de maio de 2022, a postagem, que não divulga a matéria na íntegra, mas apenas a seção “Política”, o título e a autoria de “Astolfo Mendes”, com data, hora e período de atualização, continha a linha fina (com erro ortográfico) “Ex-presidente profere a fala enquanto estava acompanhado por liderenças do Candomblé”.

Imagem: reprodução do Facebook

O G1 e a assessoria de comunicação do ex-presidente Lula desmentiram o conteúdo da imagem, mas, ainda assim, ela continuou sendo compartilhada por vários dias. O projeto de checagem “Fato ou Fake” do G1 afirmou que o portal “não publicou reportagem com esse título” e que “a imagem que circula nas redes sociais é uma montagem obtida por meio de fraude”. Já o projeto de checagem da campanha do ex-presidente “Verdade na Rede” declarou que a postagem é mentirosa e que ela “é coisa de bolsonarista que bota foto de político no livro sagrado”.

De fato, não há registros de qualquer manifestação pública de Lula sobre este tema para se inferir que o candidato à Presidência nas eleições de 2022 tencione realizar tal projeto. Além disto, este tipo de afirmação, baseada em terrorismo verbal para capturar a atenção e gerar compartilhamentos entre cristãos contrários à eleição do ex-presidente, pode ser classificada como bizarra. Conforme instruções básicas para identificação de conteúdo desinformativo nas mídias sociais, material “bizarro”, que cause estranheza por tratar de algo anormal, incomum, absurdo, que chegue a causar incômodo por conta disto, deve ser sempre tratado com suspeita. Neste caso, é anormal, incomum, que um líder político se revista do poder ou se incumba da tarefa de, agindo de forma autoritária, alterar as escrituras de qualquer religião que adote um livro sagrado.

Ademais, o conteúdo induz à intolerância religiosa pois atrela a falsa intenção de alteração da Bíblia à companhia de lideranças do Candomblé. 

Este tipo de terrorismo verbal vem sendo usado contra lideranças demonizadas por grupos que lhes fazem oposição. Bereia já publicou uma verificação sobre o mesmo tema que envolveu o nome do Papa Francisco, alvo de conteúdo falso que dizia que ele cancelaria a Bíblia e proporia um novo livro.

Juntamente com outros projetos de checagem de conteúdo que verificaram a suposta matéria do portal de notícias G1, Bereia classifica a postagem que induz a pensar que Lula mudará a Bíblia como falsa

Bereia também alerta leitores e leitoras sobre este tipo de desinformação que circula em torno das eleições 2022 para enganar cristãos e cristãs com pânico e terrorismo verbal. Qualquer conteúdo que tenha caráter bizarro como “mudar a Bíblia” ou “acabar com/fechar as igrejas” deve ser desacreditado e denunciado. A intenção de quem publica este tipo de conteúdo de forma intencional é desqualificar opositores com mentiras e enganos e usar cristãos, pessoas de boa vontade, tomando-os por crentes ingênuos. Esta ação, que repete ocorridos nas eleições de 2018, representa desprezo à prática democrática em processos eleitorais que devem passar pelo debate de ideias e de projetos de nação.

Referências de checagem:

G1. https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2022/06/13/e-fake-que-lula-disse-que-em-seu-governo-biblia-vai-adotar-pronome-neutro-e-nao-tera-mais-o-nome-de-jesus.ghtml Acesso em: 16 jun 2022.

Lula. https://lula.com.br/lula-nao-vai-alterar-a-biblia-isso-e-coisa-de-bolsonarista-que-bota-foto-de-politico-no-livro-sagrado Acesso em: 16 jun 2022.

Aos Fatos. https://www.aosfatos.org/noticias/lula-nao-disse-que-vai-tirar-nome-de-jesus-da-biblia/ Acesso em: 16 jun 2022.

Foto de capa: Ricardo Stuckert

Templos, igrejas e protestos

Nesses dias, a imprensa ávida por qualquer notícia sensacionalista que legitime denúncias contra movimentos populares e partidos considerados de esquerda, se deleitou com imagens e narrativas do que chamaram de invasão de uma igreja em Curitiba. Autoridades eclesiásticas e civis protestaram contra o desrespeito ao lugar sagrado e o assunto está sendo debatido na própria câmara de vereadores da cidade. 

O debate se dá sobre o fato de os manifestantes terem entrado na igreja depois da missa e terem expressado dentro do templo a denúncia contra o assassinato truculento e cruel de Moïse, jovem congolês, barbaramente torturado e assassinado, em um quiosque na Barra da Tijuca, e também da morte de outro negro, baleado por vizinho policial, que o confundiu com um ladrão. Naquele final de semana, em diversas regiões do Brasil, ocorreram manifestações de protestos contra esses atos extremos de racismo contra negros. Em Curitiba, no centro histórico da cidade, o ato se reuniu em frente a uma Igreja, que foi historicamente de confraria negra. Depois do horário da missa, no final da tarde, os manifestantes entraram na Igreja e encerraram ali o seu protesto pacífico. 

Sobre o fato, podem se fazer várias considerações. Antes de tudo, em termos metodológicos e estratégicos, organizações populares e partidos progressistas tomaram posições críticas em relação ao ocorrido. De fato, o grupo que fazia a manifestação não sofreu nenhuma perseguição. Não fugia de nenhuma repressão e não precisava ter ocupado a igreja, sem permissão dos responsáveis pelo templo. 

Do ponto de vista institucional, todos sabem que a maioria dos eclesiásticos católicos concorda que igrejas sejam usadas para missas de posse de governadores ou prefeitos de direita. No entanto, considera desrespeito ao lugar sagrado qualquer manifestação de categorias populares que possa ser vista como de esquerda. 

Em Roma, o Papa Francisco pode considerar prioritário dialogar com movimentos populares e defender a vida de migrantes africanos, mas essa ainda não é a sensibilidade de muitos ministros e fiéis católicos no Brasil. As pastorais sociais da CNBB e muitos padres e agentes de pastoral participaram dos atos de protesto e de denúncia contra o racismo. Muitos religiosos gritaram com as organizações populares que “vidas negras importam”, mas para muitos cristãos, esse assunto parece não fazer ainda parte do anúncio da fé e da missão da Igreja.  

Na época da ditadura militar brasileira, em Recife, estudantes que protestavam contra a repressão ocuparam uma igreja no centro da cidade. Assim que soube, o próprio arcebispo Dom Helder Câmara foi para a igreja e se colocou lá ao lado dos estudantes até conseguir que eles pudessem sair do templo em segurança. O mesmo ocorreu em Salvador (BA) onde a igreja ocupada pelos rapazes e moças foi a basílica do Mosteiro de São Bento. O abade Dom Timóteo Anastácio não somente abriu as portas da igreja como declarou o Mosteiro como espaço de abrigo e santuário de proteção da juventude. Do mesmo modo, em São Bernardo do Campo (SP), em 1980, a Igreja Matriz foi abrigo para assembleias dos metalúrgicos em greve perseguidos pela ditadura. 

Atualmente, embora em outro contexto político, a sociedade tem direito de cobrar dos responsáveis das igrejas a coerência profética com o evangelho de libertação. Originalmente, o Cristianismo não tinha templos e sim igrejas. Enquanto os santuários se colocam como locais sagrados, igrejas significam espaços de assembleia. 

Quando o apóstolo Paulo chamou as comunidades sobre às quais escrevia como “igrejas”, estava afirmando que eram assembleias de pessoas não reconhecidas como cidadãs pelo império, mas que, nas comunidades cristãs, podiam se reunir e se manifestar como assembleias de cidadãos e cidadãs do reinado divino no mundo. Ainda hoje, quando manifestantes ocupam uma Igreja, de alguma forma, interpelam aos senhores do templo: Qual é o sentido e a missão da Igreja? 

Ao mesmo tempo que desejamos que os movimentos populares sempre se esmerem por respeitar educadamente a todos os ambientes e deem exemplo de diálogo com todas as pessoas com as quais se encontram, pedimos a Deus que os discípulos de Jesus aceitem retomar o caráter profético da fé cristã. 

Mesmo sabendo que a postura do arcebispo e da Arquidiocese de Curitiba tem sido, em geral, mais aberta e solidária, sonhamos com tempos nos quais padres e bispos não somente não se oponham, como fiquem felizes quando suas igrejas forem ocupadas pacificamente por grupos populares que defendem a justiça e a vida para todas as pessoas humanas e na comunhão com todos os seres vivos.

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Foto de capa: Fotografia Curitiba

“A jaula de ferro” do capital produzirá “uma noite polar, gélida, sombria e árdua”?

*Texto escrito no final de 2021

Seguimos ainda em 2021, ano que não acabou porque o Covid-19 anulou a contagem  do tempo por continuar sua obra letal. O 2022 não pôde, por ora, ser inaugurado. O fato é que o vírus colocou de joelhos todos os poderes, especialmente os militaristas, pois  seu arsenal de morte fez-se totalmente ineficaz. 

No entanto, o gênio do capitalismo, a propósito da pandemia, fez com que a classe capitalista transnacionalizada se reestruturasse mediante o Great Reset (a Grande Reinicialização), expandindo a recente economia digital mediante a integração dos gigantes: Microsoft,  Facebook, Apple, Amazon, Google, Zoom e outros com o complexo militar-industrial e de segurança. Tal evento representa a formação de um poder imenso, nunca havido antes. Notemos que se trata de um poder econômico de natureza capitalista  e que, portanto, realiza seu propósito essencial, o de maximização  dos lucros de forma ilimitada, explorando, sem consideração, os seres humanos e a natureza. A acumulação não é meio para um bem viver mas é um fim em si mesmo, vale dizer, a acumulação pela acumulação, o que é irracional.

A consequência desta radicalização do capitalismo  confirma o que  um sociólogo da universidade da Califórnia em Santa Bárbara, William I. Robinson, num artigo recente, bem observou (ALAI 20/12/2021): “À medida em que o mundo vai se livrando da pandemia, haverá mais desigualdade, conflitos, militarismo e autoritarismo e nesta mesma medida aumentarão as convulsões sociais e os conflitos civis; os grupos dominantes se empenharão por expandir o estado policial global para conter os descontentes em massa, vindos de baixo”. Com efeito, utilizar-se-á a inteligência artificial com seus bilhões e bilhões de algoritmos para controlar cada pessoa e a sociedade inteira. Esse brutal poder levará a humanidade para onde?

Sabendo da lógica implacável do sistema capitalista, Max Weber, um dos que melhor a analisou criticamente, um pouco antes de morrer, asseverou: “O que nos aguarda não é o florescimento do outono, nos aguarda uma noite polar, gélida, sombria e árdua (Le Savant et le Politique, Paris 1990, p. 194). Ele cunhou a expressão forte que atinge o coração do capitalismo: ele é uma “jaula de ferro” (Stahlartes Gehäuse) que não consegue romper e, por isso, nos pode levar a uma grande catástrofe (cf. a pertinente análise de M. Löwy, La jaula de hierro: Max Weber y el marxismo weberiana, México 2017). Essa opinião é compartilhada por grandes nomes como Thomas Mann, Oswald Spengler, Ferdinand Tönnies, Eric Hobsbawn entre outros.

Vários modelos de sociedade-mundo estão sendo discutidos para o pós-pandemia. Os mais importantes além do Great Reset dos bilhardários, são: o capitalismo verde, o ecossocialismo, o bien vivir e convivir dos andinos, a biocivilização, de vários grupos e  do Papa Francisco entre outros. Não cabe aqui detalhar tais projetos, coisa que fiz no livro Covid-19: A Mãe Terra contra-ataca a Humanidade (Vozes 2020). Apenas diria: ou mudamos de paradigma de produção, de consumo, de convivência e,  especialmente, de relação para com a natureza, com respeito e cuidado, sentindo-nos parte dela e não  sobre ela como donos e senhores, ou então realizar-se-á o prognóstico de Max Weber: poderemos de 2030 até no máximo 2050, conhecer um armagedon ecológico-social extremamente danoso para a vida e para a Terra.

Neste sentido, meu sentimento do mundo me diz que quem irá destruir a ordem do capital, com sua economia, política e cultura, não seria nenhum movimento ou escola de pensamento crítico. Seria a própria Terra, planeta limitado que não suporta mais um projeto de crescimento ilimitado. A visível mudança climática, objeto de discussão e de tomada de decisão (praticamente nenhuma) das últimas COPs da ONU, o esgotamento crescente dos bens e serviços naturais, fundamentais para a vida (The Earth Overshoot) e a ameaça de  rompimento das principais das nove barreiras do desenvolvimento que não podem ser rompidas a preço do colapso da civilização, são alguns indicadores de uma iminente tragédia. 

Um número significativo de especialistas em clima  afirma que chegamos tarde demais. Com o já acumulado de gases de efeito estufa na atmosfera não poderemos conter a catástrofe, apenas, com ciência e tecnologia, minorar seus efeitos desastrosos. Mas a grande crise irreversível  virá. Por isso se fizeram céticos e  até tecno fatalistas.

Seremos pessimistas resignados ou, no sentido de Nietzsche, adeptos da “resignação heroica”? Estimo, como dizia um pré-socrático: devemos esperar o inesperado, pois, se não o esperarmos, quando ele vier, não o perceberemos. O inesperado pode ocorrer, dentro da perspectiva quântica: o sofrimento atual por causa da crise sistêmica não será em vão; ele está acumulando  energias benfazejas que, ao atingir certo nível de complexidade e de acumulação, darão um salto para uma outra ordem mais alta com um novo horizonte de esperança para a vida e para o planeta vivo, Gaia, a Mãe Terra. Paulo Freire cunhou a expressão esperançar: não ficar esperando que um dia a situação irá melhorar, mas criar as condições para que a esperança não seja vazia, senão que, com nosso empenho, a façamos efetiva.

Creio que esse salto, com a nossa participação, poderá ocorrer e estaria dentro das possibilidades da história do universo e da Terra: do atual caos destrutivo, podemos passar para um caos generativo de um novo modo de ser e de habitar o planeta Terra. A arca de Noé está sendo construída pelos movimentos ecológicos, pelo eco feminismo e pelos modelos alternativos de economia circular, pelos grupos políticos engajados numa biocivilização. É nisso que creio e espero, reforçado pela palavra da Revelação que afirma: “Deus criou todas as coisas por amor porque é o apaixonado amante da vida”(Sabedoria 11,26). Ele não permitirá que terminemos assim tragicamente. Ainda viveremos sob a luz benevolente do sol.

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Imagem de capa: Jeso Carneiro / Flickr

Arcebispo de Aparecida é chamado de comunista em mídias sociais

A missa solene, realizada em 12 de outubro pelo arcebispo do Santuário de Aparecida (SP) D. Orlando Brandes, foi um dos assuntos mais comentados na última semana em mídias sociais. Durante a homilia, na manhã do dia consagrado à santa padroeira do Brasil, segundo a tradição católica romana, que é feriado nacional, o arcebispo pregou contra o armamento, o ódio e a propagação de fake news. Já na parte da tarde, outra missa contou com a presença do presidente da República Jair Bolsonaro, defensor de políticas pró-armamentistas, que recentemente, mais uma vez, criou controvérsia, ao expôr uma criança fardada portando uma arma de brinquedo durante evento oficial.

”Para ser pátria amada, seja uma pátria sem ódio. Para ser pátria amada, uma República sem mentira e sem fake news. Pátria amada sem corrupção”. Após a declaração gravada em vídeo amplamente compartilhada nas mídias sociais, o arcebispo de Aparecida foi acusado de ser comunista, por apoiadores do presidente, que se saíram a público em sua defesa.

Reprodução do Twitter

Contudo, não é a primeira vez que isso acontece. Em 2019, após o Sínodo da Amazônia, convocado pelo Papa Francisco, arcebispo D. Orlando Brandes virou alvo de ataques  após criticar o “dragão do conservadorismo” e acusar a direita de “violenta” e “injusta”. No ano seguinte, durante missa com templo vazio, por conta das medidas de prevenção da covid-19, voltou a citar os “dragões” e criticou as fake news. “Vamos usar a veste da verdade, não de fake news, não de mentiras, a couraça é nossa justiça”, convocou Brandes. 

Apesar do ambiente de intolerância, o sacerdote não abre mão de exercer o “profetismo”. Em entrevista concedida à Band Vale, na época das eleições de 2020, ele foi categórico: “Não podemos deixar de falar pela defesa dos Direitos Humanos, da dignidade da vida, e de salvarmos o mundo através da Amazônia.” Sobre a sua compreensão política afirma que não se deve ver o mundo através das ideologias que, segundo ele, tendem aos interesses pessoais, mas defende que “nós temos um compromisso com a verdade, com aquele que é a Verdade: Jesus, verdade, caminho e vida.”

D. Orlando Brandes integra o quadro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que congrega bispos da Igreja Católica em todo país, e foi nomeado arcebispo de Aparecida pelo Papa Francisco, em novembro de 2016. Durante sua trajetória eclesiástica exerceu diversas funções, de professor a reitor de seminário teológico, e ocupou cargos de presidência dentro da própria CNBB, inclusive. Não existe na biografia recente do religioso associações a partidos ou declarações de preferências políticas. Ademais, a CNBB, em seu canal oficial, afirma que “não se identifica com nenhuma ideologia ou partido político.” 

Comunismo e pânico moral

Os termos “comunismo” e “comunista” têm sido frequentemente usados em postagens de mídias sociais, desde os movimentos reacionários que emergiram no Brasil em 2013, relacionados ao termo “esquerda”. Segundo a pesquisadora e editora-geral do Bereia Magali Cunha (“Do púlpito às mídias sociais”, livro de 2019) é “um termômetro da atmosfera do tempo presente em que o imaginário do ‘perigo comunista’, da ‘ameaça vermelha’, presente historicamente na cultura brasileira é reavivado nos discursos da direita conservadora”.

Esta direita, a partir dos movimentos de junho de 2013, consolidando nos atos pró-impeachment da Presidente Dilma Rousseff (PT), em 2015 e 2016, evocou para si, segundo a pesquisadora, a simbologia das cores verde e amarela da identidade brasileira contra o vermelho da esquerda progressista. Os grupos religiosos conservadores, católico-romanos e evangélicos, se identificaram com tais discursos, como pode ser verificado em várias postagens em mídias sociais no período. 

O comunismo, segundo o “Dicionário de Política” é um ideal político que tem origem na Grécia Antiga, na qual o filósofo Platão, traça um modelo da cidade ideal, que prevê “a supressão da propriedade privada, a fim de que desapareça qualquer conflito entre o interesse privado e o Estado, e a supressão da família, a fim de que os afetos não diminuam a devoção para o bem público” ( Dicionário, p. 204). 

No verbete do “Dicionário de Política” sobre “comunismo”, é explicado que foi no âmbito da civilização cristã que floresceram os primeiros ideais comunistas, por conta da pregação dos Evangelhos sobre a partilha de bens, o despojamento, o valor dos pobres, os cristãos que tinham tudo em comum, e outras orientações encontradas no Novo Testamento e nos escritos dos Pais da Igreja. O texto explica que as utopias comunistas entraram pela Idade Moderna, se concretizaram na Revolução Inglesa do século 15 e emergiram no seio da grande Revolução Francesa, no século 18, a partir da qual floresceram escolas comunistas e socialistas na Europa.

Entretanto, foi com a concepção comunista dos pensadores Karl Marx e Fredrich Engels,  no século 19, com o Manifesto Comunista (1848), que o período contemporâneo passa a discutir o tema. Marx e Engels fazem uma leitura do papel da burguesia, classe dominante, das minorias, na consolidação do capitalismo, critica a exploração da classe proletária, classe dominada, das maiorias. Para superação deste quadro, os pensadores pregam a revolução do proletariado para transformar a sociedade capitalista em sociedade comunista, na qual “o augusto direito burguês será  superado e cada um dará segundo as próprias capacidades e receberá segundo suas necessidades. Para atingir este objetivo é, porém, necessário que as forças produtivas atinjam o máximo desenvolvimento e as fontes da riqueza social produzam com toda sua plenitude (Dicionário, p. 210).

A revolução russa (1917), com a liderança de Vladimir Ilyich Ulianov (conhecido como Lenin), tornou-se símbolo da aplicação dos ideais comunistas, gerando a União Soviética. A partir do governo de Joseph Stalin, encaminhamentos políticos deram destinos dramáticos a uma parcela do movimento comunista, com governos que impuseram a restrição de liberdades civis e a negação de regras sociais pluralistas. 

Por isso, uma diversidade de expressões de partidos e regimes comunistas emergiram na Europa e em outros lugares do mundo, alinhados ou não com a dominante União Soviética. A Guerra Fria, tensão política que colocou Estados Unidos e União Soviética, e seus respectivos aliados, em concorrência, depois da Segunda Guerra Mundial (anos 1950 em diante), passou a alimentar uma disputa ideológica entre capitalistas e comunistas e a ideia de uma divisão dos países em Primeiro, Segundo Mundos, ficando no Terceiro Mundo aqueles considerados subdesenvolvidos. Na América Latina (parte do então Terceiro Mundo), partidos políticos com identidade comunista emergiram ao longo do século 20 e a Revolução Cubana (1956) tornou-se símbolo do movimento comunista no continente.

É neste período da Guerra Fria que emerge um forte sentimento anticomunista (que também é um verbete do “Dicionário de Política”). O termo ”comunista” passa a ser usado de forma pejorativa e acusatória, distante do sentido original da palavra relacionada ao movimento político que representava o comunismo. Partidários ou simpatizantes de regimes comunistas ou do ideal comunista passaram a ser tratados como inimigos da democracia. 

O “inimigo das religiões”

Este sentimento foi alimentado de forma ameaçadora entre grupos religiosos, que eram apresentados como alvos do regime comunista, defensor da “religião como ópio do povo” (uma leitura reducionista de um dos escritos de Marx e Engels) e atuaria para pôr fim a todas as religiões.

Vários estudos indicam o lugar das mídias na demonização do comunismo e dos comunistas, em alinhamento com os Estados Unidos em seus aliados durante a Guerra Fria. No Brasil, segundo os estudos de Bethania Mariani, esta representação negativa se fixa no noticiário no Brasil dos anos 1930. Ela diz que as matérias jornalísticas da época não assinadas apresentavam o comunismo como uma “doutrina ou ideologia perigosa para o Brasil” e “os comunistas como inimigos astuciosos – os maus cidadãos ou como alguns brasileiros ingênuos que se deixaram levar por ideias falsas”. Por outro lado, os demais brasileiros, os não-comunistas, eram representados como patriotas e democratas. 

Esta noção alcançou seu auge no período pré-ditadura civil-militar e alimentou o golpe de 1964 e os 21 anos do regime. A partir dos anos 80, com os processos de redemocratização do país, houve momentos de enfraquecimento desta compreensão (com a queda dos regimes socialistas no Leste Europeu e o fim da União Soviética) mas surgiram novos significados dados a elas, com a atribuição da noção de “ameaça vermelha” às esquerdas. 

No entanto, é com o surgimento de militâncias de direita e extrema-direita, a partir de 2013, que levaram à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência, que apareceu o significado da salvação do Brasil de uma ditadura comunista que estava em processo de consolidação, como afirma a pesquisadora Helcimara Telles.

Nos discursos das manifestações de rua e de perfis em mídias sociais, uma nova configuração do anticomunismo se materializava: comunistas seriam todos os que propagam justiça econômica (defesa de programas de distribuição de renda, por exemplo), advogam os direitos humanos, em particular os das minorias, e reivindicam e atuam na superação de violência racial, cultural, de gênero, de classe.  As esquerdas, em consonância com os governos do PT, são identificadas como as defensoras destas “políticas comunistas” e seus militantes classificados como anomalias sociais: “esquerdopatas”. Emerge uma nova face do anticomunismo: o antipetismo. Este discurso está intensamente presente nas postagens de perfis relacionados à direita e à extrema-direita em mídias sociais e são alimentadas por muitos grupos religiosos.


É neste contexto que emergem as acusações do tipo que foram publicadas contra D. Orlando Brades e circulam amplamente em espaços digitais contra opositores do governo de Jair Bolsonaro. Conforme os estudos aqui apresentados, elas servem para alimentar o pânico moral contra pessoas críticas da conjuntura política do país, especialmente entre grupos cristãos. Segundo tais (antigos) conteúdos, até os dias de hoje comunistas atuam para “fechar as igrejas” e proibir as religiões, o que se configura uma falsidade na forma como o movimento comunista historicamente se expressa no Brasil. São vários os historiadores que comprovam em pesquisas que nunca houve nem existe possibilidade de um regime comunista no Brasil.

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Bereia classifica como falsa a afirmação de que o arcebispo de Aparecida D. Orlando Brandes seja comunista.  Não há registros da ligação do arcebispo católico com esta tendência política ou com partidos identificados como comunistas. O termo comunista tem sido utilizado de forma pejorativa, como falsa acusação que surge da intolerância a posições políticas divergentes e é uma ameaça à liberdade de expressão, alimentando medo na população através da sustentação de “bichos-papões” que buscam impedir o desenvolvimento de consciências e posturas críticas.

Referências:

Sermão 2020. ​​https://www.youtube.com/watch?v=wjeXyW4qVZ8 Acesso 15: Out 2021.

Biografia. https://arqaparecida.org.br/Arquidiocese/Arcebispo Acesso 15: Out 2021.

Entrevista https://www.youtube.com/watch?v=e8IhyUtNQqQ Acesso 15: Out 2021.

Mensagem CNBB. https://www.cnbb.org.br/mensagem-da-cnbb-ao-povo-de-deus-aprovada-na-56a-ag/. Acesso em:  15 Out 2021.

Magali N. Cunha. Do púlpito às mídias sociais. Evangélicos na Política e ativismo digital. Curitiba, Appris, 2019.

Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/17973/material/Norberto-Bobbio-Dicionario-de-Politica.pdf  Acesso em: 18 out 2021.

Bethania Sampaio Correa Mariani. O comunismo imaginário. Práticas discursivas da imprensa sobre o PCB (1922-1989). Tese de Doutorado (Curso de Linguística). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1996. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/270690 Acesso em: 18 out 2021.

Helcimara Telles. A Direita Vai às Ruas: o antipetismo, a corrupção e democracia nos protestos antigoverno. Ponto e Vírgula, 2016. https://revistas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/view/29895 Acesso em: 18 out 2021.

Correio do Povo, 8 nov. 2014. Disponível em: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2014/11/6646/a-psicologia-do-anticomunista-pos-tudo/ Acesso em 18 out 2021

Agência Pública, https://apublica.org/2019/04/1964-o-brasil-nao-estava-a-beira-do-comunismo-diz-historiador/ Acesso em: 18 out 2021.

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Foto de capa: Thiago Leon / Santuário Nacional de Aparecida/Divulgação

Bispo da Assembleia de Deus Abner Ferreira participa de encontro inter-religioso no Vaticano

Circulam em grupos de WhatsApp evangélicos fotos e notas que colocam em dúvida a participação do Bispo Presidente da Assembleia de Deus – Ministério de Madureira Abner Ferreira, em evento no Vaticano. O Bispo, de fato, esteve presente na conferência “Fé e Ciência: Rumo à COP 26” cujo anfitrião foi o líder máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, Papa Francisco. O encontro reuniu cientistas e outros 22 representantes de diversas religiões. 

De acordo com o sociólogo e secretário-executivo adjunto do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Clemir Fernandes, que colaborou para a participação do Bispo no evento, Abner foi convidado pela Embaixada do Reino Unido em Brasília através de contato com o ISER. O Instituto possui conexões internacionais com movimentos ambientais inter-religiosos. 

Segundo Clemir, “o evento possuía uma agenda muito clara, tratando de mudanças climáticas, a partir da ciência e compromisso com educação. O convite às lideranças religiosas globais veio através da percepção do sistema ONU de que o apoio e a mobilização das religiões são muito importantes para incidência nessa agenda”. Ele acrescentou que, por isso, o Reino Unido, sede da COP26, em conjunto com a Itália, presidente do Grupo dos 20, promoveu o encontro em diálogo com o Vaticano.

Imagem: reprodução do Youtube

Abner Ferreira discursou por cerca de cinco minutos na Sala das Bênçãos, no Vaticano, representando a Convenção Nacional Das Assembleias de Deus do Ministério de Madureira (CONAMAD), na pessoa de seu Presidente Vitalício Bispo Primaz Manoel Ferreira, pai de Abner, e de seu irmão, Presidente Executivo Bispo Samuel Ferreira.

Na fala, o bispo pentecostal, único representante da América do Sul na conferência, destacou que “a principal tarefa da Igreja é anunciar as Boas Novas de salvação em Cristo Jesus, mas isso não a isenta de preocupar-se com a questão ecológica. Foi Deus quem responsabilizou o homem sobre esta tarefa, ‘Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e guardar’ (Gênesis 2:15)”. Ele enfatizou que a preservação do meio-ambiente não é responsabilidade somente dos governantes. O discurso em vídeo pode ser conferido na íntegra aqui.

Fé e Ciência: Rumo à COP 26

Sediado no Vaticano, o encontro ocorreu nos dias 4 e 5 de outubro com objetivo de fazer um apelo às autoridades participantes da COP 26 – Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada anualmente. Visando discutir a redução das emissões de gases do efeito estufa, a 26ª conferência será entre 31 de outubro e 12 de novembro em Glasgow, na Escócia.

Em meio a discursos e debates, o Papa e líderes das representações religiosas ortodoxa, islâmica, judaica, jainista, sikh, protestante e evangélica assinaram um documento no qual ressaltam a importância do comprometimento dos países para alcançar as metas climáticas. O texto aponta que os Estados responsáveis ​​por parcelas significativas de emissões de gases do efeito estufa devem fornecer um “apoio financeiro substancial” às comunidades mais vulneráveis à crise climática. Os religiosos, por sua vez, comprometeram-se a promover iniciativas educacionais e culturais com o intuito de desenvolver uma consciência ambiental que possa levar seus fiéis a terem estilos de vida mais sustentáveis.

Após a assinatura, o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé Matteo Bruni, convidou os presentes a um momento de oração “levando no coração sobretudo os mais pobres e marginalizados, aqueles que primeiramente e de maneira mais forte sofrem os danos causados pelas mudanças climáticas”. Os líderes religiosos realizaram orações silenciosamente, cada um de acordo com seu próprio credo.

O documento foi entregue pelo Pontífice ao presidente da COP26 Alok Sharma, e ao Ministro das Relações Exteriores da Itália Luigi Di Maio. As três páginas do discurso proferido pelo Papa na ocasião também foram entregues.

Imagem: reprodução do YouTube

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Bereia classifica como verdadeiras as postagens em mídias sociais sobre a participação do Bispo Presidente da Assembleia de Deus – Ministério de Madureira Abner Ferreira, no evento “Fé e Ciência: Rumo à COP 26” no Vaticano, liderado pelo  Papa Francisco. A presença de Abner Ferreira foi registrada em suas mídias sociais e confirmada nas mídias do Vaticano.

Referências:

Youtube – Vatican News. https://www.youtube.com/watch?v=w6E4IUyUZc4&t=5342s Acesso em: 10 out 2021

Instituto de Estudos da Religião. https://www.iser.org.br/noticia/fe-no-clima/fe-e-ciencia-pelo-clima/ Acesso em: 10 out 2021.

Missão Somos Um. http://missaosomosum.com.br/2021/10/08/bispo-abner-ferreira-lider-da-iead-ministerio-madureira-encontra-se-com-papa-francisco-no-vaticano/ Acesso em: 10 out 2021.

UN Climate Change Conference UK 2021. https://ukcop26.org/ Acesso em: 10 out 2021.

CNN. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-o-que-e-cop26-conferencia-da-onu-para-evitar-catastrofe-climatica/ Acesso em: 10 out 2021.

Vatican News. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-fe-ciencia-vaticano-cop-26-glasgow.html Acesso em: 11 out 2021

Vatican Newshttps://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2021-10/fe-ciencia-cop-26-lideres-religiosos-assinatura-apelo-al-tayyib.html Acesso em: 11 out 2021

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Imagem de capa: YouTube do Vatican News

“Ideologia de gênero”: estratégia discursiva e arma política

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Teresinha Ferreira Leite Matos

A “ideologia de gênero” é um inimigo criado pelo Vaticano? A “ideologia de gênero” é uma invenção? Ela deve ser objeto de análise mais aprofundada? A partir da pergunta “Qual o lugar da “ideologia de gênero” no cenário (neo) conservador?” foram suscitadas, durante o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina, essas e outras perguntas. O objetivo deste texto é localizar onde e quando o termo surgiu e que trajetórias foram traçadas em seu processo de disseminação.

“Ideologia de gênero” é uma “invenção” da Igreja Católica e faz parte da estratégia de negar os avanços dos movimentos feministas e LGBTQ+, explicitados no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e casamento igualitário. Parece que a “ideologia de gênero” se tornou um fenômeno em si e carece ser estudada mais profundamente. O constructo se traduz em estratégia discursiva considerada precária epistemologicamente, mas eficaz na formação da opinião pública (Lionço, 2020), e também com eficácia política, vide o presidente Jair Bolsonaro que foi eleito em 2018 usando, dentre outras bandeiras ultraconservadoras, o combate à “ideologia de gênero”.

A “ideologia de gênero” é vista como categoria conservadora produzida nos muros do Vaticano, durante os papados de João Paulo II e Bento XVI. Inventaram um “inimigo” com o propósito de restaurar a ordem moral calcada nos valores tradicionais, que imaginam ameaçada. Embora os conceitos por trás da ideia de “ideologia de gênero” sigam importantes no papado de Francisco, a maneira como suas falas reverberam na opinião pública traz complexidades para a análise.

Reprodução, Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp

O Padre Paulo Ricardo, considerado, segundo as pesquisas do GREPO, um mediador cultural para o tema que ajuda a disseminar o termo no Brasil, quando analisa a questão nunca cita o Papa Francisco, reforçando a personalidade ambígua do papa atual que se nega a abençoar os casais homossexuais, mas é reconhecido como progressista por boa parte da sociedade brasileira.

Os documentos da Igreja Católica do papado de Francisco não utilizam o termo “ideologia de gênero” em português, como aponta levantamento feito na pesquisa “Feminismo e religião: uma análise do pensamento do Papa Francisco sobre a “ideologia de gênero”, objeto do seminário. Curiosamente são referenciados apenas no inglês termos gender ou gender theory. Mas nas redes sociais e blogs, católicos conservadores e padres – além dos políticos e a mídia em geral – falam amplamente dessa “ideologia de gênero”. Nos 25 vídeos produzidos pelo canal do YouTube do Padre Paulo Ricardo (Christo Nihil Praeponere), analisados na pesquisa, entre 2012 e 2020, 15 registram o descritor “ideologia de gênero”.

Desde a década de 1990, a Igreja Católica começou a atuar fortemente por meio das suas lideranças leigas conservadoras em conferências internacionais para que o termo gênero fosse retirado dos documentos oficiais da ONU. Dale O´Leary, ativista católica norte-americana, iniciou essa “guerra” semântica com sua obra “Gender Agenda”, lida e reproduzida por ativistas antigênero no mundo todo. Essa atuação antigênero, também abraçada pelos evangélicos neopentecostais, foi tomando corpo nos países do Norte e nas primeiras décadas do século XXI em países do Sul Global, especialmente na América Latina. Ela chega ao grande público por meio das redes sociais pelas palavras e vozes de padres, pastores e políticos ultraconservadores. Os pastores a “emprestaram” dos católicos e hoje estão entre os principais articuladores do termo na arena pública.

No Brasil, a campanha antigênero ganhou relevância em 2014 e foi impulsionada pelas discussões do Plano Nacional de Educação. Ele foi debatido na Câmara Federal e, depois, em estados e municípios brasileiros. Essa “cruzada santa” continua hoje nos legislativos municipais. Vereadores eleitos em 2020 com a bandeira das campanhas antigênero ameaçam fechar escolas que usem o pronome neutro com pessoas não-binárias. Onze dos 63 vereadores apoiados por Bolsonaro fizeram propostas contra a linguagem inclusiva (0 Globo, março de 2021).

Dessa forma, podemos começar a responder a algumas das perguntas colocadas no início do texto. Sim, a “ideologia de gênero” é uma invenção do Vaticano, um conceito elaborado para taxar de “ideológico” as teorias de gênero e a defesa de direitos. É um conceito também eficaz, que passou a fazer parte do vocabulário e das estratégias de diferentes setores conservadores, como padres e leigos católicos, evangélicos e políticos. O aprofundamento da análise do termo, assim, pode ajudar a entender as estratégias do campo conservador nos países da América Latina.

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Referências

Caetano, Guilherme. “Vereadores eleitos alinhados ao presidente priorizam ‘ideologia de gênero’ nas câmaras municipais. Com foco no combate à pandemia, projetos não avançam”. O Globo, 28/03/2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/vereadores-eleitos-alinhados-ao-presidente-priorizamideologia-de-genero-nas-camaras-municipais-24944513

Lionço, Tatiana (2020). “’Ideologia de Gênero’ como elemento da retórica conspiratória do ‘globalismo’”. Em: Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp, pp. 373-392.

Seminário Internacional “Catolicismos, direitas cristas e “ideologia de gênero”, março/abril de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m0fG3Wbh1Dk&t=2831shttps://www.youtube.com/watch?v=FSz17pFHgik&t=2495s

 Vaggione, Juan Marco; Machado, Maria das Dores. “Religious Patterns of Neoconservatism in Latin America”. POLITICS & GENDER 16(1) 2020.

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Teresinha Ferreira Leite Matos, jornalista, mestra em Ciência da Religião pela PUC/SP e integrante do Grepo.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de Capa: Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp (Reprodução)

Campanha da Fraternidade Ecumênica é alvo de desinformação e ataques

A Campanha da Fraternidade que, em 2021, é ecumênica tem sido alvo de desinformação e ataques de grupos católicos fundamentalistas nos últimos dias. Os ataques têm como vítima principal a pastora luterana, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) Romi Márcia Bencke, que está à frente da realização da campanha 2021. A pastora admitiu ter sofrido agressões pelas mídias sociais, o que tem gerado, inclusive denúncias judiciais. 

Romi Bencke acredita que a campanha de difamação contra ela também tenha motivação para além da religião. “Avalio que esses ataques têm muita relação com o pedido de impeachment que a gente protocolou na Câmara algumas semanas atrás”, diz a secretária-geral do CONIC. Ela foi uma das lideranças religiosas que esteve em Brasília para protocolar o documento que pede o impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), assinado por um grupo de 380 líderes católicos e evangélicos. 

O que é a Campanha da Fraternidade Ecumênica? 

A Campanha da Fraternidade ocorre no cerne da Igreja Católica do Brasil há mais de 50 anos, sob responsabilidade da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB). Desde os anos 2000 a campanha é realizada de forma ecumênica, a cada cinco anos, e conduzida pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), reunindo diversas denominações cristãs e movimentos. 

A campanha de 2021 tem como tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, com o  objetivo principal: “Através do diálogo amoroso e do testemunho da unidade na diversidade, inspirados e inspiradas no amor de Cristo, convidar comunidades de fé e pessoas de boa vontade para pensar, avaliar e identificar caminhos para a superação das polarizações e das violências que marcam o mundo atual”. 

Em 2021, participam da campanha, organizada pelo CONIC, a Igreja Católica Apostólica Romana, por meio da CNBB; Aliança de Batistas no Brasil; Igreja Episcopal Anglicana; Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil; Presbiteriana Unida; Sirian Ortodoxa de Antioquia; Igreja Betesda (igreja convidada); e CESEEP, organismo ecumênico. O Papa Francisco enviou uma mensagem em apoio à CFE 2021 bem o secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas.

Desinformação sobre a CFE e ataques à coordenação 

Entre os vários conteúdos de ataque à CFE 2021 e à coordenação da Pastora Romi Bencke e da CNBB, está um vídeos de grande repercussão, publicado pelo pregador e influenciador católico Anderson Reis. As declarações de Anderson Reis em seu canal do Youtube disseminam desinformação sobre o tema. 

Os ataques à pastora Romi Márcia Bencke e à CNBB se baseiam em afirmações falsas. No vídeo, o autor afirma:

Essa pastora é a favor do aborto, feminista e a favor da ideologia de gênero. Isso é uma agenda que vem sendo imposta para nós e depois dessa pandemia avançou com uma velocidade supersônica. E o dever da igreja que deveria ser uma resistência profunda contra essas trevas do quinto dos infernos está permitindo no Brasil um documento cuja alma desse documento é a favor de tudo isso

Anderson Reis

“Essa pastora é a favor do aborto” diz o influenciador aos 0:43 segundos do vídeo. Anderson Reis realiza aqui prática comum na desinformação, que é mudar o contexto de declarações e favorecer interpretações rasas do conteúdo. 

A pastora Romi Márcia Bencke, registra sua posição sobre o tema no artigo para a Open Society Foundation: é a favor da legalização do aborto, o que diz respeito a uma posição distinta de ser a favor do aborto.

A legalização do aborto é a existência de uma legislação que ampare a mulher que opte por abortar. Envolve acompanhamento psicológico das gestantes, condições específicas para seu cumprimento, e tem um papel relevante no combate às clínicas clandestinas.

Um estudo publicado em 2013, por Karla Ferraz dos Anjos, Vanessa Cruz Santos, Raquel Souzas e Benedito Gonçalves Eugênio, expõe a realidade das mulheres que realizam abortos clandestinos: tem maiores taxas de mortalidade, se encontram desamparadas e geram custos sociais e econômicos para os sistemas de saúde do país. Outro estudo, de Wendell Ferrari e Simone Peres, mostra como a falta de amparo leva a tomadas de decisão trágicas entre jovens que recorrem ao aborto clandestino.

Desta forma, ser a favor da legalização do aborto é se colocar contra o aborto clandestino, e não a favor de que se aborte. A questão é recorrente em debates feministas e busca esclarecer essa diferença primordial entre o direito a se tomar uma atitude e o apoio à atitude.

“O aborto não é um tema bíblico. Como apontou a Pra. Lusmarina Campos Garcia em audiência ao STF existem apenas dois textos no Primeiro Testamento que fazem referência à prática do aborto. O primeiro, em Êxodo 21:22- 23, determina que se uma mulher, por estar envolvida na briga entre o seu marido e outro homem, for ferida e abortar, o agressor deve pagar uma indenização para o marido. Isto significa que, à época, a perda do feto em decorrência de uma agressão sofrida não era considerada grave e passível de penalidade maior, uma vez que o feto não era considerado um “ser vivo”, diz a pastora Romi Bencke no seu artigo.

A segunda situação é ainda mais marcante: “Números 5:11-34, que relata um aborto ritual praticado pelo sacerdote.  Se a mulher abortasse estava comprovado que ela tinha sido infiel e o marido podia puni-la, inclusive com a morte por apedrejamento. Ressalte-se que a punição era por causa da infidelidade e não por causa do aborto realizado”, conclui a pastora, destacando que o debate em torno do aborto comumente se pauta pelo mandamento “não matarás”. “Como pode-se ver, não era considerado vida”, conclui.

Anderson Reis usou de um conteúdo descontextualizado em relação à pastora Romi Bencke para agredi-la, atacando também a CFE. 

O fantasma da ideologia de gênero

Anderson Reis também acusa a CFE 2021 de ser a favor da falaciosa “ideologia de gênero”. Ao acessar o texto base da campanha, Bereia verificou que a palavra “gênero” aparece três vezes no documento, nos itens 67 e 125, destacando a questão da violência contra a mulher:

“Os dados nos mostram quem são as pessoas atingidas pelo sistema de violência. As mulheres, em especial as negras e indígenas, são impactadas em todas as dimensões da sua existência. Observar esta realidade evidencia a necessidade de se discutir as questões de gênero, não se limitando à igualdade entre os sexos, mas, compreendendo que a libertação das mulheres da situação histórica de opressão passa pela discussão da propriedade privada, da divisão sexual do trabalho, da laicidade do Estado e da Teologia quando impõe um patriarcado como modelo divino de hierarquia social. Além disso, é importante salientar que as relações sociais de classe, de gênero, de raça, de etnia estão historicamente interligadas.”

“(…) Efésios (2,1-10) alerta para a necessidade premente de se aceitar plenamente as pessoas, que são diferentes, e ver nas diferenças a riqueza do corpo de Cristo. Não é possível estar com Deus e, ao mesmo tempo, discriminar e desrespeitar as outras pessoas por causa das suas diferenças étnicas, religiosas ou de gênero.” 

Texto-base da CFE

O texto também se manifesta contra a violência contra pessoas LGBTQI+ no item 68:

“Outro grupo social que sofre as consequências da política estruturada na violência e na criação de inimigos, é a população LGBTQI+. O já citado Atlas da Violência de 2020, mostra que o número de denúncias de violências sofridas pela população LGBTQI+ registradas no Dique 100 no ano de 2018 foi de 1685 casos. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia apresentados no Atlas da Violência 2020, no ano de 2018, 420 pessoas LGBTQI+ foram assassinadas, destas 164 eram pessoas trans. Percebe-se que em 2011 foram registrados 5 homicídios de pessoas LGBTQI+. Seis anos depois, em 2017, este número aumentou para 193 casos. O aumento no número de homicídio de pessoas LGBTQI+, entre 2016 e 2017, foi de 127%. Estes homicídios são efeitos do discurso de ódio, do fundamentalismo religioso, de vozes contra o reconhecimento dos direitos das populações LGBTQI+ e de outros grupos perseguidos e vulneráveis.”

Texto-base da CFE

A defesa da vida de mulheres e da população LGBTQI+ é relacionada, pelo influenciador católico, como uma “ideologia” em sentido negativo, sendo, portanto, desqualificada.

Bereia já publicou em verificação anterior sobre o fantasma da “ideologia de gênero”, termo falacioso que é objeto de muita desinformação, especialmente entre grupos religiosos. Como demonstra a matéria, líderes políticos e outros grupos de tendência conservadora têm se apropriado dessa pauta para ganhar adesão política, por meio de pânico moral

Consultada por Bereia, a coordenadora nacional do movimento Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG) professora Valéria Vilhena explica que não existe e nunca existiu uma “ideologia de gênero”. “Essa narrativa foi construída para se opor aos direitos da mulher e da população LGBT. Eles constroem esse discurso para mais uma vez se posicionarem e reforçarem a negação da dignidade humana. Essa é a questão. Porque não existe uma “ideologia de gênero” – algo que se referem como uma “crença”, uma crença que se impõe para destruir a família (…) O que há é a construção de uma narrativa se utilizando do conceito “gênero” que vem dos estudos de gênero, mas que não tem nada a ver com o que dizem”, declara.

Texto-base não foi redigido por uma só pessoa

Outra acusação de Anderson Reis, no vídeo que circula nas mídias sociais, é que o texto-base da CFE 2021 é de autoria de uma só pessoa, não tendo a participação da CNBB.

O CONIC publicou nota desmentindo esta afirmação::

“A redação do Texto-Base foi resultado de um processo coletivo de construção, que iniciou no final de 2019. Teve participação direta de pessoas de diferentes áreas do conhecimento, em especial, sociologia, ciência política e teologia. A parte bíblica do Texto contou com a colaboração de biblistas de diferentes igrejas cristãs. Todas pessoas com profundo conhecimento bíblico. Depois de escrito, o Texto-Base foi amplamente discutido por uma Comissão Ecumênica formada por 8 pessoas, sendo 6 indicadas oficialmente pelas igrejas-membro do CONIC, uma igreja convidada e um organismo ecumênico.”

Nota do CONIC

A CNBB publicou nota em que ressalta que a CFE é marca e riqueza da Igreja Católica no Brasil e diz que lhe cabe “cuidar dela, melhorá-la sempre mais por meio do diálogo, assim como nos cabe cuidar da causa ecumênica, um ideal que se nos impõe”.

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Bereia conclui que as informações do vídeo sobre a CFE são enganosas e buscam gerar pânico moral em torno dos temas do aborto e do fantasma da “ideologia de gênero”. O texto-base da campanha, na verdade, defende o fim da violência contra mulheres e pessoas LGBTQI+. 

A Campanha da Fraternidade ocorre desde 1964 e tem como objetivo promover a união entre pessoas de diversas manifestações de fé, tendo apoio do próprio Papa Francisco e de outros líderes religiosos mundiais. 

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Matéria atualizada em 11 de março de 2021 às 9h14 para correção de dado sobre ano de início da CFE.

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Foto de capa: CONIC/Reprodução

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Referências 

Nota da CNBB, https://www.cnbb.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Nota-da-presid%C3%AAncia-da-CNBB-CFE-2021.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

Nota do CONIC, https://conic.org.br/portal/noticias/3776-leia-a-integra-do-texto-base-da-campanha-da-fraternidade. Acesso em: 09 mar. 2021.

Artigo de Romi Márcia Bencke, https://www.cfemea.org.br/images/stories/publicacoes/laicidade_direito_aborto.pdf. Acesso em: 09 mar. 2021.

Entrevista de Romi Márcia Bencke, http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606498-bolsonaro-sabe-jogar-muito-bem-com-a-religiao-entrevista-com-a-pastora-romi-bencke. Acesso em: 09 mar. 2021.

Texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica, https://www.conic.org.br/portal/files/cf_texto_base_2021.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/o-presidente-do-brasil-e-a-falaciosa-ideologia-de-genero/. Acesso em: 10 mar. 2021.

Cristofobia, uma estratégia preocupante

O presidente Jair Bolsonaro, no dia 22 de setembro de 2020, lançou no seu discurso de abertura do encontro anual da Organização das Nações Unidas (ONU), um termo que teve repercussão na imprensa nacional e internacional. Após fazer digressões sobre a situação econômica do país, a crise ambiental, as consequências da pandemia, relações internacionais, com foco na Venezuela, o Sr. Presidente pronuncia a seguinte frase: “faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. O discurso continua em direção ao Oriente Médio, prestando solidariedade ao Líbano, atingido recentemente por uma explosão portuária e acenando para parcerias com o Estado de Israel. O discurso é encerrado com uma frase que declara o Brasil, um Estado laico, como sendo: “um país cristão e conservador e [que] tem na família sua base. Deus abençoe todos”.

Essa frase aparentemente solta, pronunciada por um chefe de Estado numa congregação mundial das nações, não é leviana e não pode passar despercebida. Como não passou pela reverberação de seus efeitos que se encontra na imprensa, em geral, e nas redes sociais, em particular. Cabe uma ponderação reflexiva sobre o que é e pode vir a ser uma cristofobia no Brasil. Será feita de forma catequética, que via perguntas e respostas, ajuda a focar na argumentação.

Mas, o que é cristofobia?

É uma narrativa cristã construída a partir de um sentimento de perseguição, ameaça e/ou ataque. Usado sem essas situações reais de perseguição que pode ser seguida de morte, ameaça a direitos de expressão religiosa e de ataque físico e simbólico a templos, igrejas, pessoas. O termo pode ser utilizado como uma estratégia retórica que afirma supremacia de uma maioria cristã e justifica perseguição para aqueles que não são maiorias demográficas, simbólicas e políticas. Enquanto estratégia retórica e sem base real e fundamento o termo “cristofobia” se torna um preconceito com suas consequências discriminatórias.

O termo pode ser aplicado ao Brasil?

NÃO.

O Brasil é um país com maioria histórica, demográfica e simbolicamente cristã. É o Cristianismo sua matriz cultural, a orientação de seu código de costumes e o horizonte jurídico que impregna direitos fundamentais garantidos por lei na Constituição de 1988. Ainda que por diversos motivos, entre eles de cunho político, tanto no passado remoto quanto no recente, tenham-se registrado perseguições a pessoas que se confessam cristãs, atualmente isso não é um fato. Mesmo assim, no passado essa perseguição não era explicitada como sendo uma perseguição religiosa em massa, nem se colocava o sistema jurídico, policial e/ou militar para a perpetrar. Atualmente o Brasil não pode ser enquadrado entre os países como a Índia e no Oriente Médio, nos quais existe, em diferentes graus, essa perseguição por motivos religiosos. Contudo, dentro do Cistianismo e fora não tem sido referido como cristofobia e sim como perseguição aos cristãos, como o próprio Papa Francisco se referiu no seu discurso à ONU em ocasião do seu 75º aniversário, na mesma data do pronunciamento do Sr. Presidente Bolsonaro.

Por que, então, utilizar o termo no Brasil?

A resposta é muito interessante e deve ser colocada no contexto do uso retórico. Assim, cristofobia pode ser aproximadamente datado às intervenções públicas do deputado federal Marco Feliciano, na Câmara dos Deputados desde 2011, conhecidamente por suas atitudes homofóbicas, quem perante as passeatas gay em São Paulo, desde 2015, vem reagindo de forma acusatória, indicando que essas manifestações são expressões de aberrações morais e desvios de comportamentos. Utilizar pública e aleatoriamente o termo cristofobia é pavimentar a ideia de que existe um ódio contra o cristianismo. Tal ódio, segundo os disseminadores do termo, é nutrido por minorias sociais, étnicas e demográficas (entre elas comunidades LGBTQ+, movimentos sociais, indígenas, negros, pobres e feministas) que ameaçam o moral e costumes cristãos e acalentam desejos de atacar os cristãos.

Cristofobia pode ser um termo perigoso?

SIM.

Porque, de um lado, coloca na pauta religiosa, social e da mídia um fenômeno que não existe no Brasil nem na América Latina. De outro lado, porque como todo preconceito esconde as diferenças internas que há nos grupos que ele estigmatiza, justifica sua exclusão e reforça uma visão de serem ameaçadores para a ordem moral estabelecida por um tipo de interpretação cristã. Que dito seja, não é consenso no Cristianismo, nem católico nem evangélico, pois ambos segmentos são profundamente plurais. Mais ainda, e aqui entra o elemento perigoso: ele justifica ameaçar, atacar e criminalizar aqueles que são alvo de sua perseguição em nome de uma inversão criada por esses grupos que reverberam o termo. Dito de outra forma: cristofobia é um álibi para perseguir a quem se disse perseguido. Álibi que historicamente sempre foi nefasto para a sociedade e a religião, basta lembrar a Inquisição e ler a História.

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Foto de capa: Presidência da República/Reprodução

Maria Madalena e o dom da fé ao mundo

*Publicado originalmente no Jornal do Brasil.

Não sou eu quem digo e sim Eça de Queiroz, o grande escritor português que se destacou por, além de seu gênio incontestável, apresentar em seus escritos um impiedoso anticlericalismo. Em seu livro A Relíquia, Eça fala pela boca de um historiador em Jerusalém:

Depois de amanhã, quando acabar o Sabá, as mulheres de Galileia voltarão ao sepulcro de José de Ramata, onde deixaram Jesus sepultado… E encontram-no aberto, encontram-no vazio!… “Desapareceu, não está aqui!…” Então Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém – “ressuscitou, ressuscitou!” E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião a mais à humanidade!

Parece incrível que o tresloucado amor de Maria de Magdala – mais conhecida como Maria Madalena – pelo Nazareno crucificado tenha conseguido esse feito: mudar o mundo e inaugurar uma nova religião. E, no entanto, se lemos bem o Evangelho, sobretudo o de João, poderemos ver que assim é a narrativa.

A desolação reinava entre os discípulos. O Mestre fora morto, executado, deixara um vazio impossível de preencher e a esperança jazia morta no chão. Maria de Magdala chega, então, com a boa nova, o evangelho, a boa notícia: aquele que vocês viram morto está vivo. Ressuscitou!

Não acreditaram nela mas foram ao sepulcro. E o encontraram vazio, em uma ausência grávida da presença pascal daquele que teriam agora que reconhecer de outro modo. A desolação foi dissipada pela esperança renascida e pelas manifestações do Ressuscitado, que confirmariam o anúncio da mulher crente e apaixonada.

Antes da experiência que mudaria a vida dela e de todos, Maria, a de Magdala, também experimentava profunda tristeza. Foi ao túmulo de manhã cedo, apressada e com o coração batendo disparado. Queria homenagear aquele que amava tanto, prestar-lhe cuidados e ungir com perfume seu corpo morto.

Porém, no jardim onde estava o túmulo no qual o haviam enterrado não havia nada, a não ser silêncio e ausência. O túmulo vazio doía mais do que a visão do cadáver que esperava encontrar. E Maria chorou desconsolada. Ao jardineiro que lhe perguntou a razão do pranto, explicou que haviam tirado o seu Senhor e não sabia onde o haviam posto. E pediu: Senhor, se foste tu que o levaste, diz-me onde está que irei buscá-lo.

Ah, a força do amor de uma mulher. Não há impossíveis para ele. Ao longo da vida vimos mães que curam filhos desenganados por médicos; esposas que trazem de volta à vida seus companheiros mergulhados na depressão ou em paralisias várias, mulheres capazes de atravessar estepes nevadas ou desertos escaldantes em busca do encontro com aquele que seu coração deseja.

Não havia obstáculos para Maria naquele momento. Ela iria até o fim do mundo para encontrar seu amado. Bateria em todas as portas, enfrentaria qualquer autoridade, civil ou religiosa, nenhuma intempérie seria dura demais para seu coração apaixonado.

No entanto, não foi preciso, pois o amado em pessoa veio ao seu encontro e disse seu nome: Maria. E ela respondeu: Mestre. Como não gritar então pelas ruas de Jerusalém? Como não proclamar aos quatro ventos que ele ressuscitou? Como não anunciar que a esperança pode renascer e a alegria reinar, pois não é mais necessário buscar entre os mortos aquele que está vivo?

Assim é a história dessa mulher, apóstola dos apóstolos, primeira testemunha da Ressurreição, que inaugura um novo tempo na história da humanidade. Em uma sociedade patriarcal, onde as mulheres não podiam sequer testemunhar em processos jurídicos por não ser válido seu testemunho, Maria de Magdala, de quem Jesus havia expulsado sete demônios, abriu a boca e falou sobre o que viu e ouviu. E seu testemunho mudou a face do mundo.

Creram nela e repetiram e difundiram seu anúncio. E depois muitos e muitas creram neles, transformados de discípulos em apóstolos. E creram por causa dela. No dia 22 de julho, celebramos seu dia, que o Papa Francisco elevou à categoria de Festa para sublinhar sua importância no culto e na liturgia.

Nestes tempos tão tenebrosos, onde tudo parece obscurecer-se e quando os horizontes se atrofiam sobre nossas cabeças, não nos esqueçamos do poder que tem o amor de uma mulher. O amor dessa mulher mudou o mundo. O amor de toda mulher tem potencial transformador e terapêutico. Com seu corpo que é sede da vida, a mulher que ama diz com a paixão de Maria Madalena que a morte não tem a última palavra, pois a vitória definitiva é da vida, que é o outro nome de Deus.

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Foto de capa: Pixabay/Reprodução

É enganoso conteúdo do vídeo sobre feminismo publicado pela Canção Nova

Em 21 de julho de 2020, a Canção Nova publicou em seu canal do Youtube, na série de formação intitulada “The Church”, um vídeo de três minutos, do apologeta católico brasileiro professor Felipe Aquino, intitulado “o que a igreja diz sobre o feminismo”.

Na abertura do vídeo, Felipe Aquino afirma:

O que nós entendemos hoje como feminismo? Pelo menos as mulheres que assumem esse título, fazem coisas realmente muito feias. A gente já viu ai na internet, na própria televisão. As vezes invade (sic) uma igreja porque são favoráveis ao aborto, são favoráveis a outras coisas, então picham as igrejas. Eu já vi até caso, por exemplo, vi na internet, feministas que entraram numa igreja, defecaram dentro da igreja, pra mostrar o seu protesto, a sua repulsa a igreja, aos valores da igreja. Ora, esse tipo de feminismo realmente não tem cabimento, não precisa ser católico, cristão pra rejeitar um feminismo desse, é questão até de educação […]”

O Coletivo Bereia verificou que os exemplos usados pelo professor no início do vídeo para caracterizar o feminismo, estão relacionados a matérias e informações imprecisas ou falsas, divulgadas pela internet, a respeito do movimento feminista pelo mundo, que tentam deslegitimar as pautas levantadas nessas manifestações.

Em março de 2020, Bereia checou matéria do Gospel Prime com o título “Feministas vandalizam templos católicos durante protestos: fábrica de estupradores”, sobre episódios ocorridos no Chile, e concluiu que o conteúdo era impreciso. Apesar de o texto conter alguns fatos, omitia informações históricas importantes para contextualizar o sentido dos protestos em curso naquele momento e a relação da Igreja com as pautas das mulheres e o movimento feminista.

O site Boatos.org checou, em 2018, duas fotos que circulavam na internet, nas quais apareciam mulheres defecando dentro de igrejas durante protesto, sendo associadas a manifestações feministas. De acordo com o site, a informação era falsa e as fotos eram de protestos distintos. Um aconteceu no ano de 2011 em Oslo, Noruega. A outra foto foi tirada na Argentina, em 2015, em frente à Catedral Metropolitana de Buenos Aires, durante um protesto organizado por militantes kirchneristas, do grupo La Cámpora. Nenhum dos atos ocorreram durante manifestações do movimento feminista ou foram encabeçados por feministas.

A luta feminista contra o feminicídio

No minuto um do vídeo, o professor aborda o tema do feminicídio e afirma que não é necessário ser feminista para lutar contra este crime e que a igreja quer valorizar a mulher.

É claro que, a mulher tem que ser valorizada, e a igreja quer valorizar a mulher. Essa questão do feminicídio, por exemplo, não precisa ter um movimento feminista pra ir contra um feminicídio. Bater numa mulher, machucar uma mulher, matar uma mulher, é tudo de negativo que existe. Além de ser uma covardia, porque a mulher é fisicamente mais fraca do que o homem, é uma maldade muito grande em todos os aspectos”.

No entanto, a história tem mostrado como as teologias patriarcais predominantes nas igrejas cristãs negam e inferiorizam o papel da mulher nos ambientes religiosos e na Bíblia. A cultura da dominação do feminino, difunde a ideia de que Deus determinou o papel das mulheres para a reprodução e o cuidado do lar, afastando-as dos espaços de poder e liderança. A teóloga feminista católica, Ivone Gebara, na sua obra “Mulheres, religião e poder: ensaios feministas”, mostra como o poder do catolicismo constrói narrativas misóginas que garantem a manutenção da hegemonia masculina. Além disso, ela destaca a importância da teologia feminista, para a construção de uma nova perspectiva que dá voz e lugar as mulheres. “O feminismo teológico tem uma grande importância na transformação das culturas, na medida em que desobriga as mulheres de obedecerem à ordem estabelecida de certas crenças religiosas patriarcais” (p. 12).

Nos ambientes religiosos, os discursos reproduzem a lógica da cultura de dominação masculina que circula na sociedade e repetem o estereótipo de fragilidade feminina que contribuem com a romantização da violência doméstica. Muitas mulheres, sobretudo, dentro do cristianismo, são desencorajadas a denunciar violências, e aconselhadas a manter relacionamentos abusivos em nome de Deus. De acordo com a pesquisa desenvolvida pela pesquisadora da religião Valéria Vilhena, 40% das mulheres vítimas de violência doméstica de seus companheiros se declaram evangélicas.

Em 17 de julho, a gravadora gospel MK lançou um videoclipe com a nova canção da pastora e cantora Cassiane, influente no meio pentecostal, intitulado “A Voz”. A partir do conteúdo da canção, que fala do poder de Deus na superação de dificuldades da vida, a narrativa do clip deliberadamente incentivava as mulheres vítimas de violência doméstica, a sofrerem caladas.

No vídeo, uma personagem era agredida constantemente pelo companheiro, mas não o denunciava. Ela decide ir embora de casa, deixando um bilhete dentro de uma Bíblia, em que dizia que o perdoava e que orava por ele. O agressor, após receber a Bíblia, se converte e tem final feliz com a mulher. Após grande repercussão e inúmeras críticas, a gravadora lançou uma segunda versão do clipe com trecho em que a mulher liga para o Disque 180 para denunciar o companheiro agressor, ele é preso, depois encontra a Bíblia em casa com o bilhete, se converte e tem o mesmo final feliz com a agredida. Ao final foi inserida a indicação para que sejam denunciadas situações de violência.

Em suas mídias sociais, a editora-geral do Coletivo Bereia, jornalista Magali Cunha, publicou dois vídeos fazendo considerações a respeito do clipe da cantora Cassiane. No primeiro vídeo, ela afirma que a igreja precisa ajudar essas mulheres a saírem da condição de silenciamento. Ao citar os dados da pesquisa de Valéria Vilhena, indica que “muitas dessas violências como aponta a pesquisa, são praticadas por homens evangélicos, muitos deles líderes de igrejas. O fato de estar numa igreja não significa que a violência acabou. O perdão não significa sustentar impunidade”.

A religião contribui, em diversos aspectos, com a reprodução de diversas formas de violência de gênero, quando orienta mulheres a serem submissas, obedientes, silenciadas, a partir de uma interpretação patriarcal dos textos sagrados. Além disso, a conduta machista e sexista que exclui as mulheres da liderança das igrejas, reforça essa estrutura. Na celebração da primeira missa do ano de 2020, na Basílica de São Pedro, o papa Francisco reconheceu que a violência de gênero é a “profanação de Deus”, destacando a importância do papel da mulher na vida religiosa. “As mulheres são fontes de vida, mas ainda assim são continuamente ofendidas, agredidas, violentadas, induzidas a se prostituir e a tirar a vida que carregam no ventre”. Francisco vem sofrendo uma série de críticas no interior da Igreja Católica e uma das causas são suas posições de relativa abertura às questões de gênero.

O feminismo, como movimento político-social histórico, apesar das variações de vertentes e de seus recortes, se manifesta na luta contra violência e opressão sexista, perpetuadas pelo machismo estrutural e pela lógica patriarcal. A história revela diversas conquistas através dos anos de luta e mobilização das mulheres, desde direitos trabalhistas, ao direito à participação cidadã com o voto e legislação referente ao seu lugar na família e na sociedade

Em relação à situação mais dramática no Brasil, a violência contra mulheres, pelo fato de serem mulheres, foi sancionada, em 7 de agosto 2006 a Lei nº 11.340 conhecida como Lei Maria da Penha, que pune e combate a violência doméstica e familiar contra a mulher. Após ser vítima de duas tentativas de feminicídio, e outras violências pelo marido, Maria da Penha, que carrega no corpo e na cadeira rodas as marcas das agressões sofridas, vivenciou anos de luta contra a impunidade e falta de instrumentações legais na justiça brasileira em casos de violência de gênero. Essa conquista é resultado da luta feminista pela garantia dos direitos humanos para as mulheres. Em 2002, houve a criação de um consórcio de ONG’s feministas a fim de elaborar uma lei que combatia a violência contra a mulher. A Lei do Feminicídio sancionada em 2015, que é um agravante do homicídio ocorrido contra uma mulher em decorrência de discriminação de gênero, também nasce da pressão dos coletivos e organizações feministas.

Com base nestes elementos, é enganoso afirmar que não é necessário ser feminista para lutar pela vida das mulheres, uma vez que, a história evidencia a importância da organização e mobilização das mulheres por meio de coletivos, instituições, produções e reflexões teóricas, para a conquista e garantia de direitos. Considera-se que sem o movimento feminista muitos dos direitos e das leis de proteção à dignidade das mulheres não teriam sido alcançados ou teriam sido retardados no tempo.

O Coletivo Bereia classifica o conteúdo do vídeo do professor Felipe Aquino, publicado pela Canção Nova, como enganoso. O vídeo apresenta informações falsas e distorcidas que circulam na internet, outras inseridas de forma descontextualizada e imprecisa, para desqualificar o movimento feminista, silenciando sobre sua importância na história e presença na teologia cristã. O vídeo do grupo Canção Nova pode ser caracterizado como opinião, no entanto, isto não fica claro para a audiência, uma vez que, sob o rótulo “formação”, o conteúdo desinformativo simula o oferecimento de informações.

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Referências de checagem

BBC Brasil, https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39210072

Boatos.org, https://www.boatos.org/politica/feministas-igreja-defecam-protesto.html

Canção Nova, https://formacao.cancaonova.com/series/the-church/o-que-igreja-diz-sobre-o-feminismo/

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/e-imprecisa-materia-sobre-vandalismo-em-protestos-no-chile/

Feministas ressignificando o direito: desafios para aprovação da Lei Maria da Penha, Revista Direito e Práxis, https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662017000100616

Huffpost Brasil, https://www.huffpostbrasil.com/entry/papa-francisco-violencia-domestica_br_5e0cb154e4b0b2520d1c5160

Instituto Maria da Penha, https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-e-maria-da-penha.html

Lei do Feminicídio, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm

Lei Maria da Penha, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm

Magali Cunha, Youtube, https://www.youtube.com/watch?v=8Voqe-XtA9g

Resultados da pesquisa: uma análise da violência doméstica entre mulheres evangélicas, http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1280156603_ARQUIVO_ValeriaCristinaVilhena.pdf

Veja, https://veja.abril.com.br/entretenimento/cantora-gospel-cassiane-altera-clipe-acusado-de-romantizar-a-violencia/

Nem normal, nem novo normal, mas bem viver

*Publicado originalmente no IHU em 07 de Julho de 2020.

Metade de 2020 vai passando e estamos diante de uma pandemia gravíssima. Em alguns lugares do mundo com mais gravidade: Brasil, por exemplo; outros com menos: Nova Zelândia, por exemplo. E a crise econômica que já estava instalada antes e está piorando durante, será agravada depois da pandemia afetando todo planeta.

De janeiro até agora uma pergunta tem se repetido: “Como será a vida no pós-pandemia?” As primeiras previsões, por parte de muitos, era otimista: “Teremos um mundo melhor”. Mas o tempo foi passando e fomos assistindo situações das mais grotescas.

Muitos estão comemorando a volta ao “normal”. Outros falam de um “novo normal”. Apontaremos aqui para outra direção. Talvez tal direção seja “um sonho acordado da mente humana”, como diria o filósofo L. Feuerbach, quando se referia à religião, lá no século dezenove. Contudo, antes de chamar a utopia do Bem Viver de irrealizável, pelo menos se pergunte o que é “normal” ou o tal “novo normal”. Faça um esforço, se possível, de olhar a realidade e verificar se o que está acontecendo é uma situação na qual toda a vida que peregrina por este planeta vai em direção, no modelo que predomina, isto é, de relações capitalistas, de conduzir a natureza, e nela o ser humano, a um grau superior de convivência e harmonia. A um grau no qual possamos afirmar que há condições de alcançar dignidade fundamental de existência para todos os seres vivos. O que seria o “normal” ou o “novo normal”?

1. O normal

Fui ao dicionário buscar sinônimos: habitual, natural, comum, usual, corriqueiro, frequente, ordinário, trivial, banal, vulgar.

Seria habitual não se espantar diante de quase 70 mil mortos e daqui uns dias bem mais? Ou buscar aquelas explicações estapafúrdias que dizem: “Durante o ano morre muito mais gente!”? Lembrando que a COVID-19 já matou muitos mais gente que qualquer outra doença, e mesmo acidentes de trânsito, e antes do fim do ano. Por que foi habitual o espanto com a morte de 71 pessoas no acidente com avião da Chapecoense?

É natural que diante de uma pandemia com alto índice de contágio saiamos às ruas para comprar quinquilharias, ou algo que não seja realmente necessário? Mas alguns podem dizer: “Minhas meias estão velhas, preciso ir ao shopping adquirir meias novas. Ora, como posso ser feliz sem meias novas?”. É natural pensar assim?

É usual agredir pessoas que se dedicam a salvar vidas porque estas estão dizendo que o seu parente morreu de COVID-19 e não de infarto?

O que nos leva a agir de forma trivial com pessoas que pensam diferentes de nós?

Vivemos relações na qual naturalizamos o que não é natural. Odiar é comum, mas não é comum cultivar o ódio. É frequente que cometamos erros com determinados saberes. Por exemplo, posso não saber qual é capital do Butão, mas afirmar que a terra é plana é um pouco demais, não é normal. Vivemos uma banalização do saber e, muitas vezes, admiramos o vulgar.

Ora, em mundo onde um por cento da população detém a maior parte da riqueza produzida, é fundamental que se encontre entre os outros noventa e nove por cento, aliados e aliadas, conscientes ou inconscientes, que digam ser a vida destes um por cento normal.

É normal que depois da pandemia voltemos aos níveis de consumo anteriores, que continuemos a olhar para o nosso próprio umbigo comprando, comprando, e comprando? Inclusive comprando muito remédio para nos manter de pé para continuar comprando? Quem acredita que um crescimento infinito é possível em um mundo finito, conclui um economista americano em 1973, ou é louco ou é economista.

Podem dizer ainda: “É só mais uma pandemia. Morrerão milhares, mas depois a vida continua normal”. É o “normal” que está nos matando, e não apenas a COVID-19. É o normal que está aumentando o número de suicídios no mundo, que está fazendo crescer, assustadoramente, o consumo de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, inclusive drogas vendidas nas farmácias livremente. Enfim, é o normal que está aumentando a desigualdade planetária e você acreditando que um dia será uma pessoa normal.

2. O novo normal

Aqui existe uma enorme dificuldade. O Google não ajuda muito. As possibilidades são quase infinitas. Um montão de intelectuais quer ser o primeiro a definir o “novo normal” no pós-pandemia. Poucos vão em direção contrária, e os que vão quase não são ouvidos, pois são falas que dizem, por exemplo, que não será possível continuar a organizar a sociedade planetária em base ao que se chama “desenvolvimento”, mesmo que seja o tal “desenvolvimento sustentável”.

Ouvir um dirigente de futebol afirmar que a federação montou um protocolo invejável para que as partidas fossem absolutamente seguras é altamente reconfortante (sic). Poxa, não mais o normal, é um “novo normal”.

Alguns poucos estão pensando, de fato, em um novo modelo de sociedade, pois tudo indica que o normal ou novo normal não será capaz de responder a crise civilizatória que está aí. E se novas pandemias surgirem, pior ainda.

De um lado temos políticos e partidos, nos quais tem gente boa, batendo cabeça para definir quem vai ocupar o cargo de “gerente” na prefeitura, no estado ou no país. Sim, gerentes da estrutura de poder do capital. O poder é econômico e pouco governamental.

Do outro lado trinta por cento da população planetária que não tá nem aí para o resultado das relações de produção: “farinha pouca meu pirão primeiro”. São aliados dos tais um por cento que realmente tem poder e ainda podem arrastar os que precisam se alimentar agora, pois estes não podem esperar que a sociedade resolva as contradições sociais rapidamente.

Ora, vem logo a pergunta: “o que fazer então?”.

3. O Bem Viver

Qualquer pessoa que afirmar ter uma solução para a crise civilizatória que estamos vivendo, seria como uma pessoa que afirma saber física quântica. Porém, o fato de não ter uma resposta pronta e acabada não significa que devamos nos render ao que esta aí. Precisaremos pensar de forma processual e por etapas. Os visionários muitas vezes sofrem muito. Percebem a necessidade de mudança com profundidade, mas ainda não conseguem propor exatamente um caminho que possa contagiar a maioria, pois a maioria ainda pensa dentro de uma estrutura mental que pode ser chamada de “normal”.

É fato: “esta economia mata”, diz o Papa Francisco. Assim sendo, é preciso repensar o modelo. E assim, ainda na linha de Francisco, diante de uma “terceira guerra mundial em parcelas que instalou um genocídio”, será necessário reorientar o caminho que a humanidade está fazendo.

E, por incrível que pareça não se trata de criar algo absolutamente novo, mas de resgatar uma sabedoria que pode ser chamada, em linhas gerais, de Bem Viver.

Os povos tradicionais encontraram uma forma de sobreviver que possibilitou uma força de resistência capaz de passar pela dominação colonial sem desaparecer. Uma das expressões que os povos andinos usam para denominar este modo de vida é sumak kawsay, que pode ter como uma tradução possível o Bem Viver. Trata-se de buscar relações humanas calcadas não na acumulação, no desperdício, em sugar da natureza tudo o que for possível para um modo de vida opulento, mas na reciprocidade, na solidariedade, na empatia e na harmonia com o conjunto da natureza.

Começa a surgir gente que pensa este modelo em sintonia com a situação da humanidade no presente estágio civilizatório. Como exemplo podemos citar o equatoriano Alberto Acosta, o uruguaio Eduardo Gudynas, e o boliviano Pablo Solon, entre outros e outras. Também em outras latitudes, como na Europa se pode citar a francesa Genevieve Azam e também francês Serge Latouche na linha do decrescimento, isto é, na afirmação de que o modelo desenvolvimentista está fadado a esgotar a vida planetária.

Muitos podem dizer: “Doce utopia, muito bonito, contudo irrealizável”. Talvez. Contudo, estamos vivendo relações capitalistas faz tempo. De forma mais agressiva nos últimos duzentos anos. O socialismo real acabou não se configurando como alternativa. Houve, sem dúvida, crescimento humano neste processo. Porém, também sem dúvida, tal crescimento custou caro. Não estaria na hora de redirecionar o que se entende por “progresso” na direção de um maior equilíbrio nas relações que compõem a vida no planeta? Vamos “pagar para ver” para onde o “deus mercado” nos conduzirá?

Sim, precisaremos pensar e agir de forma processual. Precisaremos estabelecer etapas. Precisaremos encontrar a intercessão que une todos e todas que acreditam em outro mundo possível. Precisaremos na etapa atual, por exemplo, defender a democracia como instrumento político que permita o debate e a configuração do novo horizonte. Mas não podemos nos render ao modelo político representativo que está esgotado. Não podemos mais confiar totalmente no modelo econômico totalmente extrativista.

Seguindo aquela ideia gandhiana, precisaremos ser a mudança que desejamos no mundo. Anciãos, adultos e jovens, homens e mulheres, deveremos constituir um novo padrão de vida, não um novo normal. Quanto tempo será necessário? Não há previsão possível. Previsível é que da forma como está não haverá futuro. Trabalhemos agora no terreno pedregoso para que outras gerações possam plantar, e outras ainda possam colher.

É interessante que muita gente que prega o normal se afirma cristã. Termino esta reflexão no domingo no qual o texto bíblico é o Evangelho de Mateus 11,25-20. Neste trecho Jesus faz uma oração ao Pai dizendo:

“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos”.

Parece que boa parte dos cristãos não confia muito nisso. O Papa Francisco tem sido uma grande exceção. Ele tem afirmado que nada pode ser feito para o povo, mas somente com o povo, isto é Bem Viver, isto é o UBUNTU da tradição africana: eu só posso ser se você for comigo. Essa é a nossa esperança, sem messianismo, sem salvadores da pátria. Quem viver verá.

É falso que Papa Francisco segura bandeira gay em foto

Papa Francisco posa para fotos segurando a bandeira do Movimento LGBT em protesto pelo atentado da boate Pulse.

Desde que assumiu o comando da Igreja Católica, o papa Francisco é assunto recorrente na mídia. Se sua eleição foi singular por ser o primeiro papa não-europeu em séculos e o primeiro latino-americano a assumir o posto, Em seus último anos como pontífice, Francisco continua midiático, seja por sua postura humilde ou por suas declarações. O Bereia já produziu matéria sobre outro conteúdo falso envolvendo o Papa Francisco veja aqui.

O fato é que quando questionado sobre temas sensíveis à Igreja, como dinheiro, pedofilia e a homossexualidade, Francisco usualmente se posiciona de forma muito menos conservadora que seus antecessores. Sobre homossexuais buscarem a fé na Igreja Católica, por exemplo, o papa foi categórico ao dizer que não poderia julgar ninguém.

Após o ataque que matou 53 pessoas na boate Pulse, em Orlando (EUA), ele manifestou total repúdio ao o ocorrido e o tratou como um ato de ‘ódio sem sentido’. Quase no mesmo período começou a circular na internet a imagem dele com a bandeira colorida do Movimento LGBT em postagens que o parabenizam por defender os gays.

“Mais uma vez o Papa Francisco me comove ao segurar a bandeira do movimento LGBT, em protesto contra o assassinato de gays na boate de Orlando.”

A imagem falsa do Papa segurando a bandeira do movimento LGBT circula desde 2013.

Papa Francisco segurou bandeira gay?

Acontece que a imagem não é verdadeiraA foto é uma montagem feita com a imagem de Francisco segurando a bandeira da Argentina , quando esteve no Rio de Janeiro durante a Jornada Mundial da Juventude em 2013.

A foto verdadeira foi tirada por Stefano Rellandini da agência de notícias AP em 25 de julho de 2013.

Reprodução/ Momento Verdade

A postagem original da foto modificada é de julho do mesmo ano, foi feita por um site mexicano chamado Reporte Indigo e no em 2014 começou a ser replicada no Brasil. Aqui, a postagem mais antiga é de meio de 2014 quando a foto foi utilizada para ilustrar a notícia sobre uma nota em favor da comunidade LGBT divulgada pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo às vésperas da Parada Gay.

Ou seja, o papa Francisco não posou para foto segurando a bandeira do Movimento LGBT em protesto contra o atentado da boate Pulse nem a brandiu em favor da causa gay. A imagem é mais uma montagem sobre ele e o caminho que o pontífice e a Igreja ainda precisam percorrer para que esta se torne realmente inclusiva.

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São imprecisas as notícias que afirmam que Bento XVI compara casamento homossexual com o “anticristo”

Na primeira semana de maio a notícia de que o Papa emérito Bento XVI teria relacionado o casamento homoafetivo ao “anticristo”, em sua biografia “Bento XVI – Uma vida”, repercutiu em vários sites. Escrito pelo jornalista alemão Peter Seewald, publicado em 4 de maio, na Alemanha, o livro vai da infância, perpassando a carreira acadêmica de Joseph Ratzinger, o pontificado em 2005 até a renúncia do papado.

O site O Verbo foi um dos primeiros canais que noticiou a publicação da biografia e as declarações de Ratzinger contidas na obra. Assinada por Michael Caceres, a matéria afirma no título: “Bento XVI relaciona casamento gay ao anticristo e diz que tentam silenciá-lo.

O texto da notícia não apresenta o trecho da obra em que Ratzinger relaciona diretamente o casamento homoafetivo ao anticristo. Nos cinco parágrafos que compõem o texto, o autor menciona duas vezes o assunto, no primeiro e no segundo parágrafo. Na segunda vez, o texto diz:

“Trechos publicados pela imprensa alemã mostram que o papa emérito é contrário ao aborto e a criação da vida humana em laboratório, além de comparar o união gay com a ‘obra do anticristo.” 

Além de O Verbo, a informação também foi noticiada por diversos outros sites como Carta Capital, O Globo, Relevante News, Estado de Minas, El Pais, Veja, UOL, Guiame, entre outros. Apesar de trazerem no título a possível comparação feita por Ratzinger entre o casamento homoafetivo e o anticristo, é curioso que as matérias não apresentam o trecho original da obra que comprove a afirmação.

Na matéria sobre o assunto publicada no site da revista Veja, o título afirma: “Bento XVI diz que casamento de pessoas do mesmo sexo é obra do anticristo”. O título traz uma afirmação que não se sustenta com as citações de Ratzinger apresentadas na matéria.

A Agência Católica da Notícias (CNA) apresenta matéria que esclarece um pouco mais o teor das declarações de Ratzinger. O texto explica que os comentários do papa emérito estão no final do livro em uma ampla entrevista, onde ele afirma:

O site alemão Süddeutsche Zeitung também noticiou a publicação da biografia de Bento XVI. Ao invés de afirmar que Ratzinger compara o casamento LGBT com o anticristo, a matéria diz que ele “critica fortemente o casamento gay”. Como se vê abaixo:

Alguns observadores do Vaticano acusaram Bento XVI de retrocesso, em janeiro passado, quando apareceu um livro em defesa do celibato sacerdotal, com seu nome ao lado do cardeal ultra-conservador Robert Sarah. O livro foi publicado no contexto do recente Sínodo da Amazônia, que propôs ao Papa Francisco a ordenação de diáconos casados na região, diante da carência de padres para atuar na Amazônia. Após 48 horas de controvérsia, Ratzinger pediu que seu nome fosse removido da capa, introdução e conclusão assinada em conjunto.

A doutrina da Igreja Católica Romana desaprova a orientação homossexual. Ao mesmo tempo, é um assunto que já provocou polêmicas e escândalos em meio ao alto clero romano. Em entrevista ao El Pais, o jornalista francês Frédéric Martel, autor de “No Armário do Vaticano” (Editora Objetiva), diz que entre as 14 razões que, possivelmente, influenciaram a renúncia de Bento XVI, dez estão relacionadas à homossexualidade do clero.

Quando questionado sobre o casamento homossexual, o Papa Francisco tenta abordar o assunto com mais leveza que seu antecessor. No artigo de Robert Shine, publicado em português pela revista IHU on-line, em junho de 2019, Francisco frisou que, embora seja “conservador”, ele não acredita que jovens gays e lésbicas precisem de psiquiatras, mas acredita que é “uma incongruência falar de casamento homossexual”.

Seguindo a doutrina da Igreja Católica, Ratzinger também é contra o casamento homoafetivo. Isso fica claro quando se analisa o histórico do para emérito, seus posicionamentos, a reação dele às críticas e o livro controverso de janeiro, do qual pediu para excluírem seu nome. Nas matérias em questão nesta checagem do Coletivo Bereia, afirmações são feitas sem acesso direto ao livro, que até o momento está disponível apenas em alemão.

Sobre este assunto, Bereia ouviu Moisés Sbardelotto, professor, especialista em comunicação do Vaticano e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Segundo Sbardelotto, a relação entre casamento homoafetivo e o anticristo não é tão direta como noticiaram alguns sites. O professor cita o historiador Massimo Faggioli, que escreveu o seguinte:

“Isso faz parte de uma leitura apocalíptica da situação eclesial contemporânea: o verdadeiro problema não é a corrupção ou os escândalos na Igreja, mas sim a perda de fé em relação a uma cultura radicalmente secularista, ateia e anticristã. Bento diz que essa é a cultura que deve ser responsabilizada, entre outras coisas, pela legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e pelo aborto. E, curiosamente, ele fala de uma forma de ‘excomunhão social para aqueles que se opõem a esse credo anticristão da sociedade moderna.” 

Na percepção do professor Sbardelotto, “a imprensa em geral fez uma conexão apressada [homossexualidade = Anticristo]. Não foi bem isso que o BXVI disse, mas sim que a homossexualidade seria fruto de uma ‘cultura anticristã’. É uma questão de interpretação”, finalizou.

Diante disso, Bereia conclui como imprecisas as notícias que afirmam que Bento XVI compara, em sua biografia, o casamento homoafetivo ao anticristo. A informação foi tratada de forma sensacionalista pelos meios de comunicação que a noticiaram. Os fragmentos traduzidos apresentados nas matérias não são suficientes para corroborar a afirmação de que Bento XVI compara o casamento gay ao anticristo. De todo modo, Bereia buscará acesso ao livro para dar seguimento a esta checagem.

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Referências da checagem:

O Verbo – Bento XVI relaciona casamento gay ao anticristo e diz que tentam silenciá-lo. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: https://overbo.news/bento-xvi-relaciona-casamento-gay-ao-anticristo-e-diz-que-tentam-silencia-lo/

Veja – Bento XVI diz que casamento de pessoas do mesmo sexo é obra do anticristo. Acesso em 15 mai 2020. Disponível em: “https://veja.abril.com.br/mundo/bento-xvi-diz-que-casamento-de-pessoas-do-mesmo-sexo-e-obra-do-anticristo/

CNA – Catholic News Agency. In new biography, Benedict XVI laments modern ‘anti-Christian creed’. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: https://www.catholicnewsagency.com/news/in-new-biography-benedict-xvi-laments-modern-anti-christian-creed-83240″ https://www.catholicnewsagency.com/news/in-new-biography-benedict-xvi-laments-modern-anti-christian-creed-83240

Süddeutsche Zeitung – Ex-Papst Benedikt kritisiert homosexuelle Ehe scharf. Acesso em 15 mai 2020. Disponível em: “https://www.sueddeutsche.de/panorama/kirche-muenchen-ex-papst-benedikt-kritisiert-homosexuelle-ehe-scharf-dpa.urn-newsml-dpa-com-20090101-200504-99-924454

IHU – Ratzinger e o cardeal Sarah escrevem livro contra os padres casados. IHU. Acesso em 15 mai 2020. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/595536-ratzinger-e-o-cardeal-sarah-escrevem-um-livro-contra-os-padres-casados”

IHU – Ratzinger compartilhava o livro do cardeal Sarah. E em menos de 48 horas a tese do mal-entendido foi desmontada. Acesso em 15 maio 2020. Disponível em:http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/595684-ratzinger-compartilhava-o-livro-do-cardeal-sarah-e-em-menos-de-48-horas-a-tese-do-mal-entendido-foi-desmontada”

UFJF – Igreja Católica Romana e a Homossexualidade: Visão da Moral Sexual Católica a partir da análise de documentos Oficiais. Disponível em: http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2019/03/9.-Silvia-Rodrigues.pdf

El Pais – Pedofilia, séquitos em guerra e cúria gay: o que ‘Dois Papas’ não conta. Acesso em 15 mai 2020. Disponível em:https://brasil.elpais.com/televisao/2019-12-18/pederastia-sequitos-em-guerra-e-curia-gay-o-que-dois-papas-nao-conta.html?rel=mas”

IHU – Sozinho contra a Cúria Romana e o mundo: a nova biografia de Bento XVI. Artigo de Massimo Faggioli. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598946-sozinho-contra-a-curia-romana-e-o-mundo-a-nova-biografia-de-bento-xvi-artigo-de-massimo-faggioli

El Pais – Bento XVI: “Quem quer que se oponha ao casamento homossexual ou ao aborto é socialmente excomungado”. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-07/bento-xvi-quem-quer-que-se-oponha-ao-casamento-homossexual-ou-ao-aborto-e-socialmente-excomungado.html

Carta Capital – Bento XVI compara casamento LGBT ao “anticristo”. Carta Capital. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/bento-xvi-compara-casamento-lgbt-ao-anticristo/”

Relevante News – Papa emérito Bento XVI compara casamento gay ao ‘anticristo’. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: https://relevante.news/espiritualidade/papa-emerito-bento-xvi-compara-casamento-gay-ao-anticristo/”

Estado de Minas – Bento XVI compara casamento gay ao “anticristo”. Estado de Minas. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/05/04/interna_internacional,1144123/bento-xvi-compara-casamento-gay-ao-anticristo.shtml

Guiame – Mais conservador que o atual papa, Bento XVI compara casamento gay ao “anticristo”. Acesso em 15 mai 2020. Disponível em: https://guiame.com.br/gospel/noticias/mais-conservador-que-o-atual-papa-bento-xvi-compara-casamento-gay-ao-anticristo.html

UOL – Bento XVI compara casamento gay ao “anticristo”. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/bento-16-compara-casamento-entre-pessoas-do-mesmo-sexo-ao-anticristo.shtml” https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/bento-16-compara-casamento-entre-pessoas-do-mesmo-sexo-ao-anticristo.shtml

IHU – Papa Francisco sobre as pessoas LGBT: “Se estivéssemos convencidos de que eles são filhos de Deus, as coisas mudariam muito”. Acesso em 14 mai 2020. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589705-papa-francisco-sobre-as-pessoas-lgbt-se-estivessemos-convencidos-de-que-eles-sao-filhos-de-deus-as-coisas-mudariam-muito

Fonte / imagem destaque: https://auxiliadoracampinas.org.br/domingo-gaudete.html?fbclid=IwAR1VIRpNAbxpcUqHPDnmY2Y5LltvwZ54mHpUiLng3ODYw-2nYE437vWqWV0