Igreja Universal simula checagem de conteúdo ao condenar material de campanha para evangélicos

Circula em sites de notícias identificados com a extrema-direita política conteúdo publicado pelo jornal Folha Universal e pelo Portal Universal, em 25 de setembro, que contrapõe material eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) destinado a evangélicos. 

Imagem: reprodução do site da Igreja Universal

O impresso do PT foi lançado em 9 de setembro passado, quando o candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com lideranças e fiéis evangélicos em São Gonçalo (RJ). O panfleto é intitulado “O que os evangélicos realmente querem para o Brasil” e apresenta temas da campanha de Lula a partir da palavra-chave “Queremos”, com a indicação de que são evangélicos que apresentam o conteúdo. 

Os temas do panfleto contêm pautas clássicas da esquerda política: aposentadoria, valorização das mulheres, defesa da paz, emprego e renda, fim da fome trabalho digno, educação de qualidade, saúde para todos. Foram incluídos também abordagens para elementos do discurso de campanha conservador como liberdade e defesa da família. Já a pauta ambiental é apresentada em linguagem religiosa como “cuidado com a criação de Deus”. Cada plataforma temática é acompanhada por um versículo da Bíblia.

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Imagens: reprodução do panfleto distribuído pelo PT para evangélicos

A matéria do jornal Folha Universal ocupa duas páginas da publicação, e tem versão on line no Portal Universal, sob o título “Panfleto do PT tenta enganar eleitor evangélico”.  O texto chama a atenção de leitores e leitoras para a estratégia do PT de buscar mudança de votos entre evangélicos de Jair Bolsonaro (PL) para Lula, com um discurso que o jornal denomina, no texto não assinado, “para inglês ver”.

Na introdução, a matéria do jornal Folha Universal afirma que “em uma leitura desatenta, o conteúdo [do panfleto] pode até envolver os eleitores e por isso é preciso colocar luz sobre os temas abordados e mostrar a realidade que tentam esconder deles”. O texto leva leitores e leitoras à expectativa de uma checagem de cada tema apresentado no panfleto do PT, que mostraria o que é enganoso e a realidade em oposição.

Uma contestação dos temas

O conteúdo, porém, não é uma checagem. Como leitores e leitoras do Bereia podem identificar no trabalho de checagem de conteúdo que é aqui realizado, bem como por outros projetos de enfrentamento da desinformação, tal procedimento demanda pesquisa de diferentes fontes, consulta a especialistas e levantamento de dados. Estes elementos compõem um protocolo fundamental, segundo as orientações da IFCN (sigla em inglês para Rede Internacional de Checagem de Notícias), para que determinado texto ou matéria de qualquer projeto de confrontação de conteúdo desinformativo divulgado seja considerado.

Jornal com texto preto sobre fundo branco
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Imagem: reprodução da matéria da Folha Universal

Cada um dos onze temas-propostas do panfleto do PT dirigido a evangélicos foi confrontado no texto do jornal Folha Universal de forma opinativa e por meio de conteúdo falso ou enganoso, sem qualquer referência objetiva que fundamente tais abordagens. 

Por exemplo, contra o tema “defesa da família”, a Folha Universal diz, sem citar a fonte, data e local: “o ex-presidente afirmou recentemente em um evento que ‘a pauta da família, pauta dos valores, é uma coisa muito atrasada’. Bereia tem insistido com leitores e leitoras que qualquer informação comprometida com a veracidade de fatos e dados deve apresentar fonte para as citações (origem do conteúdo, data e local em que foi produzido ou pronunciado). 

Ainda no tema da defesa da família, o jornal acrescenta de forma crítica que “em outra ocasião [Lula] afirmou que o aborto é “questão de saúde pública”. Além de vaga, fora do contexto (outro elemento que caracteriza desinformação), não há complementação da ideia que justifique engano em tal afirmação. 

A contestação da forma como o panfleto apresenta a “defesa da família” também apresenta conteúdo vago, sem base factual ou documentação, na frase caracterizada pela estratégia discursiva do pânico moral: “outras bandeiras defendidas pela ideologia são o fim da monogamia e do casamento convencional e a defesa da união de várias pessoas, o chamado poliamor”. 

No item sobre “defesa da liberdade”, a Folha Universal afirma que o folheto do PT omite “a intenção amplamente divulgada do candidato à Presidência de regulamentar a imprensa e as mídias, inclusive a internet, uma pretensão autoritária para supostamente evitar mentiras. Essa atitude é muito semelhante aos primeiros passos da censura vista em países com governos parceiros”. 

O jornal pratica, neste caso, a emissão de opinião sobre o que significa “regulamentação das mídias”. Longe de ser censura, “regulamentação das mídias” já existe no Brasil há décadas por meio de mais de 650 portarias, decretos e leis que regulamentam o setor de comunicação social, não só rádio e TV como impresso, aos quais se soma o Marco Civil da Internet. 

O que é defendido em vários espaços da sociedade civil é a ampliação da regulação, pois a atual legislação é defasada. Uma das principais pautas, levantada pelo Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC), é o fim dos monopólios (concentração nas mãos de poucas empresas, que dominam o mercado das mídias). 

Países como Alemanha, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos regulam suas mídias com vistas à garantia da participação democrática nestes espaços. Isto significa envolver a sociedade civil no controle das concessões, do que é transmitido e da forma como se veicula. Assim como existem agências reguladores de saúde (ANS), de telefonia (ANATEL), de aviação civil (ANAC), entre outras, por exemplo, para defender os interesses do Estado e dos usuários, a FNDC defende que exista uma agência reguladora das mídias, o que nunca foi desenvolvido no pais.

O tema é pauta no Congresso Nacional e no Judiciário e não apenas de um partido ou candidato, uma vez que é interesse cidadão. Porém, há muita resistência à discussão do projeto por parte de proprietários de mídias, como a Igreja Universal. Sempre que o tema aparece, especialmente em períodos eleitorais, ele é criticado e desqualificado como censura, uma vez que os empresários de mídias não têm interesse na participação da sociedade no que diz respeito aos conteúdos veiculados. 

Tema do meio-ambiente é o único com dados de referência

Na única das contestações em que apresentou dados, a Folha Universal se colocou contrária à abordagem do panfleto do PT sobre meio-ambiente, sob o tema “Criação de Deus”. Diz o jornal: “O candidato petista à Presidência também tem falado que seu governo foi o que mais preservou a Amazônia, afirmação que não condiz com a realidade. Enquanto no governo atual houve registro de desmatamento anual médio de 11,4 mil km², o petista ficou na casa de 15,6 mil km², com destaque para o ano de 2004, quando a destruição florestal superou os 27 mil km²”.

A Folha Universal contesta o panfleto do PT com dados enganosos pois o que é verdadeiro é usado de forma distorcida. O dado bruto está correto: o desmatamento acumulado na Amazônia nos primeiros três anos sob Lula (2003-05), segundo o órgão oficial de monitoramento, o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) 72.128 km, foi pouco mais que o dobro do que o ocorrido de 2019 a 2021, 34.018 km². O jornal, porém, não contextualizou que a taxa alta daqueles três primeiros anos de Lula, foi herdada dos governos de Fernando Henrique Cardoso. 

O índice começou a cair a partir de 2005, depois de três anos de políticas ambientais de enfrentamento do desmatamento. Alcançou o pico em 2004, com os 27 mil km² citados pela Folha Universal, mas ficou em queda até o segundo mandato. Quando entregou a faixa presidencial a Dilma Rousseff (PT), os índices oficiais registram 7 mil km². Até 2015, quando o PT esteve na Presidência, o desmatamento ficou na casa dos 6.207 km². De 2016 em diante voltou a crescer e disparou a partir de 2019. Veja o mapa com os dados do INPE:

Gráfico, Gráfico de linhas
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Fonte: INPE, extraído de https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2022/09/02/bolsonaro-distorce-dados-do-desmatamento-em-comparacao-com-governo-lula.htm 

Em matéria do UOL Confere, que checou o tema quando tratado durante um debate de candidatos às eleições presidenciais de 2022, o engenheiro florestal coordenador do MapBiomas Tasso Azevedo diz que o panorama da proteção da Amazônia em 2002 era muito diferente do que havia em 2018. Por isso, segundo ele, não cabe comparar os números brutos entre os dois governos. 

Azevedo explicou ainda: “Os primeiros anos do governo Lula são os anos em que o país herdou aquele desmatamento e houve um esforço de controle desse desmatamento, que derrubou ele para baixo dos sete mil quilômetros quadrados. Então essa comparação é completamente estapafúrdia. O fato é que o desmatamento caiu lá atrás, e caiu muito, e agora está aumentando muito”.

Diferentemente do que afirma a Folha Universal, o governo de Jair Bolsonaro vem registrando altas sucessivas de desmatamento da Amazônia desde 2019, com aceleração da curva de crescimento dos índices como se pode observar no mapa acima. O aumento acumulado do desmatamento sob Bolsonaro é de 73%, segundo o INPE. As denúncias de tais práticas levaram à demissão do ex-diretor do órgão Ricardo Galvão. Na checagem do UOL Confere, Galvão explicou que o alto desmatamento da Amazônia é uma herança da ditadura militar. O INPE passou a monitorar a região em 1988 e identificou uma devastação de 21.050 km², taxa semelhante à que Lula encontrou 15 anos depois quando assumiu a Presidência da República. 

“A razão inicial para o aumento do desmatamento veio da política de ocupação da Amazônia instituída durante a ditadura militar, de ‘avançar seguindo as patas do boi’ Era necessário desmatar e ocupar a terra com gado para ter o título de sua posse. Por isso, as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por grandes empreendimentos com alto impacto ambiental, como a Transamazônica, que abriu o caminho para o desmatamento e penetração na selva”, explicou físico ex-diretor do INPE.

Opinião x informação

Bereia expõe aqui três dos temas do panfleto do PT contestados na matéria da Folha Universal  mas checou todos os onze e o recurso é o mesmo dos itens verificados em amostra: o que o jornal publica é opinião contrária às propostas contidas no folheto do PT com base em elementos vagos e desinformativos pois não contêm dados, aspectos factuais ou documentais. No único trecho em que o jornal apresenta dados eles foram distorcidos.

Bereia classifica a matéria da Folha Universal como enganosa. O jornal contesta um material de campanha para evangélicos com texto que simula uma checagem de conteúdo, porém apresenta opiniões com base em desinformação. 

Bereia considera legítimo que o jornal, institucional, apresente opiniões contrárias em uma discussão que se coloque na arena política e oriente seus fiéis/adeptos/seguidores com base na ideologia com a qual se identifica e define. Para isto, jornais contém espaço para o editorial e para artigos de opinião. 

Bereia alerta, porém, para o caráter desinformativo de matérias que são opinativas, mas não se declaram como tal. Pelo contrário, para influenciar opiniões, há certos veículos que oferecem textos para levar leitores e leitoras a assimilarem conteúdo como se fosse objetivo, quando, na verdade, é subjetivo, meramente discordante.

Referências de checagem:

Poynter Institute. https://www.poynter.org/ifcn/ Acesso em: 30 set 2022.

Governo Federal. https://www.gov.br/ouvidorias/pt-br/cidadao/lista-de-ouvidorias/agencias_reguladoras  Acesso em: 29 set 2022

EBC. http://memoria.ebc.com.br/regulacaodamidia  Acesso em: 29 set 2022

Jota. https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/barroso-e-salomao-defendem-regulacao-das-midias-sociais-para-combater-desinformacao-03082022  Acesso em: 29 set 2022

Le Monde Diplomatique. https://diplomatique.org.br/regulacao-da-midia-a-invisibilidade-de-uma-agenda-essencial-a-democracia/  Acesso em: 29 set 2022

UOL. https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2022/09/02/bolsonaro-distorce-dados-do-desmatamento-em-comparacao-com-governo-lula.htm  Acesso em: 29 set 2022

BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49256294  Acesso em: 29 set 2022

Foto de capa: Google Play Store

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