Editora-geral do Bereia discute política e religião em programa da rádio CBN

A relação entre política e religião se baseia em um movimento de mão dupla em que ambas as instâncias se socorrem para legitimar seus objetivos e interesses. A opinião é da editora-geral do Bereia e pesquisadora Magali Cunha, que participou de programa jornalístico de entrevistas da Rádio CBN, em 19 de março.

Ela explicou que essa relação não é algo novo, pois o Brasil já foi colonizado com base na religião, o catolicismo ibérico. “Ao longo de muitos anos”, comentou, “tivemos a experiência de ver o catolicismo como a religião do Estado, e isso foi se transformando dentro do quadro de pluralidade religiosa”.

Magali Cunha destacou que desde os anos 2010 se observa no Brasil e em outros lugares do mundo a apropriação de certo populismo de extrema-direita que faz uso da religião. “É um fenômeno que estabelece uma ligação de mão dupla com a política, na medida em que em algum momento vamos ter a politização da religião, e em outro, a sacralização da política”.

Isso significa que a religião se vê legitimando determinado regime, comunidade política ou partidos contra inimigos que eles mesmos definem como tais e que são tidos também como inimigos de Deus. “Por outro lado, a política é sacralizada quando certos partidos ou certas lideranças são colocados como escolhidos de uma divindade”, acrescentou a editora-geral do Bereia. Na entrevista, Magali Cunha também alertou sobre o risco de tratar os evangélicos como um único grupo – “chega a ser uma irresponsabilidade considerá-los de forma homogênea” – e comentou sobre outros temas.

Associar queda de aprovação do governo Lula às críticas sobre ataques militares de Israel é “simplista”, analisa editora-geral do Bereia

Atribuir a queda dos percentuais de aprovação do governo Lula entre o segmento evangélico às suas recentes declarações sobre os ataques militares de Israel em território palestino, conforme indicada na última pesquisa da Quaest, é muito simplista. A opinião é da editora-geral do Bereia e pesquisadora Magali Cunha, que foi entrevistada pelo jornalista Luis Nassif, do canal GGN em 6 de março de 2024.

“O que nós observamos nestes dois meses, com base no trabalho de monitoramento das redes, é que há um verdadeiro bombardeio de conteúdos alimentado pela grande mídia que não passam apenas por essa questão”, analisou a editora.

Ela destacou que temas como a discussão sobre a legalização da maconha no STF e o caso Marajó estão entre os que mais circulam nas redes religiosas.

Segundo Magali Cunha, existe certa confusão entre a figura do Israel do contexto bíblico com o Estado de Israel, criado em 1948 por intermédio da Organização das Nações Unidas (ONU). “Há, entre alguns grupos de evangélicos, uma compreensão histórica de que o Israel, localizado no Oriente Médio, é o mesmo do Israel da Bíblia, o que não é fato, daí transportam esse imaginário”, comentou.

“Os evangélicos”. Magali Cunha também chamou a atenção para a diversidade que existe entre as pessoas que professam a fé evangélica e alertou sobre o equívoco de homogeneizar o segmento. “[O termo] ‘Os evangélicos’ não existe. Ninguém é só evangélico nesta vida. A pessoa é mulher, negra, trabalhadora, desempregada, homem branco de classe média… Ninguém é evangélico igual até mesmo dentro de uma mesma igreja”.

Confira a íntegra da entrevista no canal do GGN no YouTube.

Propagação de fake news é intensificada em anos eleitorais, alerta editora-geral do Bereia

Os anos eleitorais recentes têm sido palco da intensificação da propagação de fake news, segundo avaliou a editora-geral do Bereia e pesquisadora Magali Cunha em reportagem publicada em 20 de março pela Agência Brasil intitulada “Entenda como a nova onda de fake news influencia a guerra digital”.

A pesquisadora chamou a atenção para as eleições ocorridas recentemente. “Os anos de 2018, 2020 e 2022 foram muito intensos com desinformação nos ambientes digitais. Já entre 2019 e 2021, houve deliberadamente uma política de desinformar, promovida pelo governo [do presidente Jair] Bolsonaro (PL). Mas desde outubro do anos passado, é cada vez mais alta a intensidade e quantidade de notícias falsas”, afirmou Magali Cunha.

Na opinião da editora-geral do Bereia, essa guerra digital das fake news é estimulada por diversos atores. “O nosso monitoramento de grupos de influenciadores religiosos aponta um verdadeiro bombardeio de conteúdos falsos, que depois acaba sendo alimentado pela própria grande mídia, com notícias com títulos enganosos que podem induzir leitores a construir pensamentos e ações negativas sobre determinadas pautas”, destacou. Ela acrescentou que “muitos políticos também têm seu papel negativo nesse ecossistema, porque municiam a desinformação com conteúdo não verdadeiro, que depois é trabalhado por esses grupos”.

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Foto de capa: Agência Brasília/Flickr

60 anos do Golpe Militar de 1964: memória e ressurreição

Em plena ditadura militar, estes versos compostos pelo então pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil João Dias de Araújo (1931-2014), transformados em canção pelo médico e músico Décio Lauretti, refletem uma compreensão de fé que insiste em subsistir entre evangélicos brasileiros:

Que estou fazendo se sou cristão? Se Cristo deu-me o seu perdão

Há muitos pobres sem lar, sem pão, há tantas vidas sem salvação

Meu Cristo veio pra nos remir, o homem todo sem dividir,

não só a alma do mal salvar, também o corpo ressuscitar.

Há muita fome em meu país, há tanta gente que é infeliz,

Há criancinhas que vão morrer, há tantos velhos a padecer.

Milhões não sabem como escrever, milhões de olhos não sabem ler

Nas trevas vivem sem perceber que são escravos de outro ser.

Aos poderosos eu vou pregar, aos homens ricos vou proclamar

Que a injustiça é contra Deus, e a vil miséria insulta aos céus

(a canção pode ser ouvida na gravação do Grupo Milad, disco Água Viva, 1985)

Para além da busca pela salvação da alma com uma morada no céu, o pastor João Dias e muita gente no seu tempo haviam construído um jeito de entender a fé e a relação com Deus que ia além do individual e passava por um olhar para o ser humano total, marcado por misericórdia e solidariedade, inspirados na ação de Jesus de Nazaré tal como relatada na Bíblia cristã. Esta fé gerava compromissos por relações justas entre as pessoas, e entre elas e as lideranças públicas. E estes compromissos se desdobravam em ações com base na compreensão expressa no refrão daquela mesma canção de 1967: “a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus”.

Neste 31 de março, de celebração da Páscoa, que nos faz vir à tona a memória dos chamados “anos de chumbo”, com o aniversário de 60 anos do golpe militar de 1964, é significativo lembrar esta canção. Hoje ela ainda é cantada em uma pequena parcela de igrejas e em grupos ecumênicos que buscam superar tanto a lógica individualista do mercado da música religiosa quanto a predominância dos conteúdos musicais que passam longe desse jeito de entender a fé expresso na poesia da canção.

A memória dos anos que se sucederam ao Golpe Militar guarda um lugar especial para cristãs e cristãos, entre eles muitos evangélicos, tanto entre as vítimas, aquelas que tiveram liberdades suprimidas e direitos violados por meio da censura, de prisões arbitrárias, da tortura e das execuções sumárias, quanto entre os omissos e os colaboradores, que no balanço, foram todos apoiadores. Os dois grupos se colocaram assim contraditoriamente em nome da sua compreensão de fé e de relação com Deus.

O primeiro grupo pagou o preço de viver a fé que questiona “Que estou fazendo se sou cristão?”, inspirado na justiça e na paz, como viveu Jesus de Nazaré, que também foi vítima de um sistema repressivo que tinha na religião uma aliada. Essas mulheres e homens, boa parte deles em plena juventude, carregaram sua cruz, mas finalmente encontram sua Páscoa, revivendo na memória de muitos grupos hoje com a retomada das ações pela busca da verdade e da justiça que lhes foi negada.

É fato que o jeito de entender a fé entre evangélicos brasileiros que predominou na história e é enfatizado no nosso tempo é aquele voltado para a salvação individualista, seja da alma, das finanças, de projetos pessoais ou políticos, ou mesmo para uma fé intimista muito pouco ou quase nada marcada por um olhar para o ser humano, com misericórdia, solidariedade e sentimento de justiça. No entanto, é significativo guardar a memória de que, ainda assim, tanto no passado quanto no presente esta não é uma unanimidade. Cristãos evangélicos hoje, como o pastor João Dias de Araújo, e tantos outros que os precederam, ainda se inspiram na humanidade divina de Jesus de Nazaré e buscam respostas para a pergunta “Que estou fazendo se sou cristão?” com base na compreensão de que “a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus”.

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Foto de capa: Arquivo Público do Distrito Federal

Postagem engana ao associar inspirador do pentecostalismo a frase racista (colaboração de Bereia com Estadão Verifica)

O Estadão Verifica publicou uma checagem, com a colaboração da editora-geral do Bereia, Magali Cunha, sobre um conteúdo enganoso que ligava Charles Fox Parham às Assembleias de Deus e a seguinte frase racista: “Quando eu morrer não me enterrem ao lado de um negro”.

Parham fundou o movimento Fé Apostólica no início do século XX, mas foi afastado em 1907, segundo a apuração. Magali Cunha explicou que o movimento tinha como doutrina o batismo no Espírito Santo e o falar em línguas, aspectos abraçados por diferentes movimentos pentecostais.

Contudo, Parham não foi o fundador das Assembleias de Deus nos EUA ou no Brasil. De acordo com o doutor em Ciência da Religião Gedeon Alencar, o religioso “nunca teve ligação oficial com a Assembleia de Deus e que não há qualquer texto acadêmico que confirme ele como sendo o seu fundador”.

Quanto ao racismo atribuído a Paham, o professor da Mackenzie Ricardo Bitun lembra que o pastor era adepto de uma teoria racista: “Basicamente esta teoria entende que os povos anglo-saxões são os descendentes biológicos diretos das dez tribos de Israel que não retornaram à sua terra natal após o exílio assírio no século VIII A.C. Ainda que esta teoria não fosse declaradamente racista, vários grupos supremacistas brancos anglo-americanos defendiam a ideia”.

Embora não seja confirmada a autoria da frase “Quando eu morrer não me enterrem ao lado de um negro”, foi consenso entre os especialistas ouvidos pelo Estadão Verifica que Paham reproduzia o racismo do seu tempo, assim como outros pastores americanos.

Checagem de Talita Burbulhan, do Verifica.

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Foto de capa: reprodução do Estadão Verifica

Balanço Janeiro 2024: Conferência Nacional de Educação é alvo de intensa campanha de desinformação

Desde o final de 2023, Bereia passou a acompanhar publicações em mídias digitais de identidade religiosa sobre a Conferência Nacional de Educação (Conae). Matéria específica sobre o tema foi publicada em dezembro passado, para confrontar vídeo publicado pela Associação Internacional de Escolas Cristãs (ACSI) publicou, em sua página oficial no Instagram, classificado como enganoso.

No vídeo, o diretor-executivo da instituição no Brasil pastor Mauro Meister faz uso de discurso alarmista sobre a convocação, em caráter extraordinário, para a (Conae). Meister afirma que o processo que estava em curso – realização das etapas distritais, municipais e estaduais que antecediam a conferência – estava sendo feito de maneira açodada, “como uma avalanche, por debaixo dos panos, sem citar como, oficialmente, estava protocolada a realização do evento. O pastor alegava ainda que o documento-referência da Conae 2024 seria uma ameaça à liberdade educacional, sem apresentar dados ou citar elementos concretos que justificassem a acusação.

Como o Bereia levantou, a realização do evento está prevista na Lei nº 13.0005/14, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE), e incluiu a realização de duas Conferências Nacionais de Educação (Conae) durante o decênio 2014-2024. Em seu artigo 6º, o dispositivo prevê que tais conferências sejam precedidas de versões distritais, municipais e estaduais, sendo articuladas e coordenadas pelo Fórum Nacional de Educação.

Segundo a referida lei, as Conferências Nacionais de Educação, a serem realizadas a cada quatro anos, têm o objetivo de avaliar a execução do PNE estabelecido e subsidiar a elaboração do plano para o decênio subsequente.

O Fórum Nacional de Educação, criado em 2010, e instituído por lei com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), é o órgão responsável pelo acompanhamento e implementação do PNE. Ele estava desarticulado no mandato federal anterior, e foi retomado pelo atual governo por meio da Portaria Ministerial nº 478, de 17/03/2023. A Conae de 2024 foi oficializada pelo Decreto nº 11.697, de 11/09/2023.

Mais sobre o que é a Conae e como ela está projetada oficialmente, pode ser verificado na matéria do Bereia, de dezembro de 2023.

Como foi a Conae em janeiro passado

Cerca de 2,5 mil educadores/as, de todo o país, estiveram em Brasília, de 28 a 30 de janeiro, nas dependências da Universidade de Brasília (UnB) para debater e aprovar as propostas voltadas ao texto final do novo PNE 2024-2034.

Participaram da Conferência 1.847 pessoas, delegados e delegadas eleitos nas etapas estaduais, municipais e distritais, da educação básica, da educação superior e da educação profissional e tecnológica, tanto do setor público como do privado. Entre eles, estavam gestores, trabalhadores, docentes, secretários, conselheiros, estudantes, pais, mães e responsáveis. A lista dos participantes pode ser verificada aqui.

A Conae contou, ainda, com 204 observadores, 78 palestrantes nacionais e internacionais, e 200 pessoas que atuaram no apoio, como servidores do Ministério da Educação e da UnB, estudantes, docentes. Também estavam presentes 48 pessoas com deficiência.

Na conferência, aconteceram sete plenárias simultâneas de discussão do Documento-Base. Ao todo foram 40 horas de avaliação das 8.651 emendas recebidas pelos estados e municípios. Também houve 34 colóquios, para o aprofundamento de temas relacionados ao Documento-Base, como “Sistema Nacional de Educação”, “Saúde e educação”, “Alfabetização”, “Educação antirracista”, “Escola de jovens e adultos”, entre outros. O documento pode ser acessado, na íntegra, aqui.

A desinformação sobre a Conae que circula em ambientes religiosos

Bereia checou que, durante o mês de janeiro de 2024, a Conferência Nacional de Educação (Conae) foi apresentada  em perfis de mídias sociais, com identidade religiosa ultraconservadora, de parlamentares, associações  de educação  e influenciadores digitais,  como um avanço da esquerda na doutrinação dos alunos para a próxima década.

O jornal Folha de S. Paulo, publicou matéria, no dia de abertura da Conae 2024, com a afirmação de que as bancadas ruralista e evangélica no Congresso Nacional , além de outras frentes do Congresso ligadas a movimentos conservadores, como Comércio e Serviço, Segurança Pública (Bancada da Bala) e Brasil Texas, pediram adiamento do evento e criticaram a política de educação do atual governo, em nota conjunta. A nota critica o documento-base da conferência, com a afirmação de que há nele pontos com viés político e ideológico. Os exemplos são a desmilitarização das escolas, crítica à prática de “homeschooling” (ensino em casa) e ao movimento Escola Sem Partido, ações chamadas de ultraconservadoras e temas como diversidade de gênero e religião, questões LGBTQIA+ e ambientais.

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) também publicou uma nota, juntamente com a Frente Parlamentar Evangélica, a Associação Internacional de Escolas Cristãs, a South American Indian Mission, os Ministérios Pão Diário, a Associação de Escolas Cristãs de Educação e a Convenção Batista Nacional. A nota acusa o documento-base da Conae de propor a “imposição de concepções ideológicas radicais e controversas, contrárias às presentes disposições da legislação nacional e à vontade da parcela majoritária da população”. As concepções que a ANJURE contrapõe são “ideologia de gênero”, “liberdade religiosa das escolas confessionais”, “conselhos e comitês fiscalizadores”, ”desqualificação das escolas privadas”, “apoio à formação em direitos humanos por movimentos e coletivos”, “críticas ao agronegócio”, “avaliação ideológica do desempenho de professores”.

Estas críticas opinativas aparecem, de forma distorcida, em postagens de políticos, como esta coletada pela equipe do Bereia, publicada pela deputada Julia Zanatta (PL-SC):

Imagem: reprodução do Instagram

Esta postagem do deputado federal Mario Frias (PL-SP) foi enviada por leitor para o WhatsApp do Bereia:

Imagem: reprodução do Instagram

Outro leitor também enviou ao Bereia um vídeo de seis minutos de duração, em que mulher não identificada diz estar presente na Conae 2024, em Brasília. Em tom alarmista, como os expostos acima, ela faz uma montagem de coleta que realizou de livros, materiais e produtos expostos em barracas e estandes, do depoimento que colheu de outra mulher e do recorte de falas de um grupo de debates, que reforçam a ideia de que a Conae é uma articulação que promove “ameaça/doutrinação marxista/socialista”, “fim da pluralidade de ideias” e perversão.

Imagem: reprodução de vídeo compartilhado em mídias sociais

Doutrinação esquerdista e marxista?

A associação entre educação, que inclui a pauta de direitos (humanos, sociais, culturais, econômicos, sexuais e ambientais), “ideologia de gênero”, “limitação da liberdade religiosa” e “doutrinação marxista” é a principal linha de argumentação de grupos políticos alinhados ao ultraconservadorismo no Brasil. Tal proposição tem relação com a ideologia que emergiu, recentemente, no Brasil, denominada “Escola Sem Partido” (ESP).

Escola sem Partido é um programa e um projeto de lei oriundo de um movimento político surgido no Brasil em 2003, no âmbito da sociedade civil, capitaneado pelo procurador paulista Miguel Nagib. No contexto do surgimento, segundo a pesquisadora e professora da Universidade Federal de juiz de Fora, especialista no tema, a principal pauta do ESP era o combate ao que Nagib denominou ‘doutrinação política e ideológica’ de crianças e jovens nas escolas brasileiras”.

A professora e pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora Andréa Silveira explana que por “doutrinação” entenda-se “toda e qualquer informação que seja diversa daquela que é preservada pelas famílias dos e das estudantes, as quais fazem parte da pluralidade de ideias que caracteriza os conhecimentos e os currículos de diferentes componentes para uma formação escolar ampla e cidadã”.

A pesquisadora explica que é nesse sentido que “grupos religiosos fundamentalistas e bancadas conservadoras atuam em conjunto para promover a perseguição de educadores e educadoras, pela supressão do reconhecimento e do diálogo entre as alteridades, forçando o apagamento da pluralidade de ideias, da liberdade e da diversidade em uma das principais instituições da vida moderna, a escola”.

As publicações da deputada federal Julia Zanatta (PL-SC) e da mulher não identificada, expostas como exemplo nesta matéria, atribuem “doutrinação” desta forma e a relaciona apenas às esquerdas políticas, eximindo as direitas e o centro de tal prática. A afirmação se torna enganosa, de acordo com o que a Profa. Andréa Silveira expõe, uma vez que a promoção de quaisquer ideologias, como o militarismo e o armamentismo, por exemplo, e a própria ideia de uma “Escola sem Partido”, podem ser qualificadas como doutrinação ideológica.

Uma informação importante a se recuperar é que participantes da Conae eram oriundos de todos os estados do Brasil, a maioria eleita, segundo o protocolo descrito em legislação referenciada nesta matéria, e o suposto critério de alinhamento partidário e ideológico não faz parte do processo de escolha.

Como classificado na primeira matéria do Bereia sobre este tema (dezembro de 2023), as postagens sobre a Conae, em janeiro de 2024, seguem sendo enganosas, pois contêm elementos dispostos estrategicamente para confundir e causar pânico moral, caso das publicações que subsidiam a matéria.

Como elementos do discurso enganoso estão a ausência de contextualização e a omissão de detalhes. As acusações feitas de que o documento-base da Conae são “doutrinação marxista”, visam usar o tema “marxismo”, amplamente desconhecido por boa parte do público, como ameaça para provocar reações negativas ao processo de discussão do qual

A estratégia de pânico moral se apresenta na defesa de uma pauta política erguida por políticos ultraconservadores, que envolvem a educação infantil. Como este nível educacional, consequentemente se liga à formação familiar, exigem que a educação seja pautada por valores cristãos, sem considerar a diversidade cultural, sexual, de gênero e a liberdade de credo da sociedade brasileira. Trata-se de mais um elemento de discurso enganoso quando não sustentado por fatos, mas por alegações fortalecidas por ideologias apoiadas em valores cristão-conservadores.

Referências de checagem:

Lei 13.005/14. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm#art12 Acesso em: 2 fev 2024

Decreto 11.697/23. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11697.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2011.697%2C%20DE%2011,cidade%20de%20Bras%C3%ADlia%2C%20Distrito%20Federal. Acesso em: 2 fev 2024

Religião e Poder/Escola sem Partido. https://religiaoepoder.org.br/artigo/escola-sem-partido/ Acesso em 2 fev 2024

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.

https://www.gov.br/Ministério da Educação/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/ultimo-dia-da-conae-aprovara-texto-do-novo-pne  Acesso em 2 fev 2024

https://www.gov.br/Ministério da Educação/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conferencias/conae-2024  Acesso em 2 fev 2024

https://www.gov.br/Ministério da Educação/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/convocada-conferencia-nacional-de-educacao  Acesso em 2 fev 2024

https://www.gov.br/Ministério da Educação/pt-br/assuntos/noticias/2023/outubro/publicado-documento-referencia-da-conae-2024 Acesso em 2 fev 2024

http://portal.Ministério da Educação.gov.br/component/tags/tag/conferencia-nacional-de-educacao Acesso em 2 fev 2024

https://www.gov.br/Ministério da Educação/pt-br/assuntos/noticias/2023/outubro/regimento-geral-define-regras-para-a-conae-2024 Acesso em 2 fev 2024

https://www.gov.br/Ministério da Educação/pt-br/assuntos/noticias/2023/outubro/documento-orienta-estados-e-municipios-para-conferencias Acesso em 2 fev 2024

Fórum Nacional de Educação,  https://fne.Ministério da Educação.gov.br/#documentos Acesso em 2 fev 2024

Folha de S. Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/01/agro-e-evangelicos-montam-ofensiva-contra-plano-de-educacao-do-governo-lula.shtml Acesso em 2 fev 2024

Anajure, https://anajure.org.br/manifestacao-publica-sobre-o-documento-referencia-da-conferencia-nacional-de-educacao-para-a-elaboracao-do-plano-nacional-de-educacao-2024-2034/ , Acesso em 2 fev 2024

Montagem que denuncia perseguição do STF a cristãos tem conteúdo falso

Bereia recebeu de leitor um vídeo que tem circulado com intensidade em grupos de WhatsApp nos últimos dias:

Imagem: reprodução de publicação que circula no WhatsApp

A publicação traz um vídeo que é a montagem de duas imagens: uma, com uma frase introdutória, cortada no início e no final, extraída de matéria de um telejornal, a partir do que dizem dois apresentadores, e dura dez segundos: “… pode provocar uma verdadeira caçada aos cristãos. A lei que entrará em vigor em um ano e meio prevê a criminalização daqueles que propagam a fala de Deus”.

Logo em seguida, a montagem inclui um novo vídeo com a fala de uma mulher, sob a legenda “Advogada alerta: STF quer tirar Deus da democracia”. A fala inserida na montagem, como se fosse parte do telejornal, dura 45 segundos, na qual a mulher afirma que o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral teriam encaminhado decisão para cassar todos os candidatos cristãos que forem eleitos.

Bereia já checou a parte da montagem com a fala da mulher

A parte da montagem que inclui o vídeo da mulher discursando contra o STF e o TSE, com a citação do nome do ministro Edson Fachin, é antiga: circulou nas mídias sociais em 2020 e foi checada pelo Bereia, classificada como conteúdo falso.

A mulher é a professora de Direito Tributário e advogada Lenice Moreira de Moura. O vídeo checado pelo Bereia foi publicado no seu canal do Youtube, em 02 de julho de 2020 (atualmente fora do ar), e alcançou alta repercussão nas redes religiosas.

Lenice Moura apresenta acusações contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e afirma que estas instituições buscam “tirar Deus da democracia”. Ela alega: que haveria cassação de candidatos cristãos eleitos sob o argumento de “abuso de poder religioso”; que “ministros do STF ordenaram a apreensão de celulares e computadores de políticos cristãos, além de mandarem prender jornalistas e ativistas cristãos”; “que há proibição de símbolos religiosos em repartições públicas e escolas e do ensino religioso no ambiente escolar”.

Bereia checou cada uma destas afirmações e concluiu, em 2020 (ano eleitoral para cargos municipais) que a acusação proferida por Lenice Moura era falsa. Ela utilizou temas descontextualizados como pretexto para sua argumentação de que cristãos estariam sendo perseguidos pelo Judiciário. Bereia também checou que a advogada era reincidente na propagação de desinformação, fazendo uso do discurso do medo e do pânico moral.

A montagem de agora circula desde 2022

Bereia checou a montagem grosseira em vídeo, recebida de leitor, neste janeiro de 2024, que contém o vídeo com a acusação de Lenice Moura ao STF e ao TSE. A pesquisa mostrou que a montagem já havia circulado amplamente em perfis de mídias sociais, em 2022, ano das eleições para cargos nacionais e estaduais.

Imagem: reprodução do X (antigo Twitter)

O projeto jornalístico de checagem “Aos Fatos”, já havia publicado matéria sobre a montagem em 29 de julho de 2022. Aos Fatos classificou o conteúdo como falso e ofereceu as seguintes informações resultantes de pesquisa:


1. O STF não criou uma lei que propõe cassar o mandato de candidatos cristãos eleitos. Não existe norma aprovada ou projeto de lei semelhante em tramitação no Brasil.

2. O vídeo tira de contexto uma reportagem sobre uma lei da Bolívia que não proíbe cristãos de se candidatar, mas veda o recrutamento forçado de pessoas por entidades religiosas – a introdução do telejornal –  e adiciona, a seguir, o protesto de Lenice Moura, que fez uso de informações enganosas (classificado pelo Bereia, em 2020, como falso).

3. Os dez segundos introdutórios foram retirados de telejornal da RIT TV, emissora vinculada à Igreja Internacional da Graça de Deus, de edição veiculada em 11 de janeiro de 2018. Nela, dois apresentadores criticam uma lei que, na opinião deles, iria perseguir cristãos. A medida criticada, entretanto, foi promulgada na Bolívia, não no Brasil. O governo boliviano havia proposto um artigo na reforma do Código Penal que considerava crime o recrutamento de pessoas para participação em conflitos armados, organizações religiosas ou de culto. A medida foi interpretada por religiosos como uma censura à evangelização cristã. Ainda em janeiro daquele 2018, o então presidente Evo Morales desistiu de defender a norma.

A montagem voltou a circular em 2023, em vários perfis, em diferentes mídias, com amplo alcance entre religiosos, com a divulgação de que a TV aberta estaria falando sobre perseguição a cristãos no Brasil, não apenas pelo STF, mas também pelo atual governo federal:

Imagens: reprodução do X (antigo Twitter)

Bereia acompanha o Aos Fatos, que, já em 2022, classificou a montagem que divulga que o STF (e agora o atual governo federal) querem “tirar Deus da democracia” como falsa.

Bereia alerta leitores e leitoras sobre a utilização deste tipo de conteúdo em ano eleitoral para convencer e fazer campanha contra instituições e pessoas públicas com uso de mentiras e falsidades. Em 2024 ocorrerão as eleições municipais e é preciso muita atenção para que tais estratégias não resultem em assimilação e compartilhamento automático, sem a avaliação e a reflexão devidas.

O tema da perseguição de instituições do Estado brasileiro a cristãos no Brasil tem sido amplamente checado pelo Bereia, e é comprovadamente falso. Bereia também já checou muitas publicações com acusações ao STF que são falsas e enganosas.

É preciso sempre recordar que fazer oposição a governos e oferecer críticas a instituições e suas lideranças são práticas viáveis, saudáveis a uma democracia e devem ser garantidas pelo Estado Democrático de Direito. Porém ambas as ações devem ser feitas com dignidade e coerência e não por meio de falsidades apelativas, o que deve ser imediatamente confrontado e denunciado.

Esta matéria foi produzida a partir de conteúdo enviado por leitor. Qualquer pessoa pode colaborar com o Bereia e enviar indicação de checagens: e-mail coletivobereia@gmail.com ; WhatsApp: (21) 97884-2525

Referências:

Bereia. https://coletivobereia.com.br/e-falso-conteudo-divulgado-em-video-por-advogada-que-acusa-stf-e-tse/ Acesso em 31 jan 2024

Aos Fatos. matéria sobre a montagem em 29 de julho de 2022 Acesso em 31 jan 2024

Paz na Terra: a difícil, mas possível, esperança de Natal

* Publicado originalmente na Carta Capital

2023 chega ao fim com uma mescla de sentimentos que, no plano nacional, vão do alívio e do orgulho à apreensão e a incerteza. Também outros, em âmbito internacional, que estão entre a esperança, de um lado, e a comoção e revolta, de outro. É um tempo que desafia os grupos religiosos, comprometidos com a paz com justiça, diante de mais um ano que chega neste século 21.

É fato que depois de um tempo difícil em termos de governo no Brasil, este primeiro ano inspira alívio. Diante do caos instalado no período anterior, com obscurantismos, negacionismos e destruição de políticas públicas que buscavam garantir direitos, em especial na educação, no meio ambiente, na saúde, nos direitos de minorias sociais, e nas relações internacionais, as propostas de reconstrução e pacificação do atual governo começam a fazer diferença. Não é à toa que recente pesquisa indicou que a satisfação de morar no Brasil subiu de 59% para 74% em um ano, enquanto o sentimento de orgulho de ser brasileiro passou de 77% para 83%, no mesmo período.

Porém, com o perfil do Congresso Nacional, majoritariamente composto por uma direita fisiológica, ironicamente chamada de “Centrão”, e por uma extrema-direita ancorada no ódio e na desestabilização, a dificuldade de governar com justiça se impõe. Negociações necessárias para fazer valer a reconstrução, comprometida com a pauta de direitos, resultam em perdas que podem representar ameaças futuras, na forma de nomeações questionáveis e concessões que são retrocessos diante dos avanços necessários. Com isso, a apreensão ganha lugar.

O reconhecimento do Brasil e do atual governo no campo das relações internacionais tem sido retomado, o que reforça nas pessoas o orgulho de morar no Brasil e de ser brasileiro, e a esperança por tempos melhores. A diplomacia e o Ministério do Meio Ambiente têm atuado em importantes processos, como na intermediação por paz entre Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina, Venezuela e Guiana e na defesa da Amazônia e de outras áreas de floresta. Importantes acordos de parceria têm sido firmados e o país se prepara para receber, em 2024, a reunião do grupo das 20 maiores economias do planeta, o G 20, e, em 2025, a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-30).

Porém, o avanço dos extremismos no mundo, dos partidos e políticos de extrema-direita ocupando postos de poder, com imposição de políticas e ações desestabilizadoras, especialmente para as populações mais vulneráveis, causa muita preocupação. É o caso da vizinha Argentina, de partes da Europa e no caos instalado no Oriente Médio, com o Estado de Israel, liderado por Benjamin Netanyahu.

Chegamos ao fim de 2023, com mais de dois meses de massacre da população da Palestina, imposto na oportunidade de retaliação de Israel a um ataque do grupo político palestino Hamas, em 7 de outubro. Isto causa comoção, revolta e sentimento de impotência em muita gente sensível à causa da paz e ao direito de a Palestina existir.

No caso dos cristãos, não é possível chegar ao Natal de 2023, recitar cânticos de Natal e as palavras do anjo aos pastores, no anúncio do nascimento do Menino Jesus, “Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra às pessoas de boa vontade”, sem considerar que aquela terra do anúncio, Belém, é alvo de massacre e destruição por Israel.

Como as igrejas, que anunciam “Paz na Terra…”, cantam e pregam o Menino Jesus, o Emanuel (Deus Conosco), o Príncipe da Paz, poderão celebrar a data sem considerar as milhares de pessoas palestinas mortas, as centenas de famílias desfeitas, desabrigadas, feridas e humilhadas, na terra em que Ele nasceu?

Como cristãos e cristãs lembrarão, revoltados, que o Rei Herodes perseguiu Jesus e sua família, a ponto de buscar impedir que o menino sobrevivesse e mandar matar inocentes de até dois anos de idade até que ele fosse alvejado, sem pensar no “Herodes que ocupa o cargo de Primeiro-Ministro de Israel hoje”? É de Netanyahu que parte a ordem do massacre que promove a matança de crianças (dez mil, segundo o Ministério da Saúde da Palestina, em 15 de dezembro), além de tornar cerca de 25 mil órfãs (segundo o Monitor Euromediterrâneo de Direitos Humanos, de Genebra/Suíça).

O massacre da Palestina causa comoção e revolta em quem tem compromisso com a paz com justiça, além de remeter a violentas e injustas ações similares perto daqui, nas periferias e interiores do Brasil. Sim, do país onde agentes públicos praticam execuções sumárias, que matam para investigar depois; do poder paralelo das milícias, dos “comandos”, dos matadores e jagunços a serviço dos eternos coronéis.

Sim, chegou o Natal e com ele o raiar de um novo ano. É legítima e importante oportunidade de celebrar a vida, a família, a amizade, o alívio, o orgulho, a esperança que precisam confrontar a apreensão, a incerteza, a comoção e a revolta. É com as atitudes, alimentadas pelos sentimentos que embasam reconstrução e pacificação, que se concretiza a “Paz na Terra às pessoas de boa vontade”. Sigamos nesta trilha, inspirada pelo Menino de Belém!

Aviso de recesso: Eu e as companheiras de artigos Angélica Tostes e Simony dos Anjos estaremos em recesso até 31 de janeiro. Desejamos aos nossos leitores e leitoras neste espaço um Natal de muita paz e esperança por um 2024 com justiça e alegria! Retornaremos em fevereiro.

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Foto de capa: Família palestina/Al Jazeera

Bereia foi tema de trabalho apresentado em congresso de ciências da comunicação sobre desinformação

O Bereia foi tema de trabalho apresentado no 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). O artigo, produzido pela pesquisadora e editora-geral do Coletivo Magali do Nascimento Cunha e pela também pesquisadora Priscila Vieira-Souza, abordou o fenômeno da circulação de desinformação entre grupos religiosos cristãos no Brasil na perspectiva de enfrentamento dessa realidade.

A análise teórica apresentada pelas autoras buscou explicar o lugar da disseminação das fake news entre grupos religiosos cristãos e também conceituou desinformação, situando-a como fenômeno social. Além disso, o trabalho avaliou o conteúdo de 92 matérias publicadas classificadas como verificação entre dezembro de 2019 a setembro de 2020. A esse exame se somaram análises com categorias ampliadas dos onze textos publicados durante o mês de setembro do último ano da investigação.

Entre as conclusões, as autoras apontaram que há forte tendência de que conteúdos desinformativos que circulam no ambiente religioso são do tipo fabricado/falso. Tal classificação, segundo os critérios do Coletivo Bereia, indica que o fato apresentado pelo conteúdo veiculado é completamente construído, sem correspondência com a realidade.

Clique aqui para ler a íntegra do artigo, intitulado “O enfrentamento da desinformação entre grupos religiosos: um estudo sobre a atuação do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias”.

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Foto de capa: Imagem de armennano por Pixabay

Editora de Bereia analisa fake news e eleições municipais em congresso de comunicação

Você relacionaria fake news com estratégias de campanha eleitoral de candidatos com identidade religiosa? Esse foi o esforço empreendido por Magali do Nascimento Cunha, pesquisadora e editora-geral do Coletivo Bereia, em trabalho apresentado durante a 46ª edição do Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação (Intercom).

A análise, que focou as eleições municipais de 2020,  se baseou em dados quantitativos e qualitativos resultantes de pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Os discursos contidos em materiais de campanha foram examinados, com a identificação dos principais conteúdos falsos e enganosos que circularam nos pronunciamentos de tais candidatos.

Magali Cunha concluiu que três núcleos temáticos de concentração de desinformação e fake news foram predominantes: ideologia de gênero, pânico em torno da educação e cristofobia.

Clique aqui e confira na íntegra o artigo, intitulado “Fake news como estratégia de campanha de candidatos com identidade religiosa: um olhar sobre as eleições municipais de 2020”.

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Foto de capa: Element5 Digital/Pexels

Conteúdo busca enganar católicos sobre evento na Catedral de Brasília para criticar governo federal

Bereia recebeu de leitor um vídeo com alto nível de circulação em grupos católicos no WhatsApp, que alardeia que o altar da Catedral Católica de Brasília “virou terreiro de Umbanda”, em evento promovido “pela ‘1ª´(sic) dama Janja”. O texto afirma ser uma grave profanação de um templo católico e atribui o caso à “situação geral do país” que “piora a cada dia”. A publicação ainda pede que quem recebe o conteúdo envie “para amigos católicos que fizeram o L ou foram isentões”.

Tela de celular com publicação numa rede social
Descrição gerada automaticamente com confiança média

O radar do Bereia identificou nesse conteúdo elementos comuns a falsidades que circulam pelas mídias sociais: 1) não tem identificação do autor ou autora da postagem nem data; 2) não tem fonte (de onde veio o vídeo); 3) é um recorte de 23 segundos de um vídeo sem  o contexto do ocorrido; 4) há o pedido de compartilhamento para mais pessoas (estratégia para que a desinformação viralize de forma espontânea e orgânica).

Bereia verificou que o mesmo recorte de vídeo foi divulgado na conta do X/Twitter do ex-presidente da Fundação Palmares (nomeado durante o governo de Jair Bolsonaro) Sérgio Camargo, e teve centenas de milhares de visualizações, com milhares de curtidas e compartilhamentos. Na publicação Camargo atribui a cerimônia na Catedral a o “governo petista” e cobra que católicos exijam “posicionamento da CNBB, caso a entidade seja contrária ao que se viu”.

Imagem: X/Twitter

Outros perfis de mídias sociais divulgaram protestos com o uso do mesmo recorte de vídeo, alguns com centenas de milhares de visualizações.


Interface gráfica do usuário, Site
Descrição gerada automaticamente

Imagem: x/Twitter

Imagem: Youtube

A noite na Catedral 

Bereia checou que o evento, acolhido na Catedral Católica de Brasília, foi realizado em 9 de novembro de 2023, como parte da programação do III Congresso Internacional de Direito do Seguro e IX Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS). O congresso foi sediado no Superior Tribunal de Justiça, sob a coordenação do ministro Paulo Dias Moura Ribeiro.

A noite cultural do evento do IBDS/STJ, na Catedral Católica de Brasília, foi a apresentação da Orquestra Mundana Refugi. O grupo é formado por 22 músicos brasileiros e imigrantes refugiados vindos do Irã, Guiné, Congo, Turquia, Cuba, China, Síria, Venezuela, França e Palestina. A orquestra apresenta repertório com composições próprias, músicas tradicionais e homenagens a compositores brasileiros, lançando mão de instrumentos entre os tradicionais piano, saxofone, flauta e bateria até os mais diferentes como bouzouki, kanun árabe, alaúde e rebab. 

Tela de celular com publicação numa rede social
Descrição gerada automaticamente com confiança média

Imagem: cartaz eletrônico de divulgação da apresentação da Orquestra Mundana Refugi na Catedral de Brasília.

O evento, com entrada franca, lotou a Catedral e foi noticiado pela revista eletrônica Metrópoles, pelo Correio Brasiliense, pelo Jornal de Brasília, pelo Portal Terra e pela Agência Brasil. Segundo a matéria do Metrópoles “os brasilienses ficaram encantados com o talento do grupo e conheceram um pouco dos ritmos e estilos de diferentes países. Duas obras do fotógrafo Sebastião Salgado foram expostas ao lado do palco e chamaram atenção por representar a luta pela proteção dos povos originários”.

O programa teve participação do cantor Renato Braz e do acordeonista Toninho Ferragutti, indicado três vezes ao Grammy Latino. Entre os presentes estiveram autoridades como o ministro do STJ Moura Ribeiro e o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar Paulo Teixeira. 

Com dois integrantes da orquestra originários da Palestina, o show em Brasília foi oportunidade de expressão de um pedido pela paz no Oriente Médio, para que cessem os ataques e que sejam devolvidos os reféns judeus, o que constou dos discursos proferidos. 

Bereia verificou, portanto, que a programação na Catedral não tem qualquer relação com o governo federal ou com a esposa do presidente da República Rosângela da Silva (Janja).

Altar profanado?

Na programação, de fato, ocorreu um momento, ao final, com uma dança relacionada à cultura africana. Porém, tanto a Arquidiocese quanto o maestro da Orquestra Mundana Refugi Carlos Antunes, explicaram, respectivamente, em nota oficial e carta, que ela ocorreu de forma imprevista, fora da programação, espontaneamente, da parte de duas pessoas africanas que estavam na audiência, como forma de agradecimento. 

A Arquidiocese também corrigiu as postagens críticas à Igreja e nega que haja “elementos concretos que caracterizem, moralmente e canonicamente, profanação do templo”.

Diz a nota da Arquidiocese de Brasília:

1- Nosso objetivo, ao aceitar o evento na Catedral, foi sensibilizar a comunidade de Brasília a respeito dos refugiados e migrantes, uma vez que a orquestra Mundana Refugi é um grupo musical composto por músicos brasileiros e por imigrantes e refugiados. Seu nome faz referência ao fato de acolher instrumentistas e vocalistas de todas as partes do mundo (“mundana”), refugiados no Brasil (“refugi”);

2- O acordo do evento em questão, previa somente a apresentação de coro e orquestra, algo comumente presente em nossas igrejas, com temas tradicionais de diversos países. No entanto, mesmo no fato ocorrido inesperadamente, não há elementos concretos que caracterizem, moralmente e canonicamente, profanação do templo;

3- Ao final da apresentação, ocorreu uma manifestação espontânea por parte de uma pessoa presente na plateia, surpreendendo não só a nós, mas, também, aos organizadores e ao maestro responsáveis pelo evento, gerando o episódio divulgado (cf. nota em anexo);

4- Reafirmamos que, em todo momento, a Catedral de Brasília conduziu com a devida prudência o que foi previamente acordado.

A carta do maestro Carlos Antunes, entre outros pontos, detalha o ocorrido:

Não havíamos programado realizar qualquer ato de dança como parte da apresentação musical, pois todos sabíamos que essa regra fora estabelecida como condição fundamental pela Catedral. Assim, com relação à dança espontânea que ocorreu ao final da última música, por parte de dois expectadores (sic) africanos, somente podemos imaginar, e isso foi dito por ambos ao se despedirem, que o fizeram em agradecimento ao espetáculo pois para eles ouvir música de seu país naquele templo espetacular foi muito emocionante, alegre e inesquecível. 

Suas manifestações foram feitas sem o nosso conhecimento. Isso faz parte da sua cultura e não demonstra, de forma alguma, desrespeito para com a religião católica. Tenho inúmeros amigos dançarinos africanos da religião católica e eles mencionaram-me suas boas emoções com o ocorrido. Acho importante reiterar que não havíamos combinado a dança, embora ela ocorra ocasionalmente nas nossas apresentações, como outras intervenções espontâneas do público.

(…)

Quando fomos surpreendidos pela dança dos expectadores (sic), ao final da música, fiz um sinal para a Mariama, nossa integrante, cantora africana, para que fosse lá, educadamente, e ocupasse o lugar deles, para que não continuassem ocupando o espaço e voltasse para cantar.

Ela de forma respeitosa fez exatamente isso. Chegou, fez alguns movimentos e ele se retirou. Ela em seguida voltou para cantar e terminamos a canção. Foi exatamente isso que ocorreu. O primeiro senhor que entrou para dançar, de forma muito cordial, me abordou e disse, ao final, que estava muito feliz por estarmos ali naquele momento”.

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Bereia classifica a publicação que circula em grupos católicos de WhatsApp e em mídias sociais sobre o evento cultural, ocorrido na Catedral de Brasília, em 9 de novembro como ENGANOSO. Anonimamente, como, propagadores de desinformação agem frequentemente, e sem dados que permitam às pessoas verificarem o ocorrido de forma honesta, foi utilizado um vídeo do final da apresentação da Orquestra Mundana Refugi, para criticar a Arquidiocese de Brasília, a esposa do presidente da República Rosângela da Silva (Janja) e o governo federal. 

Como checado pelo Bereia: 

1) a apresentação musical não tem qualquer relação com o governo federal ou com a esposa do presidente da República. Foi parte da programação de um evento realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), sediado no Supremo Tribunal de Justiça; 

2) o recorte do vídeo, divulgado sem explicação do que trata, refere-se ao final da apresentação musical da Orquestra Mundana Refugi, momento em que pessoas da plateia, de origem africana, espontaneamente se digiram à frente para dançar em agradecimento ao que presenciaram; 

3) a palavra oficial da Igreja Católica em Brasília é que, ancorada na moral e nos Cânones da Igreja, não houve profanação do templo com a manifestação espontânea das duas pessoas africanas.

Bereia alerta para o uso da fé cristã e do cuidado que fiéis têm com suas igrejas para se fazer política e atacar instituições religiosas, outras instituições e governos. Alerta também para a intolerância religiosa estimulada com a propagação do vídeo, sem a devida explicação do que foi uma dança da cultura africana, porém com as observações maldosas, por escrito e em vídeos, de que o altar da Catedral foi “transformado em terreiro de Umbanda” e “profanado”. Há outro aspecto em curso com a publicação, que é o racismo, uma vez que a dança foi realizada por pessoas negras, africanas, e as acusações que foram proferidas têm relação com este perfil.

Referências

Supremo Tribunal de Justiça https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Institucional/Educacao-e-cultura/Eventos/III-Congresso-Internacional-de-Direito-do-Seguro.aspx Acesso em 20 nov 2023

Youtube https://www.youtube.com/watch?v=IwZDDe1hlFA&pp=ygURZGlyZWl0byBkbyBzZWd1cm8%3D Acesso em 20 nov 2023 

IBDS https://www.ibds.com.br/18719-2/ Acesso em 20 nov 2023

Instagram https://www.instagram.com/omrefugi/ Acesso em 20 novv 2023

Metrópoles https://www.metropoles.com/colunas/claudia-meireles/orquestra-mundana-refugi-se-apresenta-em-show-emocionante-na-catedral Acesso em 20 nov 2023

Correio Brasiliense  https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2023/11/6653001-catedral-recebe-orquestra-mundana-refugi-nesta-quinta-9-11.html Acesso 20 nov 2023

Jornal de Brasília https://jornaldebrasilia.com.br/entretenimento/eventos/orquestra-mundana-refugi-se-apresenta-na-catedral/ Acesso em 20 nov 2023

Portal Terra https://www.terra.com.br/esportes/orquestra-que-reune-brasileiros-e-refugiados-se-apresenta-em-brasilia,0ffcbbaf88502674cbab95f8f6195cbdll9vnvw7.html Acesso em 20 nov 2023

Agência Brasil https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-11/orquestra-que-reune-brasileiros-e-refugiados-se-apresenta-em-brasilia Acesso em 20 nov 2023 

Arquidiocese de Brasília https://arqbrasilia.com.br/nota-de-esclarecimento-2/ Acesso em 20 nov 2023Carta do Maestro Carlos Antunes https://arqbrasilia.com.br/wp-content/uploads/2023/11/Nota-de-Esclarecimento-Apresentac%CC%A7a%CC%83o-Mundana-Refugi.pdf  Acesso em 20 nov 2023

Foto de Capa: reprodução do Youtube

Bereia é citado em matéria da Agência Brasil sobre combate à desinformação nas periferias

A Agência Brasil produziu reportagem sobre coletivos que contribuem para enfrentar a desinformação nas periferias brasileiras. Nesse sentido, além do coletivo Sargento Perifa, de Pernambuco, a reportagem apresentou o Bereia como outra iniciativa.

A editora-geral Magali Cunha falou do histórico do coletivo e das repercussões da recente pesquisa da Universidade Brasília, que demonstrou como os evangélicos são mais propensos a compartilhar conteúdos falsos sobre vacinas.

A reportagem no site da Agência Brasil você confere aqui. Para ver a matéria em vídeo sobre o tema, que foi ao ar no Repórter Brasil, clique aqui (a participação do Bereia ocorre a partir de 1’13”).

Foto de capa: coletivo Sargento Perifa

Evangélicos estão entre os que mais compartilham conteúdo falso sobre vacinas no Brasil

Pessoas identificadas como evangélicas, entre 35 e 44 anos, com grau de instrução até o ensino médio, integrantes das classes de renda mais baixa (D e E), usuários do Telegram, do TikTok e audiência do Jornal da Record, formam o perfil de quem mais compartilha conteúdo falso sobre vacinas no Brasil. A descoberta é parte do estudo “A comunicação no enfrentamento da pandemia de Covid-19”, produzido pelo Centro de Pesquisa em Comunicação Política e Saúde Pública, da Universidade de Brasília. O levantamento foi realizado em agosto passado, com 1.845 pessoas que têm acesso à internet, e os resultados foram divulgados no último 22 de outubro, pela Agência Brasil.

Para seleção dos entrevistados, os pesquisadores utilizaram um cadastro online com mais de 500 mil inscritos, no qual foram aplicadas cotas de gênero, idade, região e classe social para representar adequadamente a população brasileira. Os participantes selecionados responderam um questionário online, no qual foram convidados a compartilhar 12 notícias sobre vacinas, identificadas apenas pelo título, divididas igualmente entre verdadeiras e falsas.

De todos os pesquisados, 11,3% informaram que compartilhariam ao menos uma das notícias falsas e 3,7% informaram que compartilhariam cinco das seis notícias inverídicas.

O coordenador do CPS da UnB, e líder do estudo, Prof. Wladimir Gramacho, fez um destaque, com a Agência Brasil, sobre o perfil dos que mais propagam estes conteúdos:

“não quer dizer que pessoas que têm essas características são pessoas que automaticamente compartilham notícias falsas, mas o contrário: que pessoas que compartilham esses tipos de desinformação sobre vacinas costumam ter essas características”.

O professor acrescenta que outros estudos que tratam do tema da desinformação na internet indicam que o comportamento de pessoas que divulgam informações incorretas, ou notícias falsas, variam conforme o tema. Gramacho explica quando o tema em questão é político, há uma tendência de pessoas idosas compartilharem desinformação mais facilmente, mas quando o assunto é vacina este padrão é diferente no Brasil, inclusive quando comparado a pesquisas realizadas em outros países.

“A principal explicação para isso talvez seja o fato de pessoas mais velhas terem sido socializadas em uma época em que o país viveu grandes conquistas no seu Programa Nacional de Imunizações”, conclui o pesquisador.

Imagem: Agência Brasil

Telegram, TikTok e Jornal da Record em destaque na propagação de falsidades

Na pesquisa também foram analisados os hábitos de uso de mídias das pessoas que afirmaram que compartilhariam as notícias falsas. Foi observado que as pessoas que mais espalhariam desinformação são as que têm as mídias digitais como principal fonte de informação. “São usuários mais frequentes de plataformas como Telegram e Tik Tok que têm maior tendência de compartilhar notícias falsas sobre as vacinas”, indicou o Prof. Wladimir Gramacho à Agência Brasil.

Ao analisarem o uso da televisão, principal meio de informação no país, pesquisadores compararam entrevistados que declararam ser audiência do Jornal Nacional e os que declararam ser audiência do Jornal da Record. Os telespectadores do Jornal Nacional demonstraram compartilhar menos notícias falsas do que os da Record: os primeiros tiveram a metade das chances de divulgarem falsidades sobre vacinas.

Uma possível justificativa para esse comportamento, segundo Wladimir Gramacho, é um processo de exposição seletiva das pessoas entre esses dois telejornais. “A audiência mais frequente do Jornal da Record reúne pessoas simpatizantes do governo Jair Bolsonaro, que foi um governo que difundiu muitas informações incorretas sobre as vacinas e que, ele próprio, fez campanha contra a vacinação”, destaca o pesquisador.

As conclusões da pesquisa do CPS da UnB reafirmam os resultados da pesquisa que originou e o Coletivo Bereia e orienta suas ações: “Caminhos da Desinformação: Evangélicos, Fake News e WhatsApp no Brasil”. Realizada de 2019 a 2020, a pesquisa foi conduzida pelo Grupo de Estudos sobre Desigualdades na Educação e na Saúde (Gedes), do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ, sob a coordenação dos professores Dr. Alexandre Brasil e Dra. Juliana Dias, colaboradores do Bereia, com relatório publicado em 2021. 

Foto de capa: Agência Brasil

‘Narcopentecostalismo’? Mídias de notícias desinformam sobre a relação entre igrejas evangélicas e traficantes

* Matéria atualizada em 02/06/2023 para correção de informações

Matéria publicada originalmente pela BBC News Brasil repercutiu intensamente nas mídias digitais nas últimas semanas. Intitulada “‘Narcopentecostalismo’: traficantes evangélicos usam religião na disputa por territórios no Rio”, a reportagem apresenta a complexa dinâmica entre territórios disputados pelo tráfico e o fenômeno religioso.

Religiosos e acadêmicos estudiosos do tema reagiram à reportagem, reproduzida por jornais de grande circulação, apontando possível sensacionalismo na utilização de termos que associam práticas criminosas do tráfico à religiosidade evangélica. Bereia apurou a utilização, pela imprensa, do termo “narcopentecostalismo” à luz do que dizem pesquisadores do fenômeno religioso em áreas conflagradas.

Uso do termo narcopentecostalismo

Reportagem da BBC News Brasil, veiculada em 12 de maio, reproduziu argumento da cientista política e pesquisadora do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Kristina Hinz, segundo o qual “o termo neopentecostalismo tem sido empregado por diversos pesquisadores que analisam o fenômeno de narcotraficantes que assumem, de forma explícita e aberta, religiões neopentecostais, inclusive em suas atividades criminosas”.

Imagem: reprodução do Twitter

De acordo com a cientista política, “são traficantes que ao mesmo tempo participam da ‘vida do crime’ e da vida religiosa evangélica, indo a cultos, pagando o dízimo e até mesmo pagando por apresentações de artistas gospel da comunidade”.

O principal exemplo utilizado para sustentar a tese de que há uma convergência entre tráfico de drogas e religiões neopentecostais é a criação, em 2016, do Complexo de Israel, que uniu as comunidades de Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta, Cinco Bocas e Pica-Pau, no Rio de Janeiro. 

No território recém-unificado foram introduzidos símbolos religiosos e alguns traficantes se dizem convertidos ao Evangelho. É o caso de Peixão, criador do complexo, que se autointitula “traficante evangélico”. Entretanto,alguns estudiosos reagiram à forma de abordar a relação entre tráfico e religião apresentada por parte da imprensa como uma fusão que institui uma nova forma religiosa: uma narcorreligião, o narcopentecostalismo.

A utilização do termo não é nova na imprensa brasileira. Os pesquisadores em Língua Portuguesa Anderson Ferreira e Carlos Alberto Baptista produziram pesquisa, em 2020, que identifica este uso, por exemplo, em reportagem da revista Época, em 2019, com o título “‘Narcopentecostais’: casos de intolerância religiosa crescem com expansão de facção no Rio”. 

Época reportou um relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, que contabilizou 176 terreiros fechados no Rio de Janeiro, após ataques ou ameaças de traficantes. Ferreira e Baptista analisam a matéria e identificam que a revista anuncia “narcopentecostais” como uma “facção” em expansão. O relatório da Comissão referida, porém, não mencionava “traficantes evangélicos” e, sim, “traficantes”, destacam os pesquisadores. Eles tomam a matéria como exemplo de como as mídias jornalísticas seriam “responsáveis pela [re]construção de uma identidade híbrida entre traficantes e evangélicos”.

Dinâmica histórica da religiosidade nas periferias

A relação da religiosidade com dinâmicas de ocupação de territórios é um fenômeno antigo. É o que afirma a teóloga, pastora e pesquisadora da equipe do Instituto de Estudos da Religião (ISER), e autora do livro “Traficantes evangélicos: Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus”, Viviane Costa, em entrevista ao canal no YouTube Meteoro Brasil.

Imagem: reprodução do YouTube

“Há, desde a antiguidade, essa participação das divindades nas conquistas de território. No final da década de 1980, os traficantes já utilizavam os elementos religiosos, já utilizavam símbolos religiosos nessas disputas de poder no Rio de Janeiro. Então, quando um território era dominado por uma nova facção, a divindade dessa facção era derrotada e também era destruída e substituída, fosse numa imagem, fosse numa pintura, num muro, numa pichação ou em alguma espécie de devoção que era expressada na comunidade, como elemento, também, de dominação do território”, afirma a pesquisadora.

Costa faz, ainda, uma correlação com a própria dinâmica religiosa nacional: “nos últimos anos, a gente sabe que o campo religioso brasileiro começou a mudar. A gente tinha um catolicismo muito presente em toda a estrutura da nossa cultura, mas que vai sendo transformado, especialmente a partir das margens, das favelas, dos lugares de pobreza. E acontece assim no Rio de Janeiro”.

Periferias, tráfico e igrejas evangélicas

Uma das primeiras pesquisadoras a se dedicar a compreender o fenômeno da relação entre traficantes de drogas e igrejas foi a antropóloga, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da equipe do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Christina Vital. Ela identificou nos seus estudos, ainda no limiar dos anos 2000, que, na virada dos anos 1990 para os anos 2000 houve uma mudança radical da sociabilidade nas favelas do Rio de Janeiro, no que diz respeito à relação entre religiosidade e tráfico. 

Aquele novo contexto, segundo Vital, foi marcado pelo que ela denominou “cultura pentecostal”. “[Tal cultura] existe nas localidades e se expressa dentro das lógicas do universo evangélico, a ver com a cosmovisão pentecostal do mundo como o lugar da guerra. É o mundo da guerra do bem contra o mal, da disputa das almas. Paralelamente, esse é o mundo do tráfico, da guerra e da vigia, é bíblico também, vigiar e orar. O vigiar vem antes do orar. O cotidiano dos traficantes é o de vigia constante”, descreveu em entrevista ao IHU On Line, em 2017,  após o lançamento do seu livro Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015).

Imagem: Christina Vital/Arquivo Pessoal

Na entrevista ao IHU, Christina Vital explicou que, na pesquisa, “tentava entender de que modo as redes evangélicas funcionavam como redes de segurança para os moradores dessas localidades que dispunham de um dia a dia muito entrecortado por situações de violência e de precariedade de serviços oferecidos pelo Estado”. 

Naquele momento, a pesquisadora afirmou: “Eu pensava estas redes como um suporte material, espiritual e psicológico, entendendo que várias dessas igrejas pentecostais ou neopentecostais têm pastores e obreiros que são formados em psicologia e que fazem um tipo de abordagem misturando os diferentes universos de conhecimento. Durante este acompanhamento pude observar a proximidade dos traficantes às redes evangélicas, buscando por proteção, sobretudo porque muitos desses traficantes haviam sido formados em famílias evangélicas, mas que saíram de casa e acabaram indo para o tráfico”.

Vital continua: “O que acontece em Acari, como em outras favelas, é o crescimento do número de igrejas formando um público cada vez mais numeroso de pessoas que estão nas igrejas. E mesmo aquelas que não estão começam a partilhar daquilo que poderíamos chamar de ‘cultura pentecostal’. Isso é uma marca estética e uma gramática utilizada pelos moradores de modo que os traficantes são influenciados por essas perspectivas compartilhadas de modo mais geral”.

Imagem: reprodução do G1

Outro pesquisador que estudou o fenômeno, naquele início dos anos 2000, em diferentes favelas do Rio de Janeiro, foi o sociólogo e professor da Universidade de Vila Velha César Pinheiro Teixeira. Ele abordou o tema sob outra perspectiva: narrativas de conversão que recolheu e que destacavam o lugar do relacionamento entre pentecostais e traficantes num mesmo território mostrando a emergência de uma nova identidade, os ”ex-bandidos”. Teixeira explicou que “ex-bandidos” não se referiam, no que observada, aos egressos do sistema prisional, mas àqueles que tinham abandonado a vida no crime por terem experimentado uma conversão religiosa pentecostal.

Com um olhar voltado para o que Christina Vital e César Teixeira haviam indicado, o sociólogo professor da Universidade de Vila Velha Diogo Corrêa realizou um trabalho de campo na favela Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2014. Ele buscou compreender as relações entre tráfico de drogas e as igrejas pentecostais naquela localidade. Em artigo para o Observatório Evangélico, o pesquisador afirma ter diagnosticado fenômenos semelhantes àqueles percebidos por Vital e Teixeira. Ele é autor do livro “Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus”.

 Corrêa aponta ter identificado, com a pesquisa, a existência de uma “complexa coabitação entre traficantes de drogas e evangélicos no território da favela Cidade de Deus [que] teria produzido um duplo fenômeno: de um lado, um estilo de pentecostalismo particular, gerado na relação com a forma de vida do crime e com um ambiente caracterizado pela recorrência de situações violentas; de outro, um tráfico de drogas que abraça, em boa parte, uma cultura, uma linguagem ou mesmo uma gramática pentecostal”.

Diogo Corrêa ressalta que tal fenômeno de transformação mútua – tanto do  tráfico que se transformou com o crescimento dos evangélicos no território da Cidade de Deus, bem como do pentecostalismo que se transformou em sua relação com o universo do crime – não significou uma fusão entre ambos. Na análise do sociólogo, “moradores, traficantes e crentes da Cidade de Deus continuam a saber discernir o que é próprio do mundo da igreja pentecostal e o que é próprio do mundo do crime; grosso modo, eles sabem diferenciar o que é um traficante e o que é um crente”.

Repercussão negativa do termo narcopentecostalismo

A reportagem da BBC News Brasil ganhou repercussão nos meios evangélico e acadêmico, que reagiram à fusão entre o crime organizado e o protestantismo. Diogo Corrêa questiona, no texto para o Observatório Evangélico, a utilização dos termos “narcopentecostalismo” e “traficante evangélico”.

“Ao menos a partir do meu contexto etnográfico (…), categorias como ‘traficante evangélico’, ‘narcopentecostalismo’ não descrevem de forma adequada a experiência dos próprios evangélicos – e nem dos traficantes aderentes à cultura pentecostal -, além de incorrerem no risco de sugerir, de forma equivocada, a existência de uma espécie de religião para o crime”.

Corrêa cita exemplos, extraídos de pesquisa etnográfica por ele conduzida. Em um deles, uma pessoa ligada ao crime organizado reconhece, em conversa com o pesquisador, que suas atitudes não permitem que ela se classifique como evangélica: “para ser evangélico eu preciso praticar aquilo que eu acredito”, teria dito.

O pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia também repercutiu a reportagem da BBC, criticando, principalmente, o jornal O Globo, que a reproduziu. Em vídeo publicado no Twitter, o pastor chamou a reportagem de “canalha e mentirosa” e apontou o fato de que o jornal O Globo não se refere a “traficante umbandista”, “traficante do candomblé” ou “traficante católico” em outras ocasiões. 

Imagem: reprodução Folha Gospel

Bereia verificou que a abordagem do líder midiático reforçou o caráter sensacionalista em torno do caso. O discurso do pastor, além de ser emotivo e carecer de argumentação sólida quanto ao tema em questão, ainda lançou mão de desinformação promotora de intolerância contra as religiões de matriz africana.

“Narcopentecostalismo”: uma noção sem base concreta

Bereia ouviu a pesquisadora pioneira no estudo sobre a relação entre lideranças do tráfico de drogas e igrejas evangélicas nas periferias do Rio, Christina Vital, sobre as abordagens nas mídias de notícias nas últimas semanas. 

Sobre o ‘narcopentecostalismo’, Vital ressaltou que não há base concreta para sustentar este termo na atualidade. “Não sabemos do futuro, mas, hoje, não temos uma igreja liderada por alguém que está deliberadamente no crime e que tenha uma liturgia ou teologia voltada somente a esta atividade criminosa.  Se é isso que o termo supõe, não se sustenta. A aproximação entre criminosos e redes religiosas não é nova, não foi inventada por evangélicos e nem acontece exclusivamente em torno desta religião”. 

A pesquisadora explica que, já o segundo termo, “traficantes evangélicos”, sim, tem base concreta, mas deve ser usado com ética e cuidado porque não é usado comumente nem pelos traficantes e nem por evangélicos de modo geral. Vital afirma: “Lancei este termo em 2006 para descrever um fenômeno identificado nas favelas cariocas em que eu pesquisava, e o fiz entre aspas, explicando que não era uma autorreferência dos traficantes em relação a eles mesmos. O termo incomodava muitos evangélicos e evangélicas que se sentiam estigmatizados pelo uso descuidado desta expressão que fazia parecer que sua religião era permissiva em relação ao crime e eles afirmam que não. No entanto, usei esta terminologia pioneira e cuidadosamente para descrever um fenômeno que chamava atenção: a emergência de traficantes que atuavam em favelas e faziam orações publicamente, participavam de cultos, alguns eram dizimistas em grandes denominações, falavam sobre a redução de práticas violentas em seu cotidiano. Além dos pedidos de oração facilmente identificados pela mídia, esses traficantes apoiavam a divulgação da Palavra e a faziam de forma direta, eventualmente”.

Christina Vital oferece a leitoras e leitores do Bereia um alerta relevante: “É importante lembrar que o uso deste termo ‘traficantes evangélicos’ não deve mascarar, ainda, outras formas de experiência religiosa entre traficantes em favelas e periferias na atualidade. A religião de traficantes de drogas na high society carece de investigação”.

A pesquisadora e pastora Viviane Costa reforça: “O termo ‘narcopentecostalismo’ é equivocado e vem se revelando como parte de um alinhamento preconceituoso midiático contra evangélicos pentecostais. ‘Narcopentecostalismo’ força a ideia de exclusividade e até de ineditismo da presença de religiões em dinâmicas do crime”. 

Costa também sinaliza: “Ainda que estejamos falando de uma nova configuração quando olhamos para o Complexo de Israel e os traficantes evangélicos, onde a religião tem papel fundamental na estrutura, estratégias, identidades e ética local impostas pelo tráfico, é equivocado dizer que somente nesses territórios e na relação com evangélicos pentecostais, a religião e as experiências com o sagrado estão presentes dando sentido à vida e segurança em contextos de violências”.

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Com base nesta verificação, Bereia avalia que o uso do termo “narcopentecostalismo” em matérias das mídias de notícias, destacadas nas últimas semanas, é desinformativo, com caráter ENGANOSO. Os estudos empreendidos por diferentes pesquisadores, com ênfases distintas, voltados ao relacionamento entre igrejas evangélicas e o tráfico de drogas na vivência das favelas, afirmam uma coabitação e a transformação mútua de ambos. Porém, nenhuma das pesquisas identifica uma fusão entre pentecostalismo e crime ou a existência de uma ou mais igrejas com teologia, liturgia e pastoral voltadas à prática do crime. 

Ou seja, não há base concreta para se afirmar um “narcopentecostalismo”, quando o que se comprova é a existência de líderes do tráfico de drogas que se identificam como evangélicos e de igrejas que transformam seu jeito de existir nas favelas por conta da dinâmica do tráfico.

O uso do termo “narcopentecostalismo” tem sido veiculado de forma irresponsável pelas mídias de notícias, contribuindo para a amplificação de expressões de intolerância religiosa em diferentes contextos.

Referências de checagem:

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5ej64934mo Acesso em: 31 mai 2023

Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/05/ascensao-evangelica-fez-traficantes-substituirem-santos-e-orixas-por-deus-de-israel-conta-livro.shtml Acesso em: 01 jun 2023

Deus no comando: uma análise do discurso “narcopentecostal”.https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/4218/2218 Acesso em: 31 mai 2023

YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=9fLdyxDnxIU&ab_channel=MeteoroBrasil Acesso em: 31 mai 2023

Observatório Evangélico.

https://www.observatorioevangelico.org/ha-de-fato-um-narcopentecostalismo-e-traficantes-evangelicos/ Acesso em: 31 mai 2023

https://www.observatorioevangelico.org/nao-existe-narco-pentecostalismo-em-favelas-hoje/ Acesso em: 31 mai 2023

Folha Gospel. https://folhagospel.com/silas-malafaia-critica-materia-jornalistica-sobre-traficantes-evangelicos/ Acesso em: 31 mai 2023

IHU.

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/564908-oracao-de-traficante-o-mundo-da-guerra-do-trafico-e-da-guerra-das-almas-entrevista-com-christina-vital-cunha Acesso em: 31 mai 2023

https://www.ihu.unisinos.br/564604-livro-de-professora-da-uff-analisa-relacao-entre-religiosidade-e-trafico Acesso em: 31 mai 2023

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3206&secao=329 Acesso em: 31 mai 2023

De “Corações de Pedra” a “Corações de Carne”: Algumas Considerações sobre a Conversão de “Bandidos” a Igrejas Evangélicas Pentecostais. https://www.scielo.br/j/dados/a/W9HH5dc7vcqn6xdPXxzpGwQ/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 31 mai 2023

Wikifavelas. https://wikifavelas.com.br/index.php/De_%E2%80%9CCora%C3%A7%C3%B5es_de_Pedra%E2%80%9D_a_%E2%80%9CCora%C3%A7%C3%B5es_de_Carne%E2%80%9D:_Algumas_Considera%C3%A7%C3%B5es_sobre_a_Convers%C3%A3o_de_%E2%80%9CBandidos%E2%80%9D_a_Igrejas_Evang%C3%A9licas_Pentecostais._(Resenha) Acesso em: 31 mai 2023

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Foto de capa: reprodução IHU.

Senador Magno Malta zomba de racismo sofrido pelo jogador Vinícius Júnior

O caso de racismo sofrido pelo jogador brasileiro Vinícius Júnior, durante uma partida de futebol na Espanha, foi comentado pelo senador evangélico Magno Malta (PL-ES) na sessão da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, em 23 de maio passado e gerou muita controvérsia.

Com manifestações de apoio de alguns (não identificados) colegas de comissão, o senador eleito com mais de 800 mil votos, pelos cidadãos do Espírito Santo, declarou sobre o caso de racismo: “ O mais triste para mim  é que as emissoras ficam com esse assunto desde ontem, reverberando [“reverberando”, afirma colega apoiador ], revitimizando ele, porque o assunto dá Ibope, para eles ganhar (sic) mais patrocinador (sic). É uma descaração isso… É um assunto que eu nem posso falar em público. … Quando o cara é picado de cobra, quando ele corre para tomar injeção, aquela injeção foi feita de quê? [“de cobra”, reverbera apoiador não identificado] Então, você só pode matar uma coisa com o próprio veneno de alguma coisa, está bem?… Então, é o seguinte: cadê os defensores da causa animal que não defendem o macaco? O macaco está exposto…. Veja quanta hipocrisia. O macaco é inteligente, é bem pertinho do homem, a única diferença é o rabo. É ágil, valente, alegre, tudo que se pode imaginar ele tem Eu se fosse jogador negro, entrava em campo como uma leitoa branca nos braços e ainda dava um beijo nela. Falava assim: ‘olha como não tenho nada contra branco’.”

Na  continuação da fala, o senador nega a existência do racismo no Brasil, cita pessoas negras, já falecidas, com destaque na imprensa e desqualifica o trabalho da imprensa dizendo que “aquilo que fizeram com ele, a gente leva tudo para a cor da pele, mas tem muita coisa envolvida ali, tem inveja… é pai que queria ver o filho jogar, botou na escolinha de futebol e não deu em nada… aí tem inveja e inveja mata… leva as pessoas pra tudo isso… então, eles podiam chamar psicólogos, pessoas que entendem comportamento, pra desqualificar essa gente, pela via da inveja, mas não fica ali só, botando Vini Jr. chorando… e agora vamos para os comerciais… ele virou um instrumento desses vagabundos ganharem dinheiro… Finaliza, negando a discriminação racial: “as pessoas não sabem: quando duas mãos se encontram e dois corpos se unem… reflete no chão a sombra da mesma cor”.  

Imagem: Agência Brasil

Conselho de Ética

Líderes dos partidos PSOL, Rede e  PT afirmaram entrar com representação contra Magno Malta no Conselho de Ética do Senado e com uma notícia-crime contra o senador no Supremo Tribunal Federal (STF). O líder do PT no Senado, o também parlamentar pelo Espírito Santo Fabiano Contarato, afirmou em nota divulgada à imprensa que vai apresentar ao Supremo a abertura de inquérito por injúria racial, chamando as declarações de Malta de racistas.

“Durante seu comentário, Malta fez diversas declarações injuriosas, incluindo uma pergunta sobre ‘onde estariam os defensores da causa animal que não defendem o macaco?”, fazendo uma comparação notoriamente utilizada em falas racistas’, registra a nota de Contarato, que acrescenta: “Como pai de duas crianças negras, não posso ignorar o que testemunhei, mesmo que essa fosse a opção mais fácil. O Judiciário precisa demonstrar seu compromisso no combate ao racismo, punindo com maior rigor aqueles que, amparados pelo poder de seus cargos públicos, sentem-se à vontade para discriminar impunemente o povo negro em plena luz do dia”.

Neste 25 de maio, o procurador-geral da República Augusto Aras, pediu ao STF a abertura de um inquérito contra o senador Magno Malta por ofensas a Vinicius Junior. Aras pediu à corte autorização para apurar a gravidade das declarações do senador. 

O político Magno Malta

Imagem: Marcos Oliveira/Agência Senado

Magno Malta é um político evangélico com origem na Igreja Batista. Foi pastor e tornou-se cantor de pagode gospel. Construiu carreira política no estado do Espírito Santo: vereador em Cachoeiro de Itapemirim (1993), deputado estadual (1995), deputado federal (1999) e senador (2003 a 2018), tendo retornado ao Senado em 2023. Passou pelo PTB, pelo PL, pelo PR e retornou ao PL.

Malta ganhou notoriedade ao presidir duas Comissões Parlamentares de Inquérito no Congresso, a do Narcotráfico, na Câmara Federal, e a da Pedofilia, no Senado. Como senador, aliou-se à chamada Bancada da Bala, e atuou em torno da pauta da diminuição da maioridade penal.

Magno Malta foi investigado, sem conclusões, em vários escândalos de corrupção ao longo de sua carreira política, entre eles o caso dos Sanguessugas (desvio de verbas públicas na compra de ambulâncias (2006). Em 2009, apareceu como beneficiado pelos “atos secretos” que vieram a público após uma série de denúncias, segundo as quais vários atos administrativos envolvendo nepotismo e medidas impopulares não vinham sendo devidamente divulgados. Ainda em 2011, foi citado no escândalo do Ministério dos Transportes, que revelou acertos entre empreiteiras com o Partido da República (PR), que receberia propinas em troca de obras superfaturadas. 

Em 2018, uma nova denúncia revelou que Malta gastou R$ 472 mil, de cota parlamentar, em dois postos de gasolina do Espírito Santo, o equivalente a percorrer o seu estado 2.823 vezes, ou cruzá-lo a cada 29 horas durante os nove anos de mandato. Os valores declarados pelos outros dois senadores do ES somados se distanciavam muito do valor apresentado por Magno. Os dois postos de gasolina pertenciam ao ex-deputado estadual e ex-chefe da Casa Civil do Espírito Santo José Tasso Oliveira de Andrade, condenado em segunda instância por roubo de dinheiro público. Não houve prosseguimento à denúncia.

Malta chegou a ser considerado como vice-presidente na chapa do candidato à presidência Jair Bolsonaro em 2018, mas o capixaba acabou derrotado para a reeleição como senador.  

Racismo é tipificado como crime no Brasil

Racismo é tipificado como crime no país desde a promulgação da  Lei 7.716/89, conhecida com Lei do Racismo, que pune todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. Em seu artigo 3º, a lei prevê como conduta ilícita o ato de impedir ou dificultar que alguém tenha acesso a cargo público ou seja promovido, tendo como motivação o preconceito ou discriminação. Por exemplo, não deixar que uma pessoa assuma determinado cargo por conta de raça ou gênero. A pena prevista é de 2 a 5 anos de reclusão. 

A lei também veda que empresas privadas neguem emprego por razão de preconceito. Esse crime esta previsto no artigo 4o. da mesma lei, com mesma previsão de pena.

Em 12 de janeiro de 2023, foi publicada no Diário Oficial da União a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Lei 14.532, de 2023, que tipifica como crime de racismo a injúria racial, com a pena aumentada de um a três anos para de dois a cinco anos de reclusão. Enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo.

Embora desde 1989 a Lei 7.716 (Lei de Crime Racial) tenha tipificado crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, a injúria continua tipificada apenas no Código Penal.

Assim, a pena de um a três anos de reclusão continua para a injúria relacionada à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência, aumentando-se para dois a cinco anos nos casos relacionados a raça, cor, etnia ou procedência nacional.

Daqui em diante, todos os crimes previstos na Lei 7.716 terão as penas aumentadas em um terço até a metade quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.

Em relação ao crime de injúria, com ofensa da dignidade ou decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, a pena é aumentada da metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas. 

Quando o crime de injúria racial ou por origem da pessoa for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, a pena será aumentada em um terço.

O agravante será aplicado também em relação a outros dois crimes tipificados na Lei 7.716:

  • praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional: reclusão de um a três anos e multa;
  • fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada para fins de divulgação do nazismo: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Para esses dois tipos de crime, se a conduta ocorrer “no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público”, será determinada pena de reclusão de dois a cinco anos e proibição de o autor frequentar, por três anos, locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

O texto atualiza o agravante (reclusão de dois a cinco anos e multa) quando o ato é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza, incluindo também os casos de postagem em redes sociais ou na internet.

Sem prejuízo da pena pela violência, quem dificultar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas será punido com reclusão de um a três anos e multa. 

Na interpretação da lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. Quanto à fase processual, seja em varas cíveis ou criminais, a vítima dos crimes de racismo deverá estar acompanhada de advogado ou de defensor público.

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Ao checar o ocorrido no Senado Federal, Bereia verificou que é verdade que a declaração em tom de zombaria do senador Magno Malta ocorreu. O senador, de fato, se pronunciou em tom de deboche, no exercício de sua função, em relação à comoção causada pelo ato de racismo sofrido por Vinícius Júnior, ao argumentar, em público, que macacos (imagem usada pela torcida do time do Valência para atacar o jogador) deveriam ser defendidos. Ao se utilizar de tom “jocoso”, escarnecedor, ao referir-se a leitões e macacos, o senador promove desinformação, desqualificando o caso que teve ampla repercussão e condenação internacional. 

Bereia também alerta leitores e leitoras para o discurso do senador, que obteve apoio. Confundir o racismo  com uma atitude individual – de ressentimento ou inveja diante do sucesso de uma outra pessoa – além de promover desinformação é, também uma forma perversa de promoção do agressor e silenciamento da vítima.É desconsideração para com a denúncia e uma minimização na atitude daqueles que promovem e perpetuam o racismo. A postura do senador do PL, ainda, encontra reverberação entre as pessoas que promovem o racismo ou se colocam contra a pauta antirracista. 

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Referências de checagem:

UOL. https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/05/22/espanha-tem-historico-de-racismo-contra-jogadores-e-ronaldo-ja-foi-vitima.htm Acesso em: 26 mai 2023

Globoesporte.com https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-espanhol/noticia/2023/05/22/veja-todas-as-denuncias-de-racismo-contra-vinicius-junior-em-laliga-nenhuma-punicao-esportiva.ghtml Acesso em: 26 mai 2023

Folha de S.Paulo.

https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2023/05/entenda-o-caso-de-racismo-contra-vinicius-junior.shtml Acesso em: 26 mai 2023

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/05/aras-pede-inquerito-contra-magno-malta-por-ofensas-a-vini-jr.shtml Acesso em: 26 mai 2023

Lance. https://www.lance.com.br/lancebiz/casos-de-racismo-na-espanha-especialistas-avaliam-impactos-nos-negocios-da-laliga.htmlhttps://www.gazetaesportiva.com/bastidores/veja-os-principais-casos-de-racismo-na-historia-recente-do-futebol-brasileiro/ Acesso em: 26 mai 2023

YouTube.

https://www.youtube.com/shorts/7n6x1ZxoATM Acesso em: 26 mai 2023

https://www.youtube.com/watch?v=A8CxxEb89Aw&pp=ygUbbWFnbm8gbWFsdGEgdmluaWNpdXMganVuaW9y Acesso em: 26 mai 2023

https://www.youtube.com/watch?v=_X9qzG1_p_c&pp=ygUbbWFnbm8gbWFsdGEgdmluaWNpdXMganVuaW9y Acesso em: 26 mai 2023

https://www.youtube.com/watch?v=wXBZiJP2W3U Acesso em: 26 mai 2023

Diário do Nordeste. https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/jogada/magno-malta-e-denunciado-ao-conselho-de-etica-e-stf-apos-fala-racista-contra-vini-jr-veja-video-1.3372873 Acesso em: 26 mai 2023

O Estado de São Paulo. https://www.estadao.com.br/tudo-sobre/magno-malta/ Acesso em: 26 mai 2023

Tribunal de Justiça do Distrito Federal. https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/lei-do-racismo Acesso em: 26 mai 2023

Normas Legislativas.

http://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:2023-01-11;14532 Acesso em: 26 mai 2023

http://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:2023-01-11;14532 Acesso em: 26 mai 2023

http://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:decreto.lei:1940-12-07;2848 Acesso em: 26 mai 2023

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Foto de capa: Moreira Mariz/Agência Senado

Por que evangélicos são alvo e fonte de tantas mentiras?

* Texto originalmente publicado na Carta Capital

Apesar de serem caracterizados, histórica e culturalmente, pelo apego à Bíblia, evangélicos brasileiros têm desobedecido intensamente nos últimos anos uma das principais orientações do livro sagrado cristão: não mentir.

Nos muitos textos sobre o tema, é enfatizado que Deus abomina a mentira, como no trecho de Provérbios 6.16-19, que se torna uma síntese dos outros vários.

“Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos.”

Apesar da nítida orientação contida no livro tão amado e ressaltado por evangélicos, o que temos acompanhado no Brasil, pelo menos desde 2018, é um conjunto de posturas que favorece a circulação e a propagação de mentiras entre este grupo.

Estas posturas se configuram em um ponto inicial que é a formulação do conteúdo mentiroso dentro do próprio ambiente evangélico. Segundo o acompanhamento realizado desde a pesquisa Caminhos da Desinformação: Evangélicos, Fake News e WhatsApp no Brasil até o que é empreendido pelo Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, pastores, pastoras, presidentes de igrejas, bispos e outra autoridades, influenciadores digitais, entre artistas gospel, políticos evangélicos e outras personagens que ocupam o espaço público e emergem como celebridades midiáticas, criam conteúdo falso e enganoso e o propagam em seus espaços nas mídias sociais dos aplicativos populares das big techs.

Nesta postura, parece haver uma intenção, ou seja, elaboração deliberada da mentira, para captar apoios de natureza demagógica nas comunidades evangélicas a temas e pautas de cunho ideológico. Entre elas esteve, por exemplo, a oposição a procedimentos científicos, como as medidas sanitárias aplicadas para a prevenção da covid-19 nos anos de 2020 e 2021. Está também a negação do valor da vacinação na proteção contra doenças e a aversão aos direitos de pessoas que não aplicam em suas vidas a orientação dos costumes evangélicos no tocante à sexualidade.

É possível contabilizar neste grupo material falso contra o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e sobre fraudes em urnas eletrônicas, por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro durante o processo eleitoral 2022, entre outros temas, como foi o caso da campanha contra o Projeto de Lei 2630/2020, denominado popularmente de Lei das Fake News. A noção de que a chamada Lei das Fake News é uma lei de censura criada pelo atual governo e pelas esquerdas e o STF para silenciar as igrejas e para impedir críticas públicas a políticos, foi fartamente disseminada por estas personagens citadas acima.

Outra postura é o alinhamento à mentira da parte deste grupo e de lideranças que estão em nível intermediário (pastores e pastoras e pessoas que têm funções de destaque nas diversas comunidades evangélicas do Brasil afora) com a replicação (o compartilhamento) de conteúdo produzido por terceiros. Boa parte destas mensagens não tem conteúdo religioso exclusivo, mas traz temas como o do suposto cerceamento de liberdade de expressão, o negacionismo em relação à ciência (em especial na área da saúde), a ameaça comunista e de ativistas feministas e LGTBI+, e são repercutidos por afinidade/alinhamento ideológico.

Produtores da indústria da desinformação, que não são religiosos, mas querem captação de apoio para interferir em temas de interesse público e obter vantagens (políticas ou financeiras), conseguem assessoria de lideranças e influenciadores evangélicos para produzirem material específico destinado ao grupo. Oferecem memes, cards, áudios, vídeos, com linguagem que cria vínculos emocionais, com textos bíblicos, por exemplo. No caso da desinformação em torno do PL 2630, tornou-se conhecido que a Câmara Brasileira de Economia Digital, associação brasileira que reúne empresas como Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp), Google e TikTok produziu um documento entregue a deputados afirmando que o projeto de lei proibiria a livre expressão de cristãos nas mídias sociais, especialmente a publicação de certos versículos bíblicos. O conteúdo falso foi disseminado por personagens como o deputado federal da Igreja Batista Deltan Dallagnol.

A postura da assimilação, por evangélicos comuns, as pessoas que participam cotidianamente das igrejas, é a que torna este grupo um forte propagador, ou “traficante” de desinformação. Fiéis evangélicos são os destinatários de todo este conteúdo. Tanto as lideranças e influenciadores religiosos, como os produtores da indústria da desinformação, buscam afetar estas pessoas, como mencionado acima, lançando mão do imaginário evangélico sedimentado em quase dois séculos de pregação e atuação predominantes entre grupo religioso no Brasil.

Este imaginário é moldado por elementos-chave como a superação perseguição religiosa, algo que absolutamente não existe no país contra cristãos, mas que é acionado pela imagem bíblica da perseguição de Roma aos primeiros cristãos; o enfrentamento de inimigos, as hostes do mal (Satanás e seu séquito) que atuam contra a propagação do Evangelho e o crescimento das igrejas; a pureza do corpo, em especial no cultivo de uma sexualidade padronizada no ocidente como heteronormativa, guardada para o casamento monogâmico para a geração de filhos e prosseguimento no povoamento da Terra.

Além de assistirmos a esta instrumentalização da religião para campanhas públicas em bases falsas e enganosas, vemos também o uso da palavra, por parte de líderes, para perseguir e atacar quem se coloca em oposição a estas posturas dentro das igrejas. Não são poucas as pessoas classificadas como não cristãs, traidoras da igreja, simplesmente por denunciarem o uso da mentira para capturar apoios.

Fica o desafio de pessoas e grupos evangélicos retomarem a Bíblia tão amada e um dos destacados ensinamentos de Jesus sobre conhecer a verdade, tal como registrado no Evangelho de João, fartamente instrumentalizado em discursos políticos do ex-presidente que deixou o cargo em 31 de dezembro passado, a mentira é exposta como filha do inimigo de Deus, o Diabo. Jesus diz, aos que se colocavam em oposição às suas ações, e que apregoavam mentiras neste debate público: “Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira” (João 8.44).

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia

*** Foto de capa: Pixabay

Religiosos se mobilizam sobre o Projeto de Lei 2630/2020, a Lei de Enfrentamento das Fake News

Previsto para discussão no Plenário da Câmara dos Deputados, nesta terça, 2 de maio, o Projeto de Lei 26/2020, popularmente denominado PL das Fake News, curiosamente, tem sido tema de propagação muita desinformação.

Bereia, via Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), da qual é membro fundador, vem acompanhando o processo de propagação de desinformação sobre a nova lei, que esteve em debate no Congresso Nacional por três anos e agora está sob ataque. Pessoas e grupos interessados na desinformação como fonte de lucro (em especial as chamadas Big Techs – corporações internacionais que controlam plataformas de mídias digitais) e como estratégia de influência sobre temas de interesse público (em especial políticos, influenciadores e outras lideranças e grupos que fazem uso das chamadas fake news para convencer) tem atuado em oposição à aprovação. Entre estes últimos estão religiosos.

A ofensiva da Bancada Evangélica no Congresso Nacional e de outras lideranças religiosas contra o PL 2630, nos últimos dias, agora contrasta com a organização de um grupo de pastores e pastoras evangélicos, juntamente com um frei católico que viajaram para Brasília, neste 2 de maio, para se posicionar publica e favoravelmente à nova lei. Bereia verificou os fatos.

O projeto de lei         

Como Bereia já publicou, o PL 2630/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB/SE, na época do Cidadania) institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Segundo o texto, relatado pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA), então presidente da extinta Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, uma vez aprovado, 

“Estabelece normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos patrocinados e à atuação do poder público, bem como estabelece sanções para o descumprimento da lei”.

Esta ementa demonstra que a proposta diz respeito não à censura, mas à regulação da responsabilidade das plataformas de mídias digitais (provedores) para impedir a farta propagação de desinformação, com transparência dos processos de filtragem e transparência dos processos de monetização, em especial quanto a conteúdo maldoso patrocinado. A busca de regulação dos espaços digitais é uma demanda internacional, e vários países no mundo discutem este processo.

Segundo carta aberta sobre o tema, da Coalização Direitos na Rede (CDR), da qual faz parte a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), integrada por vários projetos e coletivos, entre eles o Bereia, e atua em defesa dos direitos digitais,

“A Internet é essencial para a vida em sociedade, especialmente no que tange ao debate público e à participação política. Mas uma série de transformações nesse espaço, a exemplo da concentração de poder econômico e político das plataformas digitais e da utilização delas em campanhas de desinformação, tem gerado preocupações e levado à criação de novas regras em todo o mundo, a fim de proteger os direitos humanos das pessoas que usam a Internet, evitar a concentração de poder e a degradação da esfera pública”.

Três anos de debate, sugestões incorporadas ao PL

A CDR explica que o PL 2630 é um projeto que vem sendo debatido há mais de três anos, e se forem considerados somente os debates realizados no âmbito do Grupo de Trabalho Aperfeiçoamento da Legislação Brasileira – Internet (GTNET) na Câmara dos Deputados,

“foram realizadas 27 reuniões técnicas, incluindo 15 audiências públicas onde mais de 150 especialistas de diversos setores e áreas foram ouvidos. Além disso, a proposta ganhou mais centralidade diante das preocupações que cresceram, especialmente no contexto das eleições e na tentativa frustrada de golpe no 8 de janeiro, quando restou nítida a insuficiência da ação das plataformas digitais para conter a desinformação e os ataques à democracia. Esta conjuntura demonstra que a proteção da democracia e dos direitos humanos no ambiente digital necessita pactuação de novas ações e regras para enfrentar esses novos desafios”.

O CDR alerta que depois do 8 de janeiro e a crise de segurança das escolas, as empresas de tecnologia que dominam o mercado das mídias digitais (como Google/Alphabet, Amazon, Apple, Facebook/Meta e Microsoft, as chamadas Big Techs), querem adiar o debate e ganham, como aliados, indivíduos e grupos do cenário político, que lucram com a propagação de desinformação e de ações violentas decorrentes.

Segundo a coordenadora da RNCD Profa. Ana Regina Rego, “o relator do PL 2630/20 na Câmara Federal deputado Orlando Silva (PCdoB- SP), afirmou em entrevistas recentes que o PL absorveu sugestões que vieram do Governo e que tem como inspiração a lei dos Serviços Digitais da União Europeia (Digital Service Act- DSA) tais como: a ideia do dever de cuidado a partir das plataformas, a questão da análise de risco sistêmico, a criação de auditorias independentes, obrigações legais de transparência e criminalização do mercado da desinformação”. 

A Profa. Ana Regina Rego acrescenta que o Ministério da Justiça tem defendido a responsabilização civil das plataformas pelos danos causados por conteúdo gerado por terceiros (ou seja, elas seriam responsáveis pelo que permitem tornar público), porém isto “contraria o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que reza que as plataformas não podem ser responsabilizadas por tais conteúdos, a não ser se descumprirem decisões judiciais”. A coordenadora da RNCD explica que este é mais um ponto polêmico em discussão no governo, no Congresso, no STF e nas instituições da sociedade civil que acompanham de perto as questões vinculadas a regulação das plataformas e combate à desinformação no Brasil.

A CDR, que reúne 50 instituições e organizações da sociedade civil e da academia, lançou um documento em que chama atenção para dez pontos a serem considerados no processo de debate e de aprovação do PL 2630 para superação de divergências.

Imagem: Divulgação da CDR nas mídias sociais

O requerimento de urgência

Desde 2020 travado na Câmara Federal, em março de 2022, o PL ganhou nova versão do relator deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), mas teve suas expectativas de aprovar o projeto antes das eleições presidenciais frustradas quando a Câmara rejeitou o regime de tramitação com urgência. 

O requerimento de urgência foi aprovado em 25 de abril pelo Plenário da Câmara, tendo em vista as medidas demandadas por conta de episódios violentos, como os assassinatos em escolas, alguns praticados por menores de idade, e vem se intensificando nos últimos meses incentivados por extremistas organizados nas mídias digitais. Os ataques golpistas contra a democracia do Brasil, concretizados em 8 de janeiro passado, também impulsionaram o projeto de lei.

O requerimento de urgência acelera a tramitação do texto, sem que ele passe por comissões e seja avaliado diretamente em plenário. A previsão é que o plenário da Câmara vote o mérito do PL neste 2 de maio. Caso seja aprovado pelos deputados, o texto passará por uma votação no Senado, que dará a palavra final sobre o texto.

Políticos notadamente identificados como propagadores de desinformação (conteúdo falso, popularmente denominado fake news, mas também enganoso, impreciso e inconclusivo, como Bereia tem apresentado em suas checagens), desde a apresentação do requerimento de urgência no início da atual legislatura da Câmara Federal, têm publicado material falso e enganoso contra a lei. Entre estes estão vários deputados com identidade religiosa, como Bereia publicou.

Pouca reflexão, muita desinformação

Lideranças religiosas, políticas e eclesiásticas, que já ocupavam as mídias sociais com desinformação contra o PL 2630 no processo de aprovação da urgência, continuaram a publicar que afirmam ser a nova lei um projeto de censura do governo federal contra a livre expressão das religiões, contra a publicação de textos bíblicos que apregoam moral sexual cristã em leitura conservadora nas mídias sociais.

Em 29 de abril, a Frente Parlamentar Evangélica, liderada pelo deputado federal Eli Borges (PL-TO), veio a público afirmar que orienta seus membros a votaram contra o PL 2630. Segundo a bancada, com base na desinformação circulante sobre a nova lei, o texto tem dispositivos que “penalizam a pluralidade de ideias e sobretudo os valores cristãos”.

Bereia pesquisou e não identificou elementos objetivos divulgados pelos políticos da Bancada Evangélica que demonstrem como a lei penaliza valores cristãos, uma vez nova lei busca não só o enfrentamento da farta circulação de mentiras mas também do ódio e da violência.  Publicações falsas e enganosas  continuam a circular, com o apoio das empresas que não querem ser reguladas, com uso de mentiras e pânico para convencer deputados e o público pela não aprovação da lei. Evoca-se os temas da censura, da perseguição a cristãos, da ação comunista, já tão checados pelo Bereia em ambientes digitais cristãos, atrelando-os ao projeto de lei.

Imagem: reprodução da internet

Reprodução de imagem da página de abertura do Google em 1 de maio de 2023, com mensagem de campanha contra o PL 2630, denunciada por vários usuários da rede.

Imagem: reprodução de Instagram do deputado Pastor Marco Feliciano (PL-SP)

Religiosos denunciam mentiras e declaram apoio à Lei de Enfrentamento das Fake News

Um grupo de lideranças cristãs, evangélicas e católicas, favoráveis ao PL 2630, esteve na Câmara dos Deputados, neste 2 de maio, e ofereceu declaração pública, para demandar que parlamentares endossem o projeto no momento da votação. Em direção oposta à declarada pela Bancada Evangélica, o grupo formado pelos pastores e pastoras evangélicos Ricardo Gondim (Igreja Betesda), Sérgio Dusilek (Igreja Batista), Bispa Marisa Freitas (Igreja Metodista) e Camila Oliver (Igreja Batista Nazareth), e pelo Frei (Católico) Lorrane Clementino, se colocou em nome dos cristãos e cristãs que defendem a lei contra o uso de mentiras, do ódio e da violência como pauta política nas plataformas digitais. O grupo denuncia estas práticas que têm causado mortes, em especial, de crianças e adolescentes em escolas, além daquelas durante a pandemia de covid-19, provocadas por mentiras nas redes. Lideranças cristãs acompanharam o grupo em entrevista coletiva, entre elas o deputado federal pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), da Igreja Batista do Caminho.

Imagem: reprodução do Twitter

O pastor Ricardo Gondim declarou que o grupo esteve na Câmara Federal para “para mostrar que há um seguimento religioso cristão, evangélico e católico, que vê esse projeto de lei como uma defesa das crianças, dos mais vulneráveis e de pessoas menos informadas, mas também da soberania nacional. A ideia é mostrar a cara se um segmento evangélico que não abraça um partido, mas sim questões caras à nossa humanidade e critérios éticos”. Gondim acrescentou: “Não podemos permitir que empresas transnacionais, donas de seguimentos da informação em escala mundial, pautem o que pode ou não acontecer dentro de um país”.

O deputado pastor Henrique Vieira disse que o rol de crimes previsto pelo projeto é “taxativo” e “preciso”. Ele classificou o PL ainda como “bem amadurecido, bem escrito” e pontuou que ele tipifica “com objetividade quais crimes não queremos”.

Para saber mais:

Material da Coalização Direitos na Rede (CDR) https://www.instagram.com/p/CrtL5jBrhvV/

Para ajudar a enfrentar as mentiras usadas contra o PL 2630:

Material da Coalizão Direitos na Rede (CDR) https://www.instagram.com/p/Crs4Q-HO-tE/

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Referências:

Bereia. https://coletivobereia.com.br/deputado-evangelico-usa-biblia-em-material-falso-de-campanha-para-impedir-projeto-de-lei/Acesso em: 2 mai 2023

Câmara dos Deputados.

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2256735 Acesso em: 2 mai 2023

https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2305033 Acesso em: 2 mai 2023

https://www.camara.leg.br/noticias/955642-projeto-das-fake-news-tem-urgencia-aprovada-e-ira-a-voto-na-proxima-terca-acompanhe/ Acesso em: 2 mai 2023

Direitos na Rede.

https://direitosnarede.org.br/2023/04/20/carta-aberta-regulacao-democratica-das-plataformas-com-urgencia/ Acesso em: 2 mai 2023

https://direitosnarede.org.br/2023/04/12/a-democracia-brasileira-deve-assumir-um-papel-ativo-na-regulacao-das-plataformas-digitais/ Acesso em: 2 mai 2023

Rede Nacional de Combate à Desinformação.

https://rncd.org/ Acesso em: 2 mai 2023

https://rncd.org/comentarios-sobre-regulacao-das-plataformas-e-combate-a-desinformacao-no-brasil/ Acesso em: 2 mai 2023

Twitter. https://twitter.com/eixopolitico/status/1653413762848751617?t=wXEkm8gpodJWQVsGr29ohQ&s=19 Acesso em: 2 mai 2023

UOL. https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/05/02/pastores-divergem-da-bancada-evangelica-e-apoiam-o-pl-das-fake-news.htm Acesso em: 2 mai 2023

SBT. https://www.sbtnews.com.br/noticia/governo/246374-lideres-evangelicos-declaram-apoio-ao-projeto-de-lei-das-fake-news Acesso em: 2 mai 2023

Instagram.

https://www.instagram.com/p/CrtL5jBrhvV/ Acesso em: 2 mai 2023

https://www.instagram.com/p/Crs4Q-HO-tE/ Acesso em: 2 mai 2023

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Imagem de capa: Pixabay

Deputado evangélico usa Bíblia em material falso de campanha para impedir projeto de lei

* Matéria atualizada às 10:25 e às 11:09 de 26/04/2023 e às 9:49 de 27/04/2023 para acréscimo de informações e às 23:36 para correção de link; e às 12:26 de 02/05/2023 para acréscimo de informações

Por conta da votação de um requerimento de urgência na Câmara Federal nesta terça-feira, 25 de abril, passaram a circular nas redes digitais uma série de conteúdos desinformativos referentes à matéria que o compõe: o projeto que regulamenta a atividade das mídias sociais no país, para o enfrentamento da ampla circulação de fake news, que prejudicam situações de interesse público e acionam ódio e violência.

Trata-se do Projeto de Lei 2630/2020, do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), popularmente denominado PL das Fake News. O PL já foi aprovado no Senado, em 2020, e foi enviado naquele ano para a Câmara, seguindo o protocolo de aprovação de leis, e lá se encontrava parado há três anos.

Unindo-se a outros parlamentares que se manifestam contra a votação do PL, o deputado evangélico, vinculado à Igreja Batista, ex-procurador do Ministério Público Federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR), publicou na segunda, 24 de abril, postagem em suas mídias sociais que chamou a atenção pelo uso de textos bíblicos, em tom de pânico, tendo como alvo os cristãos:

Imagem: reprodução do Twitter
Imagem: reprodução do Twitter

O Projeto de Lei 2630/2020, a chamada Lei das Fake News

O PL 2630/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB/SE, na época do Cidadania) institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Segundo o texto, relatado pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA), então presidente da extinta Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, uma vez aprovado,

“Estabelece normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos patrocinados e à atuação do poder público, bem como estabelece sanções para o descumprimento da lei”.

Esta ementa demonstra que a proposta diz respeito não à censura, mas à regulação da responsabilidade das plataformas de mídias digitais (provedores) para impedir a farta propagação de desinformação, com transparência dos processos de filtragem e transparência dos processos de monetização, em especial quanto a conteúdo maldoso patrocinado. A busca de regulação dos espaços digitais é uma demanda internacional, e vários países no mundo discutem este processo.

Segundo carta aberta sobre o tema, da Coalização Direitos na Rede (CDR), da qual faz parte a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), integrada por vários projetos e coletivos, entre eles o Bereia, e atua em defesa dos direitos digitais,

“A Internet é essencial para a vida em sociedade, especialmente no que tange ao debate público e à participação política. Mas uma série de transformações nesse espaço, a exemplo da concentração de poder econômico e político das plataformas digitais e da utilização delas em campanhas de desinformação, tem gerado preocupações e levado à criação de novas regras em todo o mundo, a fim de proteger os direitos humanos das pessoas que usam a Internet, evitar a concentração de poder e a degradação da esfera pública”.

A CDR explica que o PL 2630 é um projeto que vem sendo debatido há mais de três anos, e se forem considerados somente os debates realizados no âmbito do Grupo de Trabalho Aperfeiçoamento da Legislação Brasileira – Internet (GTNET) na Câmara dos Deputados,

“foram realizadas 27 reuniões técnicas, incluindo 15 audiências públicas onde mais de 150 especialistas de diversos setores e áreas foram ouvidos. Além disso, a proposta ganhou mais centralidade diante das preocupações que cresceram, especialmente no contexto das eleições e na tentativa frustrada de golpe no 8 de janeiro, quando restou nítida a insuficiência da ação das plataformas digitais para conter a desinformação e os ataques à democracia. Esta conjuntura demonstra que a proteção da democracia e dos direitos humanos no ambiente digital necessita pactuação de novas ações e regras para enfrentar esses novos desafios”.

O CDR alerta que depois do 8 de janeiro e a crise de segurança das escolas, as empresas de tecnologia que dominam o mercado das mídias digitais (como Google/Alphabet, Amazon, Apple, Facebook/Meta e Microsoft, as chamadas Big Techs), querem adiar o debate e ganham, como aliados, indivíduos e grupos do cenário político, que lucram com a propagação de desinformação e de ações violentas decorrentes.

Segundo a coordenadora da RNCD Profa. Ana Regina Rego, “o relator do PL 2630/20 na Câmara Federal deputado Orlando Silva (PCdoB- SP), afirmou em entrevistas recentes que o PL absorveu sugestões que vieram do Governo e que tem como inspiração a lei dos Serviços Digitais da União Europeia (Digital Service Act- DSA) tais como: a ideia do dever de cuidado a partir das plataformas, a questão da análise de risco sistêmico, a criação de auditorias independentes, obrigações legais de transparência e criminalização do mercado da desinformação”. 

A Profa. Ana Regina Rego acrescenta que o Ministério da Justiça tem defendido a responsabilização civil das plataformas pelos danos causados por conteúdo gerado por terceiros (ou seja, elas seriam responsáveis pelo que permitem tornar público), porém isto “contraria o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que reza que as plataformas não podem ser responsabilizadas por tais conteúdos, a não ser se descumprirem decisões judiciais”. A coordenadora da RNCD explica que este é mais um ponto polêmico em discussão no governo, no Congresso, no STF e nas instituições da sociedade civil que acompanham de perto as questões vinculadas a regulação das plataformas e combate à desinformação no Brasil.

A CDR, que reúne 50 instituições e organizações da sociedade civil e da academia, lançou um documento em que chama atenção para dez pontos a serem considerados no processo de debate e de aprovação do PL 2630 para superação de divergências.

Imagem: Divulgação da CDR nas mídias sociais

O requerimento de urgência

Desde 2020 travado na Câmara Federal, em março de 2022, o PL ganhou nova versão do relator deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), mas teve suas expectativas de aprovar o projeto antes das eleições presidenciais frustradas quando a Câmara rejeitou o regime de tramitação com urgência. 

O requerimento de urgência foi apresentado tendo em vista as medidas demandadas por conta de episódios violentos, como os assassinatos em escolas, alguns praticados por menores de idade, e vem se intensificando nos últimos meses incentivados por extremistas organizados nas mídias digitais. Os ataques golpistas contra a democracia do Brasil, concretizados em 8 de janeiro passado, também impulsionaram o projeto de lei.

O requerimento de urgência acelera a tramitação do texto, sem que ele passe por comissões e seja avaliado diretamente em plenário. A previsão é que o plenário da Câmara vote o mérito do PL em 2 de maio. Caso seja aprovado pelos deputados, o texto passará por uma votação no Senado, que dará a palavra final sobre o texto.

Políticos notadamente identificados como propagadores de desinformação (conteúdo falso, popularmente denominado fake news, mas também enganoso, impreciso e inconclusivo, como Bereia tem apresentado em suas checagens), desde a apresentação do requerimento de urgência no início da atual legislatura da Câmara Federal, têm publicado material falso e enganoso contra a lei. Entre estes estão vários deputados com identidade religiosa, como Deltan Dallagnol.

Oposição ao PL das Fake News com mentiras

Matéria da Agência Pública, deste 24 de abril, apresenta estudo, obtido com exclusividade, do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab) da UFRJ, que buscou identificar como o PL das Fake News “tem sido alvo de desinformação nas diferentes plataformas”. A partir de publicações no Twitter, WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram, Youtube, TikTok e veículos de propagação de fake news (Jornal da Cidade, Gazeta do Povo, Revista Oeste e Jovem Pan), entre 26 de março de 16 de abril passados. Foram identificadas duas noções falsas propagadas nestes espaços e replicadas por seguidores e simpatizantes: “O PL 2630 favorece os grandes grupos de mídia”, no caso para manter o monopólio da grande imprensa que “favoreceu Lula”; e “Lula usa tragédias como pretexto para censura”, o que significa dizer que o PL 2630 seria uma lei de censura.

Imagem: Reprodução da Agência Pública – post no Telegram da deputada Carla Zambelli (PL-SP)

A reportagem ouviu a professora doutora em Ciência da Informação Rose Marie Santini, uma das autoras do estudo, que explica que tais noções são mais um grupo de mentiras produzidas pela extrema-direita. “Não são críticas consistentes. As [críticas] que eles fazem, como ‘a rede social é o último refúgio da oposição’, ‘esse PL é um instrumento de dominação da esquerda’, ou ‘é uma forma de censura’ são completamente sem cabimento. A gente tem outras críticas, críticas técnicas, mas não essas. Críticas conceituais de uma PL e de uma regulamentação em si. Eles [os deputados e grupos da extrema-direita] não estão entrando de verdade na discussão, eles estão criticando conceitualmente a ideia de se regulamentar e não o que está se regulamentando”, declarou à Agência Pública. 

Segundo o estudo apresentado na matéria, “parlamentares da extrema-direita como Flávio Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli, Gustavo Gayer e Mário Frias e influenciadores como Leandro Ruschel, Elisa Brom e Kim Paim se destacam como principais porta-vozes da campanha contra o PL 2630 nas diferentes plataformas”. O texto acrescenta que o Partido Novo e seus filiados também se destacam por terem proposto um Projeto de Decreto Legislativo para derrubar o PL.

A Bíblia como instrumento da mentira de Deltan Dallagnol: biblistas avaliam

O deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), eleito em 2022 com base nas pautas da extrema-direita, chamou a atenção neste grupo de propagadores de conteúdo falso contra o PL 2630 por conta do uso da Bíblia para atingir o público cristão.

Membro da Igreja Batista em Curitiba, Dallagnol lançou mão de seu conhecimento de textos bíblicos que tocam em pautas atraentes para a atenção de grupos cristãos – a moralidade sexual, a defesa da família e a suposta ameaça da perseguição por governos identificados com a esquerda – para buscar apoio de fiéis católicos e evangélicos à oposição ao projeto de lei de enfrentamento das fake news.

Segundo o ex-procurador, a aprovação da nova lei, que ele chama de “PL da Censura” deve ser impedida pois “até a fé será censurada” e coloca como exemplos “alguns versículos [que] serão banidos das redes sociais. O deputado passa a listar uma série de versículos e trechos de livros bíblicos do Antigo e do Novo Testamentos que seriam, no seu entender, banidos da rede, sob a vigência da lei.

Como verificado acima, o deputado apresenta argumento falso porque o PL 2630 não tem caráter de censura. Em primeiro lugar, porque o alvo da lei é a regulação das plataformas de mídias para que sejam responsabilizadas especificamente por conteúdo danoso na forma de desinformação e violência estimulada. Em segundo, porque tal característica o tornaria inconstitucional, dadas as garantias da Constituição Federal à liberdade de opinião e de expressão (Artigo 5º, incisos IV e IX). Isto está explicitado em vários trechos do documento, em especial no artigo 6º, cuja reprodução do capítulo II do Projeto de Lei circula amplamente em mídias sociais há dias para contrapor a noção de censura, falsamente propagada pela extrema-direita, como o estudo do Netlab-UFRJ mostra.

Imagem: Reprodução de publicações em diversas mídias sociais

Bereia ouviu dois estudiosos da Bíblia pra uma avaliação do discurso do deputado Deltan Dallagnol. Um deles é o Prof. Dr. Marcelo Carneiro, pesquisador do Cristianismo Primitivo e professor de Novo Testamento da Universidade Metodista de São Paulo (MEC).

Para ele, “Dallagnol faz um recorte da Bíblia, no mínimo grosseiro. Os textos que ele usa variam de tema: alguns condenam a homossexualidade, outros reforçam a autoridade do homem sobre a mulher, alguns falam da punição que os pais devem exercer sobre as crianças. Em todos os casos, esses textos já são foco de debate intenso, que precisam ser contextualizados cultural e historicamente, e não podem ser aplicados literalmente. Isso já é ponto passivo de discussão até mesmo em igrejas conservadoras.”

Carneiro continua: “Por exemplo, ele cita Levítico 20.10 e 13: são ordens de uniões proibidas que devem ser punidas com a morte. Será que o nobre político deseja que se crie a pena de morte para tais atitudes, como o adultério? Por outro lado, ao citar Deuteronômio 22.28-29, ele está insinuando que um casal que fizer sexo terá que casar obrigatoriamente?”

O biblista da UMESP, que atua a partir do contexto evangélico, admite que “os textos que ele diz serem passíveis de censura já são controversos mesmo no debate interno das igrejas cristãs, e alguns foram abandonados por serem considerados inaplicáveis em nosso tempo. Nenhum deles está na categoria que podemos chamar mandamentos éticos, ou seja, que tenham valor universal e atemporal. São textos morais, cuja limitação se coloca no tempo e no espaço onde foram elaborados. Nem mesmo Israel aplica de forma direta os textos citados acima. E o Novo Testamento, que tem centenas de textos que colocam as mulheres em igualdade com os homens, é resumido a dois ou três textos que as colocam submissas aos homens, proibidas de ensinar e sem qualquer autoridade”.

Marcelo Carneiro alerta que “isso não condiz com as práticas e ensinos de Jesus, e nem mesmo do apóstolo Paulo. O único texto que cita de Jesus, Mateus 10.34-36, é o que fala da família dividida por causa do evangelho. Talvez seja o único que cabe para nossos dias, diante das divisões que as famílias tiveram que enfrentar, devido à situação política do país e as muitas mentiras que envenenaram os debates sobre política”.

O professor questiona: “Mais uma vez, a Bíblia é usada de forma recortada, fora de seu contexto, com o fim de embasar certos discursos. O campo conservador acusa o campo progressista de fazer isso, mas usa do mesmo artifício. A questão é: com que fim se faz o recorte? Que aspecto ético está sendo levado em conta? Citar a Bíblia sem contextualizar adequadamente os textos é, na opinião de qualquer estudioso sério, ato de má-fé”.

Já o biblista Doutor Honoris Causa em Ciências das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba, Marcelo Barros reconheceu ter dificuldade com o tema: “Não sei se compreendi bem o problema e a denúncia de censurarem a Bíblia nas redes sociais. Não compreendi bem como fariam isso, nem de que forma. Menos ainda o que isso tem a ver com o Congresso Nacional. Em um momento no qual estamos tentando de todos os modos, retomar o caráter laical do Estado, como entrar nesse tipo de discussão? Dá a impressão de que nos impõem uma pauta para obstruir o processo da laicidade reconquistada. E fazem isso usando de versos que amamos e que são força para nós e, sim, versos de fato problemáticos e que são sempre usados por eles, conservadores, fundamentalistas (que a mulher deva ser submissa ao marido, que homem que dorme com outro seja excluído da comunidade e morto, que os servos obedeçam a seus senhores, etc). É estranho isso, ao menos para alguém que vê de fora como eu”.

Marcelo Barros também vê dificuldade em comentar o assunto exegeticamente: “porque se fosse para ser coerentes naquilo que eles dizem estar defendendo, haveriam de ser cancelados vários capítulos do livro do Levítico e não apenas um verso. Teriam de cancelar todo um texto do capítulo 3 de Colossenses e não apenas aquele citado”.

O biblista católico avalia que “mesmo sem entrar no detalhe da exegese de cada texto proposto relacionado à campanha contra a PL 2630, podemos concluir que não há sentido em destacar esses textos do conjunto da Bíblia como se esta fosse um livro a-histórico e fora da realidade. A fidelidade à Palavra de Deus pede que compreendamos como a revelação divina é evolutiva e, portanto, não seria honesto querer se deter em um momento da revelação sem ver como a partir do Cristo tudo o que era passado pode ser visto à luz da ressurreição”.

Em notícia de última hora, o colunista do jornal Metrópoles, Guilherme Amado, revelou que lobistas da empresa Meta (controladora do Facebook, do Instagram e do WhatsApp) entregaram a deputados evangélicos um documento com a tese de que o PL 2630/20 poderia censurar versículos bíblicos. A Meta negou a acusação.

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Bereia verificou as afirmações do deputado batista Deltan Dallagnol, em postagem de conteúdo contrário à votação do PL 2630, e conclui que são falsas. Não há qualquer base factual ou documental para se atribuir ao projeto de lei o caráter de censura, muito menos em relação uma seleção de textos da Bíblia que são usados para embasar certos temas referentes à moralidade religiosa cristã e à compreensão de família. O deputado recorre ao discurso alarmista da censura e da perseguição a cristãos que vem sendo usado para convencer pessoas das igrejas a aderirem a pautas da extrema-direita em processos eleitorais e para interferirem em temas de interesse público, como o enfrentamento da desinformação, do ódio e do extremismo pelas plataformas digitais. Bereia já alertou leitores e leitoras sobre tais discursos falsos e enganosos em várias matérias.

Bereia também chama a atenção para a contribuição dos estudiosos da Bíblia que alertam leitores e leitoras para o uso irresponsável e desonesto dos textos cristãos sagrados para instrumentalização política e para mentir.

Referências de checagem:Senado Federal. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944 Acesso em: 26 abr 2023

Rede Nacional de Combate à Desinformação

https://rncd.org/ Acesso em: 26 abr 2023

https://rncd.org/comentarios-sobre-regulacao-das-plataformas-e-combate-a-desinformacao-no-brasil/Acesso em: 26 abr 2023

Câmara dos Deputados.

https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2305033 Acesso em: 26 abr 2023

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2256735 Acesso em: 27 abr 2023

Direitos na Rede. https://direitosnarede.org.br/2023/04/12/a-democracia-brasileira-deve-assumir-um-papel-ativo-na-regulacao-das-plataformas-digitais/ Acesso em: 26 abr 2023

Jusbrasil. https://www.jusbrasil.com.br/noticias/se-aprovado-na-camara-o-requerimento-de-urgencia-o-pl-2648-podera-ser-aprovado-ainda-hoje-04-04/327222000 Acesso em: 26 abr 2023

Agência Pública. https://apublica.org/2023/04/bolsonaristas-planejaram-nas-redes-um-movimento-de-boicote-a-pl-das-fake-news/?utm_source=twitter&utm_medium=post&utm_campaign=boicoteplfakenews Acesso em: 26 abr 2023

Metropoles. https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/lobistas-do-facebook-espalharam-que-pl-das-fake-news-censura-religiao Acesso em: 27 abr 2023

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Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Bereia participa do podcast “O assunto”

A editora-geral do Bereia e pesquisadora do Instituto Superior dos Estudos da Religião (ISER), Magali Cunha, participou, na quinta-feira 23/02, do podcast O Assunto, do G1, com a jornalista e comentarista política Natuza Nery, para falar sobre o crescimento do fundamentalismo religioso em países da América Latina e a relação entre grupos religiosos e políticos.

Um dos assuntos abordados no programa foi o sentimento de perseguição relatado por parte dos cristãos no Brasil e estimulado pelo Ministério da Família e Direitos Humanos durante o governo passado. Esse estímulo culminou na invenção do termo “cristofobia”, utilizado nas últimas eleições como estratégia de desinformação e, segundo levantamento do Bereia, foi o tema mais checado nas eleições de 2022.

🔗 O episódio “Racismo religioso – o ódio para além do culto” do podcast O Assunto está disponível no Spotify. Clique aqui para ouvir.

Entrevista à Fundação Tide Setubal

A editora-geral do Bereia, Magali Cunha, concedeu entrevista à ONG Fundação Tide Setubal, sobre o uso do terror verbal como estratégia de desinformação em espaços religiosos. Em uma das falas, a editora-geral, que também é pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), alertou que a homogeneização de grupos religiosos reforça a intolerância religiosa e ressaltou a necessidade do trabalho de pesquisa que visa compreender as diferentes dinâmicas entre política e religião.

Criada em 2006, a Fundação atua na promoção da justiça social e no desenvolvimento sustentável de periferias urbanas.

Leia aqui a entrevista completa.

Apoiadores e esposa do ex-presidente Bolsonaro desinformam sobre decisão do atual governo quanto à educação para pessoas surdas

Nestes primeiros dias de janeiro de 2023, circula, de forma intensa, desinformação em ambientes digitais religiosos sobre o Decreto 11342/23, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 1 de janeiro de 2023, que estabelece nova estrutura para o Ministério da Educação (MEC).

As publicações afirmam que, com a nova estrutura, a Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos (Dipebs), criada pelo governo de Jair Bolsonaro, em 2019, deixa de existir, o que representaria o fim das políticas de educação bilíngue para pessoas surdas, da parte do MEC.

A deputada federal eleita pelo Mato Grosso, Amália Barros (MT) foi responsável pela disseminação do conteúdo em seu perfil no Instagram. Nele, a parlamentar eleita afirma: 

Dia triste para a comunidade surda brasileira! 

Depois de importantes vitórias alcançadas no governo Bolsonaro, como a criação da Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos – DIPEBS (onde o cargo de diretor, sempre foi ocupado por pessoas surdas) e a inclusão da educação bilíngue de surdos como modalidade na LDB, ambas respeitando as especificidades linguísticas e culturais dessa importante parcela da sociedade, fomos surpreendidos com a publicação do decreto Nº 11.342, apresentando a nova estrutura regimental do Ministério da Educação. Agora a DIPEBS simplesmente não existirá mais!

Que retrocesso!!! Não estão levando em consideração anos de lutas da comunidade surda por uma educação bilíngue e de qualidade! Lamentável!

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Perfil de Amália Mattos no Instagram, publicado em 2/1/2023

O conteúdo foi compartilhado pela esposa do ex-presidente da República, Michelle Bolsonaro, que está em férias com o marido nos Estados Unidos, fonte que gerou uma série de compartilhamentos em contas de evangélicos em mídias sociais e repercussão em veículos de notícias de extrema-direita.

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Perfil de Michelle Bolsonaro no Instagram, publicado em 3/1/2023
Revista Oeste, 3/1/2023

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Site de notícias O Sul, 4/1/2023

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Reprodução do site Pleno News, 4/1/2023

O site gospel Pleno News, em extensão ao que circula nas mídias sociais de Amália Barros e Michelle Bolsonaro, chega a afirmar que “Ainda não foi apresentada nenhuma opção de substituição para o órgão que foi implantado com o protagonismo da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro”.

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Conteúdo que circula por grupos de WhatsApp de igrejas e perfis de mídias sociais religiosos

Levando em conta este conteúdo disseminado, a seção cearense das “Comunidades Surdas Brasileiras” emitiu nota pública, assinada pela Diretora Política Educacional e Linguística da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) Dra. Flaviane Reis. No documento crítico à medida, Flaviane Reis declara: “Esperamos que a DIPEBS seja reintroduzida no fluxograma do MEC e que seja liderada por vozes representativas do movimento surdo em favor da educação bilíngue de surdos”.

O que foi a Dipebs criada no governo Bolsonaro

O reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como língua oficial das pessoas foi legalizado no Brasil recentemente, mas muito antes do governo Bolsonaro. Foi no último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2002, que foi aprovada a Lei 10.436, que reconhecia Libras como primeira língua de surdos no Brasil. Esta lei foi regulamentada no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Decreto 5.626/2005. Ele reconheceu oficialmente Libras como a língua de comunicação e aprendizado das pessoas surdas no país. 

No segundo mandato de Lula, em 2008, foi estabelecida a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE). Esta política previu o Atendimento Educacional Especializado: “Para a inclusão dos alunos surdos, nas escolas comuns, a educação bilíngue- Língua Portuguesa/LIBRAS, desenvolve o ensino escolar na Língua Portuguesa e na língua de sinais, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para alunos surdos, os serviços de tradutor/intérprete de Libras e Língua Portuguesa e o ensino da Libras para os demais alunos da escola. O atendimento educacional especializado é ofertado, tanto na modalidade oral e escrita, quanto na língua de sinais”.

Em 2003, foi aprovado no Senado Federal, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) o Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência (PLS 429). Depois de passar por várias alterações, em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi instituído, na forma da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146, de 2015.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei no. 9394/1996, já previa a educação especial (Capítulo V) com a oferta de atendimento especializado da educação básica à superior e foi sendo adequada a todas estas ampliações de direitos no campo da educação.

No governo de Jair Bolsonaro foi criada Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos (Dipebs) do MEC, por meio do Decreto Nº 10.195, de 30 de dezembro de 2019. Ela foi alocada na Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação, como consta no artigo 2º do Decreto. 

A secretária Ilda Peliz assim avaliou: “A principal novidade dessa política são as escolas bilíngues e classes bilíngues, que vão proporcionar que os alunos surdos e surdos-cegos tenham a educação na sua primeira língua, que é Libras [Língua Brasileira de Sinais], mas que aprendam também português.  Se há muitos alunos surdos falantes de Libras no estado ou no município, deverá ser definido se há necessidade de uma escola bilíngue ou uma classe bilíngue dentro de uma escola convencional. A decisão do local de estudo de cada criança e jovem, seja em salas comuns ou especiais, precisa ser tomada em conjunto com as famílias”.

Decreto de 2020 foi considerado discriminatório e inconstitucional

Foi nessa lógica das escolas especiais e classes especiais, separadas das escolas comuns, como previa a PNEE, de 2008, implementadas pela Dipebs, que foi estabelecida, em 2020, a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”, por meio do Decreto 10.502/2020.  A medida estabelecia a criação de escolas especiais para pessoas com deficiência em idade escolar (não apenas surdas) bem como aulas separadas, sem convivência com as outras crianças e adolescentes. O decreto foi objeto de protesto de muitas organizações de defesa dos direitos das crianças e adolescentes com deficiência que o consideravam discriminatório. 

O Decreto 10.502/2020 foi declarado inconstitucional pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF,) no mesmo ano de 2020, ao decidir sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6590, impetrada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que questionou os termos excludentes e discriminatórios da “Política Nacional de Educação Especial”. Na decisão, o STF entendeu que a norma pode fundamentar políticas públicas que fragilizam o imperativo da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino. 

Ainda assim, a LDB foi alterada em 2021, com a inclusão do Capítulo V-A que prevê a educação bilíngue de surdos, com o oferecimento de Libras “como primeira língua, e oferecimento de português escrito, como segunda língua, em escolas bilíngues de surdos,  classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos, para educandos surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas, optantes pela modalidade de educação bilíngue de surdos” (Artigo 60-A).

Foi o Decreto 10.502/2020, com a “Política Nacional de Educação Especial”, defendida pelo governo Bolsonaro, declarado inconstitucional, que foi revogado pelo novo governo empossado em 1 de janeiro de 2023.

As publicações críticas à extinção da Dipebs, em especial as dos veículos, que se apresentam como jornalísticos, desinformam em duas perspectivas: 1) não apuram o que significa o decreto assinado pelo atual governo, que acaba de assumir, para as ações de educação de pessoas surdas no país, previstas na Constituição do País e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB); 2) levam pessoas a interpretarem que o governo Lula retrocederá em relação a políticas de educação inclusiva para pessoas surdas, por isso extinguiu a diretoria do MEC criada no governo Bolsonaro; 3) fazem crer que a extinção se dá por oposição ao governo Bolsonaro, em especial à esposa do ex-presidente, que atuava como tradutora de libras e divulgava a importância de tal ação em suas atividades durante o mandato do marido.

Bereia buscou informações para superação da desinformação em torno do caso. 

O que foi extinto pelo governo Lula

O Decreto 11.342/23, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 1 de janeiro de 2023, estabelece nova estrutura para o Ministério da Educação (MEC). Esta organização é resultado das recomendações encaminhadas pelo Grupo de Trabalho de Educação da Gabinete de Transição Governamental para superação da “movimento de ideologização, precarização e constrangimento da educação pública”.  

No documento da equipe de transição, no que diz respeito às políticas de educação especial, voltada para pessoas com deficiência, a única recomendação que consta no capítulo “Sugestões de medidas para revogação e revisão” é:

p. 61: “Acabar com a política pública de educação especial que promove o isolamento social das crianças com deficiência | Proposta de revogação do Decreto nº 10.502/2020 – “Decreto da Exclusão”, uma política preconceituosa que exclui as crianças com deficiência do convívio com as demais crianças nos ambientes escolares, promovendo isolamento social inaceitável. O ato normativo é inclusive questionado no STF na ADPF 751 e na ADI 6590”.

O que foi estabelecido pelo governo Lula

Em 1 de janeiro de 2023, o presidente Lula assinou o Decreto 11.342, que “aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Educação e remaneja cargos em comissão e funções de confiança”.

Na nova estrutura do MEC, de fato, não está prevista a Dipebs, que pode ser considerada extinta. No entanto, foi estabelecida nova diretoria parra trabalhar a educação especial, voltada para pessoas com deficiência, em perspectiva inclusiva. No art. 2º o Decreto prevê a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão, onde está alocada a Diretoria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (Dipeepi). 

As competências da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão quanto à educação de pessoas surdas que fazem uso de Libras, estão explicitadas no art. 33, III, do Decreto 11.342/2023: “planejar e coordenar a formulação e a implementação de políticas públicas, em parceria com os sistemas de ensino, destinadas à educação bilíngue de surdos, surdo-cegos e deficientes auditivos que considerem a Língua Brasileira de Sinais – Libras como primeira língua e língua de instrução e a Língua Portuguesa na modalidade escrita como segunda língua”. Este encaminhamento contradiz as afirmações em mídias sociais quanto a um retrocesso nas políticas para educação de pessoas surdas no Brasil.

No art. 38, estão especificadas as competências do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Tanto o artigo 33 quanto o 38 do decreto assinado pelo presidente Lula contradizem a afirmação do veículo evangélico Pleno News de que “Ainda não foi apresentada nenhuma opção de substituição para o órgão que foi implantado com o protagonismo da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro”.

Avaliação de especialistas

Bereia recolheu avaliações de associações de pessoas com deficiência e especialistas que acompanham há alguns anos os desdobramentos do decreto revogado pelo novo governo e verificou que há muita celebração.

A Associação Nacional dos Surdos Oralizados (Anaso) divulgou nota pública, juntamente com suas associações parceiras Adeipa (PA), Amada (Manaus/AM) e Apasod (ES). Os organismos declaram considerar o Decreto 10.502/2020 “inconstitucional e segregador e a extinção da Diretoria de Políticas Públicas Bilíngues de Surdos (Dipebs) que, sob nossa perspectiva, defendia somente interesses de um grupo minoritário, os surdos sinalizantes, desconsiderando a maioria dos mais de 10 milhões de pessoas no Brasil, que possuem algum grau de surdez e a imensa diversidade deste grupo”.

A Anaso e parceiras afirmam ainda: “Prezamos pela educação inclusiva no âmbito da escola regular e repudiamos toda forma de retirada de direitos, omissões e privilégios à determinados grupos específicos de pessoas com deficiência. Nossa luta é por equidade de direitos para todos!”.

Para o educador surdo Agnaldo Quintino a Política Nacional de Educação Especial do governo Bolsonaro deveria ser extinta porque é inconstitucional, mas também “porque não engloba a todos, gerando discriminação frente a outros tipos de surdos existentes”. Para Quintino, a Dipebs “foi criada com o único fim de adotar o uso de libras de maneira obrigatória para todos nós, os surdos”. Ele explica que “os surdos oralizados dispensam o uso de libras, embora a maioria das pessoas acredite que só existam surdos sinalizantes (usuários de libras), o que não é verdade. É dizer, o uso de libras não é suficiente para todos os casos”. 

O educador surdo pondera que “a surdez é diversa e plural, e existe uma variedade enorme dentro da própria surdez, como por exemplo pessoas que ficaram surdas na velhice, pessoas que perderam a audição por causa de doença, acidente, COVID (chaga que infelizmente aumentou ainda mais o número de surdos). Há vários tipos de surdos e todos são surdos da mesma forma e devem possuir os mesmos direitos”.

Agnaldo Quintino acrescenta: “as reações das pessoas por conta da revogação dessa lei escancara o quanto o ser humano, principalmente em nosso país, ainda precisa evoluir. Vejo tanto ódio, tanta desinformação e tanta violência gratuita simplesmente porque o presidente e sua equipe pensaram em todos e não somente em um pequeno grupo de pessoas com deficiência. Em suma, fundamentava uma política pública que afastava mais e mais a Pessoa com Deficiência da Inclusão que tanto buscamos”.

O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, comemorou a decisão governo Lula. Ele afirmou que o decreto do governo Bolsonaro “desmanchou todas as políticas sociais de inclusão criadas nos governos anteriores, que tinham uma visão sistêmica da educação, da creche à pós-graduação, junto com uma secretaria voltada para educação especial”. 

Para o professor Araújo, o governo anterior negou o direito das crianças e dos jovens de fazer parte da escola e conviver com outros estudantes, e retirou-lhes o direito de um processo de ensinamento mútuo. “Bolsonaro com este decreto colocou as crianças separadas da sociedade e do convívio escolar. Lula acerta em revogar este decreto e retomar uma política de inclusão escolar na qual crianças e jovens com deficiência possam estar presentes na escola, convivendo com os demais, para a importante troca de ensinamentos e experiências, e de formação social”, afirma o professor.

Ouvida pelo Bereia, a doutora em Educação em Ciências e Saúde Maria Inês Batista Barbosa, educadora do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), afirma que “a Política de Educação Especial do governo Bolsonaro foi bastante criticada, pois considerou-se um retrocesso com relação à inclusão”. No que é específico da área da surdez, a professora acredita que o trabalho será redimensionado. “Claro que o protagonismo surdo é importante, mas não vi efetividade no trabalho da Dipebs. Vi sim, a TV INES, que foi um ganho enorme para a comunidade, ser finalizada. Acredito que na nomeação das secretarias do MEC, possamos saber exatamente como ficará o processo de inclusão não apenas para a comunidade surda, mas para todas as crianças com deficiência”, concluiu.  

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Bereia classifica como ENGANOSA a desinformação promovida pela deputada federal Amália barros (PL-MT), compartilhada pela esposa do ex-presidente da República Michelle Bolsonaro, por diversas pessoas que têm perfis em mídias sociais e repercutida por veículos de notícias evangélicos e não religiosos. Bereia verificou que não há extinção de políticas de educação para pessoas surdas no atual governo. 

Houve, sim, a extinção de uma política declarada inconstitucional, por ser excludente e discriminatória, que previa a segregação de pessoas surdas em idade escolar do convívio com outros estudantes, e desconsiderava a educação de pessoas surdas que não fazem uso de Libras.  

O Decreto que estabelece a estrutura do novo MEC, que declara desenvolver política de educação especial em perspectiva inclusiva, estabelece a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão, onde está alocada a Diretoria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (Dipeepi). 

Bereia insta leitores e leitoras a não aceitarem e não replicarem postagens que digam respeito a decisões de qualquer governo sem tomarem conhecimento do teor dos documentos que as instituem. É comum a produção de material falso e enganoso da parte da oposição a governos justamente pelos produtores destes conteúdos considerarem que seguidores de perfis em mídias sociais leem apenas textos superficialmente, sem aprofundamento e pesquisa.

Referências de checagem:

Decreto 11342/23, https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/1730668927/decreto-11342-23. Acesso em 4 jan 2023

Nota pública  da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), https://feneis.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Nota-Publica-sobre-extincao-Dipebs.pdf Acesso em 4 jan 2023 

Lei 10.436/2002, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm Acesso em 4 jan 2023 

Decreto 5.626/2005, https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DEC&numero=5626&ano=2005&ato=b61MTU65UMRpWTdae  Acesso em 4 jan 2023 

Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE), http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf Acesso em 4 jan 2023 

Lei n. 13.146, de 2015, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm Acesso em 4 jan 2023 

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei no. 9394/1996, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm Acesso em 4 jan 2023

Decreto Nº 10.195/2019, https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.195-de-30-de-dezembro-de-2019-236099560 Acesso em 4 jan 2023

Portal MEC, http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/ilda-peliz Acesso em 4 jan 2023

 Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, Decreto 10.502/2020, https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.502-de-30-de-setembro-de-2020-280529948 Acesso em 4 jan 2023

Instituto Alana, https://alana.org.br/wp-content/uploads/2020/10/ALANA_parecer_educacao_inclusiva-4.pdf Acesso em 4 jan 2023

Supremo Tribunal Federal, https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755053491 Acesso em 4 jan 2023

Relatório Final do Gabinete de Transição Governamental https://gabinetedatransicao.com.br/noticias/relatorio-final-do-gabinete-de-transicao-governamental/ Acesso em 4 jan 2023

Nota pública da Associação Nacional dos Surdos Oralizados (Anaso)  e parceiras https://www.instagram.com/p/Cm_t7g3rqXo/?igshid=MDJmNzVkMjY%3D Acesso em 4 jan 2023

Coluna do CT, https://clebertoledo.com.br/tocantins/rompendo-barreiras-com-fim-da-secretaria-de-educacao-para-surdos-lula-pensou-em-todos-nao-num-grupo/ Acesso em 4 jan 2023Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), https://cpers.com.br/governo-lula-revoga-decreto-sobre-politica-de-educacao-especial-e-medida-e-celebrada/ Acesso em 4 jan 2023

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Foto de capa: Wikicommons /Alan Santos (PR)

Matérias da Folha de S. Paulo e de O Globo alimentam desinformação sobre perseguição a igrejas no período pós-eleitoral

Matéria publicada pela Folha de S. Paulo, em 24 de novembro passado, com o título “Lula diz que vai cobrar apoio de evangélicos a vacinas ou responsabilizar igrejas por mortes” foi fonte para uma série de publicações críticas ao presidente eleito em mídias digitais religiosas. 

Imagem: Reprodução do site do jornal Folha de S. Paulo

As publicações, como as reproduzidas a seguir, em sites de notícias gospel e mídias sociais de apoiadores religiosos do atual governo, ganharam tom de terror verbal e deram fôlego ao tema desinformativo mais disseminado durante as eleições, segundo levantamento do Bereia, a “perseguição a cristãos e a igrejas”. 

Imagem: reprodução site Pleno.News

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Imagem: reprodução do Twitter, perfil de Damares Alves, 24 nov 2022

Imagem: reprodução do Instagram do senador eleito Magno Malta (PL/ES), 26 nov 2022

A matéria da Folha de S. Paulo

A matéria que serviu de base para nova safra de publicações sobre “perseguição a igrejas”, relata reunião fechada da equipe de saúde do governo de transição com representantes de várias áreas da saúde, em 24 de novembro, em Brasília. Segundo o jornal, a reunião teve formato híbrido e a participação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se deu por vídeo. 

No relato da Folha de S. Paulo, Lula teria afirmou aos participantes da reunião: “Eu pretendo procurar várias igrejas evangélicas e discutir com o chefe delas: ‘Olha, qual é o comportamento de vocês nessa questão das vacinas?’”. Ele teria dito ainda, segundo o texto: “Ou vamos responsabilizar vocês pela morte das pessoas”.

O presidente eleito ainda teria dito, de acordo com a matéria, que os primeiros cem dias de seu governo terão como foco a recuperação do PNI (Programa Nacional de Imunizações), o aumento da cobertura vacinal e a restauração da confiança da população, que, segundo a avaliação de Lula, foi afetada por fake news sobre o tema. “Vamos ter de agora pegar muita gente que combateu a vacina que vai ter de pedir desculpa”, teria dito o presidente eleito.

A matéria da Folha de S. Paulo relatou ainda que Lula se comprometeu a “enfrentar a burocracia da máquina pública” diante do sofrimento da população na busca de atendimento médico e atender demandas com a questão do autismo. Além destes temas e o da cobertura vacinal, o fortalecimento do Serviço Único de Saúde (SUS) também foi pauta do diálogo com o presidente eleito, segundo o jornal.

A reportagem cita a participação de ex-ministros da Saúde na reunião (Alexandre Padilha, Arthur Chioro, José Gomes Temporão, José Agenor e Humberto Costa, bem como de representantes do Instituto Butantan, da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), da Fiocruz, do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) e ex-chefes de PNI, entre outros órgãos. 

A fala do presidente eleito na reunião fechada durou cinco minutos, foi assistida por algum interlocutor em um notebook, gravada em telefone celular e publicada em link da TV UOL. O link está inserido na matéria da Folha de S. Paulo. A menção às igrejas evangélicas foi uma parcela do total da exposição de Lula que durou 38 segundos.

Reações e novo destaque no noticiário

O destaque do jornal Folha de S. Paulo à parcela da fala do presidente que mencionou as igrejas provocou publicações críticas, como as citadas acima, e notas públicas de organizações evangélicas. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) publicou nota de repúdio à fala de Lula na reunião fechada, em 25 de novembro, com base na matéria do jornal. 

Segundo a nota da Anajure, o repúdio refere-se ao fato de Lula, “ao generalizar o segmento evangélico, desconsidera os múltiplos exemplos de colaboração de interesse público ocorridos na pandemia e na sociedade brasileira, afastando-se da via adequada para os debates acerca da vacinação com as entidades religiosas e o público em geral, qual seja, o do consentimento informado”. 

A Anajure afirma na nota que “tal perspectiva, que aposta num consentimento informado, colide com discursos excludentes que, próximos da ameaça, terminam por se mostrar contraproducentes”.

A Frente Parlamentar Evangélica também publicou nota de repúdio, assinada pelo presidente, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), também em 25 de novembro. No texto, a FPE se coloca “em defesa de todos os Evangélicos do Brasil” para repudiar a fala de Lula. Segundo o texto, “ao complementar a fala LULA disse que vai ‘pegar muita gente’ demonstrando claro intuito de perseguir preconceituosamente à comunidade Evangélica, visto que não se referiu a nenhuma outra organização religiosa, sindical e ou a qualquer outro segmento da sociedade que defende a ampla liberdade de escolha de seus integrantes”.

A FPE, mantendo a postura de oposição ao presidente eleito com uso do terror verbal, ainda afirma na nota que: “Discursos como esse reforçam a necessidade de continuarmos conclamando nossa sociedade a refletir sobre os fundamentos e os princípios que nortearão a República, caso Lula assuma e permaneça na presidente, eis que tal fala conduz o país ao temeroso caminho da discriminação, preconceito e intolerância religiosa, especificamente contra os Evangélicos”.

O jornal O Globo repercutiu o caso, na mesma direção da Folha de S. Paulo, e publicou, em 26 de novembro, matéria com o título “Pastores e bancada evangélica reagem a cobrança de Lula sobre vacina”. 

Imagem: reprodução de O Globo, 26 nov 2022

Para o conteúdo, o jornal fez uso de um vídeo publicado em mídias sociais, pelo pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, no qual ele critica o Partido dos Trabalhadores (PT) e afirma que o presidente eleito tem “preconceito com a igreja evangélica”.

O Globo ainda transforma em notícia um extrato da gravação do pastor Malafaia em que ele ataca o presidente eleito e o Supremo Tribunal Federal de forma grosseira: “Que moral o Lula tem para cobrar alguma coisa? Vai lavar essa sua boca de cachaça. você só está aí porque tem amiguinho no STF (Supremo Tribunal Federal) que liberou você. Você foi condenado em todas as instâncias por corrupção. Quero ver que líder evangélico que vai receber esse crápula”.

Além de Silas Malafaia, os pastores ouvidos por O Globo, críticos à fala de Lula, foram os deputados federais vinculados às Assembleias de Deus, apoiadores da reeleição de Jair Bolsonaro, Sóstenes Cavalcate, Otoni de Paula (MDB/RJ) e Marco Feliciano (PL/SP). Um deputado federal pastor foi ouvido “em contraponto”, Davi Soares (União/SP), da Igreja Internacional da Graça de Deus, que, segundo a matéria, afirmou que “sua igreja ‘é 100% a favor da imunização’ e que tomou quatro doses da vacina contra a Covid-19”. O pastor e deputado apoiador do atual governo, declarou à reportagem ter as portas abertas ao diálogo com Lula: “O presidente, tendo contato com as lideranças das igrejas, verá que apoiamos a vacinação por completo. Tomara que ele as procure”.

O tom da reunião da equipe de transição 

Para compreender o contexto da fala do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na reunião com o Grupo de Trabalho em Saúde da equipe de transição para o novo governo, Bereia ouviu a pesquisadora da Fiocruz e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) Dra. Socorro Souza. Ela integra o GT como representante da diversidade regional, racial e de gênero na área da saúde. 

Socorro Souza avalia que a matéria da Folha de S. Paulo cobre “incorretamente ou insuficientemente alguns dos importantes pontos abordados na reunião; que não somente a fala do presidente eleito”.   A ex-presidente da CNS relata que foi tratado o relevante tema da defasagem no orçamento da saúde decorrente do teto de gastos, superior aos 22,7 bilhões  anunciados. Segundo ela “este valor a ser recomposto resulta da aplicação da Lei 141/2012, que determina à União aplicar o valor do ano anterior somado à variação do PIB. Algo que se aproxima de 10% da receita corrente líquida da União”. 

Sobre a vacina e o Plano Nacional de Imunização (PNI), Socorro Souza explica que “o presidente iniciou sua fala referindo-se à importância de se falar com a sociedade, as famílias e o povo (e não somente os evangélicos) para que possam voltar a acreditar na eficácia das vacinas, e não mais nas ‘brincadeiras’ ditas pelo atual governo”.  

A pesquisadora acrescenta que Lula “fez elogios aos trabalhadores da saúde e afirmou que quer que o trabalhador tenha qualidade de vida. Que vai procurar conversar com líderes religiosos (das igrejas)”. Socorro Souza acrescenta que o presidente eleito “mencionou, neste contexto, a responsabilidade sanitária de autoridades. Sobre responsabilidade por mortes, a referência foi feita a Bolsonaro, atual Presidente da República”.

A ex-presidente do CNS ouvida pelo Bereia, reitera a fala do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, citada na matéria da Folha de S. Paulo, que, segundo ela, “contextualiza e usa palavras que retraram o exato sentido dos conteúdos abordados na reunião”. Ela se refere ao trecho da reportagem que cita a afirmação de Chioro: “Muito bom saber que nós temos um presidente que participa da reunião com a sociedade de especialistas e que se compromete [com a pauta]. O Brasil vai contar com o presidente da República liderando a retomada do nosso Programa Nacional de Imunização e do enfrentamento da pandemia”.

A fala de Lula na reunião (transcrição em blocos de assuntos):

00:00 a 1:30 (um minuto e meio): Primeiro, eu estou muito feliz com a reunião. Era exatamente este tipo de discussão que eu queria ouvir. E estou mais preocupado é como vocês vão sistematizar toda esta história. O dado concreto, gente, é que vou sair agora e só queria dizer o seguinte. Nós vamos ter que tratar neste mandato na saúde tentando vencer um pouco a burocracia na máquina pública. Você foi ministro, Padilha foi ministro, Humberto foi ministro, Temporão foi ministro, e sabe como às vezes a máquina emperra, a máquina não anda. Às vezes um burocrata faz e não faz, nós vamos ter que tentar lidar com isto porque todo o nosso lema, além da saúde de qualidade é a gente tentar atender este povo, povo está muito sofrido. Consegue até ir a Upa depois não consegue mais nada. O povo fica esperando, esperando e a gente não pode deixar isto. 

1:31-2:09 (38 segundos): A gente não pode, de forma precipitada, achar que a gente anunciar vacina, o povo vai tomar. Não. O povo tem que ser convencido outra vez da eficácia da vacina, e nós vamos ter agora que pegar muita gente que combateu a vacina, que vai ter que pedir desculpa. Eu, pelo menos, pretendo procurar várias igrejas evangélicas e discutir com o chefe deles o seguinte: ‘Qual é o comportamento de vocês nessa questão da vacina?’ Ou nós vamos responsabilizar vocês pelas mortes das pessoas.

2:10-2:19 (nove segundos): Outra coisa que me preocupa é que temos que levar médicos para o interior longínquo, para aqueles lugares que ninguém quer ir.

2:20-2:49 (29 segundos):  Estamos com um desafio muito grande. Nós temos que tentar fazer. Neste ano, eu tenho desejo de fazer neste ano tudo o que eu não fiz em oito anos. A gente não conseguiu fazer porque não conseguiu, não tinha expertise para fazer. Hoje nós temos muita gente com expertise, temos aí cinco ministros, muita gente com expertise para ajudar. 

2:50-3:00 (10 segundos): Nos próximos dias eu vou passar a escolher o ministério e qualquer ministro da saúde, da educação, vai ter uma gama de gente para ajudar, não para atrapalhar. 

3:01-3:36 (35 segundos): A saúde para mim é uma coisa muito dura porque a gente ouve no palanque, quando a gente desce do palanque, as pessoas que vêm abraçar a gente, muitas vezes, vêm pedir coisas, e uma coisa que me assusta é a preocupação com o autismo. Você não tem noção, Chioro, quantas pessoas no palanque falavam ‘Lula, faz alguma coisa pelo autismo, eu tenho um filho autista”. É uma coisa que eu nem me dava conta. 

3:37-4:16 (39 segundos): nós precisamos voltar a ter uma medicina humanizada, qualificada e funcional. Esta é a ideia básica e por isso é que eu estou gostando da reunião. Esta reunião serve de base para a gente ter um bom começo de mandato. Eu não posso estar anunciando algumas coisas e esperar três meses para começar. Tem que ser logo. Por exemplo, farmácia Popular, estas coisas, nós vamos ter que dar de bico, e começar a ganhar este jogo. 

4:17-5:00 (43 segundos): eu queria só agradecer. Padilha, a Janja acha que eu estou falando demais, eu queria agradecer [comentários]. Espero que vocês vão ter um relatório disto que eu gostaria de receber – está gravando, né Padilha? Eu quero receber tudo. Vocês vão ficar até que horas? [comentários]. Se eu puder eu entro um pouco à noite. Muito obrigado.

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Bereia classifica as matérias da Folha de S. Paulo e de O Globo como imprecisas. Os veículos de notícias desinformam com imprecisão em vários elementos.

A Folha de S. Paulo promove desinformação ao dar destaque à menção de 38 segundos sobre as igrejas evangélicas na fala do presidente eleito, sem contextualizá-la, no que dizia respeito ao tratamento do tema do Plano Nacional de Imunização, colocado na reunião como uma das prioridades para o novo governo na área da saúde.  O papel das igrejas evangélicas não foi o tema central da reunião e nem da fala de cinco minutos de Lula, que teve oito blocos temáticos, como se pode observar na transcrição oferecida pelo Bereia nesta matéria. 

A desinformação, produzida por extrato de material de reunião fechada da equipe com a participação do presidente eleito, destacada no título da matéria (muitas vezes, o único conteúdo lido pelo público), induz à compreensão de um destaque às igrejas evangélicas que não ocorreu. A opção do jornal por uma hierarquização temática, que provocou reações entre os evangélicos, citados brevemente na reunião, leva à conclusão de ter ocorrido uma deliberada alimentação da tensão já existente com o presidente eleito desde o período eleitoral, com a suposta ameaça de perseguição a igrejas em futuro governo de esquerda.

Isto se reflete na forma como as reações se deram em publicações de indivíduos e de mídias religiosas apoiadores do atual governo e nas notas públicas de organizações ligadas ao segmento evangélico. Elas reacenderam o tema desinformativo da “perseguição a igrejas” como usado na campanha eleitoral de oposição à candidatura de Lula. 

A ação desinformativa da Folha de S. Paulo se estende na matéria de O Globo, que repercute várias reações críticas de líderes evangélicos, a maioria políticos de oposição ao presidente eleito. O jornal chega a publicar um ataque grosseiro a Lula, em vídeo publicado na internet, que atinge também o STF e faz uso de mentiras, sem informação que ofereça contraposição. 

A reportagem de O Globo ouviu apenas um deputado federal pastor “em contraponto” e desconsiderou outros que teriam relevância para o tema, como lideranças fora do campo político, que pudessem opinar sobre uma possível cobrança de apoio das igrejas em relação à vacinação.

A desinformação se configura ainda no fato de que nem a Folha de S. Paulo nem O Globo recuperaram o papel exercido por diferentes lideranças evangélicas no contexto da pandemia de covid-19 para se verificar a pertinência de uma “responsabilização” em relação a “comportamento em relação a vacinas” da parte do futuro governo. Estes veículos de notícias também não buscaram informação dos participantes da equipe de transição sobre o porquê da menção de igrejas evangélicas pelo presidente eleito quando o tema tratado foram as vacinas.

Referências de checagem:

TV UOL. https://tvuol.uol.com.br/video/lula-participa-de-reuniao-online-com-grupo-tematico-de-saude-na-transicao-04028C183072C4897326. Acesso em 28 nov 2022.

Anajure. https://anajure.org.br/nota-publica-sobre-fala-de-lula-quanto-a-responsabilizacao-de-igrejas-evangelicas-em-relacao-a-vacinacao/. Acesso em 28 nov 2022.

Frente Parlamentar Evangélica. https://www.facebook.com/fparlamentarevangelica/posts/pfbid02uft5L2zjkaTD9fnfgS95NdKuxrvPFssrqVBsRQ4xJA9jJaX3uqDEKonbdya3cJ8Vl. Acesso em 28 nov 2022.

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Foto de capa: Pexels

Presidente Jair Bolsonaro participa de cerimônias da maçonaria

*Com a colaboração de André Mello

* Matéria atualizada em 07/10/2022 às 11:00 para complemento de informações

Logo após a divulgação do resultado das eleições nacionais no Brasil, no domingo 2 de outubro, com a confirmação de que haverá um segundo turno na disputa para a Presidência da República, as mídias sociais de fiéis cristãos viralizaram postagens que relacionavam o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao satanismo. A campanha do ex-presidente teve que agir com um desmentido, em 3 de outubro, o que foi checado por diversas agências jornalísticas. Bereia publicou checagem sobre o caso

A partir da terça, 4 de outubro, uma nova onda de publicações virais ocupou ambientes digitais religiosos. Desta vez o alvo foi o candidato à reeleição presidente Jair Bolsonaro (PL). Denotando uma ação de contra-ataque de apoiadores de Lula, foram publicados vários trechos de vídeos e imagens demonstrativas da presença de Bolsonaro em eventos da maçonaria e documentos indicando apoio de lojas maçônicas ao presidente.

Em um dos vídeos, postado originalmente em 2017, quando Bolsonaro era deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC), a caminho da campanha para a presidência, ele discursa e pede a bênção da maçonaria:

Uma imagem contendo espelho, foto, mulher, mesa
Descrição gerada automaticamente
Reprodução de vídeo que circula em mídias sociais

Em um segundo vídeo, de 2014, quando era deputado federal pelo Partido Progressista (PP), Bolsonaro participa da comemoração de 50 anos do golpe militar de 1964, em uma loja maçônica, acompanhado do atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República General Augusto Heleno Ribeiro Pereira:

Pessoas em uma sala
Descrição gerada automaticamente com confiança média
Reprodução de vídeo que circula em mídias sociais

Grupo de homens com uniforme militar posando para foto
Descrição gerada automaticamente
Imagem que circula em mídias sociais

Em uma das imagens a esposa do presidente Michelle Bolsonaro também aparece em uma das lojas maçônicas:

Multidão de pessoas em pé
Descrição gerada automaticamente com confiança média
Foto que circula em mídias sociais

As imagens divulgadas mostram também a vinculação de ministros e apoiadores de Bolsonaro com a maçonaria:

Grupo de homens com uniforme militar
Descrição gerada automaticamente
Foto que circula em mídias sociais com o ex-ministro Tarcísio Freitas em uma loja maçônica
Foto que circula em mídias sociais com o casamento da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) em uma loja maçônica

Nesta quinta, 6 de outubro, constava na agenda do Vice-Presidente Hamilton Mourão constava uma visita a uma loja maçônica em Manaus. Mourão, aliás, surgiu para o cenário político após viralizar um discurso no qual o então Secretário de economia e finanças do Exército defendia uma intervenção militar no país.

Reprodução do Twitter

Um dos documentos publicados na rede digital, assinado pelo Grão-Mestre Edimo Muniz Pinho, de uma das principais instituições maçônicas do país – o Grande Oriente do Brasil no Rio de Janeiro – é um decreto que dá a ano de 2019 o lema da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Mas com a devida adaptação à cultura maçônica: “Brasil acima de tudo, G.A.D.U. acima de todos”. A sigla se refere ao “Grande Arquiteto do Universo”, o que representa Deus na maçonaria.

O decreto do Grande Oriente do Brasil no Rio de Janeiro foi assinado 21 dias depois da posse do presidente. Nele está registrado que “a história da Maçonaria em nosso país se entrelaça com os principais acontecimentos históricos que marcaram o Brasil”. O documento também afirma que a adoção do lema leva em conta “a nova estrutura governamental brasileira”. A adaptação traz “G.A.D.U.” e não “Deus”. 

Texto, Carta
Descrição gerada automaticamente
Imagem do decreto maçônico

A partir da viralização destas imagens, expressões como ‘maçonaria’, ‘decepção’, ‘traidor’, ‘Bolsonaro não é cristão” passaram a ser as mais comentadas em mídias sociais. A equipe do Bereia verificou a tendência de menções na tarde de 5 de outubro e a combinação Bolsonaro-maçonaria foi amplamente superior à Lula-satanista, que havia predominado até o dia 3.

Gráfico
Descrição gerada automaticamente
Imagem: pesquisa no Google Trends na tarde de 5 de outubro

Postagens verdadeiras, desdobramentos falsos

Os vídeos e as fotos são verdadeiros, não são montagens. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi forçado a declarar publicamente que, de fato, já esteve em cerimônia na maçonaria. Em transmissão ao vivo, em 5 de outubro, o presidente afirmou:

“Está aí na mídia agora, pessoal me criticando porque fui em loja maçom em 2017. Fui sim, fui em loja maçom, acho que foi a única vez que eu fui numa loja maçom. Eu era candidato a presidente, pouca gente sabia, e um colega falou ‘vamos lá’ e eu fui. Acho que foi aqui em Brasília. Fui muito bem recebido. Me trataram bem”.  

Bolsonaro disse não ver problema em ter ido no estabelecimento e afirmou que é “presidente de todos”. Além disso, o candidato à reeleição afirmou não ter nada contra a maçonaria e destacou que nunca mais foi em um estabelecimento do tipo:

“Fui de novo? Não fui. Agora, sou presidente de todos. Isso agora a esquerda faz estardalhaço. O que tenho contra maçom? Tenho nada. Se tiver alguma coisa a gente vê como proceder. Quero apoio de todos aqui do Brasil”.

Ele não se pronunciou sobre o documento de 2019 em que o Grande Oriente do Brasil no Rio de Janeiro reforça e assume seu lema de campanha e governo.

Alguns desdobramentos dos vídeos, fotos e documentos foram postados amplamente nas redes e têm conteúdo falso: 

um print de tuíte em que Bolsonaro afirma que maçonaria será maior que o Cristianismo;

– a foto em que Bolsonaro e General Heleno se colocam ao lado de maçons presentes na cerimônia, em 2014, contendo na parede figura mística de Baphomet (ou Bafomé), associada ao satanismo. Na foto original não há imagens na parede;

Imagens relacionando a maçonaria ao demônio, ao satanismo, a cultos de magia negra.

Por que atrelar Bolsonaro à maçonaria afetaria a sua campanha?

A maçonaria não é uma religião. A sociedade existe por muitos séculos e se apresenta como uma instituição fraterna, filosófica que reúne homens em torno da filantropia, da caridade. De acordo com o historiador Davi Gueiros Vieira, na obra “O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil”, o estabelecimento da maçonaria no Brasil pode ser datado em 1801, com a fundação de uma loja no Rio de Janeiro, seguida da fundação de uma outra na Bahia em 1802. 

Originada na Idade Média, na Europa, a maçonaria teve início como uma associação de construtores. Ao longo dos séculos, os objetivos filantrópicos agregaram pessoas das mais diversas ocupações e vertentes sociais. 

O documento denominado “Constituições dos Maçons”, um dos primeiros que formalizam a associação denominada maçonaria, foi, por exemplo, redigido por um pastor presbiteriano, o escocês James Anderson (1691-1739). Nele, porém, é estabelecido que os membros não precisavam ter vinculação com qualquer religião, mas declararem fé num “Ser Supremo”, uma noção genérica do divino, denominado o “Grande Arquiteto do Universo”. Cada novo membro faz o juramento de se comprometer com o G.A.D.U. de acordo com o livro sagrado que decida seguir. Por isso, entre os símbolos maçônicos há um misto de imagem míticas, as lojas (nome dado aos locais de reunião) reúnem fiéis de diferentes religiões ou sem religião.

Davi Gueiros Vieira explica que a maçonaria no Brasil parece ter tido um programa, que se não foi “tramado” ou claramente elaborado, aparece nitidamente no desenrolar dos acontecimentos históricos: a) conservar a nação unida a qualquer preço, usando o trono como seu ponto de apoio; b) controlar a Igreja, conservando-a liberal, dominada pela Coroa, com um clero não educado e sobretudo, não tradicionalista; c) lutar pelo “progresso “ do Brasil por meio do desenvolvimento da educação leiga, da expansão do conhecimento científico e técnico (não estorvado pela teologia) e da importação de imigrantes “progressistas” e tecnicamente educados, dos Estados Germânicos, da Inglaterra e de outras nações protestantes.

Fama de “seita”

Vista como uma seita, inimiga do Cristianismo, a maçonaria é condenada tanto pela Igreja Católica, da qual o presidente Jair Bolsonaro é adepto, quanto pelas igrejas evangélicas. A Encíclica Humanun Genus, do Papa Leão XIII, de 1884, afirma que seguidores da maçonaria, “ajuntados por perversos acordos e por conselhos secretos, ajudam-se uns aos outros, e excitam-se uns aos outros a uma audácia nas coisas malignas”. Não há mais entre católicos a pena de excomunhão para quem se associar à maçonaria mas a “Declaração sobre a Maçonaria”, da Congregação para a Doutrina da Fé, publicada em 1983, assinada pelo prefeito, então Cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento 16, decreta:

” Permanece portanto imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas.  Os fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão”

Ainda que tenham muitas vertentes e não contem com um órgão centralizador como o Vaticano, as igrejas evangélicas têm compreensão similar no Brasil desde a chegada do grupo ao Brasil no século 19. A rejeição à idolatria é um dos principais motivos à rejeição. Elas não reconhecem a noção de G.A.D.U. como o Deus cristão, da Bíblia, mas um outro deus que não pode ser cultuado”. O fato de haver indiferença e aceitação de que fiéis evangélicos sejam maçons chegou a ser uma das causas da primeira grande divisão da Igreja Presbiteriana do Brasil, em 1903, tendo sido formada a Igreja Presbiteriana Independente, com relata Davi Gueiros Vieira. 

Entre os vídeos que viralizaram nos últimos dias, há registros da condenação à vinculação à maçonaria da parte de apoiadores de Jair Bolsonaro, como o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, o missionário da Igreja Internacional da Graça R. R. Soares e o pastor da Igreja Batista da Lagoinha André Valadão

ATUALIZAÇÃO: A Confederação Maçônica do Brasil (COMAB) divulgou nota na qual afirma: “Somos uma Instituição do BEM para o BEM e jamais compactuaremos com pessoas do mal, inescrupulosas e desprovidas de caráter que tentam deturpar nossos princípios em nome de objetivos abjetos, escusos e nefastos que desejam arrastar nosso País ao caos”.

Reprodução da nota da COMAB

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Bereia classifica os vídeos e imagens que mostram Jair Bolsonaro e seus seguidores participando de cerimônias da maçonaria como verdadeiros. Alguns materiais decorrentes destes vídeos e imagens passaram a conter registros falsos, como exposto nesta matéria. Bereia alerta seus leitores e leitoras para a guerra de conteúdo permeada por ataques e contra-ataques à imagem de candidatos no período do segundo turno eleitoral e conclama à verificação da veracidade antes de qualquer compartilhamento.

Referências de checagem:

Coletivo Bereia. https://coletivobereia.com.br/video-manipulado-que-liga-o-ex-presidente-lula-ao-satanismo-viraliza-entre-evangelicos/ Acesso em: 6 out 2022.

YouTube. 

https://youtu.be/4f9AXbdWDAk Acesso em: 6 out 2022.

https://www.youtube.com/watch?v=YFN8W2GNaIc Acesso em: 6 out 2022.

https://www.youtube.com/watch?v=NuLEcu93G0Q Acesso em: 6 out 2022.

https://www.youtube.com/shorts/e1H4-IUECow Acesso em: 6 out 2022.

https://www.youtube.com/watch?v=TCVBcYfRMyo Acesso em: 6 out 2022.

https://www.youtube.com/watch?v=p54iVJoKUVs Acesso em: 6 out 2022.

G1. https://g1.globo.com/fato-ou-fake/eleicoes/noticia/2022/10/04/e-fake-print-de-twitter-de-bolsonaro-que-afirma-que-maconaria-sera-maior-que-o-cristianismo.ghtml Acesso em: 6 out 2022.

UOL. https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2022/10/05/foto-de-bolsonaro-na-maconaria-e-antiga-montagem-insere-simbolo-pagao.htm Acesso em: 6 out 2022.

Aos Fatos. 

https://www.aosfatos.org/bipe/falsas-ligacoes-de-lula-e-bolsonaro-com-satanismo-viralizam-e-geram-explosao-de-buscas/ Acesso em: 6 out 2022.

Vaticano. 

https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_18840420_humanum-genus.html Acesso em: 6 out 2022.

https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19831126_declaration-masonic_po.html Acesso em: 6 out 2022.

Governo Federal. https://www.gov.br/planalto/pt-br/vice-presidencia/agenda-vice-presidente/2022-10-06 Acesso em: 6 out 2022.

Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/10/5042537-vice-presidente-mourao-vai-a-loja-maconica-em-manaus-nesta-quinta-06.html Acesso em: 6 out 2022.

COMAB. https://comab.org.br/2022/10/nota-a-sociedade-brasileira/ Acesso em: 7 out 2022.

Vídeo manipulado que liga ex-presidente Lula ao satanismo viraliza entre evangélicos

* Matéria atualizada em 06/10/2022 às 21:25 após novas informações surgirem após a publicação

Bereia recebeu de leitores indicação de checagem de um vídeo de um influencer digital que se identifica como “satanista”, que faz a previsão de uma vitória de Lula no primeiro turno das eleições brasileiras de 2022. O vídeo viralizou, especialmente entre cristãos, com acusações a Lula de ser vinculado e ter o apoio de satanistas e causou muitas reações nas mídias digitais. 

Imagem: reprodução da internet

O homem que fala no vídeo é Vicky Vanilla, influenciador digital, com quase 1 milhão de seguidores no TikTok e que se apresenta como “mestre e líder da Igreja de Lúcifer do Novo Aeon”. 

No vídeo que viralizou, Vanilla aparece em local com bandeira de Lula ao fundo, fala sobre suposta união de diferentes religiões, de segmentos satanistas e do ocultismo em nome da vitória do ex-presidente no primeiro turno de 2 de outubro.

O conteúdo foi publicado na sexta-feira, 30 de setembro, dois dias antes do pleito, e passou a ser compartilhado nas redes bolsonaristas no domingo, quando o resultado se encaminhava para definição por um segundo turno.

O Portal de Notícias da Record R7 e sites gospel como o Pleno News deram destaque ao vídeo.

Imagem: reprodução do R7
Imagem: reprodução do Pleno News

Vídeo falso, conteúdo manipulado

Antes mesmo que Bereia concluísse a pesquisa deste conteúdo, vários projetos de checagem de conteúdo, como Aos Fatos, e veículos jornalísticos, como o Correio Braziliense,  já haviam publicado uma verificação indicando a falsidade de tal material. 

Na tarde do dia 3 de outubro, a campanha de Lula publicou nota intitulada “Lula é cristão. Não existe qualquer relação com satanismo”. No texto, a campanha afirma: “A verdade, como já repetimos antes, é que Lula é cristão, católico, crismado, casado e frequentador da igreja. Não existe relação entre Lula e o satanismo” (…) Quem espalha isso é desonesto e abusa da boa-fé das pessoas. O vídeo circulou em muitos canais do Telegram e grupos de WhatsApp e comprova como os apoiadores de Bolsonaro abusam da boa-fé das pessoas”.

O próprio envolvido no conteúdo, Vicky Vanilla, publicou um vídeo para desmentir o caso e declarar que foi feita uma montagem a partir de imagens tiradas de contexto e chama a publicação que viralizou de “fake news”. “Está sendo espalhado como uma fake news tanto a meu respeito, quanto a respeito do candidato Lula, que não tem qualquer ligação com a nossa casa espiritual”, completou Vanilla. O influenciador disse ainda que recebeu diversas ameaças depois que o material foi espalhado: “o bastante para fazer um boletim de ocorrência e entrar com representação judicial contra meus agressores”, destacou. 

No perfil de Vicky Vanilla no TikTok, são encontrados conteúdo pró-Lula e anti-Bolsonaro. Porém há postagens em que ele ataca o candidato do PT de forma intensa e chega a associá-lo ao nazismo.

Viralização

Além de ter sido divulgado pelo Portal da Rede Record R7, por sites gospel e mídias sociais de lideranças e fiéis religiosos, o vídeo falso foi publicado pela deputada federal reeleita Carla Zambelli (PL-SP), que o utilizou para chamar seguidores para uma “guerra espiritual” no segundo turno das eleições, “do bem contra o mal”. Ainda na terça-feira, 4 de outubro, mesmo depois do desmentido da campanha de Lula e do próprio Vicky Vanilla,  o senador eleito Cleitinho (PSC-MG) divulgou o material falso para convocar o voto “dos mais de 40 milhões de brasileiros que se abstiveram no primeiro turno por Jair Bolsonaro” (na verdade, foram cerca de 32 milhões de abstenções).

Imagem: reprodução do Instagram

Até o momento em que esta matéria foi concluída o conteúdo falso ainda estava visível em todos estes espaços digitais.

ATUALIZAÇÃO: O Tribunal Superior Eleitoral determinou que o vídeo fosse tirado do ar nesta quinta, 6 de outubro.

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Bereia reafirma o que já foi publicado por agências de checagem e veículos de mídias: o vídeo que ainda circula vinculando o ex-presidente Lula a uma seita satânica é FALSO. Além de tal vinculação ter sido negada pela campanha do candidato, o próprio envolvido no conteúdo desmentiu sua participação e denunciou a montagem.

Bereia alerta seus leitores e leitoras para materiais divulgados durante o processo eleitoral para destruir a imagem de candidatos. Quem receber este tipo de conteúdo não deve compartilhar sem antes verificar a veracidade. 

Referências de checagem:

Aos Fatos. https://www.aosfatos.org/bipe/falsas-ligacoes-de-lula-e-bolsonaro-com-satanismo-viralizam-e-geram-explosao-de-buscas/ Acesso em: 4 out 2022.

Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/10/5041843-lula-desmente-fake-news-sobre-satanismo-que-viralizou-entre-bolsonaristas.html Acesso em: 4 out 2022.

Site oficial de Lula. https://lula.com.br/a-verdade-sobre-lula-e-o-satanismo/ Acesso em: 4 out 2022.

Uol. https://www.uol.com.br/ecoa//videos/?id=influenciador-satanista-vicky-vanilla-desmente-apoio-a-lula-04020D9C3264C0897326 Acesso em: 4 out 2022.

TSE. https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/100-das-secoes-totalizadas-confira-como-ficou-o-quadro-eleitoral-apos-o-1o-turno Acesso em: 4 out 2022.

CESE lança Campanha Primavera para a Vida 2022

A CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço) lança no dia 27 de setembro com a 22ª edição da Campanha Primavera para a Vida. Neste ano, a campanha abraça o tema “Andar com Fé pelos caminhos da Democracia: Vivam como pessoas livres, mas não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; I Pedro 2.16a”, trazendo a discussão sobre o momento político vivido pelo Brasil de ataques constantes contra suas instituições democráticas e o compromisso da organização com a sua radicalidade.

Junto da campanha também será lançado o livro “As igrejas evangélicas na ditadura militar: dos abusos do poder à resistência cristã”, uma obra que sintetiza a atuação de grupos evangélicos durante a ditadura militar (1964-1985) e traz reflexões sobre o enfrentamento aos desafios do tempo presente para incentivar processos de renovação crítica da relação igreja e sociedade. O público poderá conhecer por meio da sistematização a experiência de como grupos evangélicos atuavam no período de repressão, como subsídio de reuniões e articulações interessadas em refletir sobre os significados, avanços e limites dos processos socioculturais, políticos e eclesiais nas décadas de 60 e 70. Uma oportunidade de olhar curso da história para denunciar as consequências dos abusos de poder, e ao mesmo tempo, animar a esperança que torna possível novos caminhos para a construção democrática.

A publicação encontrou calendário e ambiente fértil para realização da sua primeira divulgação, a campanha da primavera e tem como responsáveis pela obra a editora-geral do Bereia, Magali Cunha, Anivaldo Padilha, Luci Buff e Jorge Atílio Iulianelli (in memoriam). Além da CESE, o livro “As igrejas evangélicas na ditadura militar: dos abusos do poder à resistência cristã” conta com o apoio do Coletivo Memória e Utopia, Instituto Vladimir Herzog e KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço.

Direita e esquerda no Brasil: o imaginário, o digital, o caos

Novas formas de ativismo passaram a compor o cenário político brasileiro, traduzindo as mudanças significativas na organização e mobilização política  na era das novas tecnologias, mídias sociais, influenciadores digitais, disparos de mensagens em massa etc, conferindo à esfera pública digital e à opinião pública um papel fundamental sobre as mediações que realiza entre os cidadãos e o Estado. 

A pesquisa “Cara da Democracia no Brasil” realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação fornece algumas pistas para tentar compreender estas e outras  importantes mudanças no comportamento, nas atitudes, nas crenças e valores dos cidadãos brasileiros com relação à democracia, temas que dominam o debate público desde a eleição de Jair Bolsonaro, como legalização do aborto, descriminalização das drogas e direitos das chamadas minorias. 

De acordo com a pesquisa, o dobro dos brasileiros se diz mais à direita do que  à esquerda no espectro político. Entretanto, devemos levar em conta que a compreensão do significado do que é pertencer à direita ou esquerda não alcança a maioria da população, e muitas percepções mudam ao longo do tempo. 

Direita e esquerda

Os termos direita e esquerda no campo político surgiram no turbulento período da Revolução Francesa de 1789. Durante os acalorados debates na Assembleia Constituinte a respeito do poder que o rei Luís 16 deveria ter a partir daquele momento, o grupo conservador, favorável à manutenção dos poderes da monarquia, ficaram à direita; enquanto os progressistas ou revolucionários, que defendiam diminuir os poderes do rei, sentaram-se à esquerda. 

Com o passar dos anos, as diferenças entre os grupos evoluíram para outros temas, além dos poderes da monarquia, que pouco tempo depois chegou ao fim. Com a direita em busca de uma república vinculada à Igreja e um Estado com mercado liberal e a esquerda lutando por um Estado laico e regulador na economia. Em alguns países os termos progressistas e reacionários, conservadores e liberais ou democratas e republicanos nomeiam esses espectros políticos opostos. No Brasil, mais de 200 anos depois das discussões na França,  os campos da esquerda e direita, com diversos tons entre os extremos de cada lado, continuam polarizando o debate político. 

A pesquisa “A Cara da Democracia”, para tentar compreender onde cada brasileira está posicionado neste debate, apresentou um questionário no qual os entrevistados deveriam marcar de 1 a 10, sendo 1 o máximo à esquerda e 10 o máximo à direita. 

Imagem: reprodução de O Globo

Entretanto, chama atenção na pesquisa – para além de uma direita sedimentada que convive com algumas opiniões progressistas pontuais – o grande número de brasileiros que acreditam em teorias da conspiração. Apresenta-se como um desafio compreender de que maneira essas bizarras teorias ocuparam o imaginário social, o conjunto de crenças, de parte da população.

É espantoso que 20% dos entrevistados acreditam que a Terra é plana, 21% que a cloroquina cura a covid-19, e 27%  não acreditam que o ser humano pisou na lua. No aspecto “ideológico” das conspirações, os números são ainda maiores,  49% acreditam que a China criou a covid-19 e uma das teorias mais difundidas pelo bolsonarismo, o globalismo (ideia de que  a globalização econômica passou a ser controlada pelo “marxismo cultural”), é acolhida por 44% dos entrevistados, que acreditam em uma conspiração global da esquerda para tomar o poder no mundo. O falecido guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho e o ex chanceler Ernesto Araújo difundiram o globalismo incansavelmente. 

Imagem: reprodução de O Globo

Como explica a jornalista e doutora em Ciências da Comunicação Magali Cunha, em seu artigo O lugar das mídias no processo de construção imaginária do “inimigo” no caso Marco Feliciano, “os seres humanos vivem de imagens, vivem de imaginação socialmente construída, o que forma e reforma suas crenças, sua linguagem e suas atitudes frente às demandas da vida e do outro”. 

Desta maneira, “o imaginário é, portanto, um componente da existência humana como experiência marcadamente social, que dá sentido à vida coletiva e é ressignificado por ela. Imaginário é a elaboração coletiva da coleção de imagens formada pelo ser humano, de tudo o que ele apreende visualmente e experencialmente do mundo.” 

O cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Leonardo Avritzer, afirma que Bolsonaro adota uma tática para (des)governar que está relacionada à ampla base constituída nas redes sociais e degrada as instituições a partir de uma rede impressionante de geração de fake news.   Especificamente a respeito da pesquisa “A Cara da Democracia” e número de brasileiros que acreditam em teorias da conspiração, Leonardo Avritzer destaca que há os dois caminhos para entender a adesão de brasileiros aos apelos conspiratórios: “Há, primeiramente, o nível baixo de escolaridade, especialmente em questões como se a terra é plana. Em outros temas, há um amplo processo de desinformação nas redes sociais, especialmente quando recebem informações das estruturas de confiança delas, como instituições religiosas, família, ou local de trabalho. 

Na campanha eleitoral de 2018, Jair Messias Bolsonaro reuniu os discursos conservador tradicional, neoliberal, populista e religioso em uma nova combinação e elaborou uma retórica sem precedentes no Brasil. Tal rearticulação discursiva materializa um projeto hegemônico para a constituição de uma nova base e agenda política, liberal na economia e conservadora nos costumes, que é uma das facetas de um projeto político mais amplo de reestruturação da hegemonia do bloco centrado na elite econômica e financeira do país em novas condições. 

De acordo com o sociólogo Jessé Souza, “distorcer o mundo social é parte do projeto das classes dominantes para subjugar os demais segmentos da sociedade e se apropriar da riqueza nacional e só a percepção adequada da dimensão cultural e simbólica da vida social nos permite uma compreensão mais profunda e verdadeira da vida que levamos como indivíduos”.  No Brasil de Bolsonaro, as pautas morais e o inimigo comunista alimentam o imaginário de grande parte da população. As mídias sociais são o caminho.

“Engenheiros do Caos”

Na obra “Os Engenheiros do Caos: Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições, Giuliano da Empoli (2019) refaz os caminhos percorridos por figuras como Gianroberto Casaleggio _ cofundador do partido italiano Movimento Cinco Estrelas e um dos primeiros a utilizar a internet e as redes sociais para fazer política, Steve Bannon – guru de Donald Trump e um dos principais nomes da ultradireita no mundo, Milo Yiannopoulos – comunicador e “blogueiro” inglês, apoiador convicto da “liberdade de expressão” e crítico feroz do “politicamente correto” e Arthur Finkelstein – conselheiro de Viktor Orban, presidente ultraconservador da Hungria, que juntos “estão em vias de reinventar uma propaganda adaptada à era das selfies e das redes sociais, e, como consequência, transformar a própria natureza do jogo democrático”. Esses são os Engenheiros do Caos. 

O engajamento técnico: curtidas, comentários e compartilhamentos, tão buscados pelos executivos de marketing e publicidade das grandes empresas, é também o objetivo desses “profissionais” da esfera pública digital. Assim, colocam os algoritmos das redes sociais digitais ao seu favor, pois se os programadores do Facebook ou Instagram, por exemplo, trabalham para atrair e prender a atenção dos usuários pelo maior tempo possível, os algoritmos e ferramentas dos Engenheiros do Caos têm a mesma finalidade, capturar a razão dos indivíduos, neste caso, através da emoção, com iniciativas como o projeto Brasil Paralelo, produtora de conteúdo de extrema-direita, inspirado nas ideias de figuras como Olavo de Carvalho. Buscam “recontar” a História do Brasil,  e as teorias da conspiração são a matéria prima de suas produções e documentários. Um projeto que à primeira vista pode parecer independente e feito por alguns jovens conservadores com “uma ideia na cabeça”, é parte de um movimento bem orquestrado, organizado e muito bem financiado.                          

Não importa se as posições apresentadas são absurdas, mentirosas ou fantasiosas, pois estão pautadas em uma questão numérica de engajamento e não são baseadas em valores éticos. A meta é identificar e hackear as aspirações e os temores dos usuários das mídias sociais digitais e fazer com que interajam com outros que defendem as mesmas posições e com as páginas ou perfis que apresentam estes conteúdos.

Magali Cunha explica que exércitos precisam de inimigos e a Teologia de um Deus guerreiro e belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade de identificação de inimigos a serem combatidos, através dos tempos estes inimigos foram, em maior ou menor grau, a Igreja Católica, as religiões afro-brasileiras, os comunistas e mais recentemente, a população LGBTQIA+. Parte das estratégias no quadro das disputas político-ideológicas baseadas no enfrentamento de inimigos estabelecidos simbolicamente é criar uma “guerra” pela visibilidade, que comumente envolve números e exposição nas mídias. 

As consequências na política nacional

 Jair Bolsonaro e os seus próprios Engenheiros do Caos deram ainda uma nova roupagem a esse discurso, unindo a ameaça aos valores tradicionais da família e da ameaça comunista. Esses temas não são novos, mas a utilização das redes sociais digitais é a novidade.

Jessé Souza afirma que “colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso”.  De nada adianta os Engenheiros do Caos proclamarem as virtudes do governo atual e demonizar os governos de esquerda se ninguém acreditar nisso. E essa lavagem cerebral, ou melhor, privação sensorial, é turbinada pelas notícias falsas, teorias da conspiração, manipulação de dados e desinformação, turbinados pelas mídias sociais digitais e legitimadas por políticos, religiosos e influenciadores digitais. Algumas vezes, um indivíduo representa tudo isso, como o pastor presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia. 

Nessa bolha sinistra que comporta as mais inusitadas ideias e conspirações, os indivíduos em busca de acolhimento, reconhecimento e alguma explicação para seus anseios, parecem cada vez mais presos e hipnotizados. As teorias da conspiração, preconceitos e ódio sempre estiveram entre nós, no entanto, as redes sociais digitais conectaram pessoas com interesses em comum, inclusive os mais negativos. Os Engenheiros do Caos perceberam este poder das mídias sociais digitais e a utilizaram para manipulação da informação com fins políticos. 

Derrotar Jair Bolsonaro é, para muitos analistas, fundamental para estancar esse processo do que podemos chamar de privação sensorial. Temos o componente religioso e conservador, um grande número de evangélicos e católicos representados por líderes políticos e influenciadores digitais nada cristãos, além de um grande contingente, independentemente de classe social ou nível de escolaridade, que lê cada vez menos, escreve cada vez menos, interpreta cada vez menos e tem nas mídias sociais digitais sua única fonte de informação. 

Contudo, mesmo derrotando o atual presidente nas urnas, esse grupo extremista e seus métodos continuarão em atuação na esfera pública, buscando provocar uma ruptura no sistema democrático. Estes seres não estão mais nas sombras, são métodos e táticas são debatidos em artigos, livros e documentários, mas como um espectro sinistro, são difíceis de abalar ou capturar.

Imagem de capa: Gerd Altmann por Pixabay

Postagem engana com vídeo de pastor fazendo oração por traficantes

Um vídeo que mostra traficantes interrompendo um culto em uma igreja evangélica no Rio de Janeiro para pedirem uma oração antes de saírem para um confronto armado, viralizou em mídias sociais na terça, 5 de julho, e se transformou em notícia até mesmo de grande mídia local.

Imagem: reprodução do Instagram

Imagem: reprodução do jornal O DIA

Alguns perfis e a matéria do jornal O Dia basearam-se em informação da página carioca de mídias sociais “Alerta Informes Rio”. Em publicação, a página dizia que “a filmagem, segundo fontes da polícia, ocorreu na quinta-feira, dia 30 [de junho], na comunidade INPS, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio. O Portal Procurados também confirmou a informação”. 

Imagem: reprodução do Instagram
Imagem: reprodução do Instagram

Após o alto alcance do vídeo e dos inúmeros comentários sobre a relação entre igrejas e o tráfico de drogas, vários deles de cunho preconceituoso e depreciativo de igrejas evangélicas em geral, lideranças de uma pequena igreja evangélica no Morro do Borel (bairro da Tijuca, no Rio) tornaram público o teor da publicação: era uma encenação. 

Uma peça de teatro religiosa

Como é muito comum em igrejas evangélicas, peças são encenadas em cultos para oferecer uma mensagem, um ensino, relacionados à dinâmica da vida, da própria igreja. É muito comum temas como processos de conversão, a volta de Jesus e o Juízo Final, histórias da “igreja perseguida pelo mundo”, por exemplo. Da mesma forma, para comemorar o Dia do Pastor, em 12 de junho, integrantes do Ministério Tempo de Avivar apresentaram uma peça teatral em que dois traficantes (personagem presente no cotidiano de uma comunidade periférica) pediam oração para atuarem em um confronto violento, mas ao final se convertiam ao Evangelho.

A história foi esclarecida pela pastora presidente do Ministério, Isa Cruz, em depoimento ao repórter Igor Melo, do UOL Notícias. Ela disse que o pastor que aparece nas imagens é seu marido, Alan Mendes, também presidente da igreja.   A pastora contou ao repórter que não faz muito uso de mídias sociais, mas acabou tomando conhecimento da repercussão do caso. “A todo momento me mandam o vídeo.” Ela explicou que a congregação não se preocupou com a divulgação das imagens: “Ficamos tranquilos, porque realmente foi uma peça e acho que não foi [divulgado] o vídeo todo”.

O pastor Alan Mendes explicou ao UOL Notícias que a arma exibida no vídeo era de paintball. A pastora admitiu que em sua igreja já houve casos de traficantes que se converteram e largaram o crime e a peça estaria refletindo esta realidade. “A nossa igreja é aberta. Nós não impedimos ninguém de entrar na igreja para receber a palavra de Deus. Temos alguns convertidos que antes foram ex-prostitutas, ex-traficantes. Quando [a pessoa] entra na igreja, na presença de Deus, sua vida é mudada”, disse Isa Cruz à reportagem.

Já o jornal O Globo, publicou o esclarecimento dado pela pessoa que publicou o vídeo. Trata-se do mestre de obras, que é influenciador digital, Rondinele dos Santos, conhecido como Nelinho do Borel. Ele relatou a mesma história contada ao UOL pela pastora Isa Cruz e seu marido pastor Alan Mendes. Com mais de 50 mil seguidores, Nelinho do Borel afirma que postou o vídeo no TikTok com a intenção de mostrar como a igreja atua dentro das comunidades.

Apesar da boa intenção, o influenciador digital teve problemas com a publicação. “A igreja está lá para orar por todo mundo, independente do que a pessoa faz. Eu não achei que iriam apagar meu vídeo. Na primeira vez que publiquei, ele teve 12 milhões de visualizações. Deletaram meu vídeo e eu postei de novo, achando que tinha dado algum erro. Na terceira vez, bloquearam minha conta”, contou Nelinho do Borel à repórter Kathlen Barbosa, de O Globo. Segundo ele, na legenda do vídeo constava a informação de que se tratava de uma peça de teatro, porém desconfia que a plataforma tenha apagado o conteúdo por conta de denúncias de outros usuários.

Nelinho do Borel confirmou o que disse o pastor Alan Mendes, que a encenação usou armas de paintball, e que os personagens que aparecem no vídeo são todos membros da igreja.

A vida como ela é

O conteúdo que fez o vídeo viralizar é enganoso, pois não é um fato ocorrido, mas sim uma encenação. Entretanto, elementos contidos na narrativa que deu forma à representação dos membros da igreja, no Dia do Pastor, são uma realidade presente no cotidiano de muitas igrejas em favelas de grandes cidades do Brasil.

É uma realidade que tem se tornado muito evidente pelo noticiário e acaba sendo julgada e, boa parte das vezes, condenada por pessoas que vivem em bairros das cidades do Brasil e que desconhecem o cotidiano destas comunidades. Por isso, o trabalho de pesquisadoras como a professora da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Estudos da Religião Christina Vital é muito relevante. Ela é autora do livro “Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015), resultado de pesquisa de campo, como antropóloga, nas favelas de Acari e Santa Marta, no Rio.

Há os casos de traficantes que participam das igrejas e se convertem, e mudam de vida, como relata a pastora Isa Cruz, e há os que não mudam, acomodam as duas identidades, a do tráfico e a religiosa. Por isso a professora Christina Vital afirma que “não se trata de pensarmos esta relação, esta aproximação entre criminosos e redes e códigos evangélicos a partir da ótica da conversão, de uma transformação da vida do indivíduo, mas de uma composição específica que envolve expectativas de transformação, apelos morais, conexão com narrativas locais e uso de uma religião como ícone de dominação. Assim, a religião seria mais uma forma de demonstrar poder”.

A professora ressalta que a intensificação da relação entre igrejas evangélicas e dirigentes do tráfico é mais um sintoma do crescimento evangélico que vem ocorrendo como um todo no Brasil, especialmente nas periferias. Esta presença evangélica se dá pela escuta, pela aproximação e pelas relações de confiança que se estabelecem no que pode ser lido como um vazio nas relações com outras instituições e organizações, como o próprio Estado. “Não acho correto dizermos que a Igreja cresce onde o Estado não está presente. O Estado está presente nessas localidades, mas de modo precário, reforçando sentimentos de desconfiança, elemento corrosivo da vida social”, afirma Christina Vital.

A pesquisadora reconhece a questão da intolerância religiosa que se agrava com esta nova realidade: 

“Há um contexto sociopolítico muito desfavorável à presença de religiosos de matriz africana. Isso nas favelas se tornou mais intenso porque é um local com uma densidade demográfica muito grande, onde esses rituais têm um tipo de sonoridade em que é impossível realizar as celebrações em segredo. Esses vários terreiros que existiam nas favelas foram para a Zona Norte ou para a Baixada Fluminense. Uma mãe de santo falou que esse êxodo se dá em parte pela intolerância religiosa e em parte pelo aumento da violência nas favelas, o que pôde ser percebido no trabalho de campo em Acari desde a década de 1990. O crescimento do tráfico e o superarmamento do tráfico traziam uma condição muito instável para os moradores e para os filhos de santo que iam à favela.

Ainda na década de 1990 houve a “gratificação faroeste”, em que vimos a violência crescer no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Resumindo, há duas ocorrências. O movimento da intolerância religiosa praticada por moradores e a questão que diz respeito à violência estrutural, que se apresenta deste modo em razão do crescimento do tráfico e que dificulta a ida dos filhos de santo para a favela”.

O tráfico e as igrejas

Sobre o caso específico da gravação da encenação pelo Ministério Tempo de Avivar, Bereia ouviu a mestre em Ciências da Religião, do Instituto de Estudos da Religião  (ISER), Viviane Costa, que é pastora pentecostal, da Igreja Assembleia de Deus. Ela explica que em favelas em que há a presença de traficantes que se identificam como evangélicos (e faz sentido o caso do Morro do Borel, pois está neste contexto), há igrejas que acabam participando da dinâmica em torno desta realidade, o que não quer dizer que tenham associação com o tráfico. 

“Quando um traficante pede para o pastor fazer uma oração, porque ele vai para um enfrentamento, para um confronto, ou para se defender ou para lutar por um novo território, ou eles “convidam” o pastor para ir até a boca de fumo ou eles vão até a igreja e pedem oração, ou ainda um pastor passando pela rua é chamado e ora por eles. Isto é diferente daquela outra oração que o pastor faz como um apelo à conversão, por exemplo. A primeira seria uma oração voltada para uma dinâmica de guerra do tráfico, o que faz parte deste contexto representado na peça”, explica Viviane Costa.

A pastora e pesquisadora ressalta que

“De qualquer forma, esta participação do pastor em oração representada na peça não representaria uma necessária associação dele com o tráfico de drogas, até porque se ele está dentro de um território dominando pelo movimento, ele não tem muita liberdade para dizer ‘não quero orar por você. Há aqueles, sim, que se envolvem com o movimento, fazem parte dele, recebem dinheiro, verba desviada, tem festas patrocinadas pelo movimento, mas há pastores nestes locais que só tem aproximação com o pessoal do tráfico quando é para fazer oração, para cumprir algum compromisso mais ministerial. Nestes casos eles mantêm um distanciamento, uma blindagem. A professora Christina Vital chama isto de blindagem moral. Eles têm a prática do bom testemunho porque, ao não se envolverem, eles continuam a manter a postura e a autoridade de um pastor sério, homem de Deus, reconhecido pela comunidade e pelo tráfico de drogas também”.

Retificação nas mídias

No mesmo dia em que publicou ser verdadeiro o vídeo com a oração, a página Alerta Rio Informa no Instagram apagou a postagem e publicou uma nova em que afirma ser o caso uma história “Fake”. Nela, o grupo reproduz trechos publicados pelo projeto de fact-checking Fato ou Fake, do Portal G1, sobre o caso, sem dar o devido crédito.

Imagem: reprodução do Instagram

O jornal O Dia também publicou matéria que informa que o vídeo é uma peça de teatro. 

Imagem: reprodução do jornal O Dia

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Bereia classifica as postagens e matérias que divulgaram um vídeo com traficantes recebendo oração antes de um confronto violento como enganosas. O vídeo é verdadeiro, mas é a gravação de uma encenação, uma peça de teatro comum em igrejas evangélicas para a transmissão de uma mensagem. Bereia alerta leitores e leitoras para conteúdos desta natureza que em nada contribuem para a reflexão sobre a complexa dinâmica da presença evangélica no Brasil e acabam por alimentar preconceito e intolerância. 

Referências de checagem:

UOL. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/05/video-de-traficante-em-igreja-no-rio-e-peca-de-teatro-dizem-pastores.htm Acesso em: 06 jul 2022

Instituto Humanitas Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/606272-a-religiao-como-simbolo-de-dominacao-nas-periferias-entrevista-especial-com-christina-vital Acesso em: 06 jul 2022

G1. https://g1.globo.com/fato-ou-fake/post/2022/07/05/e-fake-video-que-mostra-traficantes-armados-pedindo-oracao-em-igreja-no-rio.ghtml Acesso em: 06 jul 2022

Suposta matéria do portal G1 sobre Lula mudar a Bíblia viraliza em grupos religiosos

A imagem de um print de matéria com característica visual do portal de notícias G1, do Grupo Globo, com o título “Lula diz: ‘No meu governo, Bíblia vai adotar pronome neutro e não terá mais o nome de Jesus”, circulou intensamente em grupos de igrejas no WhatsApp e em perfis e páginas de mídias sociais com identidade religiosa na terceira semana deste mês de junho.  Com data de 7 de maio de 2022, a postagem, que não divulga a matéria na íntegra, mas apenas a seção “Política”, o título e a autoria de “Astolfo Mendes”, com data, hora e período de atualização, continha a linha fina (com erro ortográfico) “Ex-presidente profere a fala enquanto estava acompanhado por liderenças do Candomblé”.

Imagem: reprodução do Facebook

O G1 e a assessoria de comunicação do ex-presidente Lula desmentiram o conteúdo da imagem, mas, ainda assim, ela continuou sendo compartilhada por vários dias. O projeto de checagem “Fato ou Fake” do G1 afirmou que o portal “não publicou reportagem com esse título” e que “a imagem que circula nas redes sociais é uma montagem obtida por meio de fraude”. Já o projeto de checagem da campanha do ex-presidente “Verdade na Rede” declarou que a postagem é mentirosa e que ela “é coisa de bolsonarista que bota foto de político no livro sagrado”.

De fato, não há registros de qualquer manifestação pública de Lula sobre este tema para se inferir que o candidato à Presidência nas eleições de 2022 tencione realizar tal projeto. Além disto, este tipo de afirmação, baseada em terrorismo verbal para capturar a atenção e gerar compartilhamentos entre cristãos contrários à eleição do ex-presidente, pode ser classificada como bizarra. Conforme instruções básicas para identificação de conteúdo desinformativo nas mídias sociais, material “bizarro”, que cause estranheza por tratar de algo anormal, incomum, absurdo, que chegue a causar incômodo por conta disto, deve ser sempre tratado com suspeita. Neste caso, é anormal, incomum, que um líder político se revista do poder ou se incumba da tarefa de, agindo de forma autoritária, alterar as escrituras de qualquer religião que adote um livro sagrado.

Ademais, o conteúdo induz à intolerância religiosa pois atrela a falsa intenção de alteração da Bíblia à companhia de lideranças do Candomblé. 

Este tipo de terrorismo verbal vem sendo usado contra lideranças demonizadas por grupos que lhes fazem oposição. Bereia já publicou uma verificação sobre o mesmo tema que envolveu o nome do Papa Francisco, alvo de conteúdo falso que dizia que ele cancelaria a Bíblia e proporia um novo livro.

Juntamente com outros projetos de checagem de conteúdo que verificaram a suposta matéria do portal de notícias G1, Bereia classifica a postagem que induz a pensar que Lula mudará a Bíblia como falsa

Bereia também alerta leitores e leitoras sobre este tipo de desinformação que circula em torno das eleições 2022 para enganar cristãos e cristãs com pânico e terrorismo verbal. Qualquer conteúdo que tenha caráter bizarro como “mudar a Bíblia” ou “acabar com/fechar as igrejas” deve ser desacreditado e denunciado. A intenção de quem publica este tipo de conteúdo de forma intencional é desqualificar opositores com mentiras e enganos e usar cristãos, pessoas de boa vontade, tomando-os por crentes ingênuos. Esta ação, que repete ocorridos nas eleições de 2018, representa desprezo à prática democrática em processos eleitorais que devem passar pelo debate de ideias e de projetos de nação.

Referências de checagem:

G1. https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2022/06/13/e-fake-que-lula-disse-que-em-seu-governo-biblia-vai-adotar-pronome-neutro-e-nao-tera-mais-o-nome-de-jesus.ghtml Acesso em: 16 jun 2022.

Lula. https://lula.com.br/lula-nao-vai-alterar-a-biblia-isso-e-coisa-de-bolsonarista-que-bota-foto-de-politico-no-livro-sagrado Acesso em: 16 jun 2022.

Aos Fatos. https://www.aosfatos.org/noticias/lula-nao-disse-que-vai-tirar-nome-de-jesus-da-biblia/ Acesso em: 16 jun 2022.

Foto de capa: Ricardo Stuckert

Fake news nas igrejas: uma epidemia a ser curada

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB) há vinte anos. Em 2012, tornou-se secretária-geral da relevante organização ecumênica que associa igrejas do Brasil em torno de causas comuns, em especial as dos direitos humanos, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Ela foi vítima de ataques caluniosos em mídias sociais, várias vezes, por conta das ações do Conic na esfera pública. Essa violência verbal parte de pessoas que discordam da forma como os temas são considerados pelas igrejas da organização, da qual a pastora Romi é porta-voz, e são incapazes de tratar sua crítica de forma digna e civilizada.

A situação se agravou, em 2021, com a realização da Campanha da Fraternidade Ecumênica, promovida a cada cinco anos pelo Conic – uma extensão da histórica campanha da Igreja Católica, membro do organismo, a outras igrejas. O tema da campanha foi “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e, apesar dele, muitas pessoas não desejaram dialogar sobre elementos desafiadores para as igrejas como a superação do racismo, a destruição do meio ambiente e o negacionismo em torno da pandemia de Covid-19, em meio à qual ocorreu a campanha.

Nesse novo contexto, além do conteúdo falso sobre a pastora Romi Bencke, disseminado principalmente por grupos católicos extremistas, liderados por integrantes da associação Centro Dom Bosco, que a acusavam de trabalhar para destruir a “verdadeira Igreja Católica Romana”, ela carregou o peso de ter que provar que o que circulava nas mídias sociais era falso. Além disso, mesmo vítima de calúnias, a secretária-geral do Conic ainda foi criticada como causadora das reações extremistas. Ocorreram consequências como o desconvite para palestras em eventos e a tentativa de manchar a sua imagem como pastora.

“Eu fui vítima várias vezes na história – quando espalharam as mentiras, quando as desmenti. Porque a imagem que fica é a de que você é a pessoa causadora do problema. Também me responsabilizaram. ‘Ah, mas você toca em assuntos que geram esse tipo de movimento’. Pessoas que você imaginava serem suas companheiras compram a narrativa, começam a te julgar. Também houve quem se afastasse até do Conic”, relata a pastora Romi Bencke com tristeza.

A secretária-geral do Conic conta ainda que tentou iniciar um processo judicial contra os promotores do ódio e das mentiras, porém não conseguiu seguir em frente por se tratar de algo profundamente desgastante e nocivo para ela. “O custo acaba sendo nosso. No meu caso, eu tive que fazer a transcrição das falas. Eu me senti violentada novamente e acabei desistindo. É difícil ter que ouvir tudo de novo. É preciso ter uma capacidade de resiliência muito forte”, desabafa.

O caso da pastora Romi Bencke, abordado no primeiro episódio da série especial “Não bote fé nas fake news” do podcast Guilhotina,  se une a outros tantos de pessoas que têm sido submetidas, sistematicamente, aos efeitos da circulação das chamadas fake news no ambiente das igrejas cristãs, evangélicas e católicas. O termo popularizado em inglês, que significa “notícias falsas”, não diz respeito apenas a notícias propriamente ditas, mas a todo e qualquer conteúdo que transmita informação sobre uma situação ou uma pessoa. Fake news são caracterizadas pela informação deliberadamente criada, com base em mentira e engano (manipulação de conteúdo), para atingir pessoas e grupos de quem se discorda e para se obter vantagem econômica ou política, com a interferência em temas de interesse público.

As fake news e as comunidades de fé

Pesquisas em diversas áreas da sociedade, dentro e fora da academia, têm mostrado que as fake news – que não são novidade, mas práticas antigas incorporadas à arte de convencer e de fazer política – ganharam muita força na era digital, em especial, com a popularização das plataformas de mídias sociais.

Nas mais populares, WhatsApp, Facebook, Instagram, Youtube, Twitter, o processo é simples: uma pessoa ou um grupo organizado produz e publica, intencionalmente, uma mentira, geralmente no formato de notícia para criar mais veracidade, valendo-se até mesmo de dados científicos e/ou jurídicos adaptados. O conteúdo é debatido nos espaços das mídias sociais, torna-se algo reconhecido, com caráter de sabedoria e verdade e é disseminado, voluntariamente, por quem acredita ou se identifica com ele e viraliza alcançando um sem-número de pessoas.

A psicologia social explica o fenômeno desta viralização, orienta o cientista social ligado ao Centro para o Cérebro, Biologia e Comportamento (Universidade de Nebraska, Estados Unidos) Davi Carvalho. Há pessoas que, ainda que constatem terem acreditado numa mentira, não a desprezam, pois ela se revela coerente com seu jeito de pensar, de agir, de estar no mundo, ou lhe trazem alguma compensação, conforto. Isso é o que se chama “dissonância cognitiva”.

Carvalho explica que isso acontece quando pessoas têm necessidade de estabelecer uma coerência entre suas cognições (seus conhecimentos, suas opiniões, suas crenças), que acreditam ser o certo, com o que se apresenta como opção de comportamento ou de pensamento.

As investigações mostram também que os ambientes religiosos são amplamente vulneráveis à circulação desse tipo de conteúdo. Isso pode ser explicado pelo sentimento cultivado nesses espaços, físicos e digitais, relacionado à crença e à confiança. Cristãos estão propensos não só a assimilar as notícias e ideias mentirosas que circulam pela internet, coerentes com suas crenças, como valorizam mais o que chega no seu grupo religioso.

As contas de mídias sociais de grupos de igrejas e as de suas lideranças são credenciadas como fontes de verdades, pois são veículos de espaços e pessoas de confiança, relacionadas ao cultivo da fé. Além disso, pessoas religiosas que recebem esses conteúdos tendem a fazer a propagação deles, uma espécie de “evangelização”, espalhando essas notícias e ideias para que convertam pessoas ao mesmo propósito.

Essas noções ajudam a explicar como têm sido amplamente propagadas nesses ambientes religiosos as receitas caseiras e medicamentos milagrosos para a cura e a prevenção de doenças, mais recentemente da Covid-19; as supostas ameaças de “inimigos da fé”, em especial às igrejas e suas lideranças, representados em figuras como “comunismo”, “islã”, “feminismo”, “ditadura gay”.

Há ainda a retórica do medo que é base na disseminação de fake news de um modo geral, mas tem alcançado com força os grupos religiosos, especialmente evangélicos. Esse grupo religioso cultiva, historicamente, o imaginário de enfrentamento de inimigos e da perseverança diante da perseguição religiosa como alimento da fé. Por isso, há um forte apelo de publicações desinformativas em torno da “defesa da família” e dos filhos das famílias, como núcleos da sociedade que estariam em risco por conta da agenda de igualdade de direitos sexuais. Na mesma direção, notícias falsas de que políticos de esquerda ou o Supremo Tribunal Federal fecharão igrejas no Brasil têm sido fartamente propagadas nos ambientes cristãos em períodos de disputas políticas. Os ataques à pastora Romi Bencke possuem estreita relação com esses discursos.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de 2019 a 2020, buscou compreender o uso intenso do WhatsApp para circulação de fake news no segmento evangélico. Intitulada “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, a pesquisa, coordenada pelo sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, aplicou 1.650 questionários em congregações evangélicas das igrejas Batista e Assembleia de Deus, no Rio de Janeiro e em Recife. As igrejas e as cidades foram definidas com base na maior concentração de evangélicos, segundo o Censo de 2010. Além dos questionários, foram realizados ainda grupos de diálogo sobre a temática e aplicados formulários on-line, preenchidos por pessoas de todas as religiões e sem religião em todo o país para efeito de comparação.

Os resultados mostram que 49%, ou quase metade, dos evangélicos que responderam aos questionários afirmaram ter tido acesso a conteúdo falso. Nesse grupo cristão entrevistado, 77,6% disseram ter recebido as fake news em grupos de WhatsApp relacionados às suas igrejas. No levantamento com outros segmentos religiosos sobre mensagens falsas em grupos relacionados às suas religiões, 38,5% de católicos, 35,7% de espíritas e 28,6% de fiéis de religiões afro-brasileiras afirmaram ter recebido. Sobre o conteúdo, 61,9% dos evangélicos declararam que as notícias sobre política eram as mais frequentes.

A pesquisa confirmou o que outros estudos já apontavam: o apelo que a desinformação exerce sobre grupos religiosos, porque se adequa mais a crenças e valores e menos a fatos propriamente ditos. Além disso, a investigação da UFRJ apontou um elemento novo:  a propagação de desinformação se dá mais intensamente entre evangélicos por conta de elementos relacionados à prática da religião nesse grupo. O uso intenso das mídias sociais provocou “um novo ir à igreja” (a pesquisa foi realizada antes da pandemia de Covid-19, o que certamente amplificou esse elemento), associado ao sentimento de pertencimento à comunidade, que gera uma imagem de líderes e irmãos de fé como fontes confiáveis de notícias.

Fake news e fundamentalismos

Apesar de ser uma prática antiga, há elementos novos relacionados ao avanço na propagação de fake news nos ambientes religiosos, em especial das igrejas: maior ocupação de espaços digitais por esse segmento religioso e maior atuação de grupos cristãos na política.

A popularização das mídias digitais faz parte do processo de ampliação de espaço e visibilidade pública de cristãos, principalmente dos evangélicos. A dimensão da participação e da transformação dos receptores em emissores, por meio de processos de interação possibilitados pelas novas mídias, especialmente, pela internet, mudou radicalmente o quadro da relação igrejas-mídias. São inúmeras as páginas na internet ligadas a grupos cristãos e a relação inclui desde as institucionais, de todas as denominações cristãs, passando pelas mais artesanais, montadas por grupos de igrejas, até as mais sofisticadas e mais acessadas, pertencentes a celebridades religiosas ou grupos de mídia.

Ao se considerar as plataformas de mídias sociais há uma infinidade de articulações e espaços. Igrejas e grupos cristãos perceberam que as mídias podem não apenas apresentar o Evangelho e dar visibilidade, mas podem articular, promover socialidade, firmar comunidade. Isso passou a dar novo caráter para a relação das igrejas com as mídias, pois, com a cultura digital, um programa já não é só projetado para emitir, mas tem a dimensão da interação estimulada. Abriu-se mais espaço para encontros, trocas de ideias, debates, informações, divulgações. A dimensão da comunicação como interação/comunhão fica potencializada. A socialidade promovida pelas mídias digitais facilita a socialidade cristã e a evangelização.

Por outro lado, as igrejas passam a não ter mais o controle do sagrado e da doutrina como tinham antes. A abertura para a participação e para que qualquer pessoa que professe uma fé, vinculada ou não formalmente a uma igreja, manifeste livremente suas ideias, reflexões e opiniões, tirou o controle dos conteúdos disseminados das mãos das lideranças. Basta ter um simples blog, nos fartos espaços gratuitos, ou uma conta sem custo nas mais populares redes sociais digitais, e o espaço está garantido para a livre manifestação.

Dessa forma, doutrinas e tradições teológicas passaram a ser relativizadas, bem como a autoridade dos líderes clássicos – pastores e presidentes de igrejas.  Questionamentos de afirmações confessionais são pregados, críticas são explicitadas. Esta é uma característica forte dos espaços midiáticos digitais: as pessoas se sentem liberadas e encorajadas para expressarem o que nunca expressariam num encontro face a face. Processo que ainda faz emergir das mídias novas autoridades religiosas – celebridades (padres e pastores midiáticos, cantores gospel), blogueiros – que se tornam referência para o modo de pensar, agir, ver o mundo, de muitos cristãos.

Tudo isto se relaciona ao avanço, nas últimas décadas, da presença mais intensa de grupos religiosos na política. Esta presença tem se evidenciado mais fortemente por ações que podem ser classificadas como “fundamentalistas”, caracterizadas como reativas e reacionárias às mudanças sociais.

Nesse contexto, observa-se que o fundamentalismo se torna um fenômeno social que ultrapassa fronteiras religiosas, ganha um perfil mais diversificado e adquire caráter político, econômico, ambiental e cultural a partir de uma matriz religiosa. Nessas atuações, certos “fundamentos” são escolhidos para persuadir a sociedade, a fim de estabelecer fronteiras e lutar contra “inimigos”, o que frequentemente resulta em um movimento polarizador e separatista, que nega o diálogo, a democracia e estabelece um pensamento único que visa direcionar as ações no espaço público.

Essas constatações estão presentes na pesquisa “Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação”, que nasceu da preocupação de igrejas e organizações baseadas na fé (OBFs), articuladas por meio do Fórum Ecumênico ACT Aliança Sul Americano (Fesur), do qual a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese) é integrante. O Fesur tem observado transformações na arena pública em termos sociopolíticos, econômicos, culturais e ambientais, no contexto de diferentes países. Essas mutações têm se dado na forma de reações a avanços e conquistas no campo dos direitos de trabalhadores/as, de mulheres e de comunidades tradicionais (indígenas e afrodescendentes), seguidos de retrocessos e obstáculos políticos de vários tipos.

A pesquisa recuperou a origem do termo “fundamentalismo”, que remonta à tendência conservadora de um segmento protestante dos Estados Unidos, na virada do século XIX para o XX. Ele era enraizado na interpretação literal da Bíblia, classificada como inerrante, em reação à modernidade (encarnada na teologia liberal e no estudo bíblico contextual com mediação das ciências humanas e sociais), em atitude de defesa dos fundamentos imutáveis da fé cristã. De lá para cá, a perspectiva fundamentalista foi se transformando, no interior do evangelicalismo mesmo, e ultrapassou as fronteiras da religião. Torna-se uma postura ancorada na defesa de uma verdade e na imposição dela à sociedade.

A pesquisa do Fesur buscou escapar do uso do termo que denota acusação e rótulo de contrários, e mostra que os fundamentalismos podem ser entendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa. Esta é combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos e dos direitos sexuais, reprodutivos e das comunidades tradicionais, num condicionamento mútuo.

Também se identificou, como descoberta, que a matriz religiosa dos fundamentalismos em avanço não é desenvolvida por evangélicos tão só (do ramo histórico e dos pentecostais) mas também por católico-romanos, que se articulam em uma unidade oportunista em torno de pautas e inimigos comuns.

As pautas fundamentalistas que unem lideranças e segmentos evangélicos e católicos são embasadas na moralidade sexual religiosa e na demonização e inferiorização das espiritualidades indígenas e afrodescendentes. Elas servem ao sistema econômico neoliberal ao apregoarem a redução de políticas públicas (ação do Estado, portanto), relegando à “família” o cuidado com educação, saúde, trabalho, aposentadoria, e ao facilitarem as conquistas de terras de populações tradicionais pelo agronegócio e por mineradoras. Por isso a classificação “fundamentalismos político-religiosos”. São identificados como inimigos, movimentos sociais, sindicatos, partidos que buscam defender esses direitos e essas populações.

Essas pautas são disseminadas nas mídias ocupadas por lideranças entre pastores, pastoras, padres, políticos, cantores gospel e novas celebridades religiosas. Além da visibilidade midiática que as transforma em autoridades/referências religiosas que ultrapassam até mesmo as fronteiras religiosas, essas lideranças têm em comum discursos característicos dos fundamentalismos político-religiosos.

Estudos empíricos têm estabelecido a conexão entre a recepção e a propagação de desinformação com o imaginário de cristãos fundamentalistas. O pesquisador da Universidade de Victoria (Inglaterra) Christopher Douglas, por exemplo, indica que a cultura fundamentalista de: 1) negação seletiva da ciência (especialmente da teoria da evolução e da leitura contextual da Bíblia) e desqualificação da informação pelas mídias;  2) criação de fontes alternativas para conhecimento e informação: suas próprias universidades, museus e mídias; 3) formação cognitiva para rejeitar conhecimento especializado e buscar alternativa – geração de incapacidade de pensamento e análise críticos, é base para que fake news se espalhem facilmente entre cristãos conservadores.

Isso ganha força, no espaço público, segundo Douglas, para além da religião, com o fortalecimento de uma religiosidade partidária entre fiéis (afinidade eletiva com a direita política) e uma aproximação aos extremismos conservadores.

Para esses grupos, o trabalho das agências de pesquisa e dos sites que promovem a checagem de informações não tem efeito. Isso porque, como indicado neste artigo, o que sustenta o processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância, mas o fato de que as pessoas acreditam no que escolhem acreditar.

Quando um grupo se identifica com mentiras, mesmo que elas sejam demolidas em nome da ética e da justiça, permanece com elas e as defende de qualquer jeito. Não importa que seja mentira, mas sim a ideia contida, a falsidade não é apagada dos espaços virtuais e continua ainda a ser reproduzida. E mais: aquele que desmascarou a notícia ou a ideia, que pode ser um familiar, amigo ou irmão na fé, chega a ser objeto de desqualificação e rancor.

 “Ideologia de gênero” é o maior exemplo de fake news entre cristãos

O maior exemplo de fake news criada em espaço cristão na América do Sul é a chamada “ideologia de gênero”. Esta pode ser classificada como a mais bem sucedida concepção falsa criada no âmbito religioso.

Surgido no ambiente católico e abraçado por grupos evangélicos distintos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações distintas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. A “ideologia de gênero” nessa lógica é apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional”.

É fato que qualquer tema que traga o assunto “sexo” e “sexualidade” mexe com o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções. É de se considerar também que nos últimos anos, o contexto político brasileiro ressuscitou e realimentou o velho temor do comunismo e do marxismo. Como a maioria das pessoas não tem conhecimento das teorias de Karl Marx, passa a acreditar nos irmãos de fé que falam de novas técnicas de escravização de mentes desenvolvidas por um “marxismo cultural”.

É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e às pessoas LGBTQIA+, e ainda participação delas no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a “cura gay”.

Não foi por acaso que esse tema ocupou grande espaço nas campanhas eleitorais de 2018 e de 2020 no Brasil, com muita circulação de fake news contra as candidaturas de esquerda, que têm por prática a defesa de direitos de gênero.

O tema se soma a outros que têm sido fortemente inseridos nas mídias sociais de comunidades de fé, como o da “cristofobia”, uma suposta perseguição religiosa contra cristãos no Brasil, e o perigo comunista, de uma alegada ameaça vermelha à nação. Tal quadro tem estimulado iniciativas de resposta para a superação dessas práticas de comunicação que têm causado tanto mal aos grupos com identidade cristã.

O enfrentamento das fake news nas comunidades de fé

Por ser uma organização defensora dos direitos humanos, formada por igrejas há quase cinquenta anos, a Cese tem avaliado, com preocupação, casos como o da pastora Romi Bencke e outros que revelam o impacto negativo que as fake news causam nas comunidades de fé. Estimulada por sua história de engajamento nas causas por verdade e justiça e pelos resultados da pesquisa Fesur, a Cese decidiu se unir às várias iniciativas de grupos cristãos que têm enfrentado as fake news.

Em 2021, Cese decidiu que sua campanha anual Primavera para a Vida, que estimula as igrejas a ações referentes a temas sociais emergentes, teria o tema “Buscar a verdade: um compromisso de fé”. Iniciada em setembro de 2021, a campanha contou com um seminário virtual sobre o tema, uma publicação gratuita – que traz como proposta a reflexão sobre esses novos desafios para as sociedades democráticas, através de subsídios bíblicos e teológicos para que as igrejas utilizem em seus diversos espaços de formação e reflexão -, em português e em espanhol, cujo título é o mesmo da iniciativa, formação para igrejas sobre o impacto das fake news e indicação de formas de ação. Para esse último objetivo, a Cese publicou um conjunto de cards para mídias sociais com as principais mentiras que circulam em ambientes cristãos e atitudes preventivas diante delas.

A campanha com cards foi produzida em conjunto com o Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, que foi parceiro da Cese na Campanha Primavera para a Vida 2021. Bereia é iniciativa ímpar entre as ações contra as fake news no Brasil, pois é o único projeto de jornalismo colaborativo de checagem de fatos especializado em religião. O projeto tornou-se pioneiro no Brasil em verificação de fakes news que circulam em ambientes digitais religiosos, com atenção voltada para cristãos. Criado em 2019, ele é resultado da pesquisa do Instituto Nutes, da UFRJ, citado neste artigo.

A equipe do Bereia, formada por jornalistas, estudantes de comunicação e outros voluntários interessados na busca de superação da desinformação, acompanha, diariamente, mídias de notícias cristãs e pronunciamentos e declarações de políticos e autoridades cristãs de expressão nacional, veiculados pelas mídias noticiosas e pelas mídias sociais. A Cese continua na parceria com o Bereia, em 2022, com a produção de novo conjunto de cards para mídias sociais, numa extensão do tema da Campanha  Primavera para a Vida.

O Coletivo Bereia integra a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), fundada em 2020, nascida da inquietação de pesquisadores/as de diferentes universidades provocada pela observação e o estudo da potencialização da circulação de desinformação no campo político e, muito intensamente, durante a pandemia. A RNCD passou a interligar projetos e instituições de diversas naturezas que trabalham e contribuem de alguma forma para combater o mercado da desinformação que floresce no Brasil.  São coletivos, iniciativas desenvolvidas dentro de universidades, agências, redes de comunicação, revistas, projetos sociais, projetos de comunicação educativa para a mídia e redes sociais, aplicativo de monitoramento de desinformação, observatórios, projetos de fact-checking, projetos de pesquisa, instituições científicas, revistas científicas, dentre outros.

A RNCD busca unir esforços, praticar a sinergia, potencializar a visibilidade do trabalho realizado em cada projeto e criar uma onda de enfrentamento da desinformação. Por meio da RNCD é possível conhecer e se integrar a projetos que incluem educação contra fake news que ensinam como os próprios usuários das mídias digitais podem fazer, eles/elas mesmos, a checagem da informação que recebem.

Em parceria com o Coletivo Bereia, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito – Núcleo Minas Gerais lançou, em 2021, o site Mentiras do Éden. O projeto tem por objetivo construir com as igrejas um pacto pela verdade, prevenir e combater as notícias falsas, principalmente as de cunho religioso. Mentiras do Éden tem realizado atividades em defesa da democracia e do direito à informação, voltadas para a comunidade evangélica, com formações educativas sobre fake news e utilização das mídias sociais.

Durante o período eleitoral de 2020, foi realizada a Campanha #IgrejaSemFakeNews, promovida pela Igreja Batista em Coqueiral (Recife, PE), por meio do Instituto Solidare, em parceria com a Tearfund e a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB). Uma das ações foi o lançamento da publicação Diga Não Às Fake News!,  com reflexões acerca do tema, tanto à luz da Bíblia quanto da legislação brasileira. O livro gratuito permanece à disposição do público. Outro material resultante da Campanha é o livro da Abu Editora, “As fake news e a Bíblia. Estudo bíblico indutivo”, também com acesso gratuito, organizado por Morgana Boostel e Thiago Oliveira.

Para a diretora executiva da Cese e pastora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, Sônia Mota, unir-se a esses projetos para enfrentar as fake news nos espaços cristãos significa fortalecer conjuntamente o enfrentamento aos discursos de ódio e de perseguições a lideranças religiosas. “É nosso papel denunciar o avanço fundamentalista que manipula textos bíblicos para disseminar mentiras que afetam não só as igrejas, mas processos mais amplos como a democracia e os direitos humanos”, afirma a pastora.

Com isso, as igrejas cumprem um papel importante na defesa da democracia e da dignidade humana para que casos como o da pastora Romi Bencke se tornem memória sobre a qual se pode construir ações permanentemente transformadoras.

Magali Cunha é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e editora–geral do Coletivo Bereia.
Bianca Daébs é doutora em Educação, mestra em História Social e atua como assessora para Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da Cese.
Tarcilo Santana é jornalista e atua como analista de Comunicação da Cese.

Foto de capa: reprodução Le Monde Diplomatique Brasil

Bereia participa da série especial “Não bote Fé nas fake news”

O jornal Le Monde Diplomatique Brasil publicou em 16 de maio o artigo “Fake news nas igrejas: uma epidemia a ser curada” escrito pela editora-geral do Bereia, Magali Cunha, em parceria com a equipe da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese). A matéria abre a série “Não bote fé nas fake news”, que trata sobre o fenômeno da desinformação em comunidades de fé e como ele afeta a democracia brasileira. 

Produzida pelo jornal em parceria com a Cese, a série especial preparou um podcast com cinco episódios que podem ser ouvidos no Spotify ou diretamente no site do jornal.
Neste link você acessa o artigo “Fake news nas igrejas: uma epidemia a ser curada” e aqui pode acompanhar os demais episódios do podcast.

Foto de capa: Pixabay

Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões é lançado

O lançamento do Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões aconteceu durante live realizada pelo Grupo de Pesquisa Comunicação e Religiões da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Estiveram presentes os organizadores do dicionário, professora Magali do Nascimento Cunha (coordenadora do GT e editora-geral do Bereia) e o professor Allan Novaes, que apresentaram a obra, seus objetivos e contaram um pouco sobre o processo de preparação do novo dicionário que teve início em agosto de 2018. Participou da live toda a equipe de pesquisadores e professores que fizeram parte da organização da obra que também será apresentada durante o Congresso Nacional da Intercom, a ser realizado nos dias 5 a 19 de setembro deste ano.

O Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões é composto por mais de 60 verbetes analíticos introdutórios sobre diversos elementos das religiões no Brasil, panoramas comunicacionais do país e suas interfaces. Em sua fala durante a live, o mediador afirmou que o novo dicionário “é o coroamento de toda uma trajetória, de um trabalho árduo de várias mãos que trabalharam juntas na produção deste dicionário. Como é importante a gente poder oferecer para a comunidade científica e para a sociedade em geral, um produto de tanta qualidade. Um material que torna-se referência para todos em diversos níveis”.

“Temos um trabalho primoroso de produção de um dicionário que traz não só uma produção escrita, mas também uma curadoria científica dos termos de tudo que foi elaborado”, concluiu o vice-coordenador do GT, prof. Ricardo Alvarenga, informando também que houve uma revisão de consultores do material produzido, o que também garante que o dicionário oferece um conteúdo bastante importante e significativo, e “esta visibilidade é de fato uma oportunidade de fazer chegar a tantos outros que estão pesquisando este tema em nosso país”, disse o professor.

Construção coletiva

Magali Cunha saudou os espectadores da live lembrando que muitos presentes no evento colaboraram com a preparação do dicionário, que “ foi construído coletivamente junto com pessoas de todas as regiões do país”. A professora afirmou ainda que o novo dicionário “é um retrato do que é hoje a pesquisa em comunicação. Não trouxemos apenas uma coleção de verbetes juntando palavras que achamos importantes, mas as palavras nasceram de um processo de muita reflexão  e só apareceram depois de dois anos de diálogo”.

O Grupo de Trabalho realizou três seminários temáticos para discutir os eixos focais de comunicação e religiões no Brasil. Magali Cunha disse que depois destes seminários o GT foi “afunilando as questões, trazendo para eixos e daí decidimos quais seriam os temas que apareceriam em cada eixo, a partir de muita reflexão”.

Outra decisão importante, de acordo com a coordenadora do GT, foi a de não trabalhar com estudos de mídias, como era a proposta original de um dicionário de mídias e religião. “Muito mais do que mídias, nós tempos processos de comunicação. Então tivemos este ato corajoso de ampliar e tratar a temática da comunicação”, disse Magali.  E o GT tomou outras decisões consideradas importantes também. Decidiu trabalhar com religião no plural, religiões, pela própria diversidade/pluralidade que está incutido neste conceito. “Por isso colocamos religião no plural, religiões, não só religiões, mas religiosidades, espiritualidades, experiências múltiplas em torno do que a gente chama de religião e discussões riquíssimas que apareceram”, informou.

O Grupo também buscou olhar o que se pesquisa desta interface de Comunicação e religiões no Brasil, e segundo Magali, o também autor do dicionário, prof. Jorge Miklos aceitou o desafio de “nos liderar em olhar o ponto de teses e dissertações da Capes para identificarmos junto também com o que tem sido discutido na Intercom e nos grupos de trabalho da Associação dos Programas de Pós graduação em Comunicação para fazer um levantamento das temáticas”. O GT observou então, na área de Comunicação um crescimento significativo de pesquisas e uma dispersão muito grande de temas, que chamou de atomização de pesquisas e um número significativo de pesquisadores, e entenderam que teriam que se deter em alguns elementos para se concentrarem, conforme explicou a professora Magali.

Desafios

O GT Comunicação e Religiões constatou que o fenômeno das religiões na comunicação acaba meio subordinado a um dicionário que tende a ser uma publicação baseada não em temas da moda, mas numa permanência de temas. “Então este foi um desafio que esse olhar sobre as pesquisas já colocou para o nosso dicionário: não ficarmos com temas de moda, mas com temas permanentes”, disse a coordenadora.

Outro desafio para o GT foi uma prevalência de estudos do catolicismo romano seguido em temáticas referentes aos evangélicos e especificamente do pentecostalismo. “Um desafio que a gente sempre vinha colocando no grupo de ampliarmos para as religiões e não ficar focando somente em um grupo religioso. Tudo isso colocou pra gente esse desafio de trazermos um dicionário que tratasse com responsabilidade essas dimensões críticas da pesquisa de Comunicação e Religiões que os colegas trouxeram; explicitar a afinidade epistemológica destes dois termos: Comunicação e Religiões, que fosse explicitado de maneira muito responsável neste dicionário; é Comunicação ‘e’… Daí a perspectiva interdisplinar que foi trazida. Temos autores dessas múltiplas áreas: comunicação, ciências da religião, teologia, história, letras, ‘e’ – tratados de forma muito responsável e com profundidade e substância”, explicou a coordenadora do GT.

Os eixos temáticos

Depois de debruçar sobre essa temática e desafios, o GT decidiu trabalhar com quatro eixos temáticos a partir dos eixos do dicionário: Instituições, movimentos religiosos e poder; Linguagens e práticas religiosas; Processos e produtos midiáticos; e Teorias da comunicação e religiões. De acordo com a professora Magali, o GT também construiu 15 conceitos chaves, que não viraram verbetes porque entendeu que eles referenciam várias discussões dos verbetes que estão representados no dicionário.

“Nós acreditamos que é uma obra inédita no Brasil, que vai se tornar referência não só para pesquisadores, mas para profissionais da Comunicação, pessoas que trabalham nas mais diversas frentes da Comunicação e que podem ter este material, esta obra como uma referência para orientar e iluminar as suas reflexões, seus estudos”, concluiu a coordenadora do GT responsável pela elaboração do Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões.

Filho de sindicalista morta pela ditadura desinforma sobre história da mãe

* Matéria atualizada em 15/04/2022 às 10:56

Bereia recebeu o pedido de verificação do conteúdo que tem sido divulgado em mídias do Nordeste sobre o filho de Margarida Alves, José de Arimatéia Alves, e tem circulado em ambientes digitais católicos.

O filho da sindicalista assassinada há 38 anos, durante o regime militar, na região de Alagoa Grande, no Brejo paraibano, tinha oito anos de idade à época e presenciou a morte de sua mãe, tendo sofrido as consequências psicológicas e econômicas da perda, entre outras, especialmente para uma criança. Atualmente, José de Arimatéia Alves é evangélico ligado à Assembleia de Deus na Paraíba, conhecido como pastor Arimatéia Alves. Tornou-se político do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), aliado do governo federal e se lançou candidato a deputado estadual. No último dia 17 de março, Arimatéia Alves participou de uma cerimônia de filiação ao PRTB.

Arimateia Alves na cerimônia de filiação ao PRTB. Imagem: reprodução do site ClickPB

O candidato tem usado a memória de sua mãe, uma católica, líder sindical de agricultores nas décadas de 60 a 80, considerada mártir da luta camponesa, em sua campanha política e para promover o atual governo que busca reeleição neste ano eleitoral. No evento de filiação, o pastor Arimatéia Alves agradeceu ao governo Bolsonaro “por reparar e indenizar” à família pelo assassinato de sua mãe, Margarida Alves, morta por matador de aluguel em 1983.

Durante um evento realizado em um shopping em João Pessoa, pelo Dia Internacional da Mulher, o filho de Margarida Alves declarou: “Após 20 anos de espera para que o Estado brasileiro pudesse reconhecer a negligência da elucidação do assassinato de minha mãe, foi preciso que um paraibano, um servo de Deus, chegasse à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do governo federal, o Dr. Sérgio Queiroz, então Secretário Nacional de Proteção Global para resolver o caso e a indenização a mim e a minha família. Sérgio Queiroz teve sensibilidade para tomar para si esse processo e só descansou quando foi encerrado em 2019”, afirmou o candidato.

Na ocasião, o procurador da Fazenda Nacional, nomeado pela ministra Damares Alves como secretário de Proteção Global, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e agora pré-candidato ao Senado, Queiroz teria afirmado que conseguiu resolver “um dos mais enigmáticos casos da Paraíba e do Brasil, que se arrastava em cortes internacionais”.

Damares Alves, Arimateia e Sergio Queiroz na cerimônia de reparação pública.
Imagem: reprodução do site Parlamento PB

Uma fonte ligada às  Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica avalia a situação: “De fato, o filho de Margarida Alves foi para um partido de direita, sob influência da igreja que ele participa e todos nós ficamos bem assustados. Eu participei muito tempo com o Arimatéia na Pastoral de Juventude [Católica] aqui em João Pessoa, por isso é meio assustadora esta decisão dele.”. A fonte conta que Margarida participou de muitos encontros de base, com Nequinho, que é o atual presidente do Sindicato em Alagoa Nova e outros ligados à luta da CPT pela terra. “Por isso é assustador. A gente fica com pena do que ele está fazendo, usando a história da mãe para legitimar este governo, não é nada libertador. Saber o que Margarida sofreu do latifúndio e ver o filho dela neste rumo aí. Ele nunca mais me mandou notícias, mas acho que é porque ele sabe a minha posição”, lamenta a fonte.

A marcante história de Margarida Alves 

Margarida Maria Alves nasceu e cresceu em Alagoa Grande, no Brejo Paraibano, em 5 de agosto de 1933.  De acordo com sua biografia, registrada no site da Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Alves (FDDHMA), “foi a primeira mulher presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em sua cidade, por 12 anos. Lá, fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural, uma iniciativa que, até hoje, contribui para o desenvolvimento rural e urbano sustentável, fortalecendo a agricultura familiar”.

Museu Casa Margarida Maria Alves.
Imagem: divulgação

A líder agricultora lutou pela defesa dos direitos dos trabalhadores sem terra, buscando e incentivando todos a buscarem o registro em carteira de trabalho, a jornada diária de trabalho de oito horas, 13° salário, férias e demais direitos, para que as condições de trabalho no campo pudessem ser equiparadas ao modelo urbano. “Durante sua gestão, o Sindicato moveu mais de 600 ações trabalhistas e fez diversas denúncias, como a endereçada diretamente ao Presidente do Brasil, em 1982, João Batista Figueiredo”.

Margarida Alves não viveu para ver o resultado de sua luta. “Por causa do surgimento do Plano Nacional de Reforma Agrária, a violência no campo foi intensificada por parte dos latifundiários, que não queriam perder suas terras, mesmo as improdutivas”. E desde então, “o trabalho de Margarida na defesa dos direitos dos trabalhadores entrou em conflito com os interesses dos latifundiários, tornando-a uma ameaça para eles”.

Durante a comemoração do 1° de maio de 1983, na cidade de Sapé, na Paraíba, Margarida Alves fez um discurso no qual  afirmou: “Eles não querem que vocês venham à sede porque eles estão com medo, estão com medo da nossa organização, estão com medo da nossa união, porque eles sabem que podem cair oito ou dez pessoas, mas jamais cairão todos diante da luta por aquilo que é de direito devido ao trabalhador rural, que vive marginalizado debaixo dos pés deles”.

A trabalhadora rural e presidente do Sindicato foi assassinada três meses depois dessa declaração. “O principal acusado é Agnaldo Veloso Borges, então proprietário da usina de açúcar local, a Usina Tanques, e seu genro, José Buarque de Gusmão Neto, mais conhecido como Zito Buarque. Seu sogro era o líder do Chamado Grupo da Várzea, composto por 60 fazendeiros, três deputados e 50 prefeitos. O crime ocorreu no dia 12 de agosto de 1983, quando um pistoleiro de aluguel, (…) disparou um tiro (…) em seu rosto, quando ela estava na frente de sua casa”. O marido de Margarida, Severino Alves e seu filho, na ocasião da tragédia com oito anos de idade, José de Arimatéia Alves viram tudo.

O soldado da Polícia Militar  Betâneo Carneiro dos Santos, os irmãos pistoleiros Amauri José do Rego e Amaro José do Rego e Biu Genésio foram acusados do crime.

O assassinato de Margarida Alves teve repercussão internacional, com denúncia encaminhada à Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH) e várias outras entidades. “Criada, pela Arquidiocese da Paraíba, a Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves, em 2002, recebeu a Medalha Chico Mendes de Resistência, oferecida pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. O dia de seu assassinato, 12 de agosto, é conhecido como o Dia Nacional de Luta contra a Violência no Campo e pela Reforma Agrária”.

Museu Casa Margarida Maria Alves.
Imagem: reprodução do TripAdvisor

Quem fez a reparação histórica?

De fato a reparação histórica do assassinato da mãe do atual candidato a deputado estadual pelo PRTB ocorreu, mas ao contrário do que ele e o governista Sérgio Queiroz afirmam, essa reparação não foi uma iniciativa do governo Bolsonaro, mas um esforço sistemático durante décadas da parte de pessoas, movimentos e instituições, que foi concluído durante o atual governo.

Em 5 de novembro de 2019, a indenização ao filho de Margarida Alves, José Arimatéia Alves foi assim decidida pela Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da Quinta Região (TRF5), direito a : uma  a título de reparação econômica, no valor de R$ 181.720,00, e outra por danos morais, fixada em R$ 250 mil com um total de R$ 431.729,00. O reconhecimento de Margarida Maria Alves como anistiada política do regime militar no Brasil ocorreu em 6 de julho de 2016 e foi baseado “em longo processo administrativo”, segundo a sentença do TRF5.

No entanto, apesar da ação em favor desse reconhecimento, “o direito à devida reparação pecuniária pelos danos causados em decorrência da perseguição política” foi negado pela União em 24 de janeiro de 2017. Posteriormente, quando da decisão pelo TRF5 pelo pagamento da indenização ao filho de Margarida Alves, o relator do processo, desembargador federal Cid Marconi Gurgel de Souza registrou nos autos  que “a União é a responsável direta nas ações em que se postula o pagamento da aposentadoria ou pensão excepcional de anistiados”. O desembargador decretou ainda que “cabe ao Tesouro Nacional arcar com o pagamento de indenizações decorrentes de anistia política Estas decisões explicitam que,  no Brasil, a luta por indenização a anistiados perseguidos pela ditadura, obteve resultado na forma de lei a ser cumprida pela União. Portanto, a reparação e a indenização à família de Margarida Alves foi uma decisão judicial , não uma ação  do governo Bolsonaro. Ela foi um desdobramento do caso desde a decisão de anistia em 2016 e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que também recebeu petição sobre o caso de Margarida Alves, em 2000.

A cerimônia simbólica de reparação realizada pelo governo brasileiro e a participação de lideranças governistas em reunião sobre o caso na CIDH, em 2019,  não foram iniciativas do governo, mas o cumprimento de um protocolo resultante de um processo que se desenrolou desde o final da ditadura militar e que o atual governo teve que cumprir, por recomendação da CIDH registrada em 31 de março de 2008.

Ao contrário do que diz o filho de Margarida Alves, o governo Bolsonaro tem atuado, desde 2019, para obstaculizar o trabalho da Comissão de Anistia das vítimas da ditadura e tem agido para impedir novas decisões por anistia e indenizações.

Os encaminhamentos históricos pela justiça a Margarida Alves

O “Relatório do Mérito Margarida Maria Alves e Familiares”, n. 31/20, foi publicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 26 de abril de 2020,  especifica que a CIDH “recebeu petição do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, da Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves, de outras instituições ligadas à defesa dos direitos humanos e a pastoral da terra, por violações de direitos humanos cometidas em prejuízo de Margarida Maria Alves e seus familiares”.

O relatório registra que a petição foi recebida em 17 de outubro de 2000, com aprovação do relatório de admissibilidade (n. 9/08) em 5 de março de 2002. Em 31 de março de 2008, a Comissão notificou esse relatório às partes e se colocou à sua disposição para mediar o alcance de uma solução amistosa. Todas as informações foram devidamente transmitidas entre as partes, que tiveram prazo para apresentarem considerações sobre o mérito.

O documento oferece provas suficientes de que a luta pelos direitos de reparação e de indenização de Margarida Alves e seus familiares faz parte de um processo longo de luta de organizações de defesa de direitos humanos, instituições católicas e assessorias jurídicas às organizações populares no Brasil, que no ano de 2000 buscaram a ajuda da CIDH para que justiça fosse feita nesse caso. Ou seja, a luta das instituições com o apoio da CIDH, foi que levou o governo brasileiro, presidido por Fernando Henrique Cardoso, em 2002, a criar a Lei n. 10.559 que rege a “indenização a anistiados políticos”.

O processo também levou a Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça do governo Dilma Rousseff, a aprovar em sua 12a Sessão de Julgamento realizada em 6 de julho de 2016, a condição de anistiada política post-mortem a Margarida Maria Alves. Finalmente, em 25 de outubro de 2019, foi concluído o longo processo, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, quando houve a cerimônia de Reparação Simbólica à Memória de Margarida Maria Alves pelo Estado brasileiro, no auditório da Justiça Federal, em João Pessoa. O evento marcou, publicamente, o encerramento do Caso 12.332, como ficou conhecido internacionalmente o assassinato da sindicalista paraibana na CIDH. A reparação ocorreu 36 anos após a sua morte, depois de 20 anos de tramitação na corte internacional. Estiveram presentes na cerimônia, além do filho de Margarida Alves, José Arimateia Alves, a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos Damares Alves e seu secretário nacional de Proteção Global Sérgio Queiroz.

Antropóloga que conheceu a agricultora relata a sua luta

Bereia ouviu a antropóloga e pesquisadora das religiões Dra. Regina Novaes, que foi professora durante dez anos da Universidade Federal da Paraíba. Ela  relatou sua experiência e conhecimento da história de Margarida Alves: “Fiz minha tese de doutorado sobre movimentos sociais rurais e fiz parte de um Grupo de Assessoria Sindical através do qual conheci e tive bastante contato com Margarida Maria Alves. Ela integrava um grupo de sindicalistas apoiado pelas pastorais católicas, sobretudo pelo Centro de Educação Popular, que  era coordenado pela irmã Valéria Rezende em Guarabira. O bispo na cidade era D. Marcelo Carvalheira, que junto com D. José Maria Pires, fundou  a ‘igreja da libertação’ na Paraíba.  Com esses apoios, Margarida Alves se destacou na luta pelos direitos dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande, sindicato da qual era Presidente (concorreu depois que seu marido Casemiro adoeceu e não pode participar da disputa)”, relata a antropóloga. 

Novaes conta que a atuação de Margarida Alves “incomodou  usineiros e senhores de engenho e seu assassinato ocorreu no dia 12 de agosto de 1983. Seu filho único tinha oito anos de idade. O assassinato teve grande repercussão na sociedade civil e nos movimentos sociais”. No Brasil surgiram movimentos importantes como a “Marcha das Margaridas”, que se tornou um símbolo nacional. 

Primeira Marcha das Margaridas, em Brasília, no ano 2000.
Imagem: Claudia Ferreira/Acervo Memória e Movimentos Sociais

A  apropriação do caso para campanha

A profa. Regina Novaes esclarece ainda: “Depois de muito trabalho pelo reconhecimento do assassinato como crime político, no âmbito da Comissão da Anistia, em 6 de julho de 2016 o resultado foi alcançado. Ou seja, o que foi ‘conseguido’ por Sergio Queiroz, no governo Bolsonaro, foi finalizar (e se apropriar de) um processo que por décadas contou com o empenho de organizações da sociedade civil e – em decorrência disso – com o reconhecimento do poder público”.

Em relação a José de Arimatéia Alves, ela afirma que “pelas informações que circulam publicamente, não foi uma vida fácil. Assistiu ao assassinato da mãe, perdeu o pai, saiu da Paraíba, foi viver no Rio de Janeiro,  teve problemas com alcoolismo.  Como acontece com parte significativa dos filhos das classes trabalhadoras no Brasil de hoje, o filho de Margarida Alves parece ter encontrado em igrejas evangélicas uma rede de apoio espiritual e material para se reerguer. Tornou-se  pastor. Até aí, vemos repetida uma história conhecida”.  A antropóloga ainda explica: “A novidade vem em 2019,  quando a imprensa anuncia  o recebimento da indenização com o empenho governista de Sérgio Queiroz.  Começava-se assim a construção de uma narrativa de apropriação da história de Margarida Alves. Em 2021, a ministra  da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves e a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos da Paraíba também se fazem presentes quando  o pastor Arimatéia diz trocar ‘desejo de vingança e alcoolismo’ pela defesa do legado da mãe’”. 

Regina  Novaes relata que “finalmente, em 2022, já pastor e candidato, Arimatéia Alves insiste em lembrar o ‘feito’ de Sérgio Queiroz (agora pré-candidato ao Senado) e agradece ao presidente Jair Bolsonaro pela indenização recebida”.  Sobre a questão que surge – se há mentiras nessa narrativa – a antropóloga responde: “Certamente há manipulação da verdade por meio de esquecimento de tudo que foi feito antes pelos movimentos sociais e pelas instâncias governamentais do governo Dilma Rousseff para que o Sérgio Queiroz pudesse fazer algo que concluísse na indenização da família de Margarida Alves; e exagero no peso das ‘cortes internacionais’ na resolução do caso com o objetivo de valorizar a trajetória pessoal de Sérgio Queiroz, que tinha uma ligação com alguma agência internacional; e a introdução do protagonismo de Damares Alves e Bolsonaro de maneira a justificar as candidaturas políticas”, explica Novaes.

A pesquisadora ouvida pelo Bereia acrescenta: “Ao meu ver, não se trata de pegar esse caso como exemplar das consequências nefastas do crescimento das ‘igrejas neo-pentecostais’ em uma região onde as pastorais progressistas católicas tiveram um papel importante na época de Margarida. Isso é pouco e faz economizar reflexão. Acho  que se trata de um caso exemplar de: a) conjugação de fatores do pertencimento religioso e de reprodução da cultura política local e, b) de como são construídas fake news: produzindo parciais esquecimentos de fatos e de pessoas e  maximizando eventos e personagens que se tornam centrais na narrativa”.

A antropóloga conclui: “Por isso vale voltar ao caso e se contrapor ao agradecimento de Arimatéia para Bolsonaro (interessante esse agradecimento a alguém que  tantas vezes se colocou contra medidas de Justiça e Reparação).  A aposta é que o eleitor nem vá observar essa contradição pois:  a) já estaria  predisposto a apoiar quem apoia Bolsonaro ou b) já tem relações prévias com Arimatéia e sua redenção”.  A profa. Regina Novaes avalia que essa estratégia dos candidatos pelo PRTB até pode gerar vantagem, mas tem dúvidas.

 Leis da Anistia e de Indenização

A Lei da Anistia é como ficou conhecida a Lei n° 6.683 sancionada pelo presidente João Batista Figueiredo em 28 de agosto de 1979, após grande mobilização social, ainda durante a ditadura militar.

Manifestantes erguem cartazes de desaparecidos políticos pela ditadura nas galerias da Câmara dos Deputados, durante a votação da Lei da Anistia.
Imagem: Sonja Rego/CPDoc JB

O lema da campanha pela anistia no final da década de 70 era: “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” e mobilizou o Congresso e a nação, levando o último presidente da Ditadura Militar, general João Batista Figueiredo a escrever texto da lei que foi avaliada pelo Congresso e recebeu alterações feitas pelos parlamentares naquela ocasião para a aprovação do presidente. A anistia, da forma como foi acordada no Brasil, deu perdão a perseguidos, a exilados e a presos políticos, mas impediu a punição aos agentes perpetradores das violações de direitos, entre elas a tortura e os assassinatos.

Em 2002, ao fim do governo de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a Lei no. 10.559, que passa a determinar as indenizações. Elas são uma forma de reparação a pessoas atingidas pelos atos do Estado brasileiro nas ditaduras, entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988.

A Comissão Nacional da Verdade, instaurada por lei em 2012, durante a presidência de Dilma Rousseff, investigou e relatou as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado nesse período. O relatório final está disponível para acesso livre

Cerimônia de entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
Imagem: Portal Brasil

A postura do atual governo federal Ao contrário do que propaga o filho de Margarida Alves, o governo Bolsonaro tem criado obstáculos para o trabalho da Comissão de Anistia das vítimas da ditadura e tem atuado para impedir novos processos e anistia e indenizações.

O técnico em eletrônica Edson Benigno, hoje com 72 anos, ouvido pelo jornal O Globo, “foi detido {e torturado} aos 26 anos pela ação política do pai, antigo militante do Partido Comunista Brasileiro. Mas mesmo com o histórico de perseguição, prisão e tortura, não conseguiu ser anistiado. Seu processo chegou a ser aprovado na Comissão de Anistia, no governo de Michel Temer, mas não teve a portaria publicada até hoje. Ao longo do governo de Jair Bolsonaro, o caso segue parado na comissão, sem previsão de aprovação da anistia e reparação econômica”. Edson Benigno diz não ter “qualquer expectativa de que esse governo, que elogia a ditadura, irá reconhecer que fui vítima daquele período”.

Imagem: reprodução do Twitter

De acordo com a reportagem, “o governo revisa e reconta a história para negar a ditadura militar. Nas duas comissões instituídas durante o governo Bolsonaro, em curso há mais de vinte anos para tratar e julgar as violações cometidas naquele período — de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos — os conselheiros, escolhidos a dedo (incluindo militares), ignoram os fatos, negam a perseguição política, ‘desanistiam’ militantes já anistiados e abandonam a busca por desaparecidos”.

Em abril de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu para realizar uma missão no Brasil e investigar como estava a gestão do governo federal em relação aos mecanismos de reparação de vítimas da ditadura militar.  Segundo a matéria do jornalista que cobre a pauta internacional de direitos humanos, Jamil Chade, a ONU estaria preocupada com o desmonte promovido pelo governo e, por isso, pediu para investigar a situação no Brasil. A requisição foi feita pelo Grupo de Trabalho de Desaparecimentos Forçados da organização”. Já naquele momento, eram objeto de preocupação do GT da ONU as muitas falas públicas de membros do governo federal que estavam “negando a existência de uma ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985, ou avaliando positivamente os eventos ocorridos durante este período. Além disso, há um alerta sobre interferências no trabalho dos mecanismos de já existem para recompensar as vítimas do período”.

***

Bereia classifica o conteúdo disseminado pelo filho de Margarida Alves, pastor Arimatéia Alves, que atribui ao governo de Jair Bolsonaro a responsabilidade pela reparação da memória de sua mãe como anistiada política e a indenização alcançada por ele como vítima do processo, como enganoso. A reparação simbólica e a indenização foram alcançadas no primeiro ano do governo Bolsonaro, de fato, mas foram a culminância de ações de organizações de direitos humanos, juntamente com a Pastoral da Terra da Igreja Católica, que duraram mais de 20 anos. As comissões de anistia e de indenizações em ação durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva, de Dilma Rousseff e de Michel Temer e a mediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tornaram possível este ato de justiça, cumprido em protocolo pelo governo Bolsonaro. 

Ao contrário do que o filho da agricultora morta durante a ditadura militar propaga, o governo Bolsonaro tem agido para impedir novos processos de reparação e atua para negar os efeitos nefastos produzidos pelos governos militares na vida de centenas de pessoas, diretamente atingidas, e de todo o país.

Referências:

Clickpb. https://www.clickpb.com.br/politica/filho-da-lider-sindical-margarida-maria-alves-se-filia-ao-prtb-e-vai-concorrer-ao-cargo-de-deputado-estadual-325664.html . Acesso em: 09 abril 2022.

PBAgora. https://www.pbagora.com.br/noticia/politica/filho-de-margarida-maria-alves-reconhece-atuacao-de-paraibano-para-encerrar-caso/ Acesso em: 09 abril 2022.

G1.  https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2021/08/12/morte-de-margarida-maria-alves-38-anos-depois-filho-abandona-desejo-de-vinganca-e-busca-manter-vivo-o-legado-da-mae.ghtml Acesso em: 09 abril 2022.

JusBrasil. https://trf-5.jusbrasil.com.br/noticias/776652157/filho-da-agricultora-e-lider-sindical-margarida-maria-alves-recebera-indenizacao Acesso em: 09 abril 2022.

Fundação Margarida Alves. http://www.fundacaomargaridaalves.org.br/2019/10/24/estado-brasileiro-realiza-evento-de-reparacao-simbolica-do-caso-margarida-maria-alves-em-joao-pessoa/  Acesso: em 12 abril 2022.

DW.COM. https://www.dw.com/pt-br/gest%C3%A3o-bolsonaro-celebra-golpe-de-64-pelo-quarto-ano-seguido/a-61322242 . Acesso em: 12 abril 2022.

O Globo. https://oglobo.globo.com/brasil/governo-bolsonaro-defensor-da-ditadura-anula-anistias-suspende-busca-por-desaparecidos-politicos-25221977. Acesso em: 12 abril 2022.

Organization of American States. https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/2020/BR_12.332_PT.PDF Acesso em: 12 abril 2022.

Fundação Margarida Alves. https://www.fundacaomargaridaalves.org.br/homenagens/ Acesso em: 14 abril 2022.

Portal Correio. https://portalcorreio.com.br/ministra-damares-alves-participa-de-cerimonia-em-jp-nesta-sexta/ Acesso em: 14 abril 2022.

El Pais. https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-10/governo-quer-fim-da-comissao-de-anistia-em-2022-e-nega-90-dos-pedidos-de-reconhecimento-de-anistiados.html Acesso em: 14 abril 2022.

UOL. https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/09/03/onu-pede-missao-ao-brasil-para-examinar-resposta-de-bolsonaro-a-ditadura.htm Acesso em: 14 abril 2022.

Memorial da Democracia. http://memorialdademocracia.com.br/card/margaridas-saem-em-marcha-por-justica Acesso em: 14 abril 2022.

Foto de capa: reprodução do YouTube

Bereia checa informações que circulam sobre pastor assembleiano que aderiu à campanha de Lula

* Matéria atualizada às 12:26

Bereia recebeu, de leitores e leitoras,  vários pedidos de checagem sobre  o pastor da Assembleia de Deus Paulo Marcelo Schallemberg, que aderiu à campanha do ex-presidente Lula à Presidência da República, com o objetivo de fazer “uma ponte” com evangélicos conservadores.

Reportagens da grande mídia e da mídia evangélica deram destaque à figura do pastor que, ao lado de sua esposa, pastora Bianca, tem percorrido os comitês de evangélicos progressistas e, também, grupos de pastores independentes em nome da campanha. 

Bereia verificou que lideranças da Assembleia de Deus têm divulgado notas pelas quais negam a relação do pastor com a igreja e até mesmo que ele seja um pastor. A mídia evangélica, por sua vez, tem publicado matérias sobre Paulo Marcelo ter uma ficha criminal pregressa

Bereia levantou em pesquisa que o pastor não é filiado ao PT, não militou em articulações progressistas antes, porém, já fez parte do PSC, tendo sido filiado em 2011, e ao Podemos, partido pelo qual foi candidato a vereador em 2020. Nesste pleito municipal Paulo Marcelo recebeu  4.486 votos (0,09% dos válidos), e figura na condição de suplente. 

Imagem: reprodução do site do TSE

Imagem: reprodução do Estado de São Paulo

Quem é o pastor Paulo Marcelo?

O pastor Paulo Marcelo enviou ao Bereia um vídeo, no qual ele se apresenta e dialoga com representantes da ala evangélica do PT, veja aqui. A reunião ocorreu em 24 de março passado, e contou com os pastores Cesario Silva, Jair Alves e Josias Vieira. 

Em 2021, Paulo Marcelo havia entregado a Lula um projeto de “inclusão de evangélicos” no PT, defendendo o “respeito à diversidade, sem indução à mudança de costumes”. O pastor afirma que pretende reunir um “exército de pastores” independentes dispostos a apoiar Lula. 

Quando as grandes mídias passaram a publicar matérias sobre as articulações da campanha de Lula para alcançar evangélicos, com a adesão do pastor Paulo Marcelo, a Assembleia de Deus em São Paulo também emitiu nota informando que o pastor não pertence à denominação e não faz parte da convenção. A nota foi assinada pelo presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), pastor José Wellington Bezerra.

Imagem: reprodução do Instagram

A  Convenção das Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus no Estado do Paraná (CIEADEP-18), cujo presidente é o Pastor Perci Fontora, também  secretário-geral da CGADB e vice-presidente da União dos Ministros das Assembleias de Deus da Região Sul do Brasil, declarou não reconhecer Paulo Marcelo como pastor

Imagem: reprodução do site da CIEADEP

No entanto,  Bereia levantou que o pastor Paulo Marcelo pregou no Congresso dos Gideões Missionários da Última Hora , em 2009, 2011 e 2014.  O Congresso é organizado pela instituição de mesmo nome, fundada pelo pastor Cesino Bernardino, filiado à  Convenção das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná. Os pastores escalados para pregar no Congresso são da Assembleia de Deus, principalmente jovens. Além de Paulo Marcelo, Marco Feliciano (hoje deputado federal) também passou por lá. Os dois, aliás, chegaram a fazer uma live juntos .

No Centenário da Assembleia de Deus no Brasil, comemorado em um culto-vigília em 2011, Paulo Marcelo foi um dos pregadores.

Tendo sua posição de pastor também questionada nas mídias pelo pastor presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, Paulo Marcelo respondeu em seu perfil no Instagram que não afirmou estar ligado como pastor a uma Convenção. E que este seria o mesmo caso de Malafaia, que em 2010 rompeu com a Convenção Geral para criar a sua igreja, que até hoje não pertence a nenhuma Convenção.

Ouvido pelo Bereia, o Pastor Paulo Marcelo resumiu assim a sua trajetória eclesiástica: “Em Foz do Iguaçu fui diácono, presbítero, depois, pela convenção CIEADP da CGADB, fui a evangelista em 2005 e em 2007 ordenado pastor. Congreguei ao lado do Pastor Israel Sodré por mais de 15 anos até ele ir para o céu, depois ao lado do Pr Isaías Cardoso . Até me mudar a SP em 2017 e ficar independente mesmo estando ligado à Assembleia de Deus no Paraná” . No vídeo do Instagram, Paulo Marcelo mostra o que seriam os certificados referentes a cada uma dessas etapas

Em entrevista a um podcast gospel, Paulo Marcelo se apresenta como “pastor itinerante”. Bereia ouviu a teóloga, mestra em Ciências da Religião e pastora pentecostal Viviane da Costa para entender que categoria seria essa: “O pastor itinerante não é uma unanimidade dentro das igrejas pentecostais apesar de bem comum. Muitos pregadores que passaram pelo [Congresso dos] Gideões, devido à relevância do evento nesse campo evangélico, ganham visibilidade nacional, o que impulsiona seguirem exercendo esse ministério. É alguém que prega em outras igrejas como convidado para eventos mas não tem um cotidiano de pastor em uma igreja local. Também é chamado de pastor congressista ou conferencista, porque estão sempre viajando para pregar em diversos lugares”.

Folha corrida e Ficha Limpa

Bereia checou as informações a respeito da ficha criminal do pastor Paulo Marcelo e encontrou registros de um habeas corpus, de 17 de maio de 2007, e de uma prisão em 17 de julho de 2014

Segundo o jornal Metrópoles, que teve acesso ao boletim de ocorrência, “o pastor foi preso porque policiais civis da 6ª Subdivisão Policial de Foz do Iguaçu acharam uma pistola calibre 380, com 45 cartuchos de munição, “no interior do closet de sua casa”, e uma “bucha com substância análoga a cocaína”.

O habeas corpus se refere a um pedido de prisão preventiva pelo fato de Paulo Marcelo não ter comparecido a um interrogatório a respeito do processo. O juiz apontou que não foram esgotadas as possibilidades de localização do pastor para a intimação. 

Em carta, Paulo Marcelo explica que a arma e o entorpecente encontrados com ele pertenciam ao seu segurança particular. Ainda segundo o Metrópoles, “o processo foi suspenso na etapa inicial, um benefício previsto para processos penais em que os crimes possuem pena inferior a 4 anos de prisão. Para conseguir a suspensão do processo, o pastor teve de se comprometer a pagar fiança para uma instituição beneficente, a não frequentar bares e a comparecer mensalmente em juízo para justificar suas atividades. Paulo Marcelo cumpriu todas essas condições e teve qualquer punição extinta, em março de 2017, por esse caso”. Estas ocorrências não impediram a homologação de sua candidatura e até mesmo a tentativa de se eleger para a Câmara dos Vereadores de São Paulo, em 2020. Na sua ficha no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), constam certidões negativas apontando não haver processos em curso contra o pastor.

As Assembleias de Deus no Brasil: entenda as Convenções e Ministérios

As Assembleias de Deus chegaram ao Brasil por intermédio dos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, que aportaram em Belém do Pará, em 19 de novembro de 1910, vindos dos Estados Unidos. Após romperem com a Igreja Batista, Vingren e Berg fundaram uma nova Igreja e adotaram o nome, por inspiração do movimento das Assembleias de Deus nos Estados Unidos da América. 

Nas Assembleias de Deus as igrejas sedes têm várias filiais (igrejas locais), todas com várias congregações e pontos de pregação. Muitas dessas comunidades não possuem personalidade jurídica independente. 

Essa fluidez institucional favorece uma estrutura na qual as maiores sedes formam organizações “guarda-chuva” (com personalidade jurídica) que têm, atualmente, várias convenções nacionais, sendo as principais, a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), a Convenção Nacional das Assembleias de Deus Ministério Madureira (CONAMAD) e a Convenção da Assembleia de Deus no Brasil (CADB). 

São convenções nas quais são filiados pastores e obreiros, que realizam assembleias e têm estatutos, cada um responsável por seus campos, ou ministérios. Além das convenções, as Assembleias de Deus são organizadas em Ministérios, que são articulações que mantêm o nome “Assembleia de Deus” mas são formados a partir de dissidências dentro das convenções.

Como funciona o setor evangélico do PT

O PT conta com núcleos de evangélicos no plano nacional e nos estados, os Núcleos de Evangélicos do PT (NEPT). Há também a organização de comitês de evangélicos, em todos os estados do país, liderada pela deputada federal, ligada à Igreja Presbiteriana Benedita da Silva (RJ).

Bereia ouviu dois pastores que são referências entre os evangélicos progressistas, o pastor da Igreja Presbiteriana Independente, Luis Alberto de Mendonça Sabanay, da coordenação do Núcleo Nacional de Evangélicos do PT; e o coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito pastor Ariovaldo Ramos. Sabanay afirmou que “há um racha no mundo evangélico bolsonarista e que o desafio do campo progressista é acolher essas dissidências do bolsonarismo”. Para ele, o caráter da atual disputa é “antibolsonarista” e “quem quiser somar, está dentro”. 

Ariovaldo Ramos, em uma análise mais ampla, afirma que “ninguém sabe ao certo o tamanho e a direção da base eleitoral evangélica, porque todos estão trabalhando com dados antigos, desatualizados, visto que não houve o censo nacional. Por isso, se o PT não souber lidar com esse campo, pode ser surpreendido”. 

Ramos ainda afirma que o desafio é atrair e dialogar com os evangélicos não-progressistas, porque os progressistas, como ele diz, “não são os alvos dessa comunicação”.  Porém, “a duplicidade de canais e a confusão na comunicação podem não ajudar o PT a dialogar com esse campo”, afirma o pastor.

Referências de checagem:

G1. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/03/13/pre-candidatos-a-presidencia-criam-estruturas-de-campanha-para-atrair-voto-evangelico-conheca.ghtml Acesso em 8 abr 2022.

Poder 360. https://www.poder360.com.br/poderdata/lula-alcanca-bolsonaro-entre-evangelicos-mostra-poderdata/ Acesso em 8 abr 2022.

Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/02/pastor-do-pt-leva-a-lula-plano-sobre-evangelicos-com-dicas-sobre-temas-tabus.shtml Acesso em 8 abr 2022.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/03/datafolha-evangelicos-divididos-entre-lula-e-bolsonaro-sao-pote-de-ouro-eleitoral.shtml Acesso em 8 abr 2022.

Instagram. 

https://www.instagram.com/tv/CbfkowrgjwJ/?utm_medium=share_sheet Acesso em 6 abr 2022.

https://www.instagram.com/tv/CaIDczxhpNH/ Acesso em 6 abr 2022.

https://www.instagram.com/p/CaH6w7VlV8f/ Acesso em 6 abr 2022.

Convenção das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado do Paraná.

https://cieadep.com.br/wp-content/uploads/2022/02/NOTA-DE-ESCLARECIMENTO_PAULO-MARCELO_2.pdf Acesso em 6 abr 2022.

Metrópoles. 

https://www.metropoles.com/brasil/pt-vai-criar-comites-evangelicos-em-busca-de-eleitores-para-lula. Acesso em 8 abr 2022.

https://www.metropoles.com/brasil/como-um-pastor-do-parana-quer-ajudar-lula-a-fisgar-evangelicos. Acesso em 6 abr 2022.

Estado de Minas.

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/02/15/interna_politica,1344902/pastor-pro-lula-defende-diversidade-entre-os-evangelicos.shtml Acesso em 8 abr 2022.

UOL.https://www.uol.com.br/eleicoes/2022/03/10/uol-entrevista-10-de-marco.htm Acesso em 8 abr 2022.

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https://www.youtube.com/results?search_query=marco+feliciano+gideoes+internacionais Acesso em 6 abr 2022.

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https://youtu.be/DyIG_LL_Vxw?t=460 Acesso em 6 abr 2022.

Carta Capital.

https://www.cartacapital.com.br/politica/podcast-do-pt-para-atrair-eleitorado-evangelico-e-suspenso-em-meio-a-divergencias/ Acesso em 8 abr 2022.

Gospel Mais. 

https://noticias.gospelmais.com.br/pastor-paulo-marcelo-pregador-gideoes-preso-69538.html Acesso em 8 abr 2022.

https://noticias.gospelmais.com.br/pastor-paulo-marcelo-pregador-gideoes-preso-69538.html  Acesso em 8 abr 2022. 

Pleno News. https://pleno.news/brasil/politica-nacional/assembleia-de-deus-nega-ligacao-com-pastor-aliado-de-lula.html Acesso em 8 abr 2022.

O Estado de São Paulo.

https://politica.estadao.com.br/eleicoes/2020/candidatos/sp/sao-paulo/vereador/pastor-paulo-marcelo,19200 Acesso em 1 abr 2022.

Convenção das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná.

https://www.ciadescp.com.br/ Acesso em 8 abr 2022.

Extra. https://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/silas-malafaia-diz-que-havia-descalabro-administrativo-na-cgadb-369024.html Acesso em 6 abr 2022.

Tribunal Superior Eleitoral.

https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/71072/250000811390 Acesso em 6 abr 2022.

Gideões Internacionais.

https://www.gideoes.com.br/congresso/historia/ Acesso em 6 abr 2022.

https://www.gideoes.com.br/cesino-bernardino Acesso em 6 abr 2022.

Foto de capa: divulgação

O que é a bancada evangélica?

Esse foi o principal questionamento da reportagem do UOL Notícias na qual o Bereia foi ouvido. Por vezes encarada como um bloco homogêneo, a apuração mostrou que não é bem assim.  Nossa editora-geral, Magali Cunha, explicou:  “É importante para as disputas políticas que a bancada seja vista como um grupo homogêneo, articulado, fechado. Isso não é verdade. São diversos partidos e não só partidos, ali há diversas igrejas e dentro dessas igrejas há também disputas internas entre grupos”.

Leia a matéria completa aqui.

Bereia participa de reportagem sobre fake news produzidas por evangélicos

O jornal Folha de S. Paulo elaborou reportagem a respeito das fake news que estão sendo elaboradas por redes de apoiadores evangélicos do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) sobre seus virtuais opositores nas eleições deste ano. A repórter Anna Virginia Baloussier listou uma série de conteúdos que estão circulando nas mídias sociais envolvendo montagens e declarações fora de contexto de Luis Inácio Lula da Silva e Sergio Moro. A maioria evocando o pânico moral e a cristofobia. A editora-geral do Bereia, Magali Cunha, contribuiu com uma análise do cenário:

“Historicamente, as desinformações relacionadas à moralidade religiosa “afetam fortemente ambientes religiosos”, diz Magali Cunha, editora-geral do Bereia, coletivo que analisa potenciais inverdades que abordem conteúdos sobre religião —em pouco mais de dois anos, foram 285 checagens. Vide a mamadeira com bico em formato de pênis supostamente distribuída em creches paulistanas, mais infame notícia falsa a atingir a campanha do presidenciável Fernando Haddad (PT) em 2018.

Cunha aposta, contudo, que em tempos de crise econômica, quando a população se vê às voltas com fome e desemprego, “estas pautas perdem força de afetação”. Nas eleições municipais de 2020, por exemplo, já arrefeceram um bocado. “Neste caso, o acionamento do imaginário do inimigo e da perseguição a cristãos, como o tema da cristofobia, tende a ser mais explorado.”

O tema ainda repercutiu no podcast Café da Manhã, também da Folha, no qual o Bereia foi citado como referência na checagem de desinformação em mídias religiosas.

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Imagem de capa: reprodução da Folha de S. Paulo. Fotos de Ueslei Marcelino/Reuters, Marlene Bergamo/Folhapress e Evaristo Sá/AFP

Igrejas e fake news

* Publicado originalmente em Ultimato

Pesquisas comprovam que evangélicos se rendem às fake news. Há grupos de igrejas dispostos a enfrentar este quadro

Paulina Santos, 53 anos, foi diagnosticada duas vezes com Covid-19 em 2020 e chegou a ficar internada. A professora, que é membro de uma igreja evangélica tradicional no interior do Estado do Rio de Janeiro, considera-se uma sobrevivente e agradece a Deus. Porém, ela tem muita tristeza de avaliar que o grupo de WhatsApp das mulheres da igreja pode ter sido um dos responsáveis pela dupla contaminação. Paulina havia seguido orientações diversas que circularam no grupo, que incluíam, além das orações pela proteção de Deus, tomar bastante sol, ingerir uma colher de chá de suco puro de limão todos os dias, tomar chá de alho. A fiel relata que houve indicações para comprar hidroxicloroquina na farmácia, mas ficou com medo e optou pelas outras receitas, tendo mantido uma vida normal com muita fé. Depois da segunda contaminação com internação, compreendeu que as orientações das irmãs da igreja não foram corretas. Ela sobreviveu, mas sofre com sequelas como queda de cabelo e perda de memória, além de “sentir muita tristeza com a igreja”.

Casos como o de Paulina Santos são inúmeros e representam um mal que não é novo e foi agravado durante a pandemia da Covid-19, pois colaborou para tornar pessoas doentes e até matar: as fake news. O termo em inglês, que significa “notícias falsas”, diz respeito a um fenômeno que permeia hoje, especialmente, as populares mídias sociais e atinge o jornalismo.

Do WhatsApp ao Facebook, do Twitter e do Instagram ao Youtube, para citar os mais populares, o processo é simples: alguém, intencionalmente, produz e divulga uma mentira na internet, geralmente no formato de notícia para criar mais veracidade, valendo-se até mesmo de dados científicos adaptados; ela é debatida nos espaços das mídias sociais; torna-se algo reconhecido, com caráter de sabedoria e verdade.

A propagação de fake news, que interferem em temas de interesse público, tem sido destaque em estudos de diferentes áreas do conhecimento e também de instituições. Entre elas estão a Comunidade Europeia, a Organização das Nações Unidas, e ainda empresas de comunicação, como o Facebook, que criou políticas de filtragem deste tipo de conteúdo.

A Comissão Europeia, por exemplo, criou, em 2018, um “Plano de Ação contra a Desinformação”1, uma compreensão mais abrangente do fenômeno, que passa não apenas pelo que é falso, mas também por todo conteúdo que vise ao engano e possa conter alguma verdade. No documento, desinformação é “Informação comprovadamente falsa ou enganadora que é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente, podendo prejudicar o interesse público”.

Os episódios que envolveram a votação do Brexit, em 2016, na Grã-Bretanha, os processos eleitorais dos Estados Unidos, naquele mesmo ano, e do Brasil, em 2018, têm sido objetos de análise em vários espaços, que demonstram como a produção de desinformação interferiu prejudicialmente na formação da opinião pública e em ações políticas.

Neste contexto, emerge o lugar dos grupos religiosos, com destaque para os cristãos. Amplas parcelas deste segmento não só tiveram papel importante na dinâmica que levou à vitória Donald Trump e Jair Bolsonaro, como revelaram-se receptores e propagadores de fake news que alimentaram estas disputas. 

Fake news nos espaços cristãos

Por que as pessoas acreditam nas mentiras da internet e ainda ajudam a divulgá-las e a consolidá-las? Uma das respostas está na psicologia social, orienta o cientista social com estágio doutoral no Centro para o Cérebro, Biologia e Comportamento (Universidade de Nebraska,Estados Unidos) Davi Carvalho.2 O pesquisador esclarece que há pessoas que, ainda que constatem que acreditaram numa mentira, não abrem mão dela, pois ela se revela coerente com seu jeito de pensar, de agir, de estar no mundo, ou lhe traz alguma compensação, conforto. Isso é o que se chama “dissonância cognitiva”. Carvalho explica que isso acontece quando pessoas têm necessidade de estabelecer uma coerência entre suas cognições (seus conhecimentos, suas opiniões, suas crenças), que acreditam ser o certo, com o que se apresenta como opção de comportamento ou de pensamento.

Neste ponto se situa a perspectiva da religião e como os grupos religiosos, especificamente os cristãos, se tornam propagadores de fake news. Isto foi identificado por um grupo de pesquisadores, em um artigo científico intitulado “A crença em notícias falsas está associada a delírio, dogmatismo, fundamentalismo religioso e pensamento analítico reduzido”,3 publicado em 2019, em uma revista científica sobre memória e cognição. No artigo, os quatro pesquisadores reconhecem que cristãos estão propensos não só a assimilar as notícias e ideias mentirosas que circulam pela internet, coerentes com suas crenças, como também a fazer a propagação, a “evangelização”, espalhando estas notícias e ideias para que convertam pessoas ao mesmo propósito.


Imagem: reprodução da pesquisa

No Brasil, uma pesquisa realizada pelo Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, buscou compreender o uso intenso do WhatsApp no fortalecimento de redes de desinformação no segmento evangélico. Intitulada “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”,4 a pesquisa, coordenada pelo sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, trabalhou nos resultados de 1.650 questionários aplicados em congregações das igrejas Batista e Assembleia de Deus, no Rio de Janeiro e em Recife (as duas maiores igrejas evangélicas e as duas cidades de maior concentração de evangélicos no Brasil, segundo o Censo 2010), e formulários on-line com pessoas de todas as religiões e sem religião em todo o país. Foram também realizados grupos de diálogo nessas localidades.

Como resultado, 49%, ou quase metade, dos evangélicos que responderam aos questionários afirmaram ter recebido conteúdo falso, e, neste segmento religioso, 77,6% disseram ter recebido desinformação em grupos de WhatsApp relacionados à sua comunidade de fé. Na coleta com outros grupos religiosos, 38,5% de católicos, 35,7% de espíritas e 28,6% de fiéis de religiões afro-brasileiras afirmaram ter recebido mensagens falsas em grupos relacionados às suas religiões. Entre os entrevistados, 61,9% dos evangélicos afirmaram que as notícias sobre política eram as mais frequentes.

Esta pesquisa mostrou que, além do apelo que a desinformação exerce sobre grupos religiosos – porque se adequa mais a crenças e valores e menos a fatos propriamente ditos –, elementos relacionados à prática da religião entre evangélicos é que interferem mais fortemente na propagação de desinformação. O uso intenso das mídias sociais como “um novo ir à igreja” é uma dessas práticas, associada ao sentimento de pertencimento à comunidade, que gera uma imagem de líderes e irmãos como fontes confiáveis de notícias. Isso tem relação com o depoimento de Paulina Santos a esta reportagem.

Há ainda a retórica do medo que é utilizada para disseminar desinformação de um modo geral, mas afeta grupos religiosos, especialmente evangélicos, no Brasil. Estes cultivam o imaginário de enfrentamento de inimigos e da perseverança diante da perseguição religiosa como alimento da fé. Desinformação em torno da “defesa da família” e dos filhos das famílias, como núcleos da sociedade que estariam em risco, por conta da agenda de igualdade de direitos sexuais tem forte apelo. Na mesma direção, notícias falsas de que políticos ou o Supremo Tribunal Federal fecharão igrejas no Brasil têm sido fartamente propagadas nos ambientes cristãos em períodos de disputas políticas.

 O enfrentamento das fake news

São vários os projetos no Brasil voltados para o enfrentamento da desinformação por meio da checagem de fatos, com número ampliado desde as eleições de 2018, ligados a empresas de mídia e também de iniciativa independente. Destacam-se: Agência Lupa, UOL Confere, Estadão Verifica, Fato ou Fake, Projeto Comprova, Aos Fatos, Boatos.org e o Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias.

O Coletivo Bereia é iniciativa ímpar entre as listadas, pois é o único projeto de jornalismo colaborativo de checagem de fatos especializado em religião e tornou-se pioneiro no Brasil em verificação de fakes news que circulam em ambientes digitais religiosos, com atenção voltada para cristãos. Criado em 2019, o projeto é resultado da pesquisa do Instituto NUTES, da UFRJ.

O editor-executivo do Coletivo Bereia, Marcos Lessa, avalia: “Bereia é o primeiro coletivo de checagens especializado em religião do Brasil. E o que se percebe, e há pesquisas que apontam isso, é que a desinformação circula em ambientes de comunidades de confiança. E os ambientes das igrejas sempre tiveram essa característica. Irmão confia no que o irmão está dizendo. E aí muita desinformação ganha esse peso da confiança ao ser passada adiante. Checar o que está circulando nesse meio, conhecendo o meio, é um diferencial para o Brasil que vemos hoje”.

Além da equipe do Bereia, outros grupos cristãos têm realizado iniciativas para contribuir no enfrentamento das fake news. Durante o período eleitoral de 2020, foi realizada a Campanha #IgrejaSemFakeNews, promovida pela Igreja Batista em Coqueiral (Recife, PE), por meio do Instituto Solidare, em parceria com a Tearfund e a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB). Uma das ações foi o lançamento da publicação Diga Não Às Fake News!,5 com reflexões acerca do tema, tanto à luz da Bíblia quanto da legislação brasileira. O livro gratuito permanece à disposição do público. Outro material resultante da Campanha #IgrejaSemFakeNews é o livro da ABU Editora, também com acesso gratuito,6 com estudos bíblicos indutivos, organizado por Morgana Boostel e Thiago Oliveira.

Em 2021, a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) decidiu que sua campanha anual Primavera para a Vida, que estimula as igrejas a ações referentes a temas sociais emergentes, teria o tema “Buscar a verdade: um compromisso de fé”. Iniciada em setembro de 2021, a campanha conta com um seminário virtual sobre o tema,7 uma publicação gratuita,8 em português e em espanhol, cujo título é o mesmo da iniciativa, formação para igrejas9 sobre o impacto das fake news e indicação de formas de ação. Para este último objetivo, a CESE publicou um conjunto de cards10 com as principais mentiras que circulam em ambientes cristãos (identificadas pelo Coletivo Bereia) e atitudes preventivas diante delas. 

O membro da Igreja Batista em Coqueiral Nilton Leite de Sousa Júnior, um dos idealizadores da campanha #IgrejaSemFakeNews, lembra que as igrejas são unânimes em condenar a prática da mentira, mas reconhece: “Os locais de culto e seus públicos não estão isentos de serem contaminados pelas fake news”. O líder batista vê possíveis ações das igrejas neste enfrentamento como um passo responsável: “Ainda que o espalhamento das fake news seja rápido e generalizado como uma pandemia, a vacina para acabar com isso é assumir a responsabilidade de verificar os fatos que compartilhamos”. Paulina Santos agradece.


Notas

1. Plano de Ação contra a Desinformação. Acesso em 2 dez. 2021. 

2. Por que é tão difícil combater a crença em fake news, segundo a psicologia social. Acesso em 2 dez. 2021.

3. Belief in Fake News is Associated with Delusionality, Dogmatism, Religious Fundamentalism, and Reduced Analytic Thinking. Acesso em 2 dez. 2021.

4. Caminhos da Desinformação: Relatório de Pesquisa Evangélicos, Fake News e WhatsApp no Brasil. Acesso em 2 dez. 2021.

5. Diga Não Às Fake News. Acesso em 2 dez. 2021.

6. As Fake News e a Bíblia. Acesso em 2 dez. 2021.

7. Seminário de Lançamento da Campanha Primavera para a Vida 2021. Acesso em 2 dez. 2021.

8. Campanha Primavera Para a Vida. Acesso em 2 dez. 2021.

9. Formação IPU e CESE. Os impactos das fake news nas igrejas. Acesso em 2 dez. 2021.10. Textos e cards CPPV. Acesso em 2 dez. 2021.

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Imagem: Pixabay


Deputado apresenta Projeto de Lei que proibiria pregações em espaços públicos

Bereia recebeu dos leitores uma indicação de checagem sobre a postagem da deputada estadual Rosane Félix (PSD) do Rio de Janeiro, que fala sobre o projeto de lei 4257/18 em tramitação na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) e que, supostamente, proíbe “pregações, evangelismo e convites a pregação” em espaços públicos.

Imagem: reprodução Facebook

O projeto de lei em questão, de autoria do deputado Átila Nunes (MDB), entrou em pauta nesta quarta-feira (15) e saiu após receber 92 emendas de plenário. Segundo o texto do artigo 1º, a proposta proíbe “o assédio religioso nas instituições públicas e privadas no Estado do Rio de Janeiro”. Embora, inicialmente, constasse a proibição ao proselitismo, o termo foi retirado ao longo da tramitação na Casa legislativa. Criado em 2018, somente este ano ele foi alvo de parlamentares da bancada religiosa com a justificativa de que a proposta fere os princípios de liberdade religiosa. 

Durante a tramitação dentro da Assembleia, o texto sofreu inúmeras modificações, foi arquivado, desarquivado e recebeu diversas emendas, mas, até a data da postagem, 14 de dezembro, a deputada Rosane Félix não havia feito emendas ao projeto como afirma em sua conta no Facebook.

Autora da postagem e disseminadora da desinformação, Rosane Félix é locutora, foi radialista por mais de 20 anos e está em sua primeira legislatura. Antes de ser eleita pelo PSD em 2018, trabalhava na rádio gospel 93 FM, empresa pertencente ao grupo MK, idealizado pelo falecido senador Arolde de Oliveira (PSD). Na eleição, a parlamentar contou com o apoio do senador e de Flávio Bolsonaro (PL).

Imagem: reprodução do Facebook


Após ouvir todas as manifestações dos deputados da bancada evangélica da ALERJ, o deputado Átila Nunes (MDB), atual presidente da CPI da Intolerância, identificou-se como umbandista cristão e saiu em defesa de seu projeto. Visivelmente emocionado, indagou aos pares: “É justo zombar, é justo fazer comentários pejorativos, escrever ofensas pessoais, ameaçar alguém por razões religiosas?”. O projeto “não atinge a liberdade religiosa do indivíduo em ostentar símbolos e realizar práticas devocionais”, finalizou o deputado.

Proselitismo é diferente de assédio

Para aprofundar as questões que giram em torno do projeto, Bereia entrevistou o mestre em Filosofia pela UERJ e doutor em Teologia pela PUC e pastor evangélico Irenio Chaves, e a professora e antropóloga pesquisadora em religiões e política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Instituto de Estudos da Religião (ISER), Christina Vital .

A polêmica em torno do projeto parte também da falta de educação no uso do espaço público, como explica o pastor Irenio Chaves: “Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o espaço público deve ser compreendido como laico e democrático, como também admitir que há excessos no uso desse espaço para fins de proselitismo e de propaganda indevida de ideias religiosas. Entretanto, é preciso entender essas manifestações no âmbito da Constituição Federal, que garante a livre manifestação na esfera pública.”

Sobre o proselitismo que envolve a expressão cultural e religiosa, Chaves diz: “as atividades religiosas no espaço público não se restringem ao proselitismo, mas também a expressões culturais e até manifestações sociais em defesa de direitos. A grande questão é se, a título de orientar as atividades religiosas, não está embutida nessa lei uma inibição às formas de livre expressão e de manifestação em todos os sentidos, principalmente aquelas que estão relacionadas à cultura, à defesa de ideias e de pensamento.”

“Qualquer forma de cerceamento da liberdade de expressão, seja religiosa, filosófica ou ideológica, é sempre uma ameaça à democracia. E isso não é bom.” conclui Chaves.

Sobre a liberdade de culto, citada pela deputada, o pastor e filósofo faz um alerta:  “quando tais atitudes extrapolam para a intolerância, já não estamos mais tratando de liberdade, mas de uma violação ao direito do outro, que pode até vir a ser tipificado como crime. Aí nesse caso, o Estado deve agir na forma jurídica, da lei, que foi aprovada em instâncias maiores”. 

Com relação ao termo “assédio religioso” disposto no projeto, Chaves, afirma:” o projeto inclusive tipifica algumas das atitudes que corresponderiam ao assédio religioso, mas que são, na verdade, ações de intolerância, de preconceito e de discriminação. Nesse caso, a pessoa que se sentir prejudicada deve ser orientada e estimulada a buscar seus direitos, provando que foi vítima de intolerância, preconceito ou discriminação” conclui.

A exploração do tema

Segundo a pesquisadora Christina Vital, esse tipo de desinformação gera um ambiente de ameaças e define três pontos em sua análise. O primeiro é a exploração da retórica da perda, no caso a liberdade de culto. Ela explica que é cultivada por atores que, futuramente, se apresentarão como gestores de uma falsa conquista. É como se vendesse a ideia de que algo está sendo perdido, mas na realidade, não está. 

Outro ponto destacado é o uso da falácia na retórica por parte dos disseminadores de fake news. “Como toda falácia, ela envolve meias verdades”, explica, “em parte, em situações que estão sendo observadas, mas são distorcidas”. A pesquisadora reforça que os pontos estão “umbilicalmente” ligados.

Por último, Vital alerta que esse caso tenta fortalecer uma retórica da intolerância contra o cristão no Brasil, a “cristofobia”. “Envolver o cristianismo, de forma geral, é uma estratégia para a propagação da agenda da cristofobia, por parte de atores evangélicos especialmente articulados para isso”, explica.

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Bereia classifica como FALSA a afirmação que o projeto de lei 4257/2018 irá proibir cultos, pregações e evangelismos na rua. O artigo do projeto de lei, na sua última redação, não proíbe o proselitismo religioso, não proíbe culto, não proíbe o evangelismo.

O artigo primeiro proíbe, sim, o assédio religioso, entendido como a prática, a indução ou a incitação à discriminação ou preconceito. Bereia vem alertando aos seus leitores que o pânico moral é uma estratégia política a fim de mobilizar eleitores em torno de um projeto comum. Segundo a pesquisadora e editora-geral do Bereia Magali Cunha, a retórica da cristofobia é uma das mentiras que mais circulam na internet e está sendo usada como estratégia eleitoral. Em texto publicado originalmente na Carta Capital e reproduzido aqui, ela explica: “o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no País, onde há plena liberdade de prática da fé para o grupo. Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político. Além disso, se configura uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que pedem mais liberdade e usam a palavra para falarem e agirem como quiserem contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e até cristãos progressistas – nem os da mesma família da fé são poupados.”

Referências de checagem:

Alerj – PL em votação no dia 15 de dezembro.

http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=7&URL=L3NjcHJvMTUxOS5uc2YvMGM1YmY1Y2RlOTU2MDFmOTAzMjU2Y2FhMDAyMzEzMWIvNjVlMjkyOWFjZDI3YWZiMzAzMjU4N2E2MDA1YzY1Njc/T3BlbkRvY3VtZW50JkhpZ2hsaWdodD0wLDIwMTgwMzA0MjU3&amp%5Ch# Acesso em: 23 dez 2021.

Alerj – PL original com justificativa.

http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1519.nsf/18c1dd68f96be3e7832566ec0018d833/2a21b8843412a250832582ba006e8475?OpenDocument&Start=1&Count=200&Expand=1.1.1 Acesso em: 23 dez 2021.

Bereia.https://coletivobereia.com.br/as-mentiras-que-circulam-em-ambientes-religiosos-no-brasil/ Acesso em: 23 dez 2021.

Site religioso afirma que LEGO vai lançar brinquedos com “ideologia de gênero”

O site de conteúdo religioso Gospel Prime afirmou, em matéria publicada em 23 de outubro de 2021, que a  fabricante de brinquedos para crianças Lego anunciou novos projetos com “ideologia de gênero” e que a decisão foi tomada após pesquisa realizada por um “grupo ativista”.  

A matéria, baseada em conteúdo publicado pelo jornal britânico The Guardian, relata que a empresa irá atuar contra o “preconceito de gênero e estereótipos nocivos”, e que os brinquedos da Lego não terão mais personagens masculinos ou femininos. 

Imagem: reprodução do site Gospel Prime

Além disso,  trata do estudo realizado pelo Instituto Geena Davis de Gênero na Mídia, uma organização sem fins lucrativos, fundada em 2004 pela premiada atriz estadunidense, dedicada a pesquisar a representação de gênero na mídia e defensora da igualdade de representação das mulheres. Classificado na matéria como“grupo ativista subsidiou o novo projeto de LEGO”, o a organização teria mostrado na pesquisa, segundo o site de notícias, “que as brincadeiras e as carreiras futuras continuam desiguais, pois pais e meninos são fanáticos para rotular brinquedos de meninas”.

Por fim, Gospel Prime expõe dados da matéria do  The Guardian, que mostram que 71% dos meninos entrevistados relataram ter medo de serem ridicularizados caso brincassem com “brinquedos de meninas”, o mesmo foi compartilhado pelos pais.

Instituto Geena Davis e LEGO

O Instituto Geena Davis de Gênero na Mídia é colaborador de gigantes do entretenimento ao redor do mundo. Em 2019, os estúdios Walt Disney firmaram parceria com o instituto para utilização de um software de mapeamento dos roteiros e identificar se a participação de homens e de mulheres é equivalente.

Além disso, divulga uma série de pesquisas em parceria com outros institutos e organismos internacionais, como o estudo desenvolvido em conjunto com ONU Mulheres e a Fundação Rockefeller. Considerado o primeiro estudo global sobre personagens femininos em filmes populares, revelou uma profunda discriminação e uma estereotipagem generalizada de mulheres e meninas na indústria cinematográfica internacional. 

Bereia checou as informações que indicam que o que a Lego pretende, e consta na matéria do The Guardian, é combater estereótipos prejudiciais para meninos e meninas.  A companhia dinamarquesa de brinquedos solicitou o relatório ao Instituto Geena Davis para o Dia Internacional das Meninas, estabelecido pela ONU em 11 de outubro. A Lego afirmou ao The Guardian que trabalha para remover o preconceito de gênero em sua linha de produtos e  promover a nutrição e o cuidado, bem como a consciência espacial, o raciocínio criativo e a solução de problemas.

Desta maneira, a maior companhia de brinquedos do mundo pretende acabar com o estereótipo de profissões destinadas aos homens e às mulheres e mostrar que qualquer atividade pode ser exercida por ambos os sexos. 

A pesquisa do Instituto Geena Davis, realizada com 7 mil pais, mães e crianças de sete a 14 anos de sete países, descobriu que pais e mães de ambos os sexos classificavam os homens como “mais criativos”, tinham seis vezes mais probabilidade de pensar em cientistas e atletas como homens em vez de mulheres, e mais de oito vezes mais probabilidade de pensar em engenheiros como homens. Desta maneira, a Lego concluiu que seu trabalho é encorajar meninos e meninas a  brincarem com as peças oferecidas pela empresa que possam ter sido tradicionalmente vistas como feitas “não para eles e elas”. 

A Lego afirma que está de acordo com a visão de que os comportamentos associados aos homens são mais valorizados, até que as sociedades reconheçam que os comportamentos e atividades tipicamente associados às mulheres são tão valiosos ou importantes, que pais e filhos passem aadotá-los”.

Bereia checou a pesquisa publicada pelo Instituto Geena Davis e os resultados não revelam que os “ pais e meninos são fanáticos para rotular brinquedos de meninas”, como afirma Gospel Prime. Esta frase não corresponde aos conteúdos. A questão é, como indicado aqui, a valorização maior das famílias aos trabalhos supostamente dedicados aos homens, como engenharia ou atividades acadêmicas, além de alguns esportes, que, segundo a companhia de brinquedos precisa ser revista pois é uma visão que desvaloriza a capacidade das mulheres.

Manipulação de dados e desinformação

Portais de notícias religiosas estão entre os maiores propagadores de desinformação no país. A ideia elaborada em torno de uma“ideologia de Gênero”, uma estratégia discursiva e arma política,  tem espaço garantido nas mídias religiosas e nas declarações de políticos e líderes religiosos. Gospel Prime publica diversas matérias com a abordagem deste tema e algumas já foram checadas pelo Coletivo Bereia. 

Um levantamento da editora-geral do Bereia Magali Cunha, sobre os dois anos de atuação do coletivo, aponta que “ideologia de gênero”, pode ser classificada como a mais bem-sucedida concepção falsa criada no âmbito religioso. Ela indica que, surgido no ambiente católico e abraçado por distintos grupos evangélicos, que reagem negativamente aos avanços políticos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações diversas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. A “ideologia de gênero”, nesta lógica, é falsamente apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional”, gerando pânico moral e terrorismo verbal entre grupos religiosos. A matéria de Gospel Prime sobre os brinquedos Lego segue esta orientação. 

Bereia conclui, portanto, que a matéria publicada por Gospel Prime é enganosa, pois trata de um projeto de fato divulgado pela companhia dinamarquesa Lego e de um estudo publicado pelo Instituto Geena Davis. Entretanto, se baseia em matéria do jornal The Guardian, distorce dados, manipula informações e utiliza termos inexistentes.

Lego afirma buscar acabar com estereótipos prejudiciais para meninas e meninos. Diz que projeta incentivar meninas e pais a buscarem qualquer atividade e principalmente, mostrar aos meninos que não existem atividades destinadas unicamente às meninas e assim levar essas crianças a buscar atividades prazerosas que muitas vezes são abandonadas por vergonha ou medo da reprovação de pais e amigos. 

Referências:

The Guardian. https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2021/oct/11/lego-to-remove-gender-bias-after-survey-shows-impact-on-children-stereotypes Acesso em 25/10/2021.

Geena Davis Institute.

https://seejane.org/ Acesso em 25/11/2021.

https://seejane.org/research-informs-empowers/lego-creativity-study/  Acesso em 25/11/2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-estrategia-discursiva-e-arma-politica/ Acesso em 02 nov 2021.

Agência Pública. https://apublica.org/2020/08/grupo-de-midia-evangelica-que-pertence-a-senador-bolsonarista-e-um-dos-que-mais-dissemina-desinformacao-afirmam-pesquisadores/ Acesso em 02 nov 2021. 

Tecmundo. https://www.tecmundo.com.br/cultura-geek/146589-disney-contrata-instituto-geena-davis-checar-vies-roteiros.htm Acesso em 02 nov 2021.

 ONU Mulheres. https://www.onumulheres.org.br/noticias/industria-cinematografica-global-perpetua-a-discriminacao-das-mulheres-aponta-estudo-da-onu-mulheres-geena-davis-institute-e-fundacao-rockefeller/ Acesso em 02 nov 2021.  

Coletivo Bereia.
https://coletivobereia.com.br/site-evangelico-diz-que-pediatra-defende-masturbacao-infantil/ Acesso em 11 nov 2021.ONU. https://www.un.org/en/observances/girl-child-day Acesso en 11 nov 2021.

“Quando as pessoas recebem desinformação, o direito à informação é negado”. Entrevista com Magali Cunha

Publicado originalmente na Agência Signis de Notícias

Chega a parecer incoerente que cristãos sejam propagadores de notícias falsas, visto que o próprio Jesus aponta a “verdade” como um dos caminhos para segui-lo. Na teoria esse argumento bastaria. No entanto, vemos crescer o número de pessoas de religiões cristãs que não apenas recebem informações sem fundamento, como também se tornam promotoras desses conteúdos.

Incomodado com essa realidade, um grupo de jornalistas e pesquisadores, “com a cara e a coragem”, entendeu que era hora de agir. E, em 2019, surge o Coletivo Bereia e seu trabalho de fact cheking, especializado em conteúdos de caráter religioso.  

Quem está à frente dessa iniciativa é Magali Cunha, com sua larga experiência no jornalismo e pesquisa em comunicação. Além de editora-geral do Bereia, é doutora em Ciências da Comunicação, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM), membro da Associação Internacional em Mídia, Religião e Cultura e da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC).

Nesta entrevista, Magali conta um pouco da sua caminhada na profissão, a proposta e desafios do Coletivo, num momento em que a própria religião é instrumentalizada de forma estratégica para alcançar objetivos políticos e econômicos.      

Como foi sua trajetória no jornalismo e sua experiência com checagem de notícias?

Minha trajetória é longa, eu me formei nos anos 1980, pela Universidade Federal Fluminense. O sonho do meu pai era que eu fizesse Direito porque, segundo ele, eu tinha que lutar pela verdade. Era o período da Ditadura Militar e meu pai era um sindicalista muito preocupado com a justiça, com a verdade. Eu disse a ele: “pai, eu vou lutar pela verdade e pela justiça mas por outros caminhos. Eu gosto muito de escrever e eu me vejo como jornalista”. Eu fui atrás dessa minha vocação, fiz o curso de jornalismo e depois fui convidada para trabalhar numa organização ecumênica de nome “Koinonia”, que naquela época se chamava Centro Ecumênico de Documentação e Formação. Eu tinha a tarefa de coordenar um pequeno jornal que se chamava “Aconteceu”, que reunia notícias relacionadas ao mundo religioso no Brasil, principalmente de católicos e evangélicos naquele momento. E a nossa tarefa era muito interessante: reescrever notícias que saíam nos jornais e que a gente identificava lacunas ou equívocos da cobertura sobre religião. Então, a gente reescrevia. Isso pra mim já foi uma escola saindo da universidade… Depois, eu fui fazer o mestrado e entrei no mundo acadêmico, me tornei professora, mas nunca deixei o jornalismo, sempre escrevendo, sempre atuando nesse campo.  

Como surgiu a ideia do Coletivo Bereia e qual a proposta? Essa iniciativa nasceu de uma pesquisa na universidade. Quem criou o Coletivo Bereia foram jornalistas e pesquisadores que, na época, trabalhávamos em pesquisa na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) sobre disseminação de fake news entre grupos religiosos. Aconteceu que vendo o resultado dessa pesquisa, que foi muito significativo, uma parte desse grupo se questionou sobre uma tomada de atitude para enfrentar o problema da desinformação. Então, resolvemos criar um projeto com a cara e a coragem, sem dinheiro, sem nenhum recurso, só a nossa vontade e o expertise, aquilo que podíamos fazer como jornalistas e pesquisadores em religião, voltado para o grupo religioso. E tivemos o apoio de uma organização cristã chamada “Paz e Esperança Brasil” que nos ajudou com recursos para colocar o projeto no ar, através de um site com os conteúdos que a gente estava criando. Assim começou.  

Poderia nos explicar o significado do nome do Coletivo?

O nome “Bereia” foi escolhido por ser um nome que está na Bíblia, é de uma cidade grega. A história, segundo o texto bíblico, é que as pessoas que receberam a pregação dos primeiros apóstolos do cristianismo nessa cidade foram conferir nas escrituras se o que estavam ouvindo era verdade. Então, a gente já procurou um nome relacionado à religião já pensando que poderia causar uma identidade com o público-alvo, especialmente os cristãos, como é identificada a maioria da população brasileira.

 

Como se dá a metodologia de checagem das informações?

Hoje, nós temos uma equipe formada por 23 pessoas. Desse grupo 22 são voluntárias, inclusive eu. Nós temos uma pessoa que recebe uma bolsa e, entre outras atividades, nos ajuda a colocar os conteúdos online. Para os voluntários, nós pedimos uma dedicação de 4 horas por semana e nós nos organizamos em equipes, de segunda à sexta-feira. Essas equipes fazem o trabalho de monitoramento de sites e perfis de mídias sociais e, além disso, estão atentas a discursos de personalidades de destaque político e a eventos sociais que envolvem a temática religiosa, como foi o caso do discurso do Presidente Jair Bolsonaro, durante a reunião da ONU, em setembro deste ano, e dos atos do dia 7 de setembro, no Brasil. O nosso prazo é muito curto para tamanha demanda. Por exemplo, a pesquisa de WhatsApp da UFRJ mostrou que desinformação das mídias digitais circulam por 48 horas. Então, se a gente quer concorrer com a desinformação, se a gente quer mostrar o outro lado, a gente tem um prazo muito curto que é de 24 a 52 horas para produzir uma matéria e, mesmo considerando a questão do voluntariado nessas equipes, a gente tem procurado cumprir esses prazos. Fundamentalmente é feita uma pesquisa do tema que é a contextualização. Todo trabalho de verificação precisa ser contextualizado. Que tema é esse, do que ele trata, como ele surgiu e, a partir daí, explicar esse tema nas suas nuances todas. Nesse processo, a gente recorre à entrevista com especialistas, pesquisas e fontes das mais diversas. Feito isso, é dado um parecer a este conteúdo: verdadeiro, falso, enganoso, impreciso ou inconclusivo.

 

Que fatores contribuem para a propagação de notícias falsas?

A propagação de conteúdo falso não é uma novidade. Isso é coisa humana. Desde que mundo é mundo as pessoas usam de falsidades, de engano para poder conseguir algum benefício próprio ou para poder interferir em alguma causa, algum objetivo. Então, isso é coisa antiga. E nas mídias, principalmente no jornalismo, a gente vai identificar vários exemplos, vários momentos em que o jornalismo se rendeu aos conteúdos falsos por questões políticas ou interesses econômicos de donos das mídias – porque a gente sabe que as mídias tem donos, tem perspectivas políticas e econômicas que muitas vezes comprometem o jornalismo. Mas a gente vai ver essa explosão do tema mais recentemente. Em 2016, a palavra do ano do dicionário Oxford foi “pós-verdade” e que está relacionada a este tema da desinformação justamente por conta dessa explosão das mídias digitais, das possibilidades que as pessoas têm hoje de serem produtoras de conteúdo, muito mais do que receptoras. Então, o público hoje, as pessoas que têm acesso às mídias digitais – e, é um acesso muito amplo, de diferentes camadas sociais, diferentes formações humanas – tornaram possível essa proliferação e essa participação intensa, tanto na produção quanto no recebimento também.  

Que característica torna esses conteúdos atrativos e aceitáveis? Quais são os principais assuntos abordados pelo Bereia?

A temática é a principal característica. Por exemplo, “política” é um tema chave. A religião na política hoje tem uma relação muito estreita. As pessoas querem saber o que os políticos estão fazendo relacionado à religião. Seja no Executivo, seja no Legislativo e também no Judiciário onde, recentemente, o tema da religião tem avançado. Temas relativos à moralidade também são muito compartilhados. Temas que tenham a ver com a sexualidade humana, idem. Por exemplo, uma das maiores fake news dos últimos tempos é a chamada “ideologia de gênero”. Esse termo é falso e enganoso também e sempre estamos trabalhando com ele. Outro assunto é a perseguição religiosa. Hoje se fala muito de cristãos que são perseguidos fora do Brasil, especialmente no Oriente Médio e nos países denominados “comunistas”. E, de 2020 para cá, conteúdo relacionado à Covid-19 foi campeão de verificações, inclusive, causando contaminação e morte. Desinformação mata, fake news mata e a gente observou isso com o uso da religião muito forte nessa temática.

 

Você citou a política como uma das temáticas mais presentes para a construção desses conteúdos desinformativos. A partir de que momento ela passa a ser usada de forma estratégica por grupos e pessoas?

A partir de 2016, o tema da desinformação ganhou novos contornos. E por quê? Porque 2016 é o ano do Brexit, da campanha pela saída da Grã Bretanha da União Europeia e houve muita desinformação para criar medo, fazer um terrorismo verbal e as pessoas votarem pela saída. Isso gerou, inclusive, uma série de processos na justiça. Também foi o ano da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, que usou a mesma metodologia do Brexit para fazer a campanha eleitoral. Então, 2016 foi o ano em que esses temas começaram a ser discutidos porque, pela primeira vez na história, as mídias sociais apareceram com muita força para promover desinformação com interesse político. Diversos estudos passaram a ser desenvolvidos e a União Europeia tem um próprio sobre essa questão. E, partindo dessa pesquisa, foi criado um conceito de desinformação que a gente tem usado no Bereia. Ele define que desinformação é toda e qualquer informação deliberadamente produzida para interferir em interesses públicos ou para ganhos econômicos. Então, por exemplo, no caso da Covid a gente vai ver pessoas e empresas que ganharam muito dinheiro com cloroquina, com ivermectina, com tratamento precoce, empresas farmacêuticas, planos de saúde etc. Aqui no Brasil, a gente tem uma CPI das fake news nas eleições de 2018. Existem grupos que ganharam com isso.  

Nesse sentido, o que dizer dos órgãos reguladores? Acredito que é uma das grandes pautas de quem trabalha pela democratização da comunicação e da dignidade no trato com a informação. É preciso regulação, é preciso legislação porque as empresas de mídias sociais, as plataformas, as empresas jornalísticas se autorregulam e a gente precisa da sociedade civil participando desses processos. Mas o mais importante nisso é a legislação que garanta o direito à informação. Quando as pessoas recebem desinformação, é o direito à informação que está sendo negado. Então, é preciso acompanhar muito bem essas iniciativas, especialmente o andamento desse tema no Congresso.  

Se existem conteúdos desinformativos que partem justamente de veículos que são ditos “confiáveis”, um dos problemas não estaria na formação do profissional dessas instituições?

O Coletivo Bereia é um projeto que faz jornalismo especializado. E, há muito tempo nas escolas de jornalismo não há disciplinas que tratem da cobertura de religião. É uma certa defasagem. A gente encontra muitos erros de cobertura. Não é só a desinformação liberada, existem erros na reportagem porque não há muita formação. Se a pessoa não tem a iniciativa de buscar uma formação mais específica em religião, ela não vai conseguir cobrir adequadamente o tema. Agora, quando a gente fala dos espaços digitais, precisa muito pensar uma formação para compreender como as mídias operam. Não adianta só produzir para as mídias, não adianta só pesquisar. A gente precisa saber como elas operam. A velha história dos algoritmos, entender o que é isso, da monetização… Tudo isso implica em elementos que estão na forma de operar do universo digital. A gente tem a composição desses elementos todos nas mídias sociais… tudo isso a gente precisa entender. Não adianta saber fazer, saber ler, saber pesquisar se a gente não sabe como é que opera, o que está por trás. Isso é uma coisa muito importante. Outro ponto está na apuração. Muita coisa que sai em grandes mídias é por falta de apuração. O jornalista se conforma com o material, não procura especialista, não fez leituras para além do que acompanhou em sites, esquece dos livros, esquece dos artigos… É preciso ir fundo na apuração, conhecer as fontes, não dá para ficar só com o superficial  

O trabalho que o Bereia realiza é, em certa medida, de reparo dentro de uma cadeia de desinformação. É separar o joio do trigo, como diz o lema do Coletivo. Mas o que pode ser feito para essa erva daninha nem chegar a aparecer?

A gente tem um desafio. A gente entende que não adianta só publicar uma matéria dizendo que um conteúdo é falso ou enganoso e apresentar uma contextualização. É preciso fazer educação para a informação. Então, um trabalho que vai junto com a verificação que a gente faz é o trabalho educativo, formativo. Nosso projeto também oferece palestras, minicursos, apoia grupos religiosos que estão preocupados com esse tema, e a gente tem no nosso site uma seção chamada “Areópago”, que é um espaço de discussão ampla, em que a gente publica também artigos sobre o tema, pequenas instruções sobre como cada pessoa pode por si mesma fazer uma verificação de informação. Não é só o trabalho de fact cheking. O trabalho não se esgota numa matéria de verificação, na publicação jornalística de um conteúdo. O nosso trabalho também é o de educadores e educadoras, formadores para a informação digna e coerente.

Campanha Primavera para a Vida 2021 debate fake news dentro das comunidades de fé

Lançamos a 21ª edição da Campanha Primavera para a Vida, que aborda o caminho da verdade como um princípio cristão que produz paz e justiça e denuncia os danos que a cultura de produzir e difundir “Fake News” (expressão sofisticada para o termo “mentira”) tem causado na sociedade, de modo mais particular em comunidades de fé.

A live de lançamento contou com a participação da editora-geral do Bereia, Magali Cunha, da pastora Romi Bencke e da ativista Ana Gualberto, além de diversos membros do movimento ecumênico.Como parte da campanha lançamos também a publicação “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé”, que traz conteúdos para debate e difusão da aplicação do princípio da verdade. Você pode baixar a publicação aqui.

A campanha, que promovemos desde 2001, busca articular o diálogo com as Igrejas, fortalecendo o compromisso ético com a promoção e garantia dos Direitos Humanos, contribuindo para a formação das lideranças clérigas, leigas e das comunidades de fé, disponibilizando estudos bíblico-teológicos inspirados em demandas sociais vivenciadas pela organização.

Bereia participa de evento mundial sobre Comunicação para Justiça Social

Entre 13 e 15 de setembro ocorre o Simpósio Comunicação para Justiça Social na Era Digital, organizado pela Associação Mundial para Comunicação Cristã (WACC, na sigla em inglês) e pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Diante de representantes de 120 países, o Bereia será apresentado como um caso para estudo e foi classificado como alto interesse, por ser considerado uma ação inédita. Nossa editora-geral, Magali Cunha, também vai compartilhar os resultados da pesquisa Fundamentalismos, crise na democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul. A apresentação será no dia 14 e poderá ser acompanhada no canal do CMI, às 11h30 (horário de Brasília): https://www.oikoumene.org/live .

O simpósio examinará como a justiça social e a injustiça se assemelham na era digital, especialmente para as pessoas e comunidades marginalizadas. Também abordará como o “espaço público” mudou – ou não – com as oportunidades digitais, bem como os desafios contínuos de desequilíbrios de poder e censura. Juntos, os participantes desenvolverão uma visão de uma sociedade mais digital – e humana – e as ações que podem ser realizadas nessa direção.

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Foto de capa: Albin Hillert/LWF

Religião e política no olho do furacão

Publicado originalmente na Carta Capital

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A relação entre religião e política, presente no Brasil desde 1500, quando a Igreja Católica aportou nestas terras com os colonizadores portugueses, deixou de ser unicamente objeto de estudos acadêmicos e ganhou as páginas de jornais e revistas e discussões populares em mídias sociais e outros espaços.

Fala-se muito do que alguns chamam de “ameaça” evangélica, outros, ao contrário, de “bênção de Deus”. As avaliações díspares respondem à intensificação da presença de cristãos na política, estimulada pela aliança do governo Bolsonaro com lideranças desse segmento religioso. Esse processo tomou a forma da ocupação de cargos no Poder Executivo, rearticulação de alianças o Poder Legislativo, e a emersão de personagens do Poder Judiciário identificados com a fé cristã que interferem em políticas e realizam ações públicas (vide a controversa Operação Lava Jato).

A ênfase no poder alcançado pela parcela ultraconservadora do segmento evangélico é, de fato, necessária na discussão sobre religião e política. Há uma trajetória de quase 35 anos da existência de uma “bancada evangélica” no Congresso Nacional. Ela foi potencializada durante a presidência de Eduardo Cunha (MDB/RJ) na Câmara dos Deputados, por conta da ênfase em pautas da moralidade sexual e defesa da “família tradicional”. E foi essa potência da religião no Congresso que uniu forças com uma direita ressentida, nada religiosa, para tirar Dilma Rousseff da Presidência, no já consagrado, historicamente, golpe contra a democracia de 2016.

Não é surpresa que candidatos e profissionais de marketing tenham detectado há algum tempo a tendência e, a cada eleição, seja frequente a prática de “pedir a bênção” a líderes evangélicos identificados tanto com a direita como com a esquerda. Também são recorrentes as pressões sobre candidatos e partidos, que nada têm de religiosos, a assumirem compromissos com a defesa de pautas da moralidade religiosa, em clara instrumentalização da religião cristã para conquista de corações e mentes de fiéis.

Porém, quando quem discute se fixa apenas nesse protagonismo evangélico, esconde o debate necessário sobre o lugar do Catolicismo e sua influência nas pautas públicas por séculos. Oculta também a presença das religiões de matriz africana no espaço público e sua demanda por liberdade religiosa, por superação da intolerância e por direitos da população afrodescendente. E ainda se menospreza o espaço ocupado por pessoas e grupos vinculados ao Espiritismo e ao Judaísmo, com a eleição de pares para cargos públicos e busca de influência em temas de interesse.

Como pesquisadora sobre “religião e política” há muitos anos, não é difícil observar que lendo, assistindo e ouvindo o que se torna público, em espaços acadêmicos, jornalísticos e populares, ainda há muita incompreensão e equívocos. Em parte, esses são provocados pelo desconhecimento da história e das dinâmicas que envolvem religiões no País, por outro lado são movidos por imaginários e preconceitos.

Entre os equívocos e incompreensões circulantes, por exemplo, estão a confusão entre as noções de Frente Parlamentar e Bancada; desencontros sobre a composição de uma “Bancada da Bíblia”; listas duvidosas de integrantes da chamada Bancada Evangélica; a imagem incorreta de que neopentecostais ocuparam o governo federal; a restrição das análises ao segmento evangélico com desconsideração às movimentações de lideranças católicas nos três poderes; silêncio sobre as articulações políticas das comunidades tradicionais de matriz africana e de outros grupos religiosos minoritários no País; ignorância em relação às diferentes tendências ideológicas que movem esses grupos religiosos em sua pluralidade, restringindo avaliações e agrupando personagens e fiéis sob o rótulo de “alienados” e “conservadores”.

Toda a desinformação circulante acaba ignorando o significado da intensa presença de grupos religiosos que atuam como ativistas políticos nos mais diversos movimentos e nas mídias sociais. É um contexto em que “religião” é, certamente, um tema de fundo, alimentador de campanhas e debates contundentes não só em processos eleitorais, mas em diferentes pautas. Exemplo é a campanha pública de evangélicos, católicos e judeus de esquerda, contra o Projeto de Lei 490, em votação no Congresso Nacional, que ameaça o direito de indígenas a terras demarcadas com base na Constituição. Outro exemplo é a articulação de evangélicos para convocar apoiadores do Presidente da República para atos de rua no 7 de setembro.

Desinformação sobre religião e política em circulação também tem relação com o tema do Estado laico. Em muitos espaços ele é apresentado como ameaçado por conta desta presença mais intensa de grupos religiosos no espaço público. Será mesmo? Por que discutir “Estado laico” apenas quando evangélicos ganham protagonismo na política? O Estado laico sempre foi frágil em nossas terras a começar com o poder da hegemonia católica, passando pela intolerância em relação às religiões de matriz afro (resultante do racismo estrutural), chegando à força do ultraconservadorismo evangélico no tempo presente.

Grupos religiosos no espaço público precisam ser vistos como indício do próprio avanço da democracia (com ambiguidades, é claro) e da pluralidade religiosa relacionada ao direito humano da liberdade de crença. O que deve ser questionado e enfrentado como ameaça ao Estado laico, é que um único grupo religioso imponha sua teologia e ética religiosa como regra para todos, sejam religiosos (com toda pluralidade que vivenciam) e não-religiosos. Da mesma forma, o Estado laico também está em perigo quando princípios religiosos são instrumentalizados por líderes e grupos políticos com vistas à busca de votos ou de apoio a implementação de necropolíticas. Neste caso é a laicidade do Estado e a democracia que de fato, estariam colocados em risco.

Para contribuir na superação da desinformação, dos equívocos e incompreensões sobre a relação entre religião e política no Brasil, está à disposição a Plataforma Religião e Poder. O Instituto de Estudos da Religião (ISER), que há mais de cinco décadas presta serviço a pessoas e grupos que estudam e atuam em espaços relacionados às religiões, lançou, em 2020, esta plataforma online para acesso público https://religiaoepolitica.org.br/, pela qual apresenta dados, análises e reportagens estruturadas sobre o tema.

A Plataforma Religião passou por reformulações significativas nos últimos meses e foi relançada nesta semana. Antes dedicada a analisar a composição das frentes com identidade religiosa do Congresso Nacional e monitorar suas pautas, a plataforma ampliou sua abrangência e será atualizada semanalmente para monitorar a participação de agentes religiosos nos três poderes da República e em processos eleitorais. Uma novidade é a seção Glossário, desenvolvida para explicar em linguagem acessível termos essenciais ao debate sobre religião e espaço público que são pouco compreendidos por grande parte da população brasileira. Os termos “Laicidade” e “Estado Laico” inauguram o espaço, que terá um novo termo publicado a cada mês.

Religião e política devem ser discutidas, sim! Isso deve ser feito, crítica e coletivamente, por meio de recursos responsáveis e habilitados, como a Plataforma Religião e Poder, pelos mais diferentes grupos e forças sociais que formam e informam sobre política, sobretudo, em espaços em que a fé religiosa é praticada. Afinal, neste processo está a fé, a crença, sonhos e esperanças de muita gente que acredita que há uma presença divina no meio de tudo isso.

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Foto : Isac Nóbrega/PR via Fotos Públicas

Grupos da igreja no WhatsApp são usados para disseminar desinformação, revela pesquisa

Publicado originalmente pela Agência Pública. Reportagem de Mariama Correia.

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Líder de jovens na congregação evangélica Assembleia de Deus do Amor, no bairro dos Bultrins, em Olinda (PE), Angélica Cruz, 29 anos, está em pelo menos quatro grupos da igreja no Whatsapp. Diz que a maioria serve para troca de mensagens devocionais entre membros e a liderança. “O aplicativo virou uma ferramenta principal de comunicação na pandemia. Serve pra gente trocar mensagens de apoio e informações entre os irmãos, como vagas de emprego e oportunidades”, contou à Agência Pública.

O uso intenso do Whatsapp para a prática religiosa fortalece redes de desinformação no segmento evangélico, segundo relatório de pesquisa “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado em primeira mão pela Pública. A live de lançamento do relatório será no dia 30 de agosto, no canal do Youtube do Instituto de Estudos da Religião (ISER), às 14h.

A pesquisa mostra que 49% dos evangélicos da amostra receberam mensagens de conteúdo falso ou enganoso em grupos relacionados à sua religião. Isso quer dizer que praticamente a metade dos evangélicos entrevistados receberam notícias falsas enviadas em grupos da sua comunidade de fé. 

Wagner Tadeu Tonel/Agência Pública

Os dados consideram 1650 respostas coletadas em congregações Batistas e das Assembleias de Deus e grupos de diálogo do Rio de Janeiro e do Recife. Também foi aplicado formulário online com pessoas de todas as religiões e sem religião. Essa coleta aconteceu em 2019. 

Na pesquisa online, com abrangência nacional,  participaram pessoas de diferentes religiões e com nível superior – o segmento que possui maior percepção em relação à circulação da desinformação. Nesse grupo, os dados sobre o recebimento de notícias falsas em grupos ligados à religião foram ainda maiores, com 77,6% dos evangélicos tendo afirmado receberem desinformação por grupos ligados à sua religião no Whatsapp. Em comparação, a coleta de dados online mostrou que 38,5% dos católicos, 35,7% dos espíritas e 28,6% de fiéis de religiões afro-brasileiras afirmaram ter recebido mensagens falsas nos grupos de suas religiões.

Sobre o uso do Whatsapp especificamente, a pesquisa aponta que entre os evangélicos, 92% participam de grupos ligados à sua religião no WhatsApp. Em comparação, 71% dos católicos, 57% dos espíritas e 66,7% dos fiéis de outras religiões entrevistados, disseram fazer o mesmo. “Não é a religião que interfere na maior presença de desinformação nos grupos de WhatsApp dos evangélicos, mas elementos relacionados à prática da religião, como o uso das redes sociais”, apontou o coordenador da pesquisa, o sociólogo e diretor do Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ, Alexandre Brasil. 

Um desses elementos mapeados pelos pesquisadores seria a confiança interpessoal. Para 33,3% dos evangélicos entrevistados, pessoas conhecidas são mais consultadas como fontes de informações do que veículos jornalísticos e/ou mecanismos de busca na internet. E 13,2% disseram que os pastores e irmãos da igreja representam a fonte mais confiável de notícias. “É importante lembrar que onde circula informação também circula desinformação. Não há como evitar que esses fluxos de mensagens circulem de forma separada, pois o intuito é que tenha aparência de informação confiável. O uso intenso do WhatsApp, somado à uma forte presença da confiança interpessoal são fatores que parecem sim tornar os evangélicos, em algum nível, suscetíveis à desinformação”,  explicou Alexandre Brasil. 

Não checam e não se incomodam 

O pesquisador explica que a pesquisa partiu da hipótese de que grupos onde há maior organicidade e confiança entre os participantes, são potencialmente espaços em que há maior circulação de desinformação. O grupo religioso, no caso o evangélico, foi escolhido por ter o perfil de uma “intensa vida comunitária, pela presença de laços de confiança e pela realização de reuniões regulares.” “Também se considerou a existência de reportagens que indicavam sites e influenciadores ligados ao segmento evangélico como destacados disseminadores de fake news”, acrescentou. 

O relatório também ressalta que os evangélicos têm uma grande representatividade nas decisões eleitorais, considerando que 31% da população brasileira se declara evangélica, segundo Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), realizado em 2018. 

Entre os respondentes, 23,6% dos evangélicos disseram não ter o costume de checar notícias. De acordo com o relatório, quase 30% dos evangélicos entrevistados admitiram que já compartilham notícias falsas, sendo que 8,1% fizeram “mesmo sabendo que era mentira, mas por concordarem com a abordagem”. 

“Os menos preocupados seriam pessoas de mais idade, menor escolaridade, menor renda e com menores habilidades no uso de dispositivos eletrônicos (capacidade de editar conteúdos de vídeo, áudio e imagens ou administrar perfis). Por outro lado, não é possível afirmar, a partir dos nossos dados, que pessoas com maior renda, maior escolaridade e com maior habilidade para o uso de dispositivos eletrônicos veiculem menos mensagens falsas”, explicou Alexandre. 

A confiança na pessoa que enviou a mensagem basta para que se encaminhe a notícia falsa a outras pessoas, diz o pesquisador. “Entre os evangélicos entrevistados, identificamos que, para um terço, a confiança no emissor é o fator que consideram para validar uma mensagem recebida como autêntica”

Com relação aos conteúdos, 61,9% dos evangélicos entrevistados disseram que notícias falsas com temas políticos são as mais recorrentes. Alexandre Brasil conta que quando o projeto de pesquisa foi apresentado, ainda “não se tinha percepção da escala e da centralidade que a disseminação de desinformação tomaria no Brasil durante o pleito eleitoral”, quando os eleitores evangélicos foram fundamentais para a vitória de Jair Bolsonaro. 

Wagner Tadeu Tonel/Agência Pública

A saúde foi outro tema indicado como recorrente. Contudo, os dados não se relacionam diretamente com o quadro de “desinfodemia”, ou seja, desinformação específica sobre a covid-19 e a crise de saúde pública, porque foram colhidos antes da pandemia. 

A Pública vem mostrando as conexões entre essas redes de desinformação, tanto com evangélicos conservadores quanto com outros segmentos aliados ao governo. As reportagens revelam que grupos de WhatsApp e de outras redes sociais continuam sendo utilizados para fazer circular conteúdos falsos, como propagandas antivacina e discursos negacionistas na pandemia. Também para reverberar ataques à democracia, a defesa do voto impresso e outras narrativas bolsonaristas. 

O combate à desinformação nas redes evangélicas também tem sido feito pelo Coletivo Bereia, pioneiro no Brasil em verificações de fakes news nesse segmento. A iniciativa de jornalistas cristãos faz parte da Rede Nacional de Combate à Desinformação. “O Coletivo Bereia foi criado em outubro de 2019 (ano da coleta de dados da pesquisa) a partir da demanda de ação que os resultados da pesquisa da UFRJ impôs. Consideramos o projeto uma prestação de serviço identificada como jornalismo colaborativo de checagem de conteúdo especializado em religião. Desde o primeiro mês de atuação os resultados de público e parcerias foram altamente positivos, o que atribuímos ao ineditismo e a extrema relevância desta atividade”, diz Magali Cunha, jornalista e  pesquisadora de Comunicação e Religiões, que coordena o coletivo. 

O pesquisador da UFRJ, Alexandre Brasil diz que não é possível fazer uma associação direta entre os resultados da pesquisa e as redes de desinformação bolsonaristas, mas acredita que há “um direcionamento e um investimento do presidente em relação ao público evangélico”, que representa uma base importante do seu governo e  “tem mobilizado tempo e manifestações concretas de atenção, tanto em seus discursos (de Bolsonaro), nas nomeações ou sinalizações ao eleitorado e suas lideranças como no caso da indicação ao STF (do advogado geral da União e pastor presbiteriano André Mendonça), ou ainda na presença de personalidades ligadas ao segmento evangélico nos ministérios”. 

Grupo de WhatsApp é o novo ir à igreja 

O relatório da UFRJ mostra ainda que a tríade da vida cristã digital é composta por aplicativos para leitura da Bíblia, WhatsApp e Google. São esses os principais aplicativos usados pelos evangélicos entrevistados. E, se a ida frequente à igreja é algo que caracteriza os evangélicos, o envolvimento com a comunidade de fé via grupos de WhatsApp passou a ser um diferencial desse segmento em relação aos outros segmentos religiosos e à média da população brasileira. “Esse achado é anterior à pandemia, mas certamente se ampliou nesse novo contexto. O ponto central que o relatório indica é que grupos com níveis de organização semelhantes, com forte vida comunitária e laços fortes de confiança também são mais suscetíveis às fake news”, diz Alexandre, que aponta para a necessidade de uma ação intencional de formação de usuários que atuem de forma crítica em relação às mídias digitais. “A busca de uma leitura crítica implica em ir além da capacidade de uso das ferramentas digitais e envolve uma perspectiva ampla sobre a realidade e as implicações prejudiciais que representam a disseminação das mentiras. Suas ameaças à saúde pública, à integridade das pessoas e mesmo à democracia representam uma realidade preocupante”, alerta.

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Foto de capa: Agência Pública/Reprodução

Deputada Bia Kicis classifica parlamentar da Alemanha em visita ao Brasil como conservadora

* Matéria atualizada em 02 de agosto de 2021 às 19:31 para acréscimo de informações.

Em postagem em mídias sociais em 22 de julho de 2021, a deputada federal Bia Kicis (PSL/DF), que integra a Bancada Católica no Congresso Nacional, divulgou reunião, em Brasília,com a deputada do Partido Alternativa para Alemanha Beatrix von Storch. Bia Kicis apresentou a alemã como integrante “do maior partido conservador daquele país” e completou em português e inglês: “Conservadores do mundo se unindo p/ defender valores cristãos e a família”.

Reprodução do Twitter

Depois da reação crítica nas mídias sociais que denuncia ser Beatrix von Storch, liderança da extrema direita alemã, de um partido de tendência neonazista, Bia Kicis publicou: “A deputada Beatrix von Storch é uma parlamentar conservadora,que denuncia política de imigração na Alemanha e ataques às liberdades individuais,como a liberdade de expressão.Nada desabona sua conduta,por tudo que pesquisei.É a mesma narrativa contra conservadores aqui e no mundo”.

Reprodução do Twitter

O Partido Alternativa para Alemanha

O Partido Alternativa para Alemanha, em alemão Alternative für Deutschland, sigla AfD, foi fundado em fevereiro de 2013. No site Deutschland.de, com informações oficiais sobre a República da Alemanha,  o AfD é classificado como um partido populista de direita, que defende a saída da Alemanha da União Europeia e a abolição da moeda Euro. Grande parcela do AfD rejeita políticas de imigração, assim como as medidas de proteção climática. De acordo com o AfD, a mudança climática não é causada pelo ser humano, contrariamente aos resultados de pesquisas científicas.

O Deustschland.de informa também que o AfD está sendo investigado pelo Departamento Federal de Proteção da Constituição como suspeito de ser extremista de direita. Lideranças do partido estão sendo monitoradas para registros de opiniões anticonstitucionais e extremistas de direita. O Departamento estima que pelo menos 20% dos membros do partido podem ser classificados neste grupo. O partido está representado em todos os parlamentos estaduais e no Parlamento Federal.

O Museu do Holocausto, inaugurado em Curitiba, em 2011, para a conservação da memória do genocídio judeu pela Alemanha no período do Nazismo, no século 20, publicou, em suas mídias sociais, reação ao encontro divulgado por Bia Kicis. O Museu do Holocausto informa que o Alternativa para a Alemanha foi fundado em 2013, com tendências racistas, sexistas, islamofóbicas, antissemitas, xenófobas e forte discurso anti-imigração.

Entre várias informações, o Museu do Holocausto mostra que a deputada que se encontrou com Bia Kicis, Beatrix von Storch, é “vice-líder do partido, famosa por tweets xenofóbicos e neta de Lutz Graf Schwerin von Krosigk, ministro nazista das Finanças e um dos poucos membros do gabinete do Terceiro Reich a servir continuamente desde a nomeação de Hitler como chanceler”. A postagem esclarece que “após os suicídios de Hitler e de Goebbels, von Krosigk (…) serviu como Ministro Principal e das Relações Exteriores durante um curto período, na pequena porção da Alemanha que estava encolhendo progressivamente devido ao rápido avanço das forças aliadas”.

Ao final da postagem, a organização judaico-brasileira afirma: “É evidente a preocupação e a inquietude que esta aproximação entre tal figura parlamentar brasileira e Beatrix von Storch representam para os esforços de construção de uma memória coletiva do Holocausto no Brasil e para nossa própria democracia”.

O perfil Judeus pela Democracia também publicou nota assinada por diversos coletivos a respeito do encontro, lamentando o alinhamento do governo atual com “movimentos supremacistas e nazistas”.

Extremismo na agenda bolsonarista

A parlamentar alemã também se reuniu com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP), da Bancada Evangélica no Congresso Nacional, como ele mesmo registrou em seus perfis de mídias sociais.

Reprodução do Twitter

O presidente Jair Bolsonaro também se encontrou, fora da agenda oficial, com a deputada Beatrix von Storch. O encontro ocorreu no Palácio do Planalto, em Brasília, mas não foi incluído na agenda. A reunião só se tornou pública quando a parlamentar alemã divulgou fotos com Bolsonaro na segunda, 26 de julho.

Na postagem, a deputada agradeceu a recepção de Bolsonaro e declarou-se impressionada pelo presidente compreender os problemas da Europa e os desafios políticos atuais. Ela defendeu “a união dos conservadores para combater a ideologia dos grupos de esquerda”.

Von Storch também se encontrou com o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, compromisso que estava na agenda pública do titular da pasta, e a pauta anunciada foi “energias renováveis e mudanças climáticas”. O Secretário Especial de Cultura, Mario Frias, foi outro membro do governo a receber a deputada alemã, por intermédio do deputado estadual Gil Diniz (sem partido-SP), cuja pauta divulgada foi “big techs”.

O reconhecido jornalista especializado em coberturas internacionais Jamil Chade publicou matéria sobre esta visita no jornal El País, em 23 de julho, na qual afirma que esta não foi a primeira demonstração de proximidade da base de Bolsonaro com grupos extremistas. Em 2019, o mesmo deputado Eduardo Bolsonaro esteve na Hungria em visita ao notório extremista de direita do partido Fidesz, primeiro-ministro Viktor Orbán. Chade explica que analistas identificam coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil (na luta contra perseguição sofrida por cristãos no mundo, a defesa da “família tradicional” e a necessidade de proteger a “soberania”). Há muitas semelhanças desta pauta em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán, que controla, na Hungria, a Corte Constitucional (equivalente ao STF), o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.

No ano passado, Eduardo Bolsonaro realizou uma live com o líder do partido de extrema-direita da Espanha, o Vox, Santiago Abascal. O AfD, o Vox e o Fidesz têm em comum, explica Chade: a busca por pautas conservadoras radicais, a xenofobia, a hostilização à esquerda e à imprensa.

Jamil Chade afirma ainda que “o Brasil virou terreno fértil para expandir suas ideias sob o governo Bolsonaro, que ainda traz um elemento extra: após o fim do Governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ofensiva ultraconservadora colocou no Brasil de Jair Bolsonaro todas as suas fichas, considerado o país com maior influência de consolidar a agenda ultraconservadora”.

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Bereia classifica a postagem da deputada Bia Kicis sobre o encontro com a parlamentar alemã do Partido Alternativa para Alemanha Beatrix von Storch como enganosa. A deputada brasileira apresenta a parlamentar como conservadora, atuando para unir “conservadores do mundo para defender valores cristãos e a família”. Como se pode verificar, o partido da parlamentar visitante está sendo investigado pelo Departamento de Proteção à Constituição da Alemanha sob a suspeita de atentar contra os valores constitucionais do país. Além disso é pública a sua plataforma nacionalista anti-imigrantes (xenófoba), contra a agenda ambiental, de hostilização de opositores.

Conservadorismo político, segundo o clássico Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, se refere a posições que visam à manutenção do sistema político existente e dos seus modos de funcionamento, apresentando-se como contraparte das forças inovadoras.

O que se identifica do partido alemão da visitante acolhida pelos deputados Bia Kicis e Eduardo Bolsonaro é outra postura política, o extremismo. O mesmo Dicionário a concebe como ultraconservadorismo ou extrema-direita, representada por movimentos independentes e partidos políticos com posicionamentos radicais, geralmente relacionados ao nacionalismo. A exaltação da nacionalidade acaba por levar à postura de superioridade em relação a outros grupos sociais, o que gera preconceito e xenofobia. Na história da Alemanha esta postura já foi base para o Nazismo.

Referências

Deutschland.de, https://www. /pt-br/topic/politica/a-afd-partidos-no-parlamento-federal-alemao. Acesso em 23 jul 2021

El País, https://brasil.elpais.com/internacional/2021-03-05/servico-secreto-alemao-coloca-partido-de-ultradireita-afd-sob-vigilancia-por-suspeita-de-extremismo.html Acesso em 23 jul 2021

Museu do Holocausto, https://www.museudoholocausto.org.br/o-museu/ Acesso em 23 jul 2021

Twitter, Museu do Holocausto, https://twitter.com/MuseuHolocausto/status/1418265064877043719 Acesso em 23 jul 2021

Twitter, Judeus Pela Democracia, https://twitter.com/jpdoficial1/status/1420166491434110978?s=20 Acesso em 28 jul 2021

G1, https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/26/fora-da-agenda-bolsonaro-se-reune-com-deputada-de-extrema-direita-da-alemanha.ghtml. Acesso em 26 jul 2021

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, https://www.gov.br/mcti/pt-br/acesso-a-informacao/agenda-de-autoridades/agenda-ministro/2021-07-22. Acesso em 27 jul 2021

Secretaria Especial da Cultura, https://www.gov.br/turismo/pt-br/acesso-a-informacao/agenda-de-autoridades/agenda-Secretario-Especial-de-Cultura-do-Ministerio-do-Turismo/2021-07-22. Acesso em 02 ago 2021.

Flickr, https://www.flickr.com/photos/sintonizemcti/albums/72157719648427115. Acesso em 27 julho 2021.

jul El País, https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-22/extrema-direita-mundial-estreita-lacos-com-governo-bolsonaro-que-segue-passos-de-orban-e-trump.html?mid=DM72815&bid=655301307 Acesso em 23 jul 2021

Dicionário de Política, https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2938561/mod_resource/content/1/BOBBIO. Dicion%C3%A1rio de pol%C3%ADtica..pdf     Acesso em 23 jul 2021

Deputados governistas de bancadas evangélica e católica enganam nas mídias sociais sobre votos pelo “Fundo Eleitoral”

Divulgaram que eram contra, mas votaram a favor e continuaram dizendo ser “contra”. Esta foi a atitude de deputados federais da base governista que, na quinta-feira (15/7), votaram pela aprovação do bilionário Fundo Eleitoral que é parte Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2022.

A Câmara aprovou a matéria por 278 votos a 145, com uma abstenção, e o Senado aprovou em seguida por 40 a 33. Por conta da covid-19, as votações ocorreram separadamente, no formato semipresencial. A inserção do substitutivo do relator no orçamento para financiar campanhas nas eleições de 2022, deputado Juscelino Filho (DEM-MA), aumenta o Fundo Eleitoral de R$ 1,8 bilhão para R$ 5,7 bilhões.

Uma parcela dos deputados e senadores de partidos de diferentes correntes ideológicas manifestaram discordância à proposta que destina tantos recursos em plena crise econômica e sanitária, para campanhas eleitorais. Quem era contra o Fundão votou “não” ao texto da LDO como estava. Seguindo o protocolo, o partido Novo apresentou um destaque, votado de forma simbólica após aprovação do texto-base,que tentava retirar o Fundão da LDO. A tentativa de retirar o Fundão da Lei foi rejeitada. O projeto agora segue para sanção do presidente Jair Bolsonaro.

O Fundo [Público] de Financiamento de Campanha foi criado após a proibição do financiamento privado, em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal, após avaliação de que as doações de grandes empresas privilegiam certas candidaturas e desequilibram o pleito eleitoral. Por isso, nas eleições de 2018, foi criado o fundo de R$ 2 bilhões com recursos públicos, distribuídos proporcionalmente aos partidos.

A base governista religiosa na votação

Chamou a atenção nas mídias sociais que deputados da base governista que haviam declarado que seriam contra o popularmente denominado “Fundão”, votaram a favor do texto final da LDO que o incluía. No caso do destaque, a votação foi feita de forma simbólica, que se dá pela maioria dos deputados presentes em Plenário no momento da votação. Não é exigida a manifestação individual de todos os presentes. O presidente convida a se manifestar apenas aqueles que forem contrários à proposição em análise. Os demais devem permanecer sentados para a verificação do contraste visual entre os favoráveis e os contrários à matéria. Se necessário ou solicitado por algum parlamentar, pode ser feita a contagem dos votos. Mas não há registro nominal dos votos.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP), da Bancada Evangélica, votou a favor da aprovação do texto final da LDO que incluía o Fundão. Após ser criticado nas mídias sociais, Eduardo Bolsonaro disse no Twitter que votou a favor do destaque apresentado pelo partido Novo que tentava evitar o aumento das verbas do financiamento eleitoral. “Votei sim à LDO (que engloba vários temas) e contra o fundão eleitoral (sim ao destaque)”, disse, e apresentou uma declaração de voto.

Declaração de voto (Foto: Eduardo Bolsonaro/Twitter)

Também cobrada nas mídias sociais pela incoerência, a deputada Bia Kicis (PSL/DF), da Bancada Católica, disse que apoiou o destaque do partido Novo. “Eu votei contra o aumento do Fundão e a favor da LDO. Tem gente querendo fazer confusão”, disse em vídeo publicado no Twitter. No entanto, ela não esclarece que não havia votação em separado, era um texto único com o Fundão incluído. Quem era contra o fundo bilionário para campanhas eleitorais teria que votar contra o texto da LDO.

Foto: Publicação de Bia Kicis/Twitter

Apenas com o destaque do partido Novo se poderia derrubar a inclusão do fundo bilionário no orçamento, mas Bia Kicis apenas fez referência a uma fala do líder do PSL, ao microfone do plenário, no momento dos destaques, de que o partido “orientou a votar contra o Fundão”. No entanto, o PSL votou a favor do texto integral com o Fundo Eleitoral incluído, e não atuou na votação simbólica do destaque, depois que o texto-base já havia sido aprovado. A postagem de Bia Kicis foi retuitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro.

O deputado da Bancada Católica Carlos Jordy (PSL-RJ) usou o mesmo discurso de Bia Kicis para refutar críticas de seguidores:

Foto: Publicação de Carlos Jordy/Twitter

Bia Kicis e Carlos Jordy ainda usaram o argumento do antipetismo e anti-esquerdas, que capta seguidores governistas, ao postar nas mídias sociais que quem votou contra a aprovação da LDO, como o PT e o PSOL, quer “inviabilizar o governo”.

Fonte: Bia Kicis/Twitter

Apesar de afirmar, no vídeo que produziu, que “tem gente querendo fazer confusão”, na postagem, Bia Kicis confundiu o público ao dizer que PT e PSOL orientaram a votação “Não”, contra a LDO, porque o “PT quer o pior para o governo”.

O seu colega de partido Carlos Jordy também distorceu a informação para usar de acusações aos partidos de oposição de serem contra as políticas do governo e construiu um discurso desprovido de sentido: “Se votar contra a LDO seria votar contra o fundão, por que a OPOSIÇÃO TODA votou CONTRA, sendo que serão os maiores beneficiados com o aumento do fundo eleitoral (PT será o maior)? Porque são contra as POLÍTICAS DO GOVERNO e não contra o fundo eleitoral, q foi inserido pela CMO”.

Nestes casos, os deputados católicos publicaram a imagem com a orientação dos partidos com corte que omite de seus seguidores que outros partidos também orientaram a votação pelo “Não”: PDT, PSB, PV, Rede, PcdoB, e os partidos que não são de oposição,e que dão apoio a várias pautas do governo, Podemos e Novo.Ainda houve o caso do Cidadania que teve orientação para o “Sim”, mas se dividiu na votação. Os números podem ser conferidos no registro de votação organizado abaixo:

O deputado da Bancada Evangélica Filipe Barros (PSL-PR) usou de discurso que foi mescla entre o que Eduardo Bolsonaro postou e retuitou as postagens de Carlos Jordy.

Foto: Filipe Barros/Twitter

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Bereia avalia que os deputados da Bancada Religiosa na Câmara Federal Eduardo Bolsonaro, Bia Kicis, Carlos Jordy e Filipe Barros divulgaram conteúdo enganoso para escaparem das críticas de seguidores por terem apoiado a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2022, com a inclusão de valores triplicados para o Fundo Eleitoral na casa de 6 bilhões de reais. Além de postarem mensagens que não correspondem à votação simbólica do destaque do partido Novo, que poderia ter retirado o Fundão do texto-base da LDO, os deputados emitiram conteúdo confuso sobre o papel dos partidos de oposição no processo, omitindo que não só este grupo votou contra a LDO, mas também partidos de apoio ao governo federal. As justificativas pelo “Não”, registradas oralmente pelos votantes, abordaram a incoerência e a falta de transparência da inserção da triplicação de valores para campanha eleitoral, diminuindo itens orçamentários prioritários como saúde (em meio a pandemia que já matou mais de 540 mil pessoas) e educação, mantendo-se desvalorização do salário-mínimo em R$ 1.147,00.

Sete parlamentares já acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo à Corte que anule as votações. Eles pretendem que qualquer aumento no fundo seja vetado até que a pandemia seja superada.

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Foto de Capa: Jefferson Rudy/Agência Senado

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Referências

Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-07/ldo-de-2022-preve-aumento-do-fundo-eleitoral-para-quase-r-6-bilhoes

Uol Economia, https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/07/15/veja-como-deputados-votaram-lei-de-diretrizes-orcamentarias-2022.htm

Poder 360, https://www.poder360.com.br/congresso/saiba-como-cada-partido-e-congressistas-votou-sobre-ldo-e-fundo-eleitoral/

Câmara Notícias, https://www.camara.leg.br/noticias/786049-comissao-aprova-ldo-2022-com-prioridade-para-vacinas-creches-habitacao-e-oncologia/

Veja, https://veja.abril.com.br/blog/maquiavel/deputados-recorrem-ao-stf-contra-fundo-de-r-57-bi/

Interferência de missionários ligados a igrejas evangélicas prejudica vacinação de indígenas

No dia 7 de junho foi divulgado pela imprensa que um ofício da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas foi encaminhado à Procuradoria-Geral da República. O ofício retrata que missionários da igreja Assembleia de Deus estariam propagando desinformação junto aos povos indígenas a respeito da vacinação contra a Covid-19.  Segundo a reportagem da Folha de S. Paulo,

Outra questão levantada é a dificuldade de vacinar a população indígena. Um ofício encaminhado à PGR (Procuradoria-Geral da República) revelou a influência negativa que missionários estavam exercendo sobre comunidades indígenas, infundindo temor por meio da propagação de fake news sobre a vacinação contra a Covid 19. A campanha de desinformação seria difundida via áudios e vídeos pelo celular, pelo sistema de radiofonia entre as aldeias e por cultos presenciais. No estado do Maranhão a maior influência seria da igreja Assembleia de Deus.

Trecho da reportagem da Folha de S. Paulo

O  Jornal do Almoço, da rede RBS, emitiu no dia 9 de fevereiro uma reportagem sobre a baixa movimentação dos indígenas em busca por vacinação, evidenciando a dificuldade com os povos da Reserva do Guarita, em Tenente Portela, e também na cidade de Redentora. Segundo o jornal, cerca de 1000 indígenas deveriam ser vacinados, mas nem metade compareceu. De acordo com a Secretária de Saúde, essa ausência ocorreu devido a influências religiosas  e líderes das  próprias comunidades indígenas, que fez com que muitos optassem por não tomarem a vacina.

Print da página da Globoplay

Bereia entrou em contato com Sandro Luckmann, coordenador da COMIN (Conselho de Missão entre Povos Indígenas, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana) que denota como verdadeira a interferência e a propagação de fake news sobre a eficácia e importância da vacina entre os povos indígenas, causada por missionários fundamentalistas. Segundo Luckmann, foi necessário intensificar as campanhas de vacinação para combater a desinformação. A Amazônia é um exemplo onde  há a forte presença dessa desinformação disseminada por missionários. É explícita a rejeição de algumas lideranças religiosas em relação à vacina. “Referente ao estado de Rondônia foram diversos relatos em que  presente esse tipo de situação, e também no sul do Amazonas onde foi necessário intensificar campanhas de informação, intensificar relatos em que a vacina é eficaz e ela ajuda no enfrentamento da covid”, disse Luckmann. 

Em Lábrea, sul do Amazonas, circulou entre o povo Jamamandi um vídeo do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, questionando os resultados do que chama de vacina “chinesa” e recomendando o uso de ivermeticina. O mesmo povo expulsou com arco e flecha profissionais de saúde que chegavam à aldeia. Líderes indígenas e também evangélicos confirmaram que as aldeias mais resistentes à vacina são as que têm presença de missionários.

“Há pastores orientando os parentes [como indígenas se chamam] para que não tomem a vacina, porque ‘não é de Deus”, afirmou Nara Baré, coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Ela relatou casos em Itacoatiara, região do rio Urubu, Manaus, Xingu (Mato Grosso) e Rondônia. Em Santa Catarina, os indígenas da Terra Laklãnõ chegaram a participar de cultos presenciais com o pastor tocando a testa das pessoas durante as orações.

O alinhamento do discurso entre evangélicos e governo

Outra característica em comum entre as aldeias resistentes à vacina e às medidas de saúde é uma referência à postura e discursos do Governo Federal, semelhante ao dos missionários, frente ao tema. Em Dourados (MS), indígenas justificavam não querer tomar a vacina diante da declaração do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em fazer o mesmo ou de que quem tomasse a vacina poderia “virar jacaré”.  

Em fevereiro o The Intercept Brasil apontou que uma universidade privada do Paraná, que passou a receber verba do ProUni após ser credenciada pelo Ministério da Educação na gestão Abraham Weintraub, formava missionários para atuar junto aos povos indígenas.

Em Faxinalzinho, outra cidade do Rio Grande do Sul, houve denúncia sobre o uso de cloroquina para tratamento de mulher indígena na TI Kandóia, conforme Carta de Repúdio do Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Rio Grande do Sul. A cloroquina não é recomendada pela Organização Mundial de Saúde por não ter eficácia comprovada cientificamente contra a COVID-19. E é defendida como tratamento precoce contra a COVID-19 por Bolsonaro.

A carta de repúdio foi distribuída às instituições, lideranças políticas e organizações  que trabalham com povos indígenas. Nela o Coordenador Kaingang do Estado do Rio Grande do Sul reivindica medidas cabíveis às autoridades responsáveis, para que essa população não vire cobaia do governo brasileiro.

Print da carta

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Bereia classifica as notícias como verdadeiras. De fato, ocorreram  interferências na vacinação de povos indígenas da região do Amazonas e Rondônia, causadas por influências religiosas, principalmente líderes negacionistas evangélicos, que por meio de vídeos no Whatsapp com disseminação de desinformação, intervinham de maneira incorreta  nas campanhas sanitárias. O conteúdo que circula nas aldeias apresenta ideias fraudulentas, enganosas e equivocadas diante das orientações oficiais de enfrentamento da pandemia.

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Foto de Capa: Anne Vilela EBC/Reprodução

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Referências

Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/documento-na-cpi-da-covid-aponta-troca-de-vacinas-por-ouro-em-terras-indigenas.shtml Acesso em: 21 jun 2021.

RBS, https://globoplay.globo.com/v/9252614/?s=0s Acesso em: 21 jun 2021.

BBC Brasil, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56433811 Acesso em: 21 jun 2021.

Repórter Brasil, https://reporterbrasil.org.br/2021/02/indigenas-recusam-vacinas-da-covid-a-flechadas-e-exigem-presenca-de-missionario/ Acesso em: 21 jun 2021.

O Globo, https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/missionarios-espalham-medo-da-vacina-contra-covid-19-em-aldeias-dizem-liderancas-indigenas-24881049 Acesso em: 21 jun 2021.

DW Brasil, https://www.dw.com/pt-br/pastores-afastam-ind%C3%ADgenas-da-vacina%C3%A7%C3%A3o-relatam-lideran%C3%A7as/a-56380498 Acesso em: 21 jun 2021.

Diário do Alto Vale, https://diarioav.com.br/indigenas-desrespeitam-recomendacoes/ Acesso em: 21 jun 2021.

YouTube Uol, https://www.youtube.com/watch?v=lBCXkVOEH-8 Acesso em: 23 jun 2021.

The Intercept Brasil, https://theintercept.com/2021/02/22/prouni-formacao-missionarios-evangelizar-indigenas-unimissional/  Acesso em: 22 jun 2021.

Organização Pan-Americana de Saúde, https://www.paho.org/pt/covid19#cloroquina-hidroxicloroquina Acesso em: 23 jun 2021.

YouTube Uol, https://www.youtube.com/watch?v=gSSvnV9ksUE

Rede Católica de Rádio é alvo de conteúdo enganoso

Circulam pelo WhatsApp mensagens anônimas que acusam a Rede Católica de Rádio (RCR) de inflar números de mortos por covid-19 para causar um caos no país e violar direitos constitucionais. As mensagens têm versões diferentes, uma delas tendo sido publicada por um suposto “engenheiro”. Ele diz que sabe fazer contas sobre a população atingida pela covid-19, e mostra números diferentes do que seriam os informados em notícias sobre a pandemia veiculadas pela RCR. 

Foto: Print da Mensagem que circula no WhatsApp

O engano promovido

A mensagem apresenta uma série de números, sendo alguns deles defasados e outros que são analisados de forma equivocada. O principal erro é considerar a taxa de mortalidade da covid-19 (número de mortes por covid-19 pelo total de habitantes do Brasil) e não a taxa de letalidade (o número de mortes por covid-19 em relação ao número total de contaminados pela doença). Quando observada apenas a taxa de mortalidade e não a de letalidade, os números numa população continental como a do Brasil ficam bastante baixos, não mensurando o impacto real da pandemia no país. Mais detalhes sobre o cálculo de taxa de mortalidade e taxa de letalidade podem ser encontrados no espaço dedicado ao coronavírus do blog da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (Sesau).

Bereia checou os números informados na mensagem, conforme indicações abaixo:

  1. “Temos 209.500.000  habitantes vivendo no Brasil” 

Este número está defasado e quem escreveu a mensagem não indica a fonte utilizada. Segundo dados estimativos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira era de 211,8 milhões de habitantes em 2020.

  1. “Até a presente data, 10 de abril de 2021, 352.693 pessoas morreram de covid-19.”

Aqui também há números defasados e não consta a fonte a que o autor ou autora recorreu. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, em 10 de abril de 2021 o Brasil tinha 351.334 mortos por covid-19.

3. “X= 352.693×100/209.500.000 X= 0,17%” e “Dos 209.500.000 habitantes no País apenas 13.493.317  pessoas pegaram o Covid-19, isso representa 6,4% da população.”

Ainda que sejam usados os números defasados, o cálculo feito para evidenciar a porcentagem de contaminação e mortes por coronavírus no Brasil é correto e correspondem, respectivamente a número próximo de 0,17% e 6,35% da população. 

Entretanto, o cálculo mais indicado nesta estatística é o de letalidade. A letalidade do coronavírus no Brasil chegou, em 10/04, a 2,61%. No fechamento desta matéria, de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins em 20/04, a taxa de letalidade do coronavírus no mundo era de 2,13% e o Brasil acumulava o segundo lugar no mundo em mortes absolutas e a 10ª posição no ranking de mortes por milhão de habitantes, superando inclusive Estados Unidos e Índia, que somados têm número de casos confirmados três vezes maiores que o Brasil. 

Considerando ainda os dados do monitor do Centro Europeu de Prevenção e Controle das Doenças, obtidos em 20/04, a média móvel de novas mortes nos últimos sete dias no Brasil é de 2.866 pessoas, mais que o dobro da Índia que vem em segundo lugar com 1.353 mortes diárias e quatro vezes maior que o número dos Estados Unidos que teve 714 mortes por dia nos últimos sete dias. É importante ressaltar que a Índia é um país com mais de 1,3 bilhão de habitantes e os Estados Unidos com mais de 330 milhões de pessoas.

Argumento em favor da economia é descontextualizado

O texto que circula, em pergunta retórica, menciona “justifica travar toda a economia, cercear os direitos fundamentais de ir e vir, do lazer, do trabalho, da educação e da dignidade humana?”. A indagação traz afirmações falsas.

De acordo com o Relatório Focus, de 19/04, do Banco Central, a expectativa de crescimento do PIB para 2021 é de 3,04%. Considerar que foram cerceados direitos fundamentais é relativizar ou minimizar o status de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, declarado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020, em virtude da pandemia do coronavírus. Devido ao vírus ter alta transmissibilidade pelo ar e a inexistência ainda de vacina para toda a população, medidas restritivas são fundamentais para conter o avanço do vírus e aumentar as mortes, garantindo assim que o Estado cumpra com o seu papel de garantir a saúde e a vida humana, conforme preconizado na Constituição Federal de 1988.

Na ocasião da declaração da OMS, a entidade emitiu uma declaração considerando que “em certas circunstâncias específicas, medidas que restringem o movimento de pessoas podem ser temporariamente úteis, como em ambientes com capacidades de resposta limitadas ou onde há alta intensidade de transmissão entre populações vulneráveis”. No Brasil as restrições só começaram a acontecer em Estados e municípios após a publicação da Lei nº 13.979/2020 que dispôs sobre as medidas de enfrentamento à pandemia.

O posicionamento da Rede Católica de Rádio

A Rede Católica de Rádio publicou, em 14 de abril de 2021, nota esclarecendo o assunto. 

NOTA DE ESCLARECIMENTO

Diante de publicação que circula em redes sociais e outras plataformas, citando a Rede Católica de Rádio, viemos a público esclarecer que:

1. É FALSO que o referido texto foi escrito, articulado ou assinado pela RCR e que, usando cálculos simplistas, busca descredibilizar e minimizar a gravidade e informações sobre números de mortos pela pandemia de Covid-19.
2. As informações prestadas pelos veículos da RCR sobre a pandemia, incluindo o Jornal Brasil Hoje, sobre a pandemia, são frutos de rigorosa apuração jornalística e baseadas nas fontes oficiais de dados.
3. A Rede Católica de Rádio está investigando origem deste conteúdo com o intuito de adotar as medidas cabíveis, inclusive judiciais.
4. Quaisquer questionamentos sobre decisões, dados ou outras informações oficiais sobre pandemia, por parte da Rede Católica de Rádio, são feitos por meio de sua produção jornalística e de suas afiliadas e, divulgadas através das respectivas emissoras, do JBH e de seus canais oficiais na internet.
5. A RCR defende a adoção das medidas de saúde e segurança preconizadas pelas autoridades competentes, como o uso de máscaras, do distanciamento social e do avanço da vacinação para o controle da pandemia de Covid-19.

A Rede Católica de Rádio é uma associação vinculada a SIGNIS Brasil e baseia suas ações nas orientações e Magistério da Igreja Católica Apostólica Romana. 

Pedimos a todos que receberam esse falso texto, que não o difundam e desconsiderem seu conteúdo.

Nós, cristãos e meios de comunicação de inspiração católica, temos compromisso com Jesus Cristo, “Caminho, Verdade e Vida” (Jo 14, 6)

São Paulo, 14 de abril de 2021.

Angela Morais
Presidente da Rede Católica de Rádio

Joelma Viana / Jorge Teles
Vice-presidentes

Nota da RCR

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Bereia conclui, portanto, que o conteúdo sobre a RCR que circula pelo Whatsapp é enganoso. Apesar de conter um raciocínio e cálculos corretos, os números são defasados, sem indicação de fonte e com desprezo ao formato adequado de cálculos para mensurar o impacto da pandemia. Os números também desconsideram a situação de outros países, como a Índia com uma população de 1,3 bilhão de pessoas e que tem letalidade e média móvel mais baixas que a do Brasil. Conteúdos como este promovem desinformação, desestimulam medidas de proteção e higienização frente ao coronavírus e, por conseguinte, minimizam o impacto da pandemia que já ceifou mais de 378 mil vidas de brasileiros.

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A apuração contou com o auxílio do matemático Marcio Medeiros para a interpretação e análise dos dados.

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Referências

Sesau-MG, https://coronavirus.saude.mg.gov.br/blog/81-taxa-de-mortalidade-da-covid-19. Acesso em: 20 abr. 2021.

Agência IBGE, https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28668-ibge-divulga-estimativa-da-populacao-dos-municipios-para-2020. Acesso em: 20 abr. 2021.

Ministério da Saúde, https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 20 abr. 2021.

UJH, https://coronavirus.jhu.edu/map.html. Acesso em: 20 abr. 2021.

Our World In Data, https://ourworldindata.org/covid-deaths. Acesso em: 20 abr. 2021.

Banco Central, https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20210416.pdf. Acesso em: 20 abr. 2021.

OPAS, https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6100:oms-declara-emergencia-de-saude-publica-de-importancia-internacional-em-relacao-a-novo-coronavirus&Itemid=812. Acesso em: 20 abr. 2021.

Conteúdo Jurídico, https://www.conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/55207/a-relativizao-dos-direitos-e-garantias-fundamentais-frente-s-medidas-de-conteno-da-covid-19. Acesso em: 20 abr. 2021.

World Health Organization, https://www.who.int/news/item/30-01-2020-statement-on-the-second-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-outbreak-of-novel-coronavirus-(2019-ncov). Acesso em: 20 abr. 2021.

Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm. Acesso em: 20 abr. 2021.

Argumento de ameaça comunista para justificar golpe militar em 1964 é falso

Como resposta ao chamado de militares no governo do Brasil para celebração dos 57 anos do golpe militar de 1964, que levou aos 21 anos de ditadura violenta e sangrenta no País, líderes religiosos e fiéis, apoiadores do governo federal, ocuparam espaços digitais religiosos neste 31 de março, exaltando a ação golpista. Um dos argumentos mais utilizados para se defender e exaltar o golpe que derrubou o Estado democrático, é a de que os militares salvaram o Brasil do comunismo que seria implantado. Há ainda outras justificativas como fim da corrupção, ajuste positivo da economia e redução da violência. Foram publicadas diversas mensagens como esta:

Fonte: Facebook/Reprodução

Bereia reproduz aqui conteúdo publicado pelo projeto de verificação de notícias UOL Confere, construído a partir da pergunta: “o golpe militar de 1964 foi dado para evitar que o Brasil escapasse das garras do comunismo?” e o material “10 mentiras sobre a ditadura militar no Brasil” produzido pela Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Nunca existiu ameaça comunista no Brasil

Jornalistas e especialistas mostram que esta justificativa usada até hoje esconde documentos do próprio Exército que mostram que a “ameaça comunista” no país não era real. Diz o texto do UOL Confere:

O mundo vivia em meio ao contexto da Guerra Fria, cenário de polarização internacional que teve, entre outros elementos, embates sobre capitalismo, socialismo e comunismo. A agenda reformista do então presidente João Goulart levou alas conservadoras a temerem uma proximidade com regimes comunistas implementados em outros países, como Cuba. Mas um informe do SNI (Serviço Nacional de Informações) já citava o desgaste do comunismo na Europa Ocidental. Os militares também analisaram que não havia clima para a instalação do comunismo por conta das contradições “por demais violentas” do Brasil e que o povo não aceitaria “pacificamente as influências externas”.

A ditadura durou 21 anos no Brasil. Em 1968 foi decretado o AI-5 (Ato Institucional nº5), que endureceu a repressão, cassou mandatos, fechou o Congresso, e ampliou perseguições, torturas e mortes de opositores. A Ditadura usou imprensa e ameaças à “ordem” e à “moral” para impor o AI-5.

Historiador e professor da UFRJ, Carlos Fico disse à BBC, em 2019, que tentativas de implantar o comunismo no Brasil partiram de movimento tímidos e sem apoio da maioria da população. Ele também avaliou que mesmo as ações armadas de movimentos de esquerda não foram suficientes para ameaçar os militares.

10 mentiras sobre a ditadura

1) Não havia corrupção durante a ditadura

Apesar do combate à corrupção ter sido uma das bandeiras defendidas pelos militares ao darem o golpe de 1964, não faltaram superfaturamento, desvio de verbas, desvio de função, abuso de autoridade, tráfico de influências, entre outras ilicitudes ao longo dos anos de chumbo.

A condição autoritária do regime militar formava as condições ideias para que a corrupção acontecesse. Sem nenhum tipo de conselhos de fiscalização, com o Congresso Nacional dissolvido, as contas públicas não eram sequer analisadas. Além disso, os escândalos de corrupção eram abafados por conta da censura.

Hoje em dia, documentos comprovam que os militares mantinham relações com o contrabando, negociavam por meio de acordos milionários as nomeações de governadores dos estados e ministros, além de receberem propinas milionárias por meio de empreiteiras. Também cometiam irregularidades imobiliárias e outras ilegalidades.

2) Só morreram vagabundos e “terroristas”

Os movimentos sociais tiveram enorme protagonismo no enfrentamento à repressão dos militares durante a ditadura. Estudantes, professores, sindicalistas, indígenas e membros de organizações sociais que se mobilizavam contra as arbitrariedades do regime eram considerados subversivos e consequentemente, eram perseguidos.

Movimentos sociais e de organização da classe trabalhadora se tornaram ilegais e passaram a acontecer na clandestinidade. A União Nacional dos Estudantes teve líderes e membros desaparecidos. Outras formas de resistência, como a luta armada, obrigaram muitos militantes a sobrevivência na clandestinidade.

Mas o mais importante é apontar que os militantes torturados e mortos eram sujeitos, trabalhadores, estudantes, que tinham uma vida profissional, acadêmica e família. Eles acreditavam em uma causa e escolheram atuar na luta social em prol dessa causa e foram assassinados por isso.

Mesmo assim, não foram apenas os membros de grupos oposicionistas que foram atingidos. Familiares, vizinhos, trabalhadores comuns e camponeses também foram perseguidos e assassinados pelos militares. Alguns dos casos mais chocantes envolvem crianças filhas de presos políticos, que foram sequestradas, presas e torturadas junto aos pais por serem consideradas “subversivas” e “perigosas à Segurança Nacional”.

3) A tortura foi excesso de alguns

Quando militantes eram capturados pelos militares, passavam por sessões de tortura com requintes de crueldade para que revelassem informações. Há anos historiadores refutam a tese de que a tortura foi exclusividade de militares “linha dura” e, recentemente, um documento secreto de 1974, liberado pelo Departamento de Estado dos EUA confirma a teoria de que os presidentes não apenas sabiam, como tomavam para si a responsabilidade sobre as execuções e torturas.

No documento, o ex-presidente Ernesto Geisel, visto como moderado por alguns, aprova uma política de “execuções sumárias” de adversários da ditadura militar. O ex-presidente orienta o então chefe do Serviço Nacional de Informações, João Batista Figueiredo, a autorizar pessoalmente os assassinatos.

Principalmente depois do AI-5, em 1968, a tortura foi uma prática sistemática nas instalações do Estado que exigia recursos, equipamentos e pessoal qualificado. Até médicos participavam das sessões de tortura para reduzir os danos físicos perceptíveis e avaliar a resistência dos presos para garantir que pudessem continuar sendo violentados.

Uma apostila do Centro de Informações do Exército intitulada Interrogatório reconhecia a necessidade de “métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”. E para transmitir as técnicas de como promover as sessões de tortura, os militares até organizaram aulas práticas, nas quais presos políticos sofreram as violências enquanto uma plateia de sargentos e oficiais aprendiam as técnicas.

Documento importante sobre o assunto foi o projeto “Brasil: Nunca Mais”, desenvolvido clandestinamente entre os anos de 1979 e 1985. Mais de 30 brasileiros liderados por Dom Evaristo Arns e outros religiosos sistematizaram informações de processos do Supremo Tribunal Militar que revelaram a repressão política no Brasil encoberta até o momento. O relatório completo e o livro publicado pela Editora Vozes denunciam perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas praticadas em delegacias, unidades militares e locais clandestinos mantidos pelo Estado. Os documentos foram fundamentais na identificação e denúncia de torturadores.

4) Naquela época tinha saúde e educação

Para tentar diminuir os índices de analfabetismo da população brasileira, que nas décadas anteriores à ditadura incluía quase metade da população brasileira maior de 15 anos, o regime militar instituiu o Movimento Brasileiro para Alfabetização. A metodologia do Mobral foi uma tentativa de frear o método do educador Paulo Freire, que ganhava notoriedade e era um sucesso reconhecido e aplicado em todo o mundo.

Já para impor a ideologia do regime, foi implementada a Doutrina de Segurança Nacional nas escolas do país que, entre outras coisas, substituía as disciplinas de Filosofia e Sociologia por “Educação, Moral e Cívica”.

No entanto, o regime militar parecia interessado apenas em controlar o conteúdo que era aprendido nas escolas. A Constituição de 1967 retirou a obrigatoriedade constitucional de um valor mínimo em gastos sociais, o que acarretou, entre 1965 e 1975, uma queda de 6,2% do Orçamento Geral da União em educação e uma redução de 3,31% do orçamento em saúde entre 1966 e 1974. A precariedade do sistema educacional de antes do período militar se manteve e foi ampliada.

Em relação à saúde pública, não existiam garantias constitucionais da saúde como um direito social. Não existia o Sistema Único de Saúde (SUS) e também não existiam planos de saúde particulares. Durante os 21 anos de ditadura militar no Brasil, imperou uma política de Estado de incentivo à privatização da área, ou seja, a saúde era tratada pelos militares como um negócio (que por sua vez, era altamente lucrativo). Só tinha acesso à assistência médica quem tinha carteira assinada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que era realizado, em grande parte, por clínicas privadas. Quem não estivesse incluído neste grupo privilegiado, era tratado como indigente.

5) A ditadura foi boa para a economia

Mais um argumento comum dos defensores da ditadura é a conquista do “milagre econômico” ocorrido na época, principalmente entre os anos de 1968 e 1973. De fato, os números apontam um crescimento exponencial do Produto Interno Bruto (PIB). Mas pouco se aponta que esses números beneficiaram os empresários às custas dos salários dos trabalhadores e de um alto endividamento externo.

Para que o “milagre” funcionasse, os militares implementaram medidas que continham o salário dos trabalhadores, mudando a fórmula que previa o reajuste salarial por meio da inflação. “É preciso crescer o bolo para depois distribuí-lo”, é o que afirmavam o ministro da Fazenda dos militares, Antônio Delfim Neto. Para que não houvesse oposição popular às medidas, foram implementadas leis proibindo greves e sindicatos e movimentos sociais eram reprimidos sistematicamente.

Os ganhos reais do crescimento econômico foram distribuídos de forma desigual, aumentando a concentração de renda e a desigualdade social a níveis nunca vistos antes.

6) Não tinha violência urbana

É sempre importante lembrar que não existia liberdade de imprensa durante o período militar, já que a censura estava estabelecida dentro da burocracia do regime. Ou seja, o que não estava de acordo com os interesses do governo militar, simplesmente não era noticiado.

No que tange a violência urbana, o regime criou a imagem pública de que o país vivia um período de paz quando na realidade, uma escalada do aumento da violência assolava os principalmente centros urbanos. Os dados sobre o número de homicídios no período apontam um aumento exponencial. Em São Paulo, por exemplo, em 1968, a cidade registrou 10,4 mortos por 100 mil habitantes, o que é considerado nível epidêmico pela Organização Mundial da Saúde.

Em resposta ao aumento da violência urbana, agrupamentos policiais começaram a formar grupos de extermínio, criados explicitamente com o objetivo de assassinar bandidos comuns. Foram inúmeras as estratégias de ação desses grupos, uma delas era retirar presos comuns das celas e executá-los em estradas vazias.

Esse tipo de prática aumentou a criminalidade nas periferias, já que os homicídios iniciam uma cadeia de vingança e também porque o assassinato se mostrava como um meio possível de resolver disputas simples ou reagir a ameaças.

7) Antes da ditadura, o Brasil estava à beira do comunismo

No Brasil do início da década de 1960, o presidente João Goulart, defendia uma proposta de governo com uma série de reformas estruturais no Brasil: as Reformas de Base. As medidas se estenderiam às áreas educacional, fiscais, agrárias, entre outras.

A elite agrária e o empresariado que apoiaram o golpe, viam as medidas de Jango como ameaças e criaram conspirações sobre a possibilidade de um golpe socialista do presidente e sua suposta associação à URSS. As relações de Jango com as questões trabalhistas e a proximidade que ele havia estabelecido com ideias sobre justiça social fez com que as alas mais conservadoras das Forças Armadas pedissem a cabeça do presidente.

Jango não era comunista, nem socialista. O presidente democraticamente eleito já havia sido ministro de Estado de Juscelino Kubitschek e de Getúlio Vargas, portanto se aproximava de um espectro mais populista do campo político.

Em depoimento a um historiador americano no ano de 1967, quando o ex-presidente se encontrava exilado no Uruguai, Jango relatou acreditar que houve um “envenenamento” de sua imagem para a opinião pública. “Justiça social não é algo marxista ou comunista”, afirmou o ex-presidente, que acreditava ainda que seu maior crime foi tentar combater a ignorância. A entrevista só veio a público 47 anos depois, em 2014, quando foi publicada pelo jornal Folha de São Paulo.

8) A ditadura foi um governo só de militares

Conhecida principalmente pelo governo de militares, a ditadura que vigorou no Brasil passou a ser chamada por inúmeros historiadores de civil-militar, como forma de apontar a participação direta de empresários, imprensa e outros setores da sociedade civil no regime. Especialmente os empresários tiveram um papel decisivo no regime, contribuindo com dinheiro vivo, financiando propagandas, delatando e perseguindo trabalhadores envolvidos com movimentações sindicais, permitindo que militares se infiltrassem nas fábricas e até utilizando as dependências das fábricas como local para torturas.

Lúcio Bellentani era militante do Partido Comunista Brasileiro e trabalhou na Volkswagen entre os anos de 1964 e 1972. Ele contou, na Comissão da Verdade, que começou a ser torturado dentro das dependências da fábrica, no dia 28 de abril de 1972. Com a abertura de importantes arquivos da ditadura, ficou evidente que a relação entre a empresa e o regime não era pontual, mas sim sistemática: foram encontrados mais 400 documentos assinados por responsáveis da empresa.

Um caso muito conhecido de relação direta entre empresários e o regime militar é o de Henning Boilesen, executivo do grupo Ultra. O sádico dinamarquês que chegou a ser presidente da Ultragaz não apenas levantava recursos para as operações de repressão, como participava pessoalmente das sessões de tortura. Ele foi o responsável por trazer, dos Estados Unidos, um aparelho de tortura por eletrochoque que depois se popularizou entre os militares.

9) Todos os militares apoiaram o regime

Apesar da imagem aparentemente coesa, os militares não formavam um grupo homogêneo e bem coordenado. Na verdade, as Forças Armadas estavam divididas. De um lado, haviam oficiais fiéis a Jango nos altos postos do Exército e no também no baixo escalão. Em contrapartida, o lado conservador também era composto por dois grupos: um mais legalista, que apostava em uma intervenção cirúrgica para retirar da política “corruptos” e “subversivos”, e outro mais “linha dura”, mais preocupado com a “revolução” anticomunista.

Com o acirramento das disputas políticas em 1964, vários cenários golpistas se esboçaram, e com o golpe praticado pelo lado conservador, houve resistência em São Paulo, no Rio de Janeiro e também no Rio Grande do Sul. Em consequência, os militares resistentes também foram perseguidos. Estima-se que cerca 7500 membros das Forças Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações por se oporem à ditadura.

No entanto, o entendimento de que também houve perseguição dentro das Forças Armadas não valida a tese de que alguns presidentes militares eram mais brandos do que outros. Durante o governo dos quatro presidentes militares, opositores foram perseguidos, houve censura, direitos políticos foram cassados, dentre outras violações de direitos humanos.

10) A Igreja Católica apoiava o regime

A Igreja Católica teve um papel fundamental de apoio para consolidação do golpe militar no Brasil. A moralidade e a ordem conservadoras defendidas pelos militares se alinhavam à movimentos religiosos como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, organizada e financiada por setores da elite empresarial-militar que acreditavam na “ameaça do comunismo”.

No entanto, apesar de profundamente hierárquica, a Igreja Católica também tem fissuras internas. Durante o período militar, um movimento importante dentro da igreja atuou diretamente contra o regime. Orientados pela Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reivindicavam melhorias nas condições de vida da população. O movimento combatido pela própria Igreja por ser porta de entrada para ideias subversivas.

Além disso, já na década de 1970, clérigos mais progressistas, como D. Hélder Câmara, denunciavam internacionalmente as torturas e violações de direitos humanos cometidas pela Ditadura no Brasil. Quando as repressões da ditadura começaram a atingir a cúpula da Igreja, os clérigos se reuniram e escreveram uma carta ao presidente Médici em protesto. Posteriormente, a Igreja também criou uma Comissão de Justiça e Paz, o projeto Brasil: Nunca Mais, que coletou processos judiciais movidos contra presos políticos.

A busca da verdade

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei federal em 2012, 424 pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura militar. A Lei da Anistia (1985) perdoou crimes políticos cometidos por agentes do Estado no regime e é duramente criticada pela ONU e por outros organismos internacionais. Entre os mortos e desaparecidos citados na CNV estão sete cristãos.

Em relação às violações de direitos sofridas por pessoas cristãs (capítulo 4 do volume II do Relatório Final da CNV), pelo menos 352 cristãs e cristãos foram atingidos.

273 pessoas católicas foram presas, entre bispos, padres, religiosos, agentes de pastoral, pessoas leigas da igreja. Entre católicos, 18 foram assassinados ou se tornaram desaparecidos pelo regime (quatro padres, três religiosos e religiosas); 17 foram banidos, expulsos ou exilados, todos depois de prisão e tortura. Um bispo foi sequestrado e humilhado (deixado nu na rua com o corpo pintado) por agentes do Estado, D. Adriano Hipólito, da Diocese de Nova Iguaçu. A Catedral de Nova Iguaçu teve altar explodido.

22 evangélicos foram presos, dois pastores – 13 eram metodistas, sete presbiterianos, uma luterana e um assembleiano; sete foram assassinados ou desaparecidos (quatro metodistas e três presbiterianos), 14 foram banidos, expulsos ou exilados a maioria depois de prisão e tortura.

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O Coletivo Bereia classifica como falsa toda e qualquer publicação que apresente argumentos de exaltação de uma ditadura. Episódios como este na vida de um país devem ser lembrados como processo educativo para que sejam superados e não mais se repitam.

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Foto de capa: Arquivo Público do Estado de São Paulo/Reprodução

Ministro do Turismo compartilha imagem enganosa para criticar o Carnaval

No sábado de Carnaval, 13 de fevereiro de 2021, o recém-empossado Ministro do Turismo Gilson Machado Neto publicou no Twitter uma montagem de fotos relacionando o adiamento dos desfiles das escolas de samba de 2021 à cena da apresentação de um samba-enredo na avenida que mostra Jesus Cristo sendo arrastado pelo diabo.

A montagem tem duas imagens: o trecho da apresentação em que o diabo arrasta Jesus pelo chão, com a legenda “2020”; e outra do Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, vazio, com a legenda “2021” e a frase “Dá para entender quem manda? Ou tem que desenhar?”. Com a postagem o ministro de Estado, relaciona o adiamento dos desfiles de 2021, causado pela pandemia de covid-19, a um “castigo divino” por conta do “desrespeito a Jesus” que teria sido praticado no ano anterior.

Postagem enganosa do Ministro do Turismo (Fonte: Twitter/Reprodução)

Até a data da produção desta matéria a postagem havia sido curtida por quase 50 mil pessoas e reproduzida por quase 20 mil.

Data mudada

Para divulgar sua avaliação sobre o adiamento dos desfiles de Carnaval, Gilson Machado mudou a data de uma das fotos. A primeira imagem a que atribui a suposto desrespeito em 2020, é da apresentação da comissão de frente da Escola de Samba Gaviões em 2019, que reeditou o enredo de 1994 “A saliva do santo e o veneno da serpente” que conta a história, lendas, benefícios e malefícios do tabaco. Na apresentação a Comissão de Frente da escola encenou uma disputa entre Jesus e as forças do mal, incluindo o diabo. Após a repercussão com críticas de religiosos, inclusive da Banda Evangélica no Congresso Nacional que acusou a Gaviões da Fiel de desrespeito, a escola publicou fotos em suas mídias sociais de momentos do desfile em que Jesus sai vitorioso na disputa com os dizeres “Jesus venceu o mal”.

A Comissão de Frente da Gaviões encenava a história de Santo Antão, que, segundo a tradição católica, deparou-se com uma serpente debilitada durante peregrinação pelo deserto. Apesar de ter salvo a cobra, Antão acabou picado por ela. A narrativa afirma que o peregrino arrancou o veneno com a boca e cuspiu no chão, e ali nasceu um ramo do que veio a ser o tabaco. A comissão da escola narrava essa crença: Santo Antão foi representado por uma escultura que cuspia fumaça quando se livrava do veneno. A mesma apresentação mostrava um anjo e Jesus derrotando o diabo em uma batalha.

Em entrevista à revista Veja, em março de 2019, o coreógrafo da escola Edgar Júnior explicou:

“O personagem do diabo está ali para testar a fé do Santo Antão. O enredo mostra que o diabo perde a batalha para os anjos do bem diversas vezes. Depois disso, ele coordena com as forças do mal e batalha com Jesus, que realmente sofre. Mas, no final, os anjos protegem Jesus e ele aparece forte, abençoa a plateia, os anjos do bem e do mal e até o diabo, porque ele é uma pessoa de luz. Acaba a guerra e ele fala com Santo Antão como a dizer: ‘Não perca a sua fé, sempre vão testá-la, mas estou aqui contigo’. O bem vence no final”.

Edgar Júnior em entrevista à Revista Veja em março de 2019

Em 2019, a escola campeã de São Paulo foi a Mancha Verde, com desfile sobre a princesa africana Aqualtune, avó de Zumbi dos Palmares, e discutiu escravidão, direitos de negros e mulheres e intolerância religiosa na avenida. Em 2020, aconteceram desfiles em várias cidades do Brasil, normalmente, inclusive em São Paulo. No Anhembi, a escola Águia de Ouro, foi a campeã, com enredo sobre a evolução do conhecimento humano, da Idade da Pedra à esperança nos robôs. A Gaviões da Fiel desfilou com um enredo sobre o amor.

Portanto, o Ministro do Turismo publicou um trecho da encenação de 2019 em que o diabo parecia vencer, com a legenda “2020”, levando seguidores à noção enganosa de que foi o ocorrido no ano anterior que teria provocado a ira de Deus com o envio da pandemia de covid-19 sobre o mundo. Na compreensão de Gilson Machado, por causa da encenação na pista, Deus teria agido imediatamente com o coronavírus para fechar sambódromos, contaminando 109 milhões de pessoas e matando quase 2,5 milhões em 192 países/regiões (dados até o fechamento desta matéria).

O não-dito que fala

Confrontado por quem viu a postagem enganosa, Gilson Machado Neto respondeu: “Não sou contra o carnaval, sou músico. Sou contra tripudiar e blasfemar o nosso Pai!”, disse o ministro de fé católica romana, nomeado durante as negociações do governo com o chamado Centrão, em troca de apoio na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. Ele era presidente da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur) e passa a ocupar a pasta responsável por promover o turismo do Brasil, que tem o Carnaval como evento historicamente atrativo.

A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estima que os setores de transportes, hospedagem e alimentação serão os mais afetados com o cancelamento do carnaval no Brasil, em 2021, por conta da pandemia do novo coronavírus. No ano passado, a data movimentou aproximadamente R$ 8 bilhões e gerou cerca de 25 mil empregos. Excepcionalmente neste ano, a CNC não fez projeções concretas sobre o carnaval, sobretudo por conta das diferentes decisões de estados e municípios em relação ao feriado.

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O Coletivo Bereia classifica como enganosa a postagem do Ministro do Turismo Gilson Machado Neto, que fez uso de montagem de fotos com alteração de data, para reforçar a crença em um Deus violento e vingativo, que teria se sentido ofendido com um desfile de carnaval no Brasil, e por isso contaminou dezenas de milhões de pessoas com vírus, matou outros milhões em todo o planeta, e tornou mais pobres pessoas que dependem do turismo para sobreviver.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Referências

Globoplay, https://globoplay.globo.com/v/7426808/. Acesso em: 16 fev. 2021.

Folha de S. Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/bancada-evangelica-acusa-gavioes-da-fiel-de-intolerancia-religiosa-em-desfile.shtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

Veja, https://veja.abril.com.br/cultura/o-bem-vence-no-final-diz-coreografo-da-gavioes-da-fiel-sobre-desfile/. Acesso em: 16 fev. 2021.

G1, https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/carnaval/2019/noticia/2019/03/05/mancha-verde-e-a-campea-do-carnaval-de-sp.ghtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

G1, https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/carnaval/2020/noticia/2020/02/25/aguia-de-ouro-e-a-campea-do-carnaval-de-sp-pela-1a-vez.ghtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

Opera Mundi, https://operamundi.uol.com.br/coronavirus/63574/mapa-da-covid-19-siga-em-tempo-real-o-numero-de-casos-e-mortes-por-covid-19-no-mundo. Acesso em: 16 fev. 2021.

G1, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/12/10/gilson-machado-e-nomeado-ministro-do-turismo.ghtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

CNC, http://cnc.org.br/editorias/economia/noticias/cnc-setor-de-hospedagem-e-alimentacao-sera-um-dos-mais-afetados-com-o. Acesso em: 16 fev. 2021.

Os bichos-papões que assombraram os eleitores religiosos em 2020

* Publicado originalmente no site da revista CartaCapital.

Na semana passada, escrevi nesta coluna sobre as ações diabólicas de disseminação de mentiras agressivas para destruir a imagem de concorrentes na campanha eleitoral. .

O que assistimos no segundo turno das eleições, especialmente nas capitais Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza, São Paulo, e em cidades de regiões metropolitanas, como São Gonçalo e Contagem, se somará às campanhas eleitorais mais sujas da história.

Nos materiais digitais e impressos amplamente divulgados em grupos religiosos que acompanho em pesquisa, autores anônimos, à exceção do Rio, que tinha registrada em panfleto a coligação do prefeito Marcelo Crivella, que tentava a reeleição, acusavam candidatos que se destacavam em pesquisas de intenção de voto de ameaçarem a vida das famílias e de igrejas. Recorreram a bichos-papões antigos, o comunismo e perseguição às igrejas, e novos, a “ideologia de gênero”.

Bicho-papão, homem do saco, loura do banheiro e similares, são seres imaginários da mitologia brasileira. São a representação do medo, que toma a forma de um bicho monstruoso, um homem ou uma mulher má ou aquilo de que crianças mais têm medo. Estão sempre por aí para pegar “crianças desobedientes”.

É exatamente o uso do medo e a criação de pânico moral, uma das estratégias de quem cria conteúdo falso e desinformação para assustar e controlar ações de eleitores e favorecer determinado candidato, partido ou grupo político em processos eleitorais.

Sobre a o bicho-papão da “ideologia de gênero”, escrevi no artigo da semana passada. É uma invenção católica dos anos 2000, abraçada por evangélicos, a partir da rejeição à categoria científica “gênero”, que questiona os papéis sociais binários estabelecidos a homens e mulheres e negam orientações sexuais diversas. Como já estava um pouco desgastado, ressurgiu agora como ensino de pedofilia e erotização das crianças em escolas públicas, em um nítido crime de calúnia eleitoreira.

Em unidade estratégica contra os avanços na justiça de gênero a mulheres e LGBTI+, católicos e evangélicos se juntaram a grupos políticos obscurantistas que criam obstáculos a estas pautas sociais e espalham o medo. Neste discurso, o bicho-papão destruiria as famílias. Ou seria, a atuação tirar para mulheres da prisão da casa, da submissão e da dependência de maridos, pais, irmãos, tios, para deixarem de ser apenas cozinheiras, faxineiras e geradoras de filhos? O “monstro” ameaçaria também crianças com erotização e pedofilia nas escolas. Ou seria, a promoção da educação sexual nas escolas para ensiná-las a se libertar do assédio e da violência que muitas vezes sofrem dentro de casa? O “bicho-papão da ideologia de gênero” é, então, personificado nos movimentos de mulheres e LGBTI+ e nos partidos e políticos de esquerda, que defendem a justiça e a paz a estas parcelas da população em seus discursos e planos de governo.

O imaginário do “perigo comunista”, da “ameaça vermelha”, está presente historicamente na cultura brasileira e foi reavivado nos discursos de grupos de extrema direita desde as manifestações de 2013. Estes grupos evocaram para si, nestes anos, em especial nos atos pró-impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, do PT, em 2015 e 2016, a simbologia das cores verde e amarela da identidade brasileira contra o vermelho da esquerda progressista. Os grupos religiosos conservadores, católicos e evangélicos, se identificaram com tais discursos, o que fica evidente em postagens de lideranças destes grupos religiosos em mídias sociais.

O anticomunismo é um sentimento cultivado desde os anos 1930, reforçado nas mídias, e amplificado no período que levou o apoio religioso ao golpe militar de 1964. Com a legalização dos partidos comunistas na redemocratização, em 1985 (Partido Comunista Brasileiro, criado em 1922 e tornado ilegal em 1946, e Partido Comunista do Brasil, criado por dissidência do primeiro, em 1962), grupos de católicos e evangélicos passaram a manifestar novo temor com a ameaça comunista e uma consequente perseguição religiosa.

A campanha para a formação da primeira bancada evangélica no Congresso Constituinte de 1987, se apresentava como freio para esta ameaça. A campanha para a presidência da República de 1989, a primeira pós-ditadura, apresentou o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva como o demônio do comunismo encarnado, que fecharia igrejas e tomaria propriedades das pessoas.

Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) por 14 anos (2003-2016) mostraram, com alianças com conservadores e neoliberais, e tempos de prosperidade para o país, com muitos lucros do setor privado, que o bicho-papão do comunismo era mesmo só imaginação.

Foi o revigoramento de militâncias de direita, a partir de 2013, contra os governos do PT, que reavivaram o “monstro” do comunismo. Esta conjuntura conspiratória levou ao impeachment de Dilma Rousseff, apresentado, entre outras coisas, como a salvação do Brasil de uma ditadura comunista que estaria em processo de consolidação. E muita gente acreditou!

Nos discursos das manifestações de rua e de perfis em mídias sociais, uma nova ideia de anticomunismo se materializou: curiosamente, comunistas se tornaram classificação de quem propaga justiça econômica (defesa de programas de distribuição de renda, por exemplo), dos que advogam os direitos humanos, em particular os das minorias, e quem reivindica e atua na superação de violência racial, cultural, de gênero, de classe. As esquerdas passam a ser identificadas como as defensoras destas “políticas comunistas” e seus militantes classificados como anomalias sociais: “esquerdopatas”. Emergiu uma nova face do anticomunismo: o antipetismo e todos os partidos de esquerda do país colocados no mesmo pacote imaginário.

Este bicho-papão foi base da campanha eleitoral de 2018, junto com o da “ideologia de gênero”, e em 2020 foi acionado novamente para impor medo e controlar eleitores que tendiam a dar votos a candidatos de esquerda no segundo turno das eleições municipais.

É certo que o uso de bichos-papões na campanha, especialmente visando o público religioso, não é a única razão da derrota das candidaturas de esquerda em Porto Alegre, São Paulo, Recife e São Gonçalo, como alguns querem fazer crer. Em cidades como Fortaleza, Juiz de Fora e Contagem, por exemplo, os resultados foram favoráveis a candidatos atacados. Há muitos outros fatores a serem considerados, que não são objeto desta reflexão.

No entanto, há que se levar em conta esta estratégia, cada vez mais potencializada, de candidatos e apoiadores, em mídias sociais e altos recursos financeiros para produção impressa. É vergonhoso e indigno que este tipo de abordagem com uso de mentiras e imposição de medo continue sendo discurso eleitoral.

Mais ainda, deve ser alvo de reflexão e estudo das igrejas, pois há líderes fazendo uso de bichos-papões para ameaçar fiéis. Retrato do que uma religião pregada com base na superficialidade e na imaturidade pode fazer com as pessoas.

Porém, servem de esperança de novos ventos democráticos, grupos como o Coletivo Bereia -Informação e Checagem de Notícias e outros que atuam criticamente para expressões religiosas legítimas e dignas no espaço público.