A crise provocada pela operação policial em áreas de favela na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, em 28 de outubro passado, tomou conta do noticiário. Anunciada pelo governador do Estado Claudio Castro (PL) como “guerra às drogas”, a ação de ocupação resultou na morte de pelo menos 130 pessoas, entre elas quatro policiais, com as demais não identificadas, segundo a Defensoria Pública do Estado, contadas até a manhã de 29 de outubro (o governo do Estado confirmou 121).
Esse número é bem maior do que o de presos, 81, e de fuzis apreendidos, 93, segundo relato da Polícia Militar, o que, segundo especialistas, caracteriza fracasso na operação. Outra consequência foi o caos na cidade, com a suspensão de aulas em escolas e universidades e do atendimento em unidades de saúde, bloqueio de vias públicas bloqueadas, além de transporte com itinerários desviados e clima de terror entre a população.
Como Bereia publicou no dia da operação, uma nota conjunta de entidades que atuam por direitos da população, com especialistas na área de segurança pública, classificou a ação como a mais letal da história do Rio de Janeiro. Segundo o comunicado, o ocorrido “expõe o fracasso e a violência estrutural da política de segurança no estado e coloca a cidade em estado de terror”.
O texto classifica as mortes como uma “chacina” que faz parte de um “longo e trágico histórico de matanças cometidas por forças policiais no estado — apresentadas, equivocadamente, como política pública”. Matéria do jornal O Globo, levando em conta os contextos diferentes, mostra que a matança deste 28 de outubro no
Rio superou o massacre do Presídio de Carandiru, ocorrido em 1992.
Entre o que foi publicado nas mídias sobre o caos na cidade e o drama das famílias que choravam seus mortos – as dos policiais e as moradoras dos bairros-alvo da intervenção policial – está uma quantidade enorme de conteúdo fraudulento (falsidades e enganos). As agências de checagem têm trabalhado bastante para indicar os materiais criados especialmente para intensificar o pânico e para capitalizar apoios políticos em torno da tragédia.
Sobre o que foi produzido para intensificar pânico, o projeto Fato ou Fake, do Portal G1, fez um levantamento detalhado que inclui os falsos anúncios de Estágio 4 na cidade do Rio, de fechamento da Ponte Rio-Niterói, imagens de incêndios na cidade manipuladas por IA e de ataques a trens, entre outros. Já a agência Lupa produziu matéria com algumas dessas checagens do Fato ou Fake e como mentiras sobre toque de recolher e arrastões e outros pontos importantes, como declarações enganosas do governador Claudio Castro. Todos circularam em ambientes digitais religiosos e devem ser conferidos.
Bereia levantou o que foi viralizado nos espaços religiosos para além da intensificação de pânico: verificou-se o que foi produzido por políticos para captar apoios às suas pautas e acumular capital político para as eleições em 2026. As classificações do tipo de desinformação serão oferecidas ao longo da matéria.
Conteúdo enganoso e impreciso do governador Claudio Castro
Em declarações públicas, o governador do Rio, cantor gospel católico, Cláudio Castro, durante a ação policial de 28 de outubro, afirmou que o governo federal teria negado três pedidos de apoio das Forças Armadas (por exemplo, blindados) ao estado do Rio de Janeiro. O governador chegou a dizer: “o estado está “sozinho” e “não temos ajuda das forças de segurança [federais] nem [do] Ministério da Defesa. Mídias de notícias publicaram esse conteúdo sem checagem e ele foi amplamente disseminado.



Ofício divulgado pelo governador sobre o pedido do Estado do Rio ao governo federal segue circulando nas redes e foi repercutido, por exemplo, pelo deputado federal evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).

Logo depois que esse conteúdo circulou, já se verificava ser enganosa a afirmação do governador Claudio Castro. Após as declarações dele, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) divulgou nota em que afirma não ter recebido pedido de cooperação do governo do Rio. O órgão afirmou que “tem atendido, prontamente, a todos os pedidos do Governo do Estado do Rio de Janeiro para o emprego da Força Nacional de Segurança Pública no Estado, em apoio aos órgãos de segurança pública federal e estadual”. Na nota é afirmado que a Força Nacional foi mantida no Rio de Janeiro desde outubro de 2023, com atuação garantida até dezembro de 2025. Segundo o ministério, essa medida pode ser renovada.
A pasta também afirma que atendeu a todos os 11 pedidos de renovação feitos pelo governo do Rio, o que demonstra “total apoio” do governo federal às forças de segurança estaduais e federais que atuam na capital fluminense.
O ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski falou à imprensa e negou pedido de ajuda para a ação de 28 de outubro. Foi ainda destacado que a Polícia Federal realizou 178 operações no Rio neste ano, sendo 24 voltadas ao combate ao tráfico de drogas e armas.

Bereia também verificou que o documento encaminhado ao governo federal com pedido de ajuda, divulgado por veículos de imprensa e por apoiadores do governador, como o deputado Sóstenes Cavalcante, foi publicado com uma tarja vermelha com a palavra “Urgente”. A tarja foi inserida deliberadamente para esconder a data de emissão, 28 de janeiro de 2025, e fazer crer que o ofício teria sido encaminhado mais recentemente para atender à ação policial praticada em 28 de outubro. Porém, uma simples observação atenta da imagem que circula mostra a data original do envio, 28 de janeiro de 2025, no rodapé da certificação digital.

O pedido de janeiro foi, de fato, encaminhado ao Ministério da Defesa, referente a demanda específico de blindados à Marinha do Brasil, para patrulhamento da região onde está localizado o Hospital Naval Marcílio Dias, mesma Zona Norte do Rio, onde uma médica capitã de Mar e Guerra foi ferida por uma “bala perdida”, em dezembro de 2024. A Advocacia Geral da União (AGU) emitiu parecer técnico, em fevereiro de 2025, com a indicação de que o pedido de blindados não poderia ser atendido pelas Forças Armadas diretamente e que só teria condições de ocorrer no contexto de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Segundo a AGU, tal demanda exigiria outro tipo de encaminhamento que culminaria com um decreto presidencial. Não foi dada sequência ao caso.
Depois de ter criado a polêmica e feito viralizar a ideia de apoio negado ao estado, Claudio Castro amenizou o tom das críticas ao governo federal e afirmou que foi mal interpretado ao dizer que o estado estava “sozinho” na ação policial letal na Zona Norte do Rio. “Houve uma leitura errada da minha fala”, disse o governador. “Eu não pedi ajuda. A pergunta do repórter foi se o governo federal estava participando da operação, eu falei que não e perguntaram por quê. Nas últimas três ocasiões, pedimos blindados e a resposta foi que só poderiam ser cedidos com GLO. Como o presidente é contra [a GLO], não adiantava pedir de novo”, falou.
Na entrevista, Claudio Castro explicou que não houve comunicação prévia sobre a operação de 28 de outubro porque já esperava uma negativa por parte do governo federal. Castro afirmou ainda que iria conversar com a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffman: “Ficamos de nos falar ao fim da noite mais um mais uma vez para a gente entender os passos de amanhã. Eu não acredito que segurança se faz politizando. Então, qualquer ajuda que o governo federal quiser dar dentro do que a gente necessita, será bem bem-vinda. Eu vou ter uma outra reunião antes de falar com eles, com os nossos secretários da área de segurança para entender quais são os passos de amanhã”.
Outra declaração desinformativa do governador Claudio Castro diz respeito aos mortos. Em entrevista no dia seguinte à ação policial, ele afirmou que dos mais de 100 mortos, apenas quatro são vítimas – os policiais. O governador também disse que se a polícia matou algum inocente, foi algo ‘residual’. O portal religioso de notícias Pleno News deu destaque à fala em matéria.

A afirmação de Claudio Castro desinforma porque é imprecisa: não há informações sobre a identidade dos mortos e pode haver moradores não ligados ao crime entre eles. A cobertura da imprensa em 29 de outubro deu conta de que dezenas de corpos foram retirados por moradores de áreas de mata, na divisa das regiões onde ocorreu a megaoperação, em busca de parentes e amigos. Os corpos foram colocados pela população em uma praça pública, expondo de forma dramática o ocorrido no bairro. Apenas por volta das 8h45, veículos da Defesa Civil Estadual começaram a chegar para realizar a retirada deles do local e levá-los ao Instituto Médico Legal. Alguns estavam decapitados ou com o rosto destruído a tiros, o que dificulta o reconhecimento. Outros tinham balas na nuca e marcas de facadas nas costas. Todas essas evidências caracterizam execução sumária, como denunciado por especialistas na nota publicada pelo Bereia.
Acompanhados pela Defensoria Pública e por ativistas por direitos, os moradores reclamam da forma truculenta como a ação foi conduzida. Ouvidos pela imprensa, moradores afirmaram:
No Brasil não existe pena de morte, não. Teve corpo com a cabeça decapitada, arrancaram até a perna. Parece que eles são treinados para subir na comunidade e matar negro pobre”, disse uma moradora, que subiu até a área de mata no alto da Penha para ajudar a retirar os corpos deixados após a operação.
“A polícia invadiu minha casa, bateram na cara do meu filho e jogaram spray de pimenta. Olha o rosto da minha neta. Ela teve febre e acordou hoje com o olho todo inchado. Eu estava com crianças em casa, e eles invadiram mesmo assim. Não me respeitaram”, afirmou outra moradora.
O líder de uma organização social no Complexo da Penha Raull Santiago afirmou que ainda pode haver mais corpos executados na mata. “Eu vim ajudar os familiares a encontrarem os corpos. Vimos um barranco com marcas de sangue e encontramos vários corpos”, contou.
Manipulação política da tragédia
Vários políticos da direita cristã lançaram mão da tragédia da Zona Norte do Rio para fazer política de oposição. Além do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), já citado nesta matéria, deputados evangélicos e católicos distorceram informações para criticar o presidente Lula e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Os evangélicos Filipe Barros (PL-PR) e Nikolas Ferreira (PL-MG) usaram a distorção de uma fala confusa do presidente da República, proferida na semana anterior, para propagarem que o governo federal defende o tráfico e não classifica as facções como terroristas.


A fala de Lula ocorreu em 23 de outubro, no contexto de uma entrevista à imprensa durante a viagem à Indonésia para participar de encontro de cúpula de presidentes. Ao ser indagado sobre o enfrentamento às drogas (a propósito das ações letais dos Estados Unidos contra supostos traficantes no Mar do Caribe), Lula disse: “Toda vez que a gente fala de combater as drogas, possivelmente fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente, os usuários. Os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também. Ou seja, você tem uma troca de gente que vende porque tem gente que compra, e tem gente que compra porque tem gente que vende”.
Lula ainda criticou as ações dos EUA: “Se a moda pega, cada um acha que pode invadir o território do outro para fazer o que quer. Onde é que vai surgir a palavra respeitabilidade à soberania dos países? Então eu pretendo discutir esses assuntos com o presidente Trump se ele colocar na mesa”.
De imediato houve uso político da declaração por parte de lideranças do PL e apoiadores nas redes, com a afirmação de que Lula estaria defendendo traficantes como vítimas. Nikolas Ferreira já havia publicado naqueles dias. “Lula acaba de anunciar que traficantes são vítimas dos usuários. No ritmo que vai, daqui a pouco o PCC vira ONG”, escreveu no X.
Figuras do governo federal e apoiadores do presidente publicaram conteúdo com explicações sobre o sentido da fala ser condenatório ao sistema do narcotráfico. No dia seguinte, Lula publicou uma retratação nas redes.
“Fiz uma frase mal colocada nesta quinta e quero dizer que meu posicionamento é muito claro contra os traficantes e o crime organizado. Mais importante do que as palavras são as ações que o meu governo vem realizando, como é o caso da maior operação da história contra o crime organizado, o encaminhamento ao Congresso da PEC da Segurança Pública e os recordes na apreensão de drogas no país. Continuaremos firmes no enfrentamento ao tráfico de drogas e ao crime organizado”

Desde a semana anterior e novamente após a megaoperação policial no Rio, há o uso enganoso da fala, de fato, confusa do presidente como munição de oposição, com a distorcida alegação de que o governo federal defende o tráfico e os traficantes. Uma audição atenta da entrevista em Jacarta e uma leitura simples da transcrição do que Lula disse são suficientes para identificar o discurso de que o tráfico não se sustenta sozinho e que é importante levar em conta o consumo de drogas pelas classes média e alta das populações, o que é base para a manutenção deste mercado ilegal que gera vítimas de todo tipo.
Os políticos que usam o argumento enganoso atuam para atender a uma pauta dos Estados Unidos e classificar o narcotráfico como terrorismo, caso da postagem de Filipe Barros, o que seria pretexto para uma intervenção militar daquele país em terras brasileiras. Há projetos de lei apresentados por deputados, especialmente os de identidade militar, na Câmara Federal que já visam tornar lei esta pauta.
Especialistas questionam a associação do narcotráfico com terrorismo pelas naturezas diferentes das ações do tráfico de drogas. O jurista André Callegari, por exemplo, afirma: “Ao contrário (…) do que ocorre com os terroristas e guerrilheiros, que lutam por uma causa (mesmo que equivocada), os integrantes do PCC, longe do seu ideal inaugural, ou a melhora do sistema prisional, visam, única e exclusivamente ao lucro, praticando tráfico de drogas, sequestros, homicídios, lesões corporais, ameaças, furtos, roubos de toda espécie, carros fortes, caixas eletrônicos, agências lotéricas etc.), contrabandos, tráfico de armas, enfim, a lista de infrações penais é enorme e quase impossível de ser descrita” .
Já o deputado federal católico Carlos Jordy usou o caos no Rio para criticar o STF que julgou favoravelmente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 63 sobre o que Jordy atribui o “avanço das facções criminosas”. A declaração do deputado é falsa, pois, além de não estar respaldada no objetivo da ação julgada no STF, ele faz a crítica sem qualquer embasamento científico ou, ao menos, em dados.

A ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, foi protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 2020, com apoio de entidades de defesa de direitos e de movimentos sociais. A ação foi apresentada ao STF para denunciar a violência policial nas favelas do Rio de Janeiro e pedir medidas que limitassem as operações das forças de segurança, no contexto da pandemia de covid-19. Naquele momento, pessoas eram vitimadas nas ações armadas sem aviso prévio, dentro de suas casas onde estavam reclusas como medida sanitária. O PSB argumentou que o Estado violava preceitos fundamentais da Constituição, como o direito à vida, à segurança e à dignidade humana.
Em junho de 2020, o STF concedeu uma decisão histórica: determinou que as operações policiais em favelas só poderiam ocorrer em casos excepcionais, com comunicação prévia ao Ministério Público e justificativa formal, o que reduziu significativamente o número de incursões naquele período.
Ao contrário do que diz o deputado Jordy, não houve “canetada”, mas um longo processo de discussão, audiências públicas e estudos da Corte, e a ADPF segue em andamento. O STF continua discutindo medidas para garantir maior controle e transparência nas ações policiais para que se garantam, de fato, segurança e não ameaça da população pelos órgãos públicos.
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Bereia chama a atenção de leitores e leitoras sobre o uso de uma tragédia social, como a ocorrida no Rio em 28 de outubro, para propagação de desinformação tanto para intensificar pânico e causar transtornos à vida da população, quanto para manipulação política seja para angariar e manter apoios seja para atacar opositores.
Frente a esta ação maldosa, Bereia reafirma a necessidade de desconfiar de todo e qualquer conteúdo que tenha estas características, com a devida verificação da veracidade antes de qualquer compartilhamento. Como parte desta ação, o número do WhatsApp do Bereia esta à disposição para consultas e envio de materiais para checagem.
Foto de capa: Fernando Frazão/Agência Brasil



