
“Os evangélicos apareceram pela primeira vez na América Latina nos anos 70, nada mais nada menos trazidos pela CIA”. Esta frase é parte do conteúdo que circula nos perfis de mídias sociais da rede de notícias DW-Espanhol, desde 28 de março passado, com ampla recepção no Brasil, entre muitas curtidas, compartilhamentos e comentários, em especial nos perfis de pessoas e grupos da esquerda política, críticos à presença de evangélicos na cena pública.


Imagens: reprodução redes sociais DW
Ao ter acesso às postagens e ao vídeo, Bereia identificou de imediato que o material da DW-Espanhol destacado propaga conteúdo desinformativo, marcado por erros crassos, que revelam problemas de apuração jornalística. O programa ignora dados históricos sobre a presença dos evangélicos na América Latina e privilegia teorias da conspiração que há algum tempo circulam no continente, em especial entre pessoas e grupos críticos à figura dos evangélicos. A checagem mostra detalhes deste equívoco de conteúdo.
O vídeo do DW-Espanhol
Deutsche Welle (DW) [na tradução para o português, “Onda alemã”] é uma empresa pública de comunicação da Alemanha, que transmite para vários continentes, em 30 línguas, programação de TV e rádio e oferece conteúdo digital em um portal e mídias sociais. Pode-se afirmar que a DW é uma mídia alemã similar a redes de notícias como a BBC World, por exemplo.
Desde 2024, a DW-Espanhol criou um programa em seu canal do Youtube denominado “Como te afeta?” Segundo a empresa, o programa “visa atingir novas gerações com temas, notícias, problemas e soluções que afetam jovens e adolescentes na América Latina. Com uma linguagem nova e dinâmica, ‘Como isso afeta você?” analisa e contextualiza temas com a ajuda de jovens e especialistas, buscando soluções para oferecer um jornalismo construtivo!”.
Desde que foi criado, o programa tem mais de três dezenas de edições, com cerca de 25 minutos de duração, com temas como “por que viver na casa dos pais?”, “por que não é tua culpa ser pobre?”, “por que os salários são tão baixos na América Latina?”, “Que impacto a colonização espanhola teve nas sociedades, economias e culturas da América Latina?”, “Por que vemos tanta pornografia e como ela nos impacta?”, “Por que a linguagem inclusiva é tão polêmica e divide a sociedade?” entre vários outros.
O episódio veiculado em 28 de março passado tem como título (aqui trazido para o português) “Por que alguns pastores fazem sucesso no YouTube, Instagram e TikTok”. O vídeo tem sete capítulos, além de uma introdução e de uma conclusão, intitulados: Os latino-americanos somos muitos religiosos; Os evangélicos avançam; Os evangélicos se tornam virais; O famoso dízimo; Igrejas mafiosas?; Quando igrejas se metem em política; Comunidade e apoio aos necessitados.
O conteúdo é ancorado em dados numéricos sobre a população evangélica em diferentes países da América Latina, oferece a avaliação de especialistas de antropologia, ciência política, direito e economia e destaca a palavra de jovens, também de distintos países do continente sobre suas experiências com as igrejas.
A maior parte do que é apresentado é resultado de apuração e pesquisa coerente com o que vem sendo abordado sobre a presença de evangélicos na América Latina. O programa expõe o que tem se destacado negativamente sobre a presença de certas igrejas e personagens religiosas nas mídias, no ultraconservadorismo político, como corporações empresariais, no crime organizado (como os chamados “traficantes de Jesus”), nas expressões de intolerância (com outras religiões, a homofobia e a misoginia). Todos estes pontos tratados são factuais e aparecem em checagens e reportagens no acervo do Bereia, com possibilidade de comprovação. O programa não deixa de apontar o lugar da Igreja Católica no ultraconservadorismo político e nas expressões de intolerância.
Ao mesmo tempo, o vídeo da DW-Espanhol reconhece os elementos positivos da atuação de evangélicos nos países latino-americanos, que pode explicar o crescimento deste grupo religioso, e encerra o episódio com eles.
São destacados impactos que vão do “mais pessoal aos mais estrutural”: as igrejas como comunidades de apoio, em especial nas localidades empobrecidas; como fonte de valores (aprendizado para jovens crescerem como pessoas); lugares para se ter amigos e compartilhar; espaço de igualdade onde há muito racismo e classismo; vivência comunitária em que pessoas são irmãos e irmãs, com solidariedade nas dificuldades; reabilitação em algumas áreas críticas como dependência de drogas pesadas e do alcoolismo; possibilidade do desenvolvimento d liderança e participação em atividades sociais; sentido de identidade, disciplina, ética no trabalho – estes dois últimos pontos são reconhecidos como atraentes para empregadores, que valorizam a responsabilidade de jovens formados nestas bases.
O que desinforma no vídeo?
Dois pontos foram identificados pelo Bereia como desinformativos no conteúdo do vídeo e representam um problema para um material que se dispõe informativo e formativo, como é a proposta do DW-Espanhol.
No capítulo “Os evangélicos avançam” é reportado o que o DW decidiu destacar nas mídias sociais para chamar público para o vídeo: a afirmação de que “Os evangélicos apareceram pela primeira vez na América Latina nos anos 70, nada mais nada menos trazidos pela CIA”. Bereia checou as duas afirmações.
Primeira checagem: os evangélicos chegaram na América Latina muito antes dos anos 70 do século 20. Qualquer livro de história do tempo passado e presente que trate sobre Evangélicos na América Latina (um compêndio importante é o de GUADALUPE, José L. P., GRUNDBERGER, Sebastian nas referências ao final) expõe que os evangélicos chegaram ao continente mais definitivamente (houve experiências mal sucedidas de ocupação europeia nos séculos 16 e 17) a partir do século 19, tanto com a imigração ingleses e alemães quanto, fundamentalmente, com o trabalho de missionários originados dos Estados Unidos. Foram estabelecidas por missionários diferentes igrejas dos ramos congregacional, presbiteriano, metodista, batista, episcopal, luterano. Os grupos pentecostais se estabelecem no continente a partir do início do século 20 (Assembleia de Deus, por exemplo, entre muitos outros).


Imagens: Trecho do vídeo “Por que alguns pastores fazem sucesso no YouTube, Instagram e TikTok”, DW-Espanhol, Youtube.
Segunda checagem: A Central Inteligence Agency (CIA) dos Estados Unidos, criada em 1947, não existia quando os missionários dos EUA aportaram com suas missões protestantes na América Latina no século 19. Muito menos é possível dizer que a CIA enviou para o continente igrejas pentecostais para contrapor as ações católicas progressistas. Além de as igrejas pentecostais terem chegado às terras latino-americanas décadas antes da CIA ser criada, afirmar que elas enviaram estas igrejas para frear o Catolicismo considerado progressista é teoria da conspiração com bases enganosas.
Não há qualquer pesquisa de historiadores, cientistas da religião, antropólogos da religião, sociólogos da religião que mencionem que a inserção e o crescimento pentecostal se deva a um trabalho da CIA no continente latino-americano. É fato que há históricas evidências de intervenções do governo dos Estados Unidos em questões políticas na América Latina, em especial na promoção e no apoio a ditaduras, e houve e ainda há o apoio governamental e não-governamental estadunidense a grupos conservadores em reação a avanços sociais e ações progressistas, incluídas certas igrejas e seus projetos (ver também referências ao final da matéria do jornalista Délcio Monteiro de Lima). No entanto, afirmar que entre estas estratégias políticas está a produção do crescimento evangélico é um exagero que reforça o desconhecimento e ignorância sobre as transformações do campo religioso latino-americano relacionadas às mudanças socioculturais, políticas e econômicas do continente.
Atualização:
Após a publicação da checagem, a rede DW Español enviou mensagem ao Bereia, por meio do seu perfil no Instagram, com pedido de desculpas pelo erro de conteúdo, confira:
Queridos usuarios, como afirma esta publicación, los primeros “protestantes” no llegaron a América Latina por primera vez en los años 70, como afirmamos en el video, sino mucho antes.
No obstante, el objetivo de este análisis es la influencia que estos grupos religiosos tienen hoy en día en la sociedad de la región. Disculpen el error.
Deutsche Welle se esfuerza en ofrecer un contenido de calidad, pero somos humanos y hubo un error de lectura de una fuente en el trabajo de investigación de este vídeo. Un sincero saludo desde Berlín.
**
Bereia avalia que uma parte do material em vídeo produzido pela DW-Espanhol sobre Evangélicos na mídias na América Latina propaga erros crassos e reproduz teorias da conspiração que desinformam e contribuem com o desconhecimento e a ignorância sobre o lugar deste grupo religioso no cenário latino-americano. Oferecer tal conteúdo desinformativo no início do vídeo compromete toda a produção. Pesquisa e apuração jornalística responsáveis são imprescindíveis para a garantia do direito humano à informação.
Referências
GUADALUPE, José L. P., GRUNDBERGER, Sebastian (Eds.). (2019). Evangélicos y Poder en America Latina (2 ed.) Instituto de Estudios Social Cristianos (IESC)/ Konrad Adenauer Stiftung (KAS). Disponível em https://www.kas.de/c/document_library/get_file?uuid=35e0675a-5108-856c-c821-c5e1725a64b7&groupId=269552 Acesso em 3 abr 2025
CIA
https://www.cia.gov/legacy/cia-history/ Acesso em 3 abr 2025
JOFFILY, Mariana. A política externa dos EUA, os golpes no Brasil, no Chile e na Argentina e os direitos humanos. Revista de História. Disponível emhttps://www.scielo.br/j/topoi/a/MPKnBvVZMspJCSTL7xnWTkS/# Acesso em 3 abr 2025
CUNHA, Magali. Fundamentalismos, crise na democracia e ameaça aos direitos humanos na América Latina: tendências e desafios para a ação. Disponível em https://koinonia.org.br/wp-content/uploads/2020/10/FundamentalismosPT.pdf
Imagem de capa: reprodução/Youtube