Jornalismo declaratório repercute conteúdo disseminado por Eduardo Bolsonaro desmentido depois pelo governo Trump e por seu irmão

O início da primeira semana útil de maio de 2025 foi agitado por notícia disseminada pelo deputado federal licenciado evangélico Eduardo Bolsonaro (PL-SP): o funcionário do governo estadunidense, chefe interino da coordenação de sanções internacionais, David Gamble estaria a caminho do Brasil, em 5 de maio, para tratar de punições contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes por promoção de censura e perseguição política.

A notícia havia sido publicada inicialmente pelo portal Metrópoles, em 2 de maio, com base em declarações de Eduardo Bolsonaro, que teria “costurado a visita de membros do governo Trump a solo brasileiro”. Fiel ao conteúdo oferecido pelo filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se licenciou do mandato como parlamentar para fazer política a partir dos EUA, o Metrópoles informou que David Gamble se reuniria com o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que levaria o funcionário do governo Trump para um encontro com Jair Bolsonaro.

Com o credenciamento da informação pelo Metrópoles, o deputado licenciado, que se autodeclara batista, reproduziu o conteúdo em seus perfis de mídias sociais e emplacou repercussão em mídias da direita estadunidenses e brasileiras.

Outras mídias de notícias no Brasil transformaram as declarações de Eduardo Bolsonaro em notícia.

Informação desmentida pelo governo dos EUA

A primeira matéria jornalística com informação qualificada sobre a anunciada visita de David Gamble ao Brasil foi produzida pelo jornalista do UOL Jamil Chade, publicada no domingo, 4 de maio. Chade informou que o governo de Donald Trump havia desmentido a versão dada por Eduardo Bolsonaro quanto ao objetivo de sanções contra autoridades brasileiras. A apuração do jornalista confirmou que a viagem ocorreria, de fato, a partir da segunda-feira, 5 de maio, mas a embaixada dos EUA no Brasil indicou outros temas a serem tratados com o governo brasileiro.

Segundo Jamil Chade, a apuração do UOL já havia confirmado que a viagem anunciada por Eduardo Bolsonaro de um funcionário do governo Trump já havia sido organizada pelo próprio governo brasileiro e tem como objetivo estabelecer uma cooperação entre os dois países no combate ao crime organizado.

Em nota ao UOL a Assessoria de Imprensa da Embaixada dos EUA no Brasil declarou que “O Departamento de Estado dos Estados Unidos enviará uma delegação a Brasília, chefiada por David Gamble, chefe interino da Coordenação de Sanções. Ele participará de uma série de reuniões bilaterais sobre organizações criminosas transnacionais e discutirá os programas de sanções dos EUA voltados ao combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas”. 

Nas declarações de Eduardo Bolsonaro repercutidas em diversas mídias não foi mencionado que a viagem já fazia parte de uma agenda oficial de cooperação entre Brasil e EUA. David Gamble veio ao país em uma comitiva que tem agendas no Itamaraty, no Ministério da Justiça e com outros órgãos federais, deputados e senadores. Jamil Chade apurou que a cooperação Brasil-EUA foi intensificada com contatos entre ministérios e até uma missão da Polícia Federal, relacionada a ações do governo Trump contra gangues estrangeiras.

Em abril passado a direção internacional da PF havia viajado até Washington e assinado um acordo para ampliar a luta contra o crime organizado, com previsão de troca de informações entre os dois países. O anúncio foi feito com destaque pelo próprio governo Trump. No mês anterior, março, a polícia estadunidense havia anunciado a prisão de 18 brasileiros, suspeitos de participarem de ações do Primeiro Comando da Capital (PCC) em território americano.

Na apuração do UOL, Jamil Chade acrescenta que, mesmo neste contexto, o governo brasileiro viu com desconfiança o anúncio de Bolsonaro e procurou o Departamento de Estado dos EUA para saber se a visita oficial teria desdobramentos para além da agenda que estabelecida com o governo. Residindo nos EUA nos últimos meses, Eduardo Bolsonaro tem liderado uma campanha para que haja uma ação do governo Trump contra autoridades brasileiras e contribua com a oposição nas eleições que ocorrerão em 2026.

Estas informações foram confirmadas em matérias publicadas nos jornais O Globo, Folha de S. Paulo, Estado de Minas, no portal G1, entre outras mídias.

Flávio Bolsonaro desmente o suposto objetivo

O senador Flávio Bolsonaro confirmou à imprensa, em 6 de maio, que se reuniu com um assessor do Departamento de Estado dos EUA mas não tratou de sanções contra o STF, como havia anunciado o irmão Eduardo Bolsonaro. “Não foi tratado”, afirmou o senador, ao final do encontro, e acrescentou: “quem trata desse tema é o Eduardo”. Segundo o parlamentar, o tema da reunião foi o enfrentamento do crime organizado.

“Eu, na qualidade de presidente da Comissão de Segurança do Senado, havia pedido já há alguns dias, via embaixada, uma reunião aqui no Brasil com alguma autoridade do governo americano para que a gente pudesse tratar dessa pauta de segurança pública. Então, o assunto aqui não tem nada a ver com sanções, com relação a quem quer que seja, como foi tratado aí por parte da imprensa”, disse o senador ao jornal O Globo, após o término do encontro.

Em nova apuração de Jamil Chade para o UOL, foi informado que o chefe da delegação estadunidense David Gamble não esteve com Flávio Bolsonaro. De fato, uma reunião foi realizada entre o senador e um integrante da delegação americana, o funcionário Ricardo Pita. Ele é nascido na Venezuela e integra o terceiro escalão do Departamento de Estado dos EUA, sem experiência prévia na diplomacia. O cargo de Pita leva o nome de “Conselheiro sênior para assuntos do Hemisfério Ocidental.

Antes de entrar para o governo, em janeiro de 2025, Ricardo Pita era assistente do senador republicano Ted Cruz, que dialoga com membros da família Bolsonaro e do PL. No mesmo dia em que se reuniu com Flávio Bolsonaro, Pita visitou Jair Bolsonaro em casa. O conteúdo da conversa foi divulgado por Eduardo Bolsonaro em mídias sociais e teria sido marcado por denúncia das “ameaças à democracia brasileira e aos interesses dos EUA na região”. O deputado licenciado afirma que Ricardo Pita se comprometeu em levar a mensagem do ex-presidente aos EUA.

Novas afirmações de Eduardo Bolsonaro

Eduardo Bolsonaro rebateu o desmentido sobre a agenda da equipe de Trump e atribuiu a divergência a integrantes do governo Biden, que ainda estariam representando os EUA no Brasil. “Os Estados Unidos já enviaram um novo embaixador para o Brasil? Não. Então, o corpo diplomático do governo americano no Brasil ainda é da administração Biden? Sim. Então, morreu já por aqui essa história” disse o deputado licenciado, em entrevista ao canal do YouTube Programa 4 por 4, conforme matéria do jornal O Globo.

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Bereia alerta leitores e leitoras sobre o papel desinformativo do jornalismo declaratório praticado intensamente pela grande imprensa no Brasil e também por outras mídias. Este tipo de fazer jornalístico é caracterizado pela publicação de declarações de personagens da cena pública em matérias que a elas se restringem, ou seja, em que não é praticado o essencial no processo informativo do jornalismo que é a apuração, o oferecimento de dados, de elementos factuais, de comprovações, de outras perspectivas sobre o tema.

Tal prática tem por objetivos: 1) a defesa de assuntos que são os temas tratados por personagens em suas declarações ou a crítica a eles, de forma que público seja levado a acatar ou a rejeitar o que se diz; 2) a simples captura de público – no caso das mídias digitais, os chamados caça-cliques – uma vez que muitas declarações são vazias de informação e não poderiam ser transformadas em notícia.

No caso destacado nesta matéria do Bereia, há uma prática recorrente de personagens identificadas com a extrema direita política:

– uma afirmação “bombástica”, ancorada em alguma situação verdadeira – uma visita de delegação dos EUA ao Brasil, por exemplo -, é lançada para publicação na imprensa;

– a declaração não tem base factual (não tem fontes, nomes, dados, pautas, datas, elementos comprováveis) – “EUA envia delegação para impor sanções ao STF”, por exemplo ;

– veículos da imprensa, seja por alinhamento ao que é dito (desejar sanções para o STF, o que traria danos à diplomacia do atual governo, por exemplo), seja por avidez por cliques e público (sensacionalismo que capta audiência), não apuram o conteúdo e simplesmente o reproduzem;

– o que é vazio de informação vira notícia (“o deputado disse” ou “foi confirmado pelo deputado”, por exemplo).

– as personagens que propagam tais declarações lançam mão da notícia, unicamente ancorada no que disseram ou confirmaram, para credenciar e validar suas próprias afirmações (“saiu na imprensa”).

Bereia chama a atenção para matérias fundamentadas apenas em “Fulano disse” ou “Beltrano anuncia” ou “Cicrano confirma”, que não oferecerem conteúdo próprio do jornalismo comprometido com a informação – apuração de dados, fatos, ocorrências, fontes, nomes, datas, pautas, elementos comprováveis. Não compartilhe este tipo de conteúdo! Pesquise o que outros veículos dizem sobre o caso para não se tornar “isca” para captura de apoio político ou para alavanca de audiência.

Referências

Metrópoles

https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/governo-trump-chega-ao-brasil-para-tratar-de-sancoes-a-moraes Acesso em 06 mai 2025

UOL

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2025/05/04/visita-de-americano-anunciada-por-eduardo-ja-estava-na-agenda-do-planalto.htm Acesso em 06 mai 2025

UOL

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2025/05/05/flavio-diz-que-nao-tratou-de-sancoes-contra-stf-com-americano-de-3-escalao.htm Acesso em 06 mai 2025

O Globo

https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/post/2025/05/bolsonaro-encontra-enviado-de-trump-e-eduardo-diz-que-alerta-sobre-ameaca-a-democracia-brasileira-sera-levado-aos-eua.ghtml Acesso em 06 mai 2025

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