A notícia de que o Brasil havia avançado na imunização infantil e deixado a lista dos 20 piores países neste quesito movimentou as redes digitais do governo, órgãos oficiais e sites de esquerda, nos últimos dias. Além de exaltar o feito, dados divulgados por esses canais dão conta de que essa retomada só começou em 2023, no início do governo Lula. Bereia checou as informações divulgadas nesses veículos.
Imagem: Site Agência Brasil
A Revista Fórum foi um destes veículos. Em 15 de julho, a publicação divulgou em seu site matéria com o título “Efeito Lula: Brasil deixa a lista de países com piores índices de vacinação infantil do mundo”. Ao longo do texto, são apresentados dados sobre o aumento da vacinação infantil no país desde 2023, e atribui o sucesso ao governo do atual presidente Lula. o texto aponta ainda que o país está na contramão da tendência mundial de queda no número de crianças vacinadas.
Imagem: Reprodução do site da Revista Fórum
Avanço real na imunização
A matéria da Fórum cita o documento publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), agência das Nações Unidas responsável por fornecer recursos humanitários e de desenvolvimento a crianças em todo o mundo. O documento comprova a veracidade dos dados divulgados pela revista progressista. Além disso, o site da agência da ONU no Brasil também noticiou o feito brasileiro.
Imagem: Site da Unicef no Brasil
Outros veículos de comunicação também deram destaque ao avanço brasileiro na imunização infantil.
Imagem: Site R7
Imagem: Reprodução do site do Canal Saúde da Fiocruz
Imagem: Reprodução do site da Folha de S. Paulo
Imagem: Reprodução do vídeo do Jornal Hoje/Rede Globo
“Após anos de queda nas coberturas vacinais infantis, a retomada da imunização no Brasil merece ser comemorada”, ressalta a Chefe de Saúde da Unicef no Brasil Luciana Phebo. Para ela, é fundamental continuar avançando, ainda mais rápido, para encontrar e imunizar as crianças que ainda não receberam as vacinas do PNI. “Esses esforços devem ultrapassar os muros das unidades básicas de saúde e alcançar outros espaços em que crianças e famílias, muitas em situação de vulnerabilidade, estão – incluindo escolas, CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e outros espaços e equipamentos públicos”.
Relação com o governo Lula
O relatório da WUENIC e a publicação nas páginas da Unicef não relacionam a melhora na vacinação diretamente ao governo Lula, como é feito no site Fórum. Contudo, eles destacam que o Brasil surpreendeu ao subir seus números de vacinação após anos em que apresentou alguns dos piores resultados no mundo.
Na plataforma da WUENIC é possível acessar os gráficos sobre vacinação de acordo com o imunizante e o país pesquisado. Em análise sobre o imunizante DTP3, que previne contra a difteria, o tétano e a coqueluche, por exemplo, é possível observar que, entre 2016 e 2022, o Brasil teve os piores indicadores de cobertura vacinal desde os anos 2000. Já em 2023 os números ficam próximos dos níveis de cobertura pré-pandemia.
Imagem: Site da WUENIC
Apesar dos índices de vacinação terem atingido números preocupantes em 2021, o Brasil apresenta queda na cobertura vacinal desde 2016, período de mudança política no País, com o impeachment de Dilma Roussef e a posse do vice, Michel Temer. Matéria publicada no portal da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2022, destaca que a baixa na vacinação infantil fez com que doenças antes erradicadas voltassem para lista de doenças do país em 2018, como o sarampo.
Além disso, o texto publicado pela Fiocruz enfatiza o papel da pandemia de covid-19 na baixa das coberturas vacinais.Segundo a Biblioteca Virtual em Saúde, do Ministério da Saúde, “as recomendações das autoridades sanitárias de distanciamento social e outras medidas não farmacológicas afastaram a população das unidades de saúde para se vacinarem”. Bereia também publicou checagens a este respeito, e demonstrou a ampla propagação de campanhas de desinformação, com mentiras e enganos sobre vacinas, em especial contra a covid-19.
A Unicef também já havia alertado para a queda da cobertura vacinal no País, desde 2015. Segundo dados da Busca Ativa Vacinal (BAV), uma iniciativa da Unicef Brasil para apoiar os municípios na imunização infantil, a cobertura da vacinação contra a poliomielite caiu de 98,3% em 2015 para 76,7% em 2022.
“Movimento Nacional pela Vacinação”
Em nenhuma das plataformas oficiais são encontradas afirmações de que a melhora da cobertura vacinal deve ser atribuída ao governo Lula. Entretanto, ao se analisar os dados disponíveis, fica evidente a relação do atual governo com o sucesso do Plano Nacional de Imunização.
O Ministério da Saúde lançou, em fevereiro de 2023, logo no início do atual governo, o Movimento Nacional pela Vacinação, o projeto tinha como objetivo a retomada das altas coberturas vacinais no país. O programa inclui vacinação contra a covid-19 e outros imunizantes do Calendário Nacional de Vacinação. O governo credita os números positivos a esse programa idealizado pelo Ministério da Saúde.
Imagem: Reprodução do site do Ministério da Saúde
A volta do Zé Gotinha
Símbolo da vacinação no Brasil, o personagem Zé Gotinha surgiu pela primeira vez no fim da década de 80, encabeçando a luta pela erradicação da poliomielite nas Américas. Na época, a doença, provocada pelo poliovírus selvagem, só podia ser prevenida por meio de duas gotinhas aplicadas na boca das crianças. O esquema de vacinação atual, entretanto, vai além da vacina oral e utiliza ainda doses injetáveis para combater a chamada paralisia infantil.
O personagem desapareceu da cena pública, a partir de 2019, por conta do negacionismo e da aversão a vacinas durante o governo passado, mas teve a importância retomada a partir do lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação.
Desde sua criação, Zé Gotinha tem cumprido o papel de tornar a aplicação das vacinas, temidas por muitas crianças, algo lúdico e palatável para este público.
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Bereia classifica a matéria publicada pela Revista Fórum como verdadeira. De acordo com a abordagem do veículo progressista e de outras grandes fontes da imprensa, os dados apresentados pelo relatório da WUENIC identificam a melhora na cobertura vacinal no Brasil, em especial no ano de 2023. O avanço é atribuído ao lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação, programa que marca um novo momento das campanhas pela vacinação infantil, incentivada pelo atual governo.
Contudo, é importante destacar que os relatórios oficiais da UNICEF e do próprio governo federal não atribuem o mérito a esta gestão e resgistram que as taxas de vacinação apresentavam queda significativa desde 2016, início do governo Temer.
Bereia já havia identificado as causas para essa queda na cobertura vacinal em matéria anterior. Um dos problemas é o negacionismo, a descredibilização da eficácia dos imunizantes e a demonização de seus efeitos colaterais, com uso de publicações desinformativas, um fenômeno mundial que também aflige o Brasil e se tornou um desafio para autoridades e pesquisadores das áreas de saúde e comunicação.
Além do trabalho realizado pelo Bereia e outros projetos que integram a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), o próprio Ministério da Saúde realiza um trabalho de combate a descredibilização da eficácia dos imunizantes e de outras informações falsas que circulam nas mídias sociais. O projeto Saúde com Ciência, realizado pelo órgão público, aceita denúncias e realiza um trabalho extensivo de combate a desinformação.
A editora-geral Magali Cunha apresentou o trabalho do Coletivo Bereia na Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 21 de março. A aula fez parte da disciplina Seminários Especiais e contou com a participação de alunos de Jornalismo e Relações Públicas.
Para falar sobre o surgimento do Coletivo, ela trouxe dados do relatório “Caminhos da Desinformação”, do Instituto Nutes, ligado à UFRJ, que indicou uma alta disseminação de desinformação em grupos de WhatsApp ligados a igrejas evangélicas.
A pesquisa que resultou no relatório consistiu na aplicação de 1.650 questionários em congregações das igrejas Batista e Assembleia de Deus no Rio de Janeiro (RJ) e em Recife (PE), as duas maiores igrejas evangélicas e as duas cidades de maior concentração desses fiéis no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O estudo concluiu que 49% dos evangélicos receberam conteúdo falso, e, destes, 77,6% disseram ter recebido desinformação em grupos de WhatsApp ligados à sua comunidade de fé. Bereia foi resultado dessas constatações, que impediriam um grupo de pesquisadores e pesquisadoras de concretizar ações de enfrentamento.
Para a editora-geral do Bereia, esse é um cenário preocupante: “A desinformação exerce um apelo sobre grupos religiosos, e isso tem a ver mais com crenças e valores e menos com fatos propriamente ditos”, destaca a pesquisadora. Ela também salientou que aspectos associados à prática da religião entre evangélicos interferem de modo significativo na difusão de desinformação. Magali Cunha comenta que o sentimento de pertencimento à comunidade gera uma imagem das lideranças e de outros membros como fontes confiáveis de notícias.
No fim do mês de julho, sites de notícias gospel e políticos religiosos compartilharam nas mídias digitais conteúdos relacionados a uma resolução em que o atual governo defenderia a legalização do aborto e da maconha, assim como a transição de gênero aos 14 anos. Bereia recebeu pedido de checagem dos conteúdos.
O texto sobre o assunto publicado no portal gospel Pleno News tem como título “Nova resolução do governo Lula defende aborto e maconha” e é complementado pelo subtítulo “O documento do CNS [Conselho Nacional de Saúde] também fala em autorizar mudança de gênero a partir dos 14 anos”. O site Gospel Prime deu à matéria o mesmo título, mas alterou o subtítulo, “Durante campanha petista havia mentido que era contra a prática”.
Imagem: reprodução do site Pleno.News
Um dos políticos religiosos que tratou do tema em seu perfil no Instagram foi o deputado distrital (equivalente a estadual, mas do Distrito Federal) Pastor Daniel de Castro (PP). Na publicação, Castro afirma que “Tudo o que avisamos durante a campanha eleitoral está vindo à tona!” e a ilustra com uma imagem do presidente da República Luís Inácio Lula da Silva (PT) com a ministra da Saúde Nísia Trindade em um aperto de mãos. Nela há a afirmativa de que a ministra teria assinado uma “resolução a favor da legalização do aborto e da maconha”.
Imagem: reprodução do Instagram
Difusão de pânico moral como estratégia
Após a publicação da Resolução n° 715 do CNS, sites e políticos religiosos repercutiram trechos do documento, atribuindo ao governo federal a defesa do aborto, da legalização da maconha e da garantia de direitos sexuais. As críticas concentram-se, principalmente, nos temas relacionados à chamada pauta de costumes.
Sites religiosos destacaram trechos do documento em que se encontram considerações sobre a saúde das populações LGBTIA+, evidenciando aspectos como a redução da idade de início para tratamentos hormonais para 14 anos. Além disso, repercutiram, trechos que tratam do combate às desigualdades estruturais por meio de políticas sociais que considerem transferência de renda, legalização do aborto e legalização da maconha no Brasil.
O site religioso Gospel Prime chegou a afirmar que o presidente Lula mentiu, durante a campanha eleitoral, ao afirmar que era, pessoalmente, contra o aborto. Assim como outros portais fizeram, o site atribui a Lula, em caráter pessoal, as diretrizes emanadas da Resolução nº 715 emitida pelo Conselho Nacional de Saúde.
Outro aspecto do documento veiculado por mídias religiosas em tom crítico, diz respeito à política de vacinação. Percebe-se, na redação final do texto publicado pelo site gospel Pleno News, que houve menção ao texto tratar do acesso facilitado a vacinas e ações que visem à ampliação da cobertura vacinal de modo geral.
Reação parlamentar e nota de repúdio de juristas evangélicos
A Revista Oeste, identificada com o “pensamento liberal-conservador”, informou que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) protocolou, na Câmara dos Deputados, um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para sustar a Resolução nº 715 do CNS. O PDL 197/2023 afirma que a resolução do CNS trata de temas “extremamente controversos” e fundamenta-se “a partir de um nítido viés político”.
Em 1º de agosto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) divulgou uma nota de repúdio à resolução. No texto, a entidade afirmou que “em seu compromisso em defesa dos direitos fundamentais, manifesta seu repúdio às orientações estratégicas publicadas pelo Conselho Nacional de Saúde através da Resolução nº 715/2023” e pontuou uma “ideologização da saúde”.
Propósito da Resolução
A Resolução nº 715 foi publicada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão colegiado do Sistema Único de Saúde (SUS) que fiscaliza e monitora as políticas públicas de saúde, desde 1937. Independente do governo, o Conselho leva as demandas da população ao poder público, e tem função deliberativa.
A instância é formada por 48 conselheiros titulares, e respectivos primeiros e segundos suplentes, que representam diferentes segmentos da sociedade. Os membros do CNS são escolhidos por eleições a cada três anos, que elegem entre si um representante para a presidência do órgão. Empresas da área da saúde, prestadores de serviço, comunidade científica, usuários, trabalhadores e gestores do SUS e instituições não-governamentais são exemplos de entidades representadas no Conselho.
O texto foi tornado público em 20 de julho passado, após a realização da 17ª Conferência Nacional de Saúde, no início do mesmo mês. O documento define orientações estratégicas para o Plano Plurianual (PPA) e para o Plano Nacional de Saúde (PNS), ao estabelecer prioridades para a atuação dos serviços públicos de saúde.
Em seu preâmbulo, o documento faz referência aos objetivos da conferência, entre os quais se encontram os de reafirmar a universalidade e integralidade da saúde como direito humano, com a definição de políticas que reduzem as desigualdades sociais e territoriais, conforme previsão na Constituição Federal.
Desta forma, entre as orientações emanadas da conferência estão, além de questões ligadas ao correto financiamento dos serviços públicos de saúde e considerações sobre os diversos aspectos da chamada Atenção Básica (AB) em saúde, apontamentos sobre questões específicas que concernem ao atual quadro da saúde pública no Brasil.
A coordenadora adjunta da Comissão de Relatoria da 17ª Conferência Priscilla Viegas afirma que o conjunto de orientações previstas na Resolução nº 715 baseou-se em 245 diretrizes aprovadas na Conferência. “É um conjunto de proposições que têm a perspectiva de incidir no PPA e no PNS, trazidos de forma ampla para que tragam as prioridades, sem invisibilizar a diversidade e pluralidade refletidas na Conferência”, afirmou Viegas ao portal do Conselho Nacional de Saúde.
Alegações da Resolução
Estão relacionadas na Resolução nº 71559 orientações a partir das diretrizes aprovadas na 17ª Conferência Nacional de Saúde. A orientação de número 44 propõe a atualização da Política Nacional de Saúde Integral LGBT para LGBTIA+, com definições das linhas de cuidado em cada um dos ciclos de vida, de forma que abranja a diversidade da comunidade, não apenas em orientação sexual e identidade de gênero, mas também a pluralidade de corpos, raças, etnias, classe, e pessoas em restrição de liberdade e situação de rua.
Além disso, a mesma orientação sugere a “revisão da cartilha de pessoas trans, da caderneta de gestante, pré-natal, com foco não binário; com a garantia de acesso e acompanhamento da hormonioterapia em populações de pessoas travestis e transgêneras, pesquisas, atualização dos protocolos e redução da idade de início de hormonização para 14 anos”.
Já a orientação 49, defende a ampliação de políticas sociais e de transferência de renda, como a legalização do aborto e da maconha, e da intersetorialidade nas ações de saúde para combater desigualdades estruturais e históricas da sociedade brasileira.
A Conferência Nacional de Saúde
Estabelecida pela Lei nº 8.142/1990, a Conferência Nacional de Saúde ocorre a cada quatro anos, com o objetivo de avaliar a situação da saúde no país e propor diretrizes e orientações gerais para a formulação de políticas públicas, em caráter não obrigatório. Organizada pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), a Conferência cria espaço de diálogo entre a sociedade e o governo, de modo que há participação de diversos segmentos sociais ao longo das etapas realizadas. Segundo informações do CNS, estima-se que 2 milhões de pessoas estiveram envolvidas na 17ª Conferência. Pela própria lei que cria a Conferência, os usuários do SUS são representados de forma paritária em relação a outros segmentos.
As primeiras etapas da Conferência foram iniciadas ainda em 2022, com a realização de conferências municipais que envolveram a participação de usuários do SUS, trabalhadores, gestores da saúde e prestadores de serviço. Além das etapas locais, municipais e estaduais, a 17ª Conferência abrigou a realização de conferências livres, que abordaram temas como ‘gestão interfederativa e participativa’, ‘informação, saúde digital e controle social’, ‘atenção especializada’, entre outros.
Com a realização da etapa nacional, no início de julho, conselheiros nacionais da Saúde deliberaram unanimemente pela aprovação da Resolução nº 715, que definiu orientações estratégicas para as políticas públicas de saúde. O documento sintetiza as diretrizes da 17ª Conferência em 59 orientações, que abordam pontos como a defesa do direito universal à saúde, o papel do Brasil na agenda internacional de saúde e diversos aspectos ligados à saúde pública no país.
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Bereia classifica o conteúdo como enganoso, dada a estratégia de sensacionalismo para atrair atenção. Apesar dos conteúdos publicados por sites e políticos religiosos tratarem de dados reais contidos na Resolução nº 715 do Conselho Nacional de Saúde, também apresentam teor distorcido ao difundir as orientações e o próprio documento como uma determinação, não só do atual governo, mas da pessoa do presidente Luis Inácio Lula da Silva.
O modo como os títulos, as imagens e as informações foram estruturadas estimula julgamentos negativos sobre assuntos como a legalização do aborto, da maconha e a garantia de direitos da comunidade LGBTIA+, que vão contra a pauta de costumes defendidos por políticos e lideres religiosos. Para busca de apoio a estas pautas e argumentos de oposição ao atual governo, os sites e políticos citados nesta matéria recorrem ao pânico moral com informações distorcidas. Desta forma, o conteúdo evidencia o esforço empregado para desinformar e, portanto, carece de substância.
Ao contrário do que grande parte das publicações alega, a Resolução nº 715, emanada da 17ª Conferência Nacional de Saúde, não consiste em um posicionamento de governo, nem configura previsão legal a ser cumprida pelas instituições da Saúde. Trata-se, na verdade, de um conjunto de propostas elaboradas democraticamente, com a participação de diversos setores da sociedade.
O deputado federal, autodenominado cristão, Hélio Lopes (PL-RJ) publicou, em sua conta no Twitter, conteúdo sobre suposto bloqueio de 1,5 bilhões do orçamento federal, citando as pastas da Saúde e Educação como as mais afetadas. Ele se referiu ao contingenciamento de despesas, termo técnico que significa “retardamento ou, ainda, a inexecução de parte da programação de despesa prevista na Lei Orçamentária em função da insuficiência de receitas previstas”.A imagem publicada contém um texto sobre o suposto contingenciamento, com o título “Silêncio da Mídia!” e uma foto do presidente Lula entre a ministra da Saúde Nísia Trindade e o ministro da Educação Camilo Santana, além da chamada “E o choro da militância, cadê?”
Imagem: reprodução do Twitter
Hélio Lopes foi eleito deputado federal, em 2018, pelo PSL-RJ, com 345.234 votos. Na última disputa, em 2022, foi reeleito com 132.986 votos. Antes da eleição de 2018 e do apoio direto do então candidato a presidente Jair Bolsonaro, com quem trabalhava, Lopes havia concorrido em 2004, pelo extinto PRP, ao cargo de vereador do município de Queimados (RJ), tendo recebido apenas 277 votos. Em 2016, o político havia se lançado candidato pelo PSC ao mesmo cargo municipal, porém, em Nova Iguaçu (RJ), e mais uma vez não foi eleito – naquele pleito recebeu 480 votos.
Contingenciamento e teto de gastos
Bereia checou as informações sobre as quais o deputado federal denuncia “silêncio da mídia”. O político se referia a um decreto presidencial com a indicação dos cortes orçamentários, que foi publicado em 28 de julho passado, em edição extraordinária do Diário Oficial da União. Os ministérios da Saúde e da Educação, de fato, respondem por metade do novo contingenciamento de R$1,5 bilhão no Orçamento de 2023. Eis a lista de cortes (reduções) orçamentárias:
• Saúde: R$ 452 milhões;
• Educação: R$ 333 milhões;
• Transportes: R$ 217 milhões;
• Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome: R$ 144 milhões;
• Cidades: R$ 144 milhões;
• Meio Ambiente: R$ 97,5 milhões;
• Integração e Desenvolvimento Regional: R$ 60 milhões;
• Defesa: R$ 35 milhões;
• Cultura: R$ 27 milhões;
• Desenvolvimento Agrário: R$ 24 milhões.
Em comparação com outros anos, mesmo com as novas condições, o total de recursos bloqueados em 2023 é significativamente menor do que no ano anterior, sob o governo de Jair Bolsonaro. Em 2022 foram contingenciados R$15,38 bilhões para cumprir o limite de gastos, quando o Ministério da Educação sofreu um congelamento de R$ 1,4 bilhão.
Os bloqueios e cortes ocorrem quando a estimativa de despesas supera o limite estabelecido pelo teto federal de gastos , fruto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55/2016. Esta medida, que promoveu um mecanismo de controle de gastos públicos, foi encaminhada pelo governo do presidente Michel Temer ao Legislativo e foi aprovada em 2016.
O conteúdo da PEC é relativamente simples. Ela determinou que o total dos gastos primários do governo federal, isto é, todos os gastos menos o pagamento de juros sobre a dívida pública, deveria ficar, a cada ano, limitado a um teto definido pelo montante gasto neste ano de 2016, reajustado pela inflação acumulada. A aprovação da PEC Teto de Gastos foi, então, apresentada com uma referência positiva de controle para que governos não gastem demais e, caso os gastos fossem reajustados de acordo com a inflação, eles não seriam congelados e não iriam diminuir. Porém, a decisão do Congresso Nacional foi muito criticada por diversos segmentos sociais que viram graves problemas decorrentes.
O professor indicou também que “o governo teve que propor uma PEC, ao invés de um simples projeto de lei, justamente porque um dos seus pontos centrais é a desvinculação dos gastos com educação e com saúde, previstos hoje na Constituição como percentuais da receita – crescendo a economia e a arrecadação, crescem obrigatoriamente tais gastos. Talvez fosse mais transparente chamá-la de PEC da Desvinculação, dessa forma”.
O fato de saúde e educação terem sido alvos explícitos de redução, com geração de consequências graves de tal encaminhamento para as políticas sociais, popularizou o apelido da proposta aprovada de “PEC do Fim do Mundo”. Rugitsky explicou: “[A PEC do Teto de Gastos] longe de representar uma solução, só vai aprofundar a crise política, econômica e social pela qual estamos passando. Sábios foram aqueles que a denominaram de PEC do Fim do Mundo e foram ocupar ruas e escolas para se posicionar contra ela”.
O governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) seguiu à risca o teto de gastos, sem desenvolver alternativas para a crise que se estabeleceu nas políticas públicas, o que resultou em situações dramáticas nas áreas de saúde (especialmente diante da pandemia da covid-19), de educação e de infra-estrutura.
O relatório do Gabinete de Transição para o novo governo (2023-2026), eleito em 2022, apresentou dados sobre a crise. Ainda nesse ano, o Gabinete propôs e conseguiu aprovação no Congresso da PEC de Transição, que permitiu ao novo governo deixar o valor de R$ 145 bilhões do Orçamento de 2023 fora do teto de gastos, para serem utilizados para bancar despesas com o Bolsa Família, o Auxílio Gás e a Farmácia Popular, entre outras.
Em 2023, o novo governo terá que lidar com a realidade de crise econômica estabelecida e com o orçamento aprovado no governo anterior, com base no teto de gastos – justificativa do contingenciamento apresentado, por decreto presidencial, em 28 de julho. Para corrigir as distorções da PEC do Teto de Gastos e preservar investimentos, principalmente de programas sociais, foi enviado ao Congresso o projeto de um novo arcabouço fiscal, já aprovado na Câmara e aguardando votação no Senado.
Hoje, a regra do teto de gastos introduzida na Constituição Federal, em vigor desde 2017, impede que os gastos federais cresçam mais do que a inflação ano a ano. Com a proposta do novo arcabouço fiscal, apresentada pelo atual governo, em discussão no Congresso, em vez do teto de gastos, a despesa poderá crescer o equivalente a 70% da alta nas receitas (por exemplo, se a arrecadação subir 2%, a despesa poderá subir até 1,4%).
Haverá, porém, limites mínimos e máximos para essa variação nas despesas. O percentual mínimo evita que uma queda brusca ou temporária na arrecadação obrigue o governo a comprimir despesas. Já o limite máximo afasta o risco de o Executivo expandir gastos de forma exagerada quando há um pico nas receitas.
O percentual não será aplicado de forma linear a todas as despesas. Com o fim do teto de gastos, serão retomados os mínimos constitucionais de saúde e educação como eram até 2016: 15% da RCL (Receita Corrente Líquida) para a saúde e 18% da receita líquida de impostos, no caso da educação.
Na prática, o avanço dessas despesas acompanhará mais de perto a arrecadação, enquanto outros gastos precisarão ter crescimento mais moderado para respeitar o limite como um todo.
O limite será abrangente, mas algumas despesas ficarão de fora, entre elas os repasses do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e a ajuda financeira para estados e municípios bancarem o piso da enfermagem, conforme proposta introduzida na Câmara de Deputados. São gastos aprovados por emenda constitucional e deverão ser realizados.
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Bereia classifica a publicação do deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ) como enganosa. Lopes desinforma ao selecionar apenas parte das informações a respeito do contingenciamento dos gastos. Os números dos valores bloqueados são verdadeiros, mas o parlamentar não diz que correspondem ao mecanismo da aplicação constitucional teto de gastos, proposta pelo governo de Michel Temer e aprovada pelo Congresso, em 2016. Lopes não informou aos seus leitores que o governo anterior promoveu cortes mais dramáticos no orçamento e que o atual governo já apresentou uma nova proposta ao Parlamento para alterar distorções das regras do teto de gastos, a fim de garantir investimentos públicos, em especial nas áreas fundamentais da vida da população.
Na primeira semana de dezembro, circularam em perfis de oposição ao presidente Jair Bolsonaro em mídias sociais religiosas, publicações que afirmavam que o filho do político, o vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (Republicanos), teria utilizado a imagem de uma campanha antitabagismo aplicada em embalagens de cigarros para sensibilizar seguidores em apoio ao pai, doente por erisipela.
O atual presidente da República perdeu as eleições de 30 outubro de 2022, não conseguiu a reeleição, e deverá deixar o Palácio do Planalto em 31 de dezembro. Ele ficou mais de 40 dias recluso, sem comparecer a atividades previstas em agenda de trabalho, e sem se manifestar quanto ao resultado e aos apoiadores. Uma das justificativas, dada pelo vice-presidente General Hamilton Mourão à imprensa, em 16 de novembro, foi a de um agravamento em ferida na perna causada por erisipela.
Tendo permanecido a ausência de Jair Bolsonaro nos compromissos de trabalho e no contato com o público, pela imprensa ou pelas mídias sociais, no domingo 4 de dezembro, Carlos Bolsonaro publicou em seu canal do Telegram, foto demonstrando os efeitos da infecção acometida pelo pai.
Logo a seguir, surgiram em espaços digitais de opositores de Bolsonaro e de pessoas e grupos de esquerda, entre eles, ambientes religiosos, publicações que afirmavam ser falsa a foto da perna de Bolsonaro publicada pelo filho.
As agências de checagem de informação Lupa, Fato ou Fake , E-Farsas, entre outras publicaram matérias comprovando que estas publicações são falsas. Todas pesquisaram entre as imagens de advertência publicadas na página da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e não encontraram qualquer foto como a publicada por Carlos Bolsonaro.
A Anvisa também foi consultada pelas agências e afirmou não ter encontrado correspondência das imagens das campanhas dos maços atuais ou anteriores com a foto publicada por Carlos Bolsonaro.
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Bereia repercute as publicações das agências de checagem de informações para classificar como falso o conteúdo que circulou em mídias digitais religiosas que afirmam ser manipulada a foto publicada por Carlos Bolsonaro, sobre doença do pai.
Bereia alerta leitores e leitoras para não compartilharem conteúdo acessado que não tenha comprovação. O fato de um indivíduo ou grupo ser frequente propagador de desinformação não descarta a necessidade de checagem e comprovação para se afirmar que qualquer conteúdo que tenha publicado seja falso.
Em janeiro, tivemos uma boa notícia. Bruno Carazza, colunista do Valor Econômico, divulgou dados da pesquisa XP/Ipespe mostrando que a avaliação positiva do presidente Jair Bolsonaro entre os evangélicos caiu de 53% para 40% entre dezembro e janeiro. Vale pensarmos os motivos. Segundo pesquisa divulgada no começo de 2020 pelo Datafolha, 48% dos evangélicos recebem até dois salários mínimos por mês. Essa queda seria por conta do fim do Auxílio Emergencial? Quais outras fissuras que podemos evidenciar para aumentar o índice de rejeição dos evangélicos contra Bolsonaro? Até onde o negacionismo e as fake news se sustentarão frente à realidade concreta do povo?
Desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o uso emergencial da Vacina contra a Covid-19, temos acompanhado mais um show de horror protagonizado pelo governo federal. A desinformação propagada por Bolsonaro tem fortalecido o discurso antivacina, algo até então pontual e sem grandes ecos em nosso país.
As vacinas, como a maioria de nós já sabe, são um pacto coletivo contra doenças e evitam milhares de mortes todos os anos. Com a erradicação dessas doenças, alguns seletos grupos passaram a questionar os efeitos colaterais dos imunizantes, temendo-os mais do que a própria doença. De fato, nem todos podem ser vacinadas, como algumas pessoas com comprometimento sérios na imunidade e alérgicos graves à componentes da vacina. Porém, essas pessoas contam com esse pacto coletivo, dado que quando você se vacina, você protege aqueles que não podem se vacinar. O contrário também é verdadeiro: se você não se vacina, você coloca em risco os que não tem como se imunizar.
Até a pandemia chegar, o movimento antivacina no Brasil era extremamente pontual e estava muito circunscrito a um grupo seleto de famílias de classe média que contavam com medidas alternativas para garantir a saúde de seus filhos, acreditando que essa era uma opção de cada indivíduo. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, primeiro parágrafo do Artigo 14, “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. As escolas exigem a carteira de vacinação para a matrícula e podem acionar o Conselho Tutelar, caso esse direito seja negligenciado. “Em geral, as nossas carteiras de vacinação estão em dia, mas a gente tem famílias negacionistas de classe média, são as que dão mais trabalho, é mais complicado do que as famílias mais vulneráveis”, comentou conosco um funcionário de uma escola pública municipal. Em alguns locais de nosso país há fiscalizações realizadas pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS) nas escolas públicas. Famílias podem ter que responder por maus tratos se não imunizarem suas crianças. Vacinação obrigatória é um direito da criança e um dever do Estado e dos seus cuidadores.
Na pandemia, porém, tudo se converteu, inclusive a percepção sobre esse pacto coletivo. O discurso antivacina foi mudando de interlocutor. Aquele grupo seleto de classe média que não vacinou suas crianças por ter certa garantia que seu filho poderia ser protegido por outros métodos, deu espaço a um outro tipo de narrativa. Temos acompanhado diversas reportagens de pastores, notavelmente defensores do atual governo, que divulgam notícias falsas, contando com a imunização por meio da fé, negando o avanço científico com o qual esses mesmos pastores se beneficiaram por anos.
Dentre tantos, Josué Valandro, o pastor da Igreja que a primeira dama Michelle Bolsonaro frequenta, reagiu em seu Instagram ironizando a eficácia da vacina: “Vende-se paraquedas com 50,3% de eficácia”. Já foi esclarecido em diversos meios de comunicação o significado do percentual de eficácia no combate à doença: a vacina não é para garantir que seguramente as pessoas não vão contrair a doença, mas, principalmente, que não desenvolvam suas formas graves. A ironia do pastor com a (des)informação foi questionada inclusive pelos seus seguidores, felizmente.
Outro exemplo extremamente preocupante se refere a um grupo de indígenas de uma tribo amazônica que tem recusado a se vacinar. Pastores evangélicos que têm atuado nas tribos são os disseminadores de falsas informações, colocando dúvidas e medo na população. O medo da vacina tem gerado conflito entre os indígenas evangélicos e os não-evangélicos, dado que os pastores têm, inclusive, tentado impedir que as vacinas cheguem ao território indígena.
Nesse contexto, pastores ainda ligados à Bolsonaro compõe esse assustador caldo de negacionismo impensável em mundos minimamente civilizados. A frase “a que ponto chegamos” não consegue acompanhar a catastrófica conjuntura atual, dado que esse ponto final do absurdo não chega nunca. Mas essa narrativa não acontece por acaso ou espontaneamente. Os pastores fundamentalistas, muito mais sensíveis aos interesses do presidente do que à dor das famílias dos mais de 240 mil mortos, têm construído uma linha bastante coerente até chegarem na desconfiança e na disseminação de falsas notícias sobre a vacina.
No portal Uol, o teólogo Ronilson Pacheco lembrou desse coerente caminho: primeiro com a ação de cristãos para jejuarem contra o vírus em um momento que a fome passou a ser uma real ameaça para o povo – inclusive maior que o vírus -; depois, não houve nenhuma manifestação pública desses pastores sobre as primeiras 100 mil mortes causadas pelo vírus em nosso país, enquanto seguiam pressionando para a abertura das Igrejas. Em paralelo, as curas milagrosas foram muito mais divulgadas e defendidas por esses pastores do que a vacina, chegando ao absurdo da venda de feijões milagrosos que poderiam custar até mil reais.
Conversamos com pastores e fiéis na cidade de São Paulo. O Pastor metodista Jair Alves, membro da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, tem visto o negacionismo em sua comunidade cristã localizada no Alto da Mooca, na zona leste, um bairro mais conservador, segundo ele. Como cristão e servidor público, atuando como assistente social há mais de 20 anos (atualmente na saúde), Alves vê a propagação de fake news e a resistência à vacina com muita preocupação: “todo dia e toda hora estamos falando e conversando sobre isso”. Já Cleonice Victor, empregada doméstica e moradora do bairro do Peri Alto, periferia norte da cidade, nos disse que em diversas igrejas que ela conhece as pessoas estão esperando pela vacina: “todo mundo vai tomar, não ouvi falar, não (sobre pessoas que não vão tomar a vacina).”
Walderes Costas, da Assembleia de Deus Apostólica e moradora do Bairro Jardim Paraná, distrito da Brasilândia, teve covid-19 e chegou a ficar internada. “Primeiramente, antes de tudo, devemos ter confiança em Deus sobre a vacina, a vacina pode impedir muitos de irem a óbito. No meu ministério, meus pastores falam que como está em Apocalipse, as sete pragas estão para chegar e por isso, o Covid-19 levou muitas pessoas. Temos que manter os cuidados com a higiene, aguardar os resultados da vacina. Muitos querem confundir a mente daquelas pessoas que não têm acesso à informação. A mídia tem confundido muito as pessoas. Uns falam ‘ai eu não vou tomar, ai eu vou morrer se tomar”. Não, não é nada disso. (…) Meu pastor e minha pastora falam para as pessoas tomarem a vacina, para se prevenirem. (…). No meu bairro, no meu ministério, muitos falam que vão tomar, outros não sabem se vai chegar… muitos não veem a hora de tomar para ficarem livres da doença”.
Para o povo, imerso nas igrejas evangélicas que se proliferam há anos no nosso país, a palavra do Pastor é fundamental; é ele que está no cotidiano dos territórios, a igreja é espaço de solidariedade popular entre os fiéis, de acolhimento e cuidado nesse momento em que todos estão mais precisando. A figura do Pastor é de autoridade moral e espiritual, mas também de alguém que está presente e pronto para auxiliar; é ele, muitas vezes, quem diz o que é certo e o que é errado a partir de sua leitura da Bíblia. Construir bandeiras pró-vacina nos territórios é tarefa urgente do campo progressista. Produzir pontes de diálogos com pastores das pequenas igrejas dos bairros periféricos, que muitas vezes estão no meio de campo entre os discursos fundamentalistas dos pastores midiáticos e a realidade concreta do povo, nos parece fundamental nesse momento em que a vacina é a resposta para angústias físicas, psíquicas e econômicas.
Motoboy e Pastor da Assembleia de Deus na Casa Verde, Fábio Elias tem atuado contra a disseminação de falsas informações sobre a vacina. “A gente tem um entendimento de que a fé sem obras é morta, não adianta só acreditar e não executar a nossa parte, a gente tem um entendimento de que o impossível a gente deixa nas mãos de Deus e o possível a gente deixa nas mãos dos homens. (…) Nós somos templos e morada do Espírito Santo de Deus e a gente tem a obrigação de cuidar (…) assim como a gente cuida do templo físico, a gente também tem que cuidar do templo espiritual, que seria nosso corpo. Se foi criada uma vacina que pode nos auxiliar, eu acho fantástico, agradecemos a Deus por ter surgido a vacina e a nossa orientação é para tomarmos. Não estamos nos posicionando de nenhuma forma contrária, pelo contrário, estamos instruindo que todos possam tomar a vacina. O que é parte espiritual, a gente tem como orientar, mas o que é parte científica, parte médica, somos obrigados a aceitar, até por que toda palavra do Senhor fala que toda autoridade é instituída por Deus, e se a ciência afirma que conseguiu uma vacina, a gente acredita que todos possam tomar. Eu não partilho de forma contrária, eu instruo e aceito”, nos relatou.
A imunização em massa a curto prazo da população pode garantir a abertura segura das escolas e, consequentemente, a diminuição de evasão escolar que aumentou consideravelmente durante a pandemia. Além disso, também serviria como um respiro para as mães que estão com seus filhos em casa e, mais do que nunca, precisam sair para trabalhar com o fim do Auxílio Emergencial. É também uma esperança para tantos trabalhadores em meio ao medo, à morte, ao fim.
Olhando para essa realidade e para a gravidade dos discursos e ações do Bolsonaro frente à pandemia, inclusive promovendo obstáculos na aquisição de vacinas, um grupo de religiosos cristãos, composto de 380 pessoas de diversas denominações, protocolou um pedido de impeachment contra o presidente.
A pastora luterana Romi Bencke, que protocolou o pedido representando esse grupo, nos disse que “a importância da vacina, desde a perspectiva cristã, é o amor à pessoa próxima. A fé em Jesus Cristo nos compromete com a outra pessoa, por isso, a vacina é um gesto de generosidade, amorosidade. Ao me vacinar não estou cuidando unicamente de mim, mas também do outro. Claro que não há nenhum texto bíblico para falar da vacina. Mas, se for para argumentar biblicamente o amor à pessoa próxima, recupero o texto de João 10.10: ‘Eu vim para que todas as pessoas tenham vida e vida em abundância’. Quem pode e se nega a tomar a vacina nega o direito ao cuidado da outra pessoa”.
O Pastor Jair Alves segue com a mesma narrativa: “os evangélicos falam tanto em Jesus, amam tanto a Jesus e não se lembram que Jesus veio para nos dar vida e vida em abundância, Jesus veio para nos libertar e a verdade é que nos liberta. Eu não entendo como evangélicos podem atrapalhar a vacinação favorecendo as famosas fake news contra o combate a covid-19. Deixo aqui o meu apelo: vamos tomar a vacina, eu tomei a vacina, sou profissional da área da saúde, tenho mais de 60 anos, sou Pastor, minha esposa é enfermeira, nós dois já fomos tomar a vacina e eu queria dizer: Deus é que nos deu a bênção de termos cientistas dedicados a descobrirem esta vacina, devemos apoiar e estimular a nossa comunidade a se vacinar”.
Nesse sentido, acreditamos que a vacina é uma bandeira importante na disputa de narrativas contra o fundamentalismo religioso e, consequentemente, contra Bolsonaro. Não podemos ficar reféns dos discursos e ações do presidente e dos pastores fundamentalistas que o apoiam. Temos o papel de criar formas de diálogo com as igrejas a partir da realidade do povo, em defesa da vacina pública, universal, gratuita e, quem sabe, como tem ensinado os países socialistas, soberana!
Tem circulado em grupos de WhatsApp um vídeo em que o padre católico de São Paulo, Carlos Maria de Aguiar, vice-presidente da Liga Cristã Mundial, espalha desinformação a respeito da vacinação contra o novo coronavírus. No vídeo, segundo o clérigo, alguns líderes estariam abusando de seus poderes e transgredindo a Constituição em vez de ajudar o presidente Jair Bolsonaro.
Além disso, Aguiar diz que alguns chamam a pandemia de “Fraudemia”, porque ela seria uma manipulação ideológica do difícil momento que o Brasil vive. Nesse sentido, o padre traz a seguinte mensagem a respeito da vacinação:
“O emprego é o único meio digno de alguém para manter sua sobrevivência e subsistência. Privar um ser humano disso é desumano e vai contra toda ordem moral, ética e do direito natural. Usar a ameaça de vacinar-se em garantia de cura sob a pena de perder o emprego é perverso e brutal. Isso, na verdade, é uma escravidão. Ou agimos de forma violenta porque eles são violentos conosco física e psicologicamente, ou iremos acabar em novo tipo de campo de concentração. É lutar para não morrermos. E se morrermos, vamos morrer lutando dignamente. E que Deus abençoe a todos.”
Carlos Maria de Aguiar, padre e vice-presidente da Liga Cristã Mundial
A obrigatoriedade constitucional da vacinação
No vídeo, o Padre menciona suposta ameaça de demissão por parte de um empregador a um funcionário que se recusa a tomar a vacina. No entanto, é preciso primeiro compreender qual é a situação da vacinação contra a covid-19.
Bereia já publicou uma matéria em dezembro de 2020 para explicar que a vacinação obrigatória é constitucional e já praticada no Brasil, isso porque a vacinação é uma estratégia de imunização coletiva capaz de erradicar doenças. Segundo a Fiocruz, doenças como varíola e poliomielite foram erradicadas no Brasil graças à vacinação. A obrigatoriedade da vacinação, como explica a reportagem, está prevista desde 1975 pela Lei 6.259 daquele ano, que estabelece o Plano Nacional de Imunização (PNI). Já em fevereiro de 2020, a Lei 13.979 listou a vacinação como uma das medidas para combater a pandemia.
Por fim, foi em 17 de dezembro de 2020 que o STF firmou entendimento a favor da obrigatoriedade também da vacina contra a covid-19, como noticiou a revista Consultor Jurídico. A decisão também diz que pais sejam obrigados a levar seus filhos para vacinação, conforme o calendário de imunização, mesmo quando contra as suas convicções. Isso porque o direito à saúde coletiva das crianças e dos adolescentes não se sobrepõe à liberdade de pensamento dos responsáveis, defendeu o ministro Luis Roberto Barroso. A Corte considerou que a vacina pode ser também compulsória, situação na qual restrições são aplicadas a quem não se vacinar.
Vale lembrar que não cumprir o Calendário Nacional de Vacinações já implica sanções. A Portaria 597 de 2004 já estabelece que a não vacinação gera impedimento de se alistar no exército, receber benefícios sociais do governo ou se cadastrar em creches ou se matricular nas demais instituições de ensino. Também é importante reconhecer que a obrigatoriedade de vacinação é prática comum em outros países e nas relações internacionais, como por exemplo, a antiga exigência de comprovação de vacinação contra algumas doenças para permissão de entrada no território de vários países, como a da febre amarela e da da H1N1.
Vacinação e o ambiente de trabalho
O debate que se coloca é se empresas podem exigir a vacinação de seus funcionários e, se isso for permitido, se a recusa de um funcionário em vacinar-se contra a covid-19 poderia resultar em demissão com justa causa. A decisão do STF deixou o estabelecimento de limitações aos não-vacinados a cargo tanto da União quanto de estados e municípios. Isso significa que as restrições dependerão de cada localidade.
O portal de temas jurídicos JOTA ouviu especialistas na área trabalhista a respeito da questão. A professora do IDP e procuradora do Trabalho Lorena Porto considera que o empregador pode exigir a vacinação de seus funcionários para a volta do trabalho presencial, uma vez que o empregador é responsável por garantir um ambiente de trabalho saudável. Em entrevista ao portal, ela cita o exemplo de profissionais de saúde:
“Para o empregador cumprir todas essas exigências, ele teve de adotar uma série de medidas, como a implementação de equipamentos de proteção individual, os EPIs, o trabalho remoto, notadamente os de grupo de risco. Para os que estão trabalhando presencialmente, medidas sanitárias de controle interno. Neste contexto, para evitar o contágio de um trabalhador e a contaminação dos demais, se inseriria a vacina e podem ser estabelecidas restrições dos direitos”.
Lorena Porto, procuradora do Trabalho e professora do IDP
No entanto, para Porto, a demissão por justa causa não deveria acontecer, uma vez que essa forma de desligamento depende de requisitos definidos por lei para ser caracterizada. Ouvido pela mesma reportagem, o sócio do Bichara Advogados Jorge Gonzaga Matsumoto vai no sentido contrário:
“A empresa pode exigir a vacinação e demitir por justa causa, com certeza. Isto porque ela tem responsabilidade direta pela saúde dos empregados ao seu redor. É uma responsabilidade constitucional de zelar pela saúde, o que traz o direito de exigir que o trabalhador tome todas as medidas cabíveis”.
Jorge Gonzaga Matsumoto, sócio do Bichara Advogados
Por outro lado, a sócia responsável pela área trabalhista do Porto, Miranda e Rocha Advogados Karen Viero destaca a atual falta de definição sobre o assunto. “O empregador está desamparado neste momento, pois, se os empregados se recusarem a tomar vacina e o empregador desligá-lo sem justa causa, poderá configurar dispensa discriminatória. Se pensar em desligamento por justa causa, a recusa do empregado em tomar a vacina não se enquadra nas hipóteses do artigo 482 da CLT. Portanto, a meu ver, a empresa não pode em nenhuma hipótese desligar o empregado por este motivo”, afirma à revista Consultor Jurídico.
Para ela, se a legislação municipal e estadual exigir vacinação obrigatória para o trabalho de determinado colaborador, a empresa pode deixá-lo em home office. Já em caso de novas contratações, a exigência da vacinação também dependerá da legislação local e da disponibilidade do imunizante.
Posicionamento do Ministério Público do Trabalho
No dia 8 de fevereiro, o Ministério Público do Trabalho (MPT) se pronunciou sobre o tema por meio do procurador-geral do órgão, Alberto Balazeiro. O procurador disse em entrevista ao Estadão Conteúdo publicada pelo jornal O Estado de São Paulo e reproduzida pela Revista Exame que as empresas devem investir em conscientização e seguir um roteiro de sanções que podem levar à demissão por justa causa como última alternativa, caso um funcionário se recuse a tomar a vacina sem apresentar razões médicas documentadas.
Balazeiro diz que um guia interno feito pela área técnica do MPT segue a decisão do STF. Ele também considera os argumentos de que o empregador tem a obrigação de garantir a segurança do ambiente de trabalho e da importância do interesse coletivo sobre o individual. “E sem uma recusa justificada, a empresa pode passar ao roteiro de sanções, que incluem advertência, suspensão reiteração e demissão por justa causa. A justa causa é a última das hipóteses. O guia do MPT não é um convite à punição, mas à negociação e à informação. O que não pode é começar com justa causa nem obrigar ninguém a trabalhar em condições inseguras”, afirmou o procurador-geral.
Fraudemia?
Segundo dados do Ministério da Saúde até o fechamento desta matéria, o Brasil já acumula mais de 230 mil mortos pela Covid-19 e mais de 9,5 milhões de casos da doença. No mundo inteiro, já são mais de 2,3 milhões de vítimas do coronavírus. Estes números e o caos na saúde pública por conta deles demonstram concretamente que não é verdade que a pandemia de coronavírus é uma “fraudemia” criada com fins ideológicos. Segundo o Panorama Humanitário Mundial da ONU, a crise causada pelo coronavírus fez com que a extrema pobreza e a fome aumentassem e projeções para 2021 indicam que cerca de 235 milhões de pessoas ao redor do mundo precisarão de ajuda humanitária neste ano.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) já autorizou o uso emergencial das vacinas CoronaVac e Oxford-Astrazeneca no Brasil, que estão sendo produzidas pelo Instituto Butantan e Fiocruz e já começaram a ser aplicadas nos grupos prioritários. Outras vacinas estão em processo de avaliação. O país sofre, entretanto, com a falta de doses e insumos para a fabricação das outras necessárias, além das disputas políticas e ideológicas em torno da vacina.
Quem é o Padre Carlos Maria de Aguiar?
Padre Carlos Maria de Aguiar se declara vice-presidente da Liga Cristã Mundial. Em uma página na internet, a Liga se descreve como “Instituição sem fins lucrativos que tem como objetivo combater o Terrorismo Islâmico, o Comunismo e promover permanentemente a defesa da Fé Cristã: defender os cristãos, seus direitos, símbolos e cultos”.
A Liga Cristã Mundial participou da organização da 2ª Marcha Cristã pelo Brasil, em 15 de outubro de 2018. O ato teve inspiração na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorrida entre 19 de março e 8 de junho de 1964, manifestações de setores conservadores da sociedade em defesa da ditadura militar.
Na ocasião, segundo a Revista Época, o padre Carlos Maria de Aguiar subiu em um trio elétrico e bradou: “Intervenção para salvar nossa nação!” e qualificou a ditadura militar como “gloriosa e querida”.
Em um perfil em rede social, o pároco se declara “incardinado como diácono” na Diocese de Santo Amaro, em São Paulo. Procurada por Bereia, a Diocese de Santo Amaro declarou:
“Informamos que o Sr. Carlos Valério Batista de Aguiar é clérigo incardinado na Diocese de Santo Amaro. Ele não tem uso de ordens e não exerce o seu ministério no território desta diocese. As suas declarações são de cunho exclusivamente pessoal”.
Diocese de Santo Amaro
O termo “incardinado”, conforme o Pequeno Dicionário Católico, se refere à admissão de um clérigo (padre, bispo, etc.) em uma diocese diferente da qual ele foi ordenado.
Religiosos seguem criando pânico moral com desinformação sobre vacinas
Na verdade, as linhagens celulares desenvolvidas a partir de tecidos humanos servem como “pequenas fábricas” para que os vírus atenuados possam se multiplicar e não fazem parte da composição do produto final. Trata-se do uso de linhagens derivadas de tecidos de dois abortos legais realizados em 1972 e 1985. Postagens enganosas foram feitas sobre este assunto para induzirem pessoas a acreditarem que bebês foram abortados para que a vacina fosse produzida.O uso dessas células não provoca novos abortos. O próprio Vaticano aceita o uso de vacinas produzidas nessas condições diante da falta de alternativas. Para a Igreja Católica, o uso dessas vacinas não constitui legitimação da prática do aborto, mesmo que indireta.
“A Diocese tem sido muita clara em suas orientações ao longo de toda a pandemia: sempre de acordo com as determinações das autoridades sanitárias e no melhor cuidado com a vida; A posição continua a mesma, em nada mudou; A vacina, pela qual esperamos tanto, é um dom em favor da vida . A recomendação da Diocese, com toda a Igreja, é que se acolha a vacina com a maior boa vontade e que se motivem as pessoas para isso. Quem tiver dificuldades, siga as orientações do seu médico. Não devem ser divulgadas notícias desvirtuadas ou falsas. Ninguém está autorizado a passar ao povo, em nome da Igreja, orientações diferentes, nem mesmo que seja um padre; O que o Pe. Claudemir Serafim disse é de sua responsabilidade pessoal. Foi repreendido e exortado a corrigir suas declarações e atitudes, o que se dispôs a fazer.”
Dom João Francisco Salm, bispo diocesano
O Coletivo Bereia avalia que é enganoso que o mundo esteja vivendo uma “fraudemia”, como indica o padre Carlos Maria Aguiar no vídeo amplamente disseminado pelas mídias sociais. A vacinação obrigatória está prevista há muitas décadas na lei brasileira e é muito importante para a erradicação de doenças, inclusive a covid-19.
Sobre a obrigatoriedade em ambientes de trabalho, as restrições dependem de cada localidade e de cada empresa. O padre Aguiar, no entanto, tenta gerar um pânico moral em torno da vacinação e inferir que há um clima de perseguição sobre as pessoas que assumem postura antivacina. Mesmo com as diretrizes do MPT, a demissão por justa causa é a última alternativa de uma série de negociações.
Já a respeito da produção das vacinas contra a Covid-19, é também enganoso afirmar com utilização religiosa que sejam usados fetos abortados para a produção dos imunizantes. O próprio Vaticano não considera que vacinar-se com imunizantes que utilizam essas linhagens seja legitimação da prática do aborto.
* Investigado por Luciana Petersen e Juliana Dias, do Coletivo Bereia, em parceria com Correio 24 horas, Marco Zero Conteúdo e Favela em Pauta. Verificado por Jornal do Commercio, NSC Comunicação, Folha, UOL, Estadão, GZH, Poder360, Piauí, Band News FM e A Gazeta. Publicado originalmente no Projeto Comprova.
É enganoso o vídeo de um canal do YouTube em que o apresentador diz que a pandemia é uma fraude e um crime contra a humanidade e apresenta os argumentos de um advogado alemão para reforçar sua tese. As alegações do advogado, usadas de forma resumida no vídeo brasileiro, não se sustentam cientificamente.
No início do vídeo postado pelo canal Claudio Lessa, no YouTube, ele afirma que o advogado deve ser levado a sério por conta de seu currículo: ações contra a Volkswagen e o Deutsche Bank, além de ser membro do Comitê Investigativo Corona, na Alemanha. O comitê, contudo, não tem qualquer atuação científica e busca, na verdade, aconselhar as pessoas, principalmente empresários, a entrarem com uma ação coletiva contra dois cientistas alemães e contra a Organização Mundial de Saúde (OMS) por danos provocados pelo coronavírus.
No vídeo original, Reiner Fuellmich afirma que o “Escândalo Corona” é provavelmente o “maior crime contra a humanidade já cometido” e que este será o “maior caso de tribunal de todos os tempos”. Para isso, ele diz que a pandemia de coronavírus não existe, que os testes PCR não servem para detectar casos da covid-19, que as medidas de isolamento social, confinamento e uso de máscara não são efetivas e não serviram para proteger a população e, por fim, que não houve em nenhum lugar do mundo excesso de mortes pela ‘peste chinesa’. Nenhuma dessas alegações tem base na realidade.
A pandemia foi reconhecida desde março deste ano pela OMS. Até a manhã desta terça-feira (27), a OMS havia reportado casos em 218 países, áreas ou territórios, com um total de 1,1 milhão de mortos e 43 milhões de diagnósticos no planeta. Além disso, especialistas e estudos ouvidos e analisados pela reportagem atestam que os testes PCR são confiáveis, que as medidas não-farmacológicas são eficazes e que há, sim, excesso de mortes pela doença.
O autor do vídeo original, Reiner Fuellmich, e o responsável pelo canal do YouTube que faz um resumo da argumentação, Cláudio Lessa, foram procurados, mas não responderam até o fechamento desta verificação.
Como verificamos?
Primeiramente, procuramos o vídeo original utilizado como base para a postagem no canal de Claudio Lessa no YouTube. Em seguida, localizamos, a partir do nome do advogado Reiner Fuellmich, mencionado no vídeo, o site oficial de seu escritório, na Alemanha.
A página nos levou a outro site dedicado às ações coletivas e outras reclamações propostas pelo chamado Comitê Investigativo Corona, do qual Fuellmich diz ser membro fundador. Lá, encontramos o mesmo vídeo legendado em outros idiomas. Também entramos em contato com uma agência de checagem alemã, com jornalistas e outros moradores no país e com o Ministério da Saúde da Alemanha, para saber qual a relevância do Comitê Investigativo Corona.
Por fim, procuramos especialistas para obter esclarecimentos sobre testes PCR, medidas não farmacológicas, excesso de mortes e direito internacional – neste caso, para falar sobre a acusação de crimes contra a humanidade. Colaboraram nesta investigação: Chrystina Barros, mestre em Enfermagem, pesquisadora do Centro de Estudos em Gestão de Serviços de Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CESS/COPPEAD/UFRJ) e integrante do Grupo Técnico de Enfrentamento à covid-19 da UFRJ, Rafael Galliez, professor de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da UFRJ e Manoel Moraes de Almeida, titular da Cátedra Dom Helder Câmara de Direitos Humanos, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Consultamos registros sobre os cientistas apontados pelo advogado como autores dos estudos que guiam as conclusões do Comitê Investigativo Covid e também sobre aqueles que são alvos de suas ações. Procuramos ainda o autor do vídeo, responsável pelo canal Claudio Lessa, no YouTube, onde o material foi postado em 17 de outubro com o título “O Fim da Fraude da Peste Chinesa”, e o advogado alemão Reiner Fuellmich.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 27 de outubro de 2020.
Quem é Reiner Fuellmich
Reiner Fuellmich se apresenta como advogado com 26 anos de atuação na Alemanha e nos Estados Unidos. Seu escritório, sediado na cidade de Göttingen, é “especializado na área de proteção ao consumidor e tem experiência em contencioso bancário, bolsa de valores e direito de investimento de capital”, conforme o site oficial. Além disso, há menção de atuação relacionada ao direito médico, ligado à responsabilidade por tratamentos.
No vídeo original, utilizado como fonte pela publicação verificada aqui, Fuellmich afirma ser conhecido por sua atuação nos processos contra a fraude nos motores a diesel da Volkswagen e o escândalo de corrupção do Deutsche Bank. O Comprova encontrou referências ao trabalho de Fuellmich nesses casos em duas publicações em seu site, onde afirma ter ganhado as causas. Procurado para confirmar a atuação do alemão no caso, o Deutsche Bank informou por e-mail que não tinha nada a declarar sobre o assunto. A VW não respondeu às tentativas de contato.
Na capa do site oficial do escritório de advocacia, há uma publicação aconselhando que as pessoas entrem na Justiça com ações de danos provocados pelo coronavírus. Em tradução livre, a mensagem diz o seguinte: “Aconselhamos e apoiamos ativamente as atividades relacionadas com a reclamação de danos no corona”. O texto contém um link que leva a um site sobre uma ação coletiva de danos provocados pelo coronavírus.
Um dos argumentos que aparecem no site é de que o único caminho para enfrentar “uma luta entre Davi e Golias nos tribunais alemães” é por meio de uma ação coletiva. Os interessados devem preencher um formulário com os dados da empresa, fazer uma estimativa dos danos sofridos e pagar uma taxa fixa de 800 euros, além do Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA).
Os alvos da ação são a Organização Mundial de Saúde (OMS), o virologista do Hospital Charitpe, em Berlim, Christian Drosten, e o veterinário Lothar Wieler, diretor do Instituto Robert Koch (RKI), que registra continuamente a situação da covid-19, avalia todas as informações e estima o risco para a população na Alemanha.
No site oficial da ação coletiva, Fuellmich afirma ser membro fundador do Comitê Corona, formado por advogados nos Estados Unidos e na Alemanha.
O que é o Comitê Investigativo Corona e quem eles ouvem?
Segundo informações do site que trata das ações coletivas, o Comitê Investigativo Corona foi uma estratégia pensada nos Estados Unidos, mas que conta com o trabalho de advogados reconhecidos do Comitê Corona de Berlim, a fim de “encontrar respostas a questões relacionadas com a crise do coronavírus”: quão perigoso é o vírus, qual o significado de um teste PCR positivo e qual o dano colateral causado pelas medidas anti-coronavírus na saúde da população e na economia.
A divisão alemã do Comitê Covid é comandada pelos advogados Antonia Fischer, Justus Hoffmann, Cathrin Behn e Tobias Weissenborn – esses dois últimos também membros da equipe do escritório de Fuellmich. De acordo com texto publicado no site, outros advogados também fariam parte do comitê, embora não possam aparecer, por medo de perda de cargos nos setores público e regular, caso suas ações por compensação de danos em decorrência do coronavírus sejam descobertas.
Além das ações coletivas por danos causados pela pandemia, o Comitê também concentra queixas referentes à obrigatoriedade do uso de máscara nas escolas da Alemanha. Também há ações relacionadas aos testes PCR e ao adiamento de procedimentos médicos por causa da pandemia.
O Ministério da Saúde da Alemanha foi procurado, mas não respondeu qual a relevância do Comitê Investigativo Corona no país. Um jornalista alemão consultado pelo Comprova, Lars Wienand, informou que empresários que aderiram à ação coletiva já fazem questionamentos e que “nenhuma pessoa séria na Alemanha se importa com o Comitê Corona”.
Em vídeo gravado por Fuellmich, ele afirma ser um dos quatro membros do Comitê na Alemanha e que, desde o dia 10 de julho, o grupo tem ouvido testemunhos de “um grande número de cientistas e peritos internacionais”, como John Ioannidis, da Universidade de Stanford, na Califórnia; Michael Livitt, Nobel de Química e biofísico na Universidade de Stanford; os alemães Cary Mullen, Sucharit Bhakdi, Knut Wittkowski e Stefan Homburg; e Mike Yeadon, ex-diretor da Pfizer.
O epidemiologista John Ioannidis realmente questiona se as medidas drásticas como fechar escolas e empresas são efetivas, mas não coloca em dúvida a existência da pandemia nem a necessidade de adotar medidas para evitar que o vírus se espalhe. Nesta entrevista à Folha de S.Paulo, Ioannidis diz que a letalidade da covid-19 foi menor do que se previu, mas que ainda há muita incerteza e que, enquanto isso, “medidas não muito disruptivas são importantes”. Segundo ele, quando não há muitas informações – como quando as medidas de restrição foram adotadas – “é preciso prever o cenário mais pessimista”.
Michael Livitt, britânico vencedor do Nobel de Química em 2013, disse em março que a covid-19 não traria grandes riscos à população e que o alto número de mortes na Itália, naquele período, tinha relação com o estilo de vida da população e que, por isso, era necessário manter o isolamento social. Em maio, ele criticou medidas mais rígidas, como o lockdown, e disse que ela custaria mais vidas em decorrência do alcoolismo, violência doméstica e mortes por outras doenças. Mesmo assim, ele defendeu o uso de máscaras e o distanciamento social.
O Comprova não encontrou nenhuma referência a Cary Muellen na ciência – apenas o perfil de um canadense, atleta olímpico de esqui. Sucharit Bhakdi é um microbiologista alemão, coautor do livro “Corona: Alarme Falso?”. Suas declarações foram alvo de checagens na Alemanha, inclusive uma do site Correctiv, que classificou suas declarações numa entrevista sobre o coronavírus e a vacina como “infundadas”.
O epidemiologista alemão Knut Wittkowski é um dos críticos ferrenhos às medidas de distanciamento, como o lockdown. Ele afirmou ao NY Post que um de seus vídeos foi censurado pelo YouTube por criticar a medida. Em um artigo publicado no mês de abril, o epidemiologista disse que as melhores estratégias contra a doença eram a vacina ou o tratamento precoce das complicações da doença. No artigo, há um alerta para conflito de interesses: quando fez a publicação, Wittkowski era CEO da ASDERA LLC, empresa que trabalha buscando tratamento para doenças, incluindo a covid-19.
Stefan Homburg é economista e professor da Universidade Leibniz de Hanover, na Alemanha. Ele é abertamente crítico das medidas adotadas pelo governo alemão e, no mês de maio, expulsou de uma aula online alunos que foram contrários às suas críticas ao lockdown. Ele disse que esperava um pedido de desculpas dos estudantes. Já Mike Yeadon, ex-diretor da Pfizer, também fez críticas ao lockdown e afirmou, numa entrevista ao canal britânico talkRADIO que o governo vem “usando testes da covid-19 com falsos positivos”. Ele é também citado em textos publicados no site Lockdown Sceptics.org, cujo slogan é “Fique cético. Controle a histeria. Salve vidas”.
A pandemia não existe?
Reiner Fuellmich afirma que os advogados do Comitê Corona vêm conversando com esses cientistas e peritos internacionais, cujos trabalhos sustentariam três argumentos principais: o primeiro é de que não existe uma pandemia de coronavírus, e sim de testes PCR que, segundo ele, “não têm qualquer significado em relação à infecção por covid-19”.
O RT-PCR é um teste molecular indicado para ser realizado logo no início da doença, principalmente na primeira semana. De acordo com o Rafael Galliez, professor de doenças infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as técnicas de diagnósticos molecular da covid-19, os RT-PCR, são baseados nos alvos do vírus N1 e N2, originalmente. Os alvos são as regiões de um gene do novo coronavírus (chamado de gene N) que são amplificadas e avaliadas pelo teste.
Galliez explica que todos esses alvos do vírus SARS-CoV-2 foram validados por diferentes técnicas. Ele cita pelo menos duas que foram utilizadas na validação do teste. A primeira é o sequenciamento completo do genoma do vírus, que detecta o código genético completo daquele vírus. E a segunda é o cultivo celular, que permite comprovar o crescimento do vírus em cultivo de células. Ambas as técnicas de validação corroboram com os achados do teste PCR e o uso dos alvos N1e N2 na literatura científica.
“A cultura de vírus em cultura de células humanas têm demonstrado correlação com todos esses testes, mostrando sua sensibilidade e especificidade dentro dos parâmetros necessários para aplicação em larga escala”, afirma o pesquisador que integra o Grupo Técnico de Enfrentamento à covid-19, da UFRJ.
Efetividade das medidas não farmacológicas
O segundo argumento apresentado por Fuellmich e também utilizado por Claudio Lessa em seu vídeo é que as medidas não farmacológicas anticoronavírus, como confinamento, isolamento social, uso de máscara e regras de quarentena, não serviram para proteger a população mundial contra o coronavírus, mas apenas para criar pânico e, assim gerar lucros à indústria farmacêutica e de vacinas e testes, além de colher a “impressão digital genética” das pessoas.
A mestra em Enfermagem Chrystina Barros, pesquisadora do Centro de Estudos em Gestão de Serviços de Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também integrante do Grupo Técnico de Enfrentamento à covid-19 daquela universidade, afirma existirem “estudos publicados a respeito com evidências claras da importância do isolamento para redução da disseminação de doença e assim, para salvar vidas”.
“É inimaginável que haja uma grande conspiração que tenha conseguido unir todos esses diferentes povos e seus representantes, para a criação de uma doença e uma pandemia, para que alguém obtenha vantagem, ainda mais em um mundo tão conectado onde pessoas se falam a todo o tempo e as dores e o sofrimento de quem contraiu a doença são compartilhados publicamente dia após dia”, afirma Chrystina Barros.
Erros recorrentes ao se analisar uma pandemia
Há duas décadas, o biólogo evolutivo e filogeógrafo Rob Wallace, autor do livro “Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência” (Ed. Elefante), estuda a forma como a sociedade moderna organiza suas práticas produtivas e a origem dos vírus de potencial pandêmico que circulam pelo planeta, o que caracteriza como um modo capitalista de produção de doenças.
Wallace analisa, por exemplo, que o vírus da influenza circula há muito tempo entre as aves migratórias. Nos últimos séculos se adaptaram ao modo de vida industrial da humanidade com diferentes sorotipos, tais como H5N1, H5N2, H7N2, H7N7, H9N2, H1N1. De acordo com o autor, é necessário evitar alguns erros ao analisar uma pandemia. O primeiro é presumir que a humanidade foi vítima de uma histeria alimentada pela mídia. “As pandemias anteriores nos ensinam que se preparar para o pior é a opção mais prudente”, escreve o autor.
O segundo erro é aceitar logo de cara que está tudo bem. Ele cita a gripe suína (H1N1) para demostrar que o vírus evolui à medida que se espalha e pode se rearranjar com outras variedades para produzir uma cepa mais infecciosa e mortal. Em outras palavras, ainda é uma incógnita se o H1N1 continuará a imitar os efeitos da gripe sazonal. Ele avalia que o modelo industrial de produção de aves e suínos em cidades de monoprodução de animais em confinamento forma “ecologia quase perfeita” para a evolução de várias cepas virulentas de influenza.
De acordo com Wallace, o SARS-Cov-2, causador da pandemia da covid-19, representa apenas uma das novas cepas de patógenos que subitamente surgiram como ameaças aos seres humanos neste século. O estudioso afirma que o surtos decorrentes das pandemias estão ligados, direta ou indiretamente, às mudanças na produção industrial de alimentos e animais em confinamento, as quais estão associadas à agricultura e pecuária intensiva.
Por isso, esses patógenos não devem ser tratados unicamente a partir de seus cursos de infecção, quadros clínicos, as mais recentes vacinas e outras profilaxias, por mais importante que sejam essas medidas. Wallace chama atenção para as redes de relações ecossistêmicas que o capital e o poder estatal manipulam para proveito próprio e são fundamentais para o surgimento e evolução dessas novas cepas.
Governo alemão pressionado?
Por fim, Fuellmich insinua que o governo alemão sofreu pressão maior do que outros países para aderir às medidas de isolamento. Isso porque, segundo ele, a Alemanha é um país disciplinado e serviria de modelo para outros países no respeito às regras. Os membros que seriam responsáveis por essa maior pressão são: Christian Drosten (virologista do Hospital Charité em Berlim), Lothar Wieler ( veterinário e diretor do RKI, equivalente na Alemanha à Anvisa no Brasil) e Tedros Adhanom, (diretor da Organização Mundial de Saúde).
Christian Heinrich Maria Drosten, um dos alvos do advogado, é o diretor do Instituto de Virologia de Bonn e virologista do Hospital Charité, de Berlim. De acordo com o site Deutschland.de, criado pela agência de comunicação FAZIT para o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, ele tornou-se a voz de referência sobre a covid-19 tanto para o público alemão quanto para o governo federal e os governos regionais do país.
Ele é o assessor do governo alemão para assuntos relativos à covid-19. Semanalmente, desde que começou a pandemia, Drosten também grava um podcast no qual explica, em linguagem simples, os avanços da ciência em relação ao coronavírus e os cuidados que se fazem necessários. Milhões de pessoas escutam o programa regularmente, de acordo com o governo alemão e a mídia do país.
Drosten dirigiu a equipe do Centro Alemão de Pesquisas de Infectologia (DZIF, na sigla em alemão) que, em janeiro de 2020, criou o primeiro teste PCR para diagnóstico do coronavírus. A descoberta foi anunciada no dia 16 de janeiro, conforme o site do DZIF.
Outro alvo do advogado, Lothar H. Wieler é, segundo a OMS, o presidente do Instituto Robert Koch, a instituição oficial de Saúde Pública da Alemanha. Wieler é veterinário e especialista em pesquisas de zoonoses, doenças transmitidas entre animais e humanos.
Já o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon, também apontado como um dos responsáveis pelo “Escândalo do Corona”, não é filósofo, como diz Fuellmich em seu vídeo. Adhanom é mestre em doenças infecciosas pela Universidade de Londres e doutor em Saúde Pública pela Universidade de Nottingham, também na Inglaterra.
Etíope, ele foi ministro da Saúde do seu país de 2006 a 2011. Segundo o canal de mídia alemão Deustch Welle, ele foi responsável pela expansão da estrutura de saúde nas zonas rurais da Etiópia e a criação de, pelo menos, 30 faculdades de medicina. No entanto, ele também é lembrado por ter minimizado surtos de cólera. Em maio de 2017 foi eleito diretor-geral da OMS pelos países que compõem a Assembleia-Geral da entidade e tomou posse no da 1º de julho daquele ano, conforme o site da instituição.
A “peste chinesa” e o excesso de mortalidade
Não é verdade que não houve excesso de mortalidade em nenhum país, como afirma Fuellmich no vídeo. Para começar, precisamos entender o que é “excesso de mortalidade”. Esse conceito é um termo usado em epidemiologia e saúde pública que se refere ao número de mortes por todas as causas durante uma crise além do que esperaríamos ver em condições normais. No caso da pandemia, é necessário saber como os números de mortes totais se comparam ao número médio de mortes no mesmo período nos anos anteriores.
De acordo com o artigo Excesso de mortalidade durante a pandemia de Coronavírus (covid-19), assinado pelos pesquisadores Charlie Giattino, Hannah Ritchie, Max Roser, Esteban Ortiz-Ospina e Joe Hasell, do projeto “Our World in Data”, da Universidade de Oxford, “o excesso de mortalidade é uma medida mais abrangente do impacto total da pandemia nas mortes do que apenas a contagem de mortes confirmadas por covid-19. Além das mortes confirmadas, a mortalidade excessiva captura as mortes que não foram diagnosticadas e informadas corretamente”. Em outras palavras, aponta a diferença entre o número de óbitos esperados e o total observado em um determinado período, como mostrou esta verificação do Comprova.
O trabalho científico desses pesquisadores foi publicado como uma página repleta de gráficos e dados estatísticos atualizados semanalmente com informações do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças e do Human Mortality Database, centro de estudos mantido pelo Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica, Universidade da Califórnia-Berkeley e do Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined), da França. Todos os dados e gráficos podem ser usados livremente.
E o que dizem esses números? Que houve, sim, excesso de mortalidade em vários países europeus e nos Estados Unidos, comparando-se à média dos cinco anos anteriores.
Na semana de 5 a 12 de abril, por exemplo, morreram nos Estados Unidos 78.769 pessoas. A média dos cinco anos anteriores (2015-2019) foi de 54.346 óbitos. É possível conferir o gráfico clicando aqui.
Na Espanha, o número de mortes entre 30 de março e 5 de abril foi 154% maior do que a média dessa mesma semana entre 2015 e 2019. Na Inglaterra e País de Gales, o excesso de mortalidade foi de 59% no mesmo intervalo de tempo. Na Noruega, onde o isolamento social e as medidas restritivas começaram mais cedo e foram mais intensas, o excesso foi de 4%, caindo para -1% na semana de 20 a 26 de abril. É possível conferir o gráfico clicando aqui.
Outros dois artigos acadêmicos dos economistas Janine Aron, pesquisadora-sênior do Institute for New Economic Thinking e pesquisadora associada do Nuffield College, da Universidade de Oxford, e de John Muellbauer – pesquisador-sênior do Nuffield Colleg e professor de Economia da Universidade de Oxford – também constatam o excesso de mortalidade e comparam os dados de alguns países.
No primeiro artigo, publicado em 29 de junho de 2020, a dupla de pesquisadores fez comparações entre países europeus (inclusive a Alemanha) e por faixas de idade. Na Bélgica, o excesso de mortalidade ao longo das semanas de pandemia foi de 110%, na França, 97% e no Reino Unido, 80%.
Aaron e Muellbauer também compararam o excesso de mortalidade por faixa etária, concluindo que, para a faixa em idade ativa, dos 15 aos 64 anos, a Inglaterra teve as maiores taxas de mortalidade excessiva. A Espanha teve a mortalidade mais alta durante as semanas da pandemia para a faixa acima de 85 anos.
Em um segundo artigo publicado três meses depois, em 29 de setembro, os mesmos economistas de Oxford fazem uma análise do excesso de mortalidade nos Estados Unidos e comparam os dados com os dos países europeus.
Logo na introdução do artigo, Aaron e Muellbauer afirmam que “ao comparar as taxas de mortalidade excessiva, uma forma mais robusta de relatar mortes por pandemia, a taxa de mortalidade excessiva cumulativa da Europa de março a julho é 28% menor do que a taxa dos EUA, contradizendo a afirmação do governo Trump de que a taxa europeia é 33% maior. O Nordeste dos Estados Unidos – a região mais comparável com países europeus individuais – experimentou mortalidade excessiva substancialmente pior do que os países mais afetados da Europa. Se os EUA tivessem mantido sua taxa de mortalidade excessiva abaixo do nível da Europa, cerca de 57.800 vidas americanas teriam sido salvas”.
No trabalho, os economistas usaram os números de excesso de mortalidade do CDC para os Estados Unidos, comparando-os com os dados do Human Mortality Database para a Europa.
Em números absolutos, o excesso de mortalidade acumulado da 9º à 30ª semana de 2020 (de março ao final de julho) nos Estados Unidos foi de pouco mais de 207 mil mortes, o que, em termos percentuais, representa uma taxa de excesso de mortalidade de 17,2% em relação aos anos anteriores. Em toda a Europa, incluindo o Reino Unido, essa taxa foi de 12,4%.
Crime contra a humanidade
Procuramos o jurista Manoel Moraes de Almeida, titular da Cátedra Dom Helder Câmara de Direitos Humanos, da Universidade Católica de Pernambuco, que descartou a possibilidade de que as medidas de distanciamento social e fechamento da economia adotadas em vários países configurassem um crime contra a humanidade.
Crime contra a humanidade é um termo do Direito Internacional que, inicialmente, foi estabelecido pelo Acordo de Londres, de 1945, que fundamentou o tribunal de Nuremberg e o julgamento dos criminosos de guerra nazistas. A partir desse julgamento, caracterizou-se que esses crimes não prescrevem e que devem ser julgados a partir de uma base jurídica internacional. Essa base tomou forma e foi consolidada com o Estatuto de Roma, em 1998, assinado por 122 países e que criou a Corte Penal Internacional.
“Os crimes contra a humanidade, diferentes dos crimes de guerra, podem ser cometidos tanto em tempos de paz quanto em tempos de guerra. Não são fatos isolados ou esporádicos que caracterizam o crime contra a humanidade, mas sim fatos cometidos sistematicamente por governos e/ou seus agentes contra a população ou parte dela e que resultem em massacres, assassinatos em massa, extermínio, execuções sumárias, sequestros de crianças, uso militar de crianças, estupros sistêmicos, escravidão, canibalismo ou tortura”, explica o jurista.
As medidas contra o avanço da pandemia não se enquadram nesses critérios. “Neste caso, as medidas dos governos têm o objetivo definido de salvar vidas e estão amparados pelo direito sanitário, regulamentado a nível global pela OMS. O oposto é que seria condenável”, declarou.
A Corte Penal Internacional tem ampliado o entendimento do que é crime contra a humanidade, que passou a ser julgado em níveis continentais. O Brasil foi condenado por crime contra a humanidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar, processar e prender os responsáveis pelo assassinato de Vladimir Herzog, em 1975.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova investiga conteúdos suspeitos que tenham viralizado nas redes sociais sobre a pandemia e sobre políticas públicas do governo federal. Quando esses conteúdos tratam de formas de prevenção ou de tratamento da doença causada pelo novo coronavírus, a checagem se torna ainda mais importante, já que a desinformação pode levar as pessoas a deixarem de se proteger e se expor a riscos desnecessários, durante uma doença que já causou 157,1 mil mortes e infectou 5,3 milhões de pessoas no Brasil, segundo o Ministério da Saúde.
A publicação do vídeo no YouTube do canal Claudio Lessa teve 168 mil visualizações, o que fez ampliar o acesso ao conteúdo criado pelo advogado Reinner Fuellmich em diversos idiomas, com o intuito de dar mais visibilidade a sua ação coletiva contra o que chama de ‘Pandemia ProCorona’ – os vídeos originais traduzidos para o inglês, espanhol e francês somam quase 100 mil visualizações. Além da importância para a saúde, o tema também se relaciona com a política já que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) adota um discurso contrário às medidas para conter o coronavírus e até contra as vacinas em teste.
O Bereia completou um ano de atuação em 31 de outubro de 2020. Como parte deste marco tão importante, é apresentado um aprofundamento de levantamento publicado em junho de 2020 com um balanço das verificações realizadas pelo coletivo durante esse período.
Foram levadas em consideração todas as publicações da seção “Verificamos” do site Bereia, que se referem à checagem de veracidade de conteúdos informativos sobre religião que circulam em espaços digitais, encontrados pela equipe do coletivo ou indicados por seguidores/as (textos analíticos da seção Areópago não foram considerados). No total, nos doze meses de atuação do Coletivo Bereia (outubro de 2019 a outubro de 2020) foram realizadas 133 verificações de conteúdos, distribuídas conforme o gráfico a seguir:
No que diz respeito ao conteúdo qualitativo dessas checagens, serão expostos a seguir dados quanto à classificação do tipo de informação aos temas e às fontes de informação mais recorrentes nos conteúdos avaliadas.
Classificação por tipo de informação
Há pouca variação entre os dados de classificação apresentados na análise realizada em junho passado. Mais da metade das matérias publicadas por Bereia (60%) ainda concluem que os conteúdos verificados são falsos e enganosos. Pouco mais de 20% ainda representam conteúdos imprecisos e inconclusivos, ou seja, que não apresentam fundamentos para a informação transmitida ou não apresentam recursos necessários para a avaliação de sua veracidade. E apenas 19,20% são confirmadas como verdadeiras.
Temas abordados
Neste aspecto, é possível notar algumas alterações em relação à última análise. Desta vez, o conteúdo que mais se destaca na base de dados como o mais citado é Política Brasileira, com 25,20% dos casos verificados. Na sequência, está “Perseguição Religiosa”, representando 21,26% das notícias e em terceiro, com percentual de 20,47%, está Saúde (com ênfase em coronavírus), que aparecia como o assunto mais citado na última avaliação. Tal fato pode ser atribuído a redução dos casos da COVID-19 no âmbito nacional e a diminuição do espaço de divulgação de informações sobre a pandemia nas mídias. Além disso, o fato de 2020 ser um ano de eleições municipais, o tema se destaca ainda mais no dia a dia da população informações relacionadas ao cenário político.
Fontes de desinformação mais citadas
Quanto as fontes de desinformação mais recorrentes nas verificações do Bereia, o Twitter ainda se destaca como a principal, representando um percentual de 23,47 % nas matérias produzidas. Outras mídias sociais como WhatsApp e Facebook, além da categoria “Mídias digitais variadas” utilizada quando a informação não parte de uma mídia específica, mas para um conjunto delas, são ressaltadas na visualização de dados. Juntas, as plataformas de mídias digitais representam quase 60% das fontes de informação de conteúdos verificados pelo coletivo. Isto remete mais uma vez para o alerta do tipo de informação publicada nestas plataformas, que contam com critérios ainda pouco efetivos para o enfrentamento da desinformação.
As demais fontes são de sites religiosos de notícias, que recorrentemente publicam conteúdo que representam mais uma defesa de suas ideologias e valores morais. Destaca-se o portal Pleno News, como aquele que mais ofereceu material para ser verificado, seguido do Gospel Prime, do Gospel Mais, do CPAD News e do Conexão Política como os espaços digitais com vinculação religiosa que mais produzem desinformação.
Bereia reafirma um alerta aos leitores, para que não deem crédito ou compartilhem informações que não estejam fundamentadas em dados ou tenham sido expostas em veículos de informação não credenciados. O Bereia, neste um ano de atividades, renova o compromisso de atuar pela informação verdadeira e responsável e se dispõe como parceiro de maneira cada vez mais presente, colaborando a partir da metáfora bíblica de “separar o joio do trigo”, pelos próximos longos anos que espera servir.
Confira o balanço e perspectivas no enfrentamento à desinformação em espaços religiosos
Como parte das comemorações do aniversário de 1 ano do Bereia, foi realizada uma live através do Facebook com o balanço de atividades e novas perspectivas no enfrentamento à desinformação em espaços religiosos. Confira o vídeo abaixo:
Segundo o Manual para Educação e Treinamento em Jornalismo produzido pela UNESCO, a desinformação é uma história antiga, fomentada por tecnologias novas.
Um dos primeiros registros vem da época da Roma Antiga, quando Antônio encontrou-se com Cleópatra e seu inimigo político, Otaviano, lançou uma campanha de difamação contra ele com slogans curtos e afiados, escritos em moedas no estilo dos tuítes arcaicos.
O transgressor tornou-se o primeiro imperador romano que utilizou fake news como arma política, permitindo que Otaviano invadisse o sistema republicano de uma vez por todas.
Em uma escala sem precedentes, o século 21 transformou a informação em armamento. Novas e poderosas tecnologias simplificam a manipulação e a fabricação de conteúdo, e as mídias sociais ampliam dramaticamente falsidades propagadas por Estados, políticos populistas e entidades corporativas desonestas.
A propagação de desinformação com temática religiosa é assunto ainda mais sensível. O Coletivo Bereiacheca fatos publicados periodicamente em mídias religiosas e em mídias sociais que abordem conteúdos religiosos, além de pronunciamentos de autoridades e personalidades ligadas à religião.
O Coletivo fez um levantamento das temáticas de todas as checagens publicadas na seção “Checamos” do site, entre os dias 12 de dezembro de 2019 e 09 de junho de 2020, e oferece aos leitores e leitoras um quadro do universo da desinformação religiosa.
Desinformação religiosa: levantamento das checagens do Bereia
Esta avaliação levou em consideração as checagens realizadas num período exato de 180 dias. Foram analisados todos os artigos presentes na página de checagens no sítio doColetivo Bereia, dentre estas, sete foram desconsiderados, por se tratarem de textos reflexivos relacionados a fatos ocasionados por notícias falsas ou duvidosas e não sobre uma checagem de fatos, propriamente dita. Sendo assim, um total de 53 checagens compuseram a análise.
A primeira observação foi quanto à classificação das notícias. São utilizadas 5 categorias para as checagens. São elas: Verdadeiro, Falso, Enganoso, Inconclusivo e Impreciso. O seguinte panorama foi encontrado na observação desse aspecto:
Como é possível observar no gráfico acima, a maior parte das notícias (30%) foi classificada como Enganosa seguida das Falsas com 28%. No total, 77% são informações cuja veracidade não pode ser confirmada. Isto já aponta que, em grande parte das vezes que o Coletivo Bereiarecebe uma notícia suspeita, há grandes possibilidades de ela não ser verdadeira ou não haver possibilidade de realizarmos essa comprovação.
Quanto aos assuntos mencionados nas notícias checadas, foi realizada uma segmentação do conteúdo com base em uma avaliação geral das checagens publicadas no site. As 7 principais categorias de temas mais recorrentes de assuntos: Sexualidade, Saúde (com ênfase em Ccoronavírus), Perseguição Religiosa, Marxismo e Comunismo, Política Brasileira, Política internacional e, também foi incluída a categoria “Outras”.
Identificamos que a maior parte das notícias avaliadas pelo Bereia no período pesquisado foi sobre saúde em assuntos relacionados ao Coronavírus. Por ser uma das discussões mais importantes do cenário mundial neste período, é coerente o que as estatísticas apontam. A pandemia é causada por um vírus ainda pouco conhecido no âmbito científico, por isso, gera incertezas para toda população e abre margem para que notícias de diversas fontes e, muitas vezes, sem embasamento, causem impacto na população. Em segundo lugar, a categoria PolíticaBrasileira, uma justificativa possível para que ocupe tamanho espaço entre as checagens do Bereia é que, por vezes, o cenário político e o religioso caminham em proximidade. O Bereia monitora constantemente os líderes políticos ligados a bancadas religiosas, e é comum haver posicionamentos de líderes religiosos a respeito de questões políticas. O terceiro tema mais recorrente é a Perseguição Religiosa. Infelizmente, com frequência, veículos de comunicação se utilizam de cenários onde esse tipo de perseguição de fato acontecem, disseminando assim, notícias, em sua maioria, impossibilitadas de serem verificadas.
Em relação às fontes das notícias que são alvo das verificações do Coletivo Bereia, identifica-se as dez mais recorrentes:
Como observado, a maior parte das notícias é originada no Twitter, em segundo lugar no Facebook e em terceiro no WhatsApp. Juntas, as notícias originadas de mídias digitais representam 50% das análises realizadas pelo Bereia. Isso atenta para que leitores e leitoras estejam alertas para informações identificadas nestes meios cuja veracidade precisa ser confirmada antes de serem compartilhadas pelos usuários destas plataformas.
Quanto aos sites, a maioria é ligada a organizações ou indivíduos religiosos, por isso, muitas vezes publicam com um viés de reforçar e corroborar com o posicionamento de determinada denominação ou político, pois, há veículos de comunicação evangélicos ligados à parlamentares. Há uma grande quantidade de notícias enganosas checadas pelo Bereia relacionadas a estes sites, que, por vezes, apresentam fatos reais de forma distorcida, e confundem o leitor em relação àqueles conteúdos.
Observando o gráfico das checagens realizadas pelo Bereia, destacam-se os sites voltados para o público religioso que se apresentam como os mais frequentes entre as checagens. São eles: Gospel Prime e CPAD News.
Baseando-se nos dados citados, realizamos uma análise sobre os principais sites que promovem fake news.
Gospel Prime
Fundado em 2008, Gospel Prime se declara um portal de conteúdo cristão voltado para notícias, estudos bíblicos e colunas de opinião, com missão de “Defender os princípios e valores do Reino através de notícias, estudos bíblicos e colunas de opinião, contribuindo assim para uma igreja madura e contextualizada com os tempos”.
Com slogan “O cristão bem informado”, o site atrai 385 mil visitantes orgânicos por mês e declara já ter recebido 190 milhões de usuários desde sua fundação.
Gospel Prime aparece como fonte de 11% das checagens do Bereia, sendo três notícias enganosas e duas imprecisas:
Como já exposto em checagem anterior, Gospel Prime foi citado no ranking da revista Época, em matéria publicada em 23 de abril de 2018, como o número um de uma lista com os 10 maiores veiculadores de notícias falsas no país. A matéria intitulada “O Exército de Pinóquios” se baseou em levantamento nos bancos de dados do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP) e do Laboratório de Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Durante dois meses, foram listados mais de 200 sites na pesquisa, dos quais 69 continham conteúdo suspeito.
CPAD News
CPAD News é o portal de notícias oficial da Igreja Assembleia de Deus. Fundado em 2010, o portal é ligado à Editora CPAD e concentra 12 mil visitantes orgânicos por mês. Sobre o site, a CPAD escreve:
Utilizando os mesmos recursos dos maiores portais de notícias do Brasil, o CPAD News atende ao principal quesito da informação na internet: tempo real. Notícias do universo cristão no Brasil e no mundo, ampla cobertura de notícias de interesse geral atualizadas a todo o momento, conteúdos exclusivos e interatividade através de inúmeros recursos tecnológicos estão à disposição dos usuários em
Bereia checou duas notícias do CPAD News, ambas classificadas como inconclusivas:
Duas frentes contra a desinformação e o discurso de ódio: Comissão Parlamentar Mista de Inquérito no Congresso Nacional e Inquérito aberto no Superior Tribunal Federal.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, determinou, em março de 2019, abertura de inquérito criminal para apurar “notícias fraudulentas”, ofensas e ameaças, que “atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. A investigação foi objeto de análise do Bereia,
Dias Toffoli nomeou o ministro Alexandre de Moraes como relator do processo. A portaria não delimita um objeto específico ou grupo a ser investigado, apenas as possíveis infrações. Mais informações sobre este inquérito podem ser verificadas em uma análise já realizada pelo Bereia, disponível aqui.
Investigações e ações da Polícia Federal aconteceram desde o início, no entanto, a operação de maior repercussão aconteceu mais de um ano depois da abertura do inquérito.
No dia 27 de maio de 2020, a Polícia Federal fez uma grande operação para cumprir mandados de busca e apreensão relacionados ao inquérito aberto pelo STF. Foram 29 mandados cumpridos em cinco estados e no distrito federal. Os alvos foram supostos envolvidos no financiamento e divulgação de ofensas, ataques e ameaças aos Ministros do STF.
Em seu site, Sara Winter informa ser ex-feminista e relata que após passar por um aborto, converteu-se ao catolicismo. Ainda conta que é escritora e seu primeiro livro se intitula “Sete vezes que o Feminismo me traiu”. Está prestes a lançar sua nova obra com o título “Como tirar sua filha do Feminismo: um guia para pais desesperados”, que será prefaciada pela Ministra de Estado Damares Alves.
Além do inquérito do STF, o Congresso Nacional instalou, em 4 de setembro de 2019, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news. A deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA) é a relatora das investigações. O senador Ângelo Coronel (PSD-BA) foi eleito presidente da comissão. O requerimento para a criação da CPI foi feito pelo deputado Alexandre Leite (DEM-SP) e recebeu o apoio de 276 deputados e 48 senadores.
Depoimentos feitos à comissão apontaram a participação de dois filhos do presidente, Eduardo e Carlos Bolsonaro, e de assessores próximos em campanhas na internet para atacar adversários, por meio de um possível “Gabinete do Ódio”, instalado no Palácio do Planalto.
Aliada do presidente Jair Bolsonaro desde a campanha presidencial e agora sua adversária política, a deputada federal evangélica, Joice Hasselmann (PSL-SP), que até pouco tempo ocupava o cargo de líder do governo na Câmara, apresentou um dossiê à comissão em que aponta “milícias digitais” que praticam ataques orquestrados aos adversário do presidente da república e de seus filhos. Os ataques, segundo a deputada, seriam impulsionados por perfis falsos e robôs e teriam como operadores assessores dos gabinetes da família Bolsonaro e funcionários do executivo federal.
Em conversa com a BBC Brasil, a relatora da CPMI informou que existem três núcleos sob investigação: “o operacional, que conta com assessores de deputados estaduais e federais; o distribuidor, que envolve sites e blogs; e o núcleo econômico, que todos queremos identificar”. Um dos objetivos próximos passos da CPMI é “seguir o caminho do dinheiro”.
Em 2 de abril de 2020, deputados e senadores decidiram prorrogar por mais 180 dias a Comissão Parlamentar de Inquérito das fake news.
A relação entre mídias digitais, política e fake news foi tema do documentário Privacidade Hackeada, que mostrou como a privacidade de dados dos usuários na internet é frágil e pode ser utilizada indevidamente. A empresa de dados Cambridge Analytica se tornou o símbolo do lado sombrio das redes sociais após a eleição presidencial de 2016 nos EUA. O documentário está disponível para acesso na plataforma Netflix.
Diante disso, e em meio ao turbilhão de informações, o Coletivo Bereia surgiu com o propósito específico de combater a desinformação de cunho religioso difundida em mídias sociais digitais e sites, além de verificar os pronunciamentos feitos por lideranças religiosas ou políticas ligadas a alguma denominação religiosa.
A intenção do projeto é contribuir para um debate mais transparente dos assuntos religiosos, muitas vezes usados como pano de fundo para desinformar, manipular e confundir com vistas a algum ganho escuso.
Bereia oferece a oportunidade a leitores e leitoras de fazerem uma leitura crítica das informações e tirarem suas conclusões baseadas em fontes oficiais e verificáveis. Há reflexões, levantamentos e também a “Torre de Vigia“, seção dedicada a checagens de notícias e pronunciamentos de pessoas ligadas à gestão pública e com filiação religiosa. Além das checagens, Bereia publica artigos de opinião de especialistas na área de religião e comunicação na seção “Areópago“.
Para saber mais sobre fake news e eleições manipuladas:
Documentário: Privacidade Hackeada. Entenda como a empresa de análise de dados Cambridge Analytica se tornou o símbolo do lado sombrio das redes sociais após a eleição presidencial de 2016 nos EUA.
Publicado originalmente no Instituto Socioambiental (ISA), Milene Maia Oberlaender*
Hoje é Dia Mundial do Meio Ambiente e, nesse dia, compartilho com você a história de uma parceria que nasce no seio da nossa atuação em defesa dos povos da floresta – os povos com quem trabalhamos há bastante tempo e que vivem da floresta e pela floresta, cuidando do meio ambiente e garantindo floresta em pé. Dessa vez, nossa parceria é com os quilombolas.
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e o Instituto Socioambiental (ISA) lançaram, no dia 28/5, o Observatório da Covid-19 nos Quilombos. A plataforma online, com dados atualizados sobre casos da doença nos territórios quilombolas de todo o Brasil, apresenta casos monitorados, confirmados e óbitos decorrentes da Covid-19 entre quilombolas.
Essa iniciativa única só é possível porque Conaq e ISA trabalharam juntos para monitorar e divulgar os casos, uma informação pública de extrema importância.
Ao fazer esse monitoramento, queremos evitar subnotificações de casos, o não cumprimento dos direitos constitucionais e a não efetivação da titulação definitiva dos territórios.
Os quilombolas estão em uma situação de extrema vulnerabilidade. Desde que a Covid-19 causou seu primeiro óbito em quilombolas, tem morrido um quilombola por dia. A plataforma de monitoramento nasceu para apoiá-los com informações e para pressionar o governo para implementar políticas públicas emergenciais para estas populações. Além disso dar transparência à sociedade civil sobre a situação do Covid-19 nos quilombos, porque o racismo estrutural e institucionalizado não evidencia a real situação. Saiba mais aqui.
Sandra Maria Andrade, coordenadora da Conaq, conta que “a maioria dos territórios está distante de hospitais estruturados e próxima a municípios onde a saúde é sucateada e onde não chegam nem mesmo os testes rápidos.”
“Mais uma vez, deliberadamente, a população quilombola desse país é colocada no esquecimento, na invisibilidade e é excluída do processo de distribuição das políticas públicas. Neste sentido, a plataforma tem o objetivo de concentrar as informações em um espaço com frequentes atualizações”, afirma
Além de visitar a plataforma, assista à live de lançamento dessa iniciativa, que contou com a participação da Sandra Maria Andrade, da Conaq, da Jurema Werneck, da Anistia Internacional e do ISA.
Dentre as várias formas de lutarmos pelo Meio Ambiente, estarmos juntos na luta pela sobrevivência dos quilombolas – “As vidas quilombolas importam!” – é uma das mais poderosas! Confira a plataforma https://quilombosemcovid19.org/
Nota do CONAQ sobre desinformação e descaso quanto à população quilombola
Nós, Quilombolas do município de Moju, em razão da resposta apresentada pelo Sr. GABRIEL PEREIRA LIRA, Procurador Geral do Município de Moju – PA, ao Dr. BRUNO BECKEMBAUER SANCHES DAMASCENO, Promotor de Justiça. Vimos apresentar nossas devidas considerações.
A resposta do Sr. Lira apresenta um conjunto de justificativas bonitas, porém em desacordo com a realidade de nossas comunidades. De acordo com o Sr. Lira, a prefeitura de Moju, criou um Plano de Contingência consistente para o enfrentamento ao Coronavírus (COVID -19), e conforme consta no referido plano, (Esqueceu dos Quilombolas). “Os pacientes com sintomas não graves estão sendo atendidos e recebendo as medicações receitadas nas Unidades de Saúde (UBS’s) e no ambulatório municipal. Os pacientes com febre, tosse, falta de ar, estão sendo atendidos e recebendo todas as medicações necessárias na Unidade Mista de Saúde” (Esqueceu dos Quilombolas). Complementa que essas medidas têm evitado o agravamento da doença, descentralizado o atendimento, evitado o deslocamento da zona rural para o centro da cidade e, principalmente, o estrangulamento das unidades de saúde municipal. (Menos os quilombolas)
Quando o Sr. Lira afirma que as medidas da gestão municipal: “têm evitado o agravamento da doença, descentralizado o atendimento, evitado o deslocamento da zona rural para o centro da cidade”, aqui demonstra claramente que no seu entendimento, e porventura o da prefeitura, preconceituoso, o município só é composto pela parte urbana da cidade, pois busca “evitar o deslocamento da zona rural para o centro da cidade”, criando mecanismos de contenção para promover o isolamento social, mas desconsidera o contrário, criar mecanismos de contenção para também evitar o deslocamento do centro da cidade para a zona rural, visto que em nossas comunidades há um enorme trânsito de moradores da cidade, vindo utilizar nossos balneários e outros recursos e, por sua vez, trazer o vírus as nossas comunidades.
Não há um sistema de monitoramento e controle de trânsito em sentido contrário, o que nos indigna em saber que nossas vidas são desconsideradas como mojuenses, visto que é concebida como se fossemos invisíveis, o resto, os sub-cidadãos.
Ao apresentar medidas que estão sendo tomadas pela prefeitura, por meio de sua Secretaria Municipal de Saúde, afirma que a prefeitura iniciou diversas campanhas de conscientização, distribuição de mascaras e materiais de higiene e limpeza em todas as regiões do município, (Esqueceu-se dos Quilombolas) “os quais impuseram medidas de restrições ao deslocamento de pessoas, ao comércio local, visando evitar aglomerações e promovendo o chamado isolamento social, sendo está a única medida eficaz de – combate ao – contágio no território municipal e como justificativa a realidade questionada pelas comunidades quilombolas”, dá exemplo das comunidades abrangidas pelas Unidades Básicas de Saúde – “Nossa Senhora das Graças” e São Manoel”, localizadas em nossos territórios quilombolas. Afirmando que nessas UBS são realizadas consultas médicas, testagem, distribuição de medicamentos, mascaras, kits de prevenção à COVID 19, entre outros.
Essas afirmações de medidas apresentadas em nossas comunidades são completamente fora da realidade e descabidas, aumentando nossa indignação. Primeiro porque nossos postos de saúde estão em decadência e sem estruturas adequadas há anos, não tendo condições de responder por situações contingentes de pandemias, visto que nem do trabalho usual conseguem dar conta da demanda de assistência à saúde.
O que demonstra que o sistema de saúde municipal é deficiente em relação aos postos localizados nas comunidades quilombolas a ponto de comprometer até a atenção básica à saúde, verdadeiro motivo de suas existências. Parece que os gestores nem sabem da real situação de nossos postos para virem afirmar que “são realizadas consultas médicas, testagem, distribuição de medicamentos, mascaras, kits de prevenção à COVID 19”.
Não podemos aceitar que afirmações como: testagem, distribuição de medicamentos, mascaras, kits de prevenção à COVID 19 possa ser apresentada como uma realidade em nosso território. Vamos aos fatos apresentando a realidade de dois exemplos citados pelo Sr. Lira:
1. UBS São Manoel – O posto está em condições de inadequação para uso (veja fotos em anexo), não há médicos e nem enfermeiros, sendo cuidado apenas por um Agente de Saúde. Quando houveram casos de sintomas parecidos aos da COVID-19, os comunitários tiveram que deslocar-se para a UBS Nossa Senhora das Graças para receber atendimento mínimo. Houve, de março para cá dezenas de pessoas acometidas por doença, cujos sintomas, os colocam como suspeitos de COVID-19, nas comunidades da região de São Manoel e que não sabemos a real situação, visto que não foram testados, por não houver testes disponíveis em nossos postos de saúde.
2. UBS Nossa Senhora das Graças – Se houve entrega de material, testagem, mascaras, par a prevenção à COVID-19, as comunidades não foram informadas, pois há falta desses materiais nessa UBS. Faltam inclusive produtos e medicamentos básicos como hipoclorito e paracetamol. A ambulância que devia estar fazendo o trabalho de transportar pacientes em situação de risco, em diversos casos, não se encontra na comunidade. O médico e a enfermeira da UBS Nossa Senhora das Graças adquiriram sintoma que se assemelharam a Covid-19, deixando o posto sem profissionais e sem atendimento por um período, e não foram encaminhados outros profissionais para os substituírem no posto e poder permitir o funcionamento normal e efetivo diante dessa situação de emergência que vivemos.
3. UBS da Ribeira – O posto foi pintado em novembro/dezembro de 2019 e desde esse período está fechada, servindo como abrigo a morcegos. Na comunidade da Ribeira muitos ficaram doentes com sintomas da COVID-19 e pelas dificuldades de transporte, não conseguiram se consultar na Unidade Mista de Saúde de Moju, os casos graves foram deslocados para Belém por conta própria, pois, sabemos da realidade que infelizmente nosso município nos oferece: sem respiradores e sem UTI, deixando nossas comunidades sem nenhum suporte por parte da Prefeitura.
De acordo com o plano de contingência apresentado, o Núcleo de Vigilância em Saúde (NUVS), através da Atenção Básica, se deveria: Orientar os profissionais de saúde dos estabelecimentos de atenção básica, Unidades Básicas de Saúde, quanto aos protocolos e fluxos estabelecidos para o atendimento, manejo e vigilância epidemiológica do 2019-nCoV estabelecidos nacionalmente, para: Garantir a detecção oportuna de casos de síndrome gripal; Avaliar todo caso de síndrome gripal quanto ao histórico de viagem e contatos, conforme definição de caso; Notificar imediatamente a vigilância epidemiológica municipal; Garantir o manejo do paciente, conforme protocolo de manejo e tratamento de síndrome gripal e respiratória aguda grave.
Vale lembrar que até mesmo os ACS, por exemplo, relatam que para atuarem corretamente na condição dessa pandemia, tiveram que aprender por conta própria. Assim, faltou e ainda falta orientação aos agentes de saúde para procedimentos adequados diante da situação. Os Agentes Comunitários de Saúde de nossas comunidades tiveram de buscar informações na internet e nas mídias para poder orientar aos comunitários, eles receberam duas máscaras e um vidro de álcool em gel para trabalhar o mês todo.
Não receberam nenhum material impresso de orientação ou divulgação sobre as formas de prevenção para distribuir às famílias. Esses Agentes tiveram que ser criativos de sua forma para poder dar as orientações adequadas às pessoas deixando esses técnicos e profissionais sem saber o que fazer diante dessa pandemia e vendo as condições de saúde de nossos comunitários em desolação.
No início de março os quilombolas da comunidade de Jacunday acionaram o Secretário de Saúde do Município, o Sr. Michel Garcia, para tomar providências na comunidade diante de uma situação de 21 pessoas com sintomas parecidos aos da COVID-19, o Sr. Secretário ficou de enviar uma equipe para fazer testagem desde março e até hoje nenhuma equipe apareceu na comunidade. As demais comunidades: Juquiri, Bosque, Mou-miri, Laranjituba, África, Samaúma, Cacoal, Espirito Santo e Castelo, são comunidades que não tem postos de saúde e não houve atendimentos de algumas espécie para os casos vinculados a pandemia. Assim como o Jacunday, África e Moju Miri,também acionaram o secretário de saúde e mais uma vez não tiveram seus pedido atendidos.
Vacinas básicas com as da gripe que deveria ter chegado junto com a campanha que foi realizada a nível nacional, por exemplo, ainda não chegou aos territórios de Jambuaçu e demais. Temos idosos, pessoas em situações de risco, crianças, todos desassistidos nesse momento especial.
Essa é a realidade de nossos territórios, que diverge das informações apresentadas pelo Sr. Lira e nos deixa indignados com a desinformação que nos é apresentada, mas também com o descaso com que somos tratados. Não temos dados concretos da realidade de nossos territórios, não sabemos quantos casos reais temos, nem a situação que estamos, se nossa realidade está no nível de Alerta, Perigo Iminente ou Emergência em Saúde Pública. Pois, não temos diagnóstico de nossas áreas para afirmar nossa real situação.
Por esses motivos, apresentamos nosso repúdio aos esclarecimentos dados pelo Sr. Lira, visto que desconhece nossa realidade, busca fazer propaganda de fatos inverídicos e tem viés discriminatórios às comunidades quilombolas, apresentando um despreparo e descuido com as informações apresentadas, o que leva a nós quilombolas a nos sentir ofendidos diante dessa resposta mal formulada.
Por fim, queremos dizer que existem comunidades quilombolas para além do Jambuaçu que o plano de ação em nenhum momento se refere a nenhum quilombola, comprovando o descaso com essa população que, por lei tem direito à políticas com recorte racial. Aproveitamos para convocar os gestores municipais para uma visita as nossas comunidades para conhecer a realidade.
Atenciosamente, assinam a nota as Comunidades Quilombolas de Moju:
1- Comunidade Quilombola São Sebastião – Jambuaçu 2- Comunidade Quilombola Laranjituba; 3- Comunidade Quilombola Cacoal ; 4- Comunidade Quilombola Espirito Santo; 5- Comunidade Quilombola Moju Miri; 6- Comunidade Quilombola África; 7- Comunidade Quilombola São Jorge; 8- Comunidade Quilombola Sitio Bosque; 9- Comunidade Quilombola Juquiri; 10- Comunidade Quilombola Santa Maria – Jambuaçu; 11- Comunidade Quilombola Jacunday; 12- Comunidade Quilombola São Manoel – Jambuaçu; 13- Coordenação Estadual das Associações Quilombolas do Pará; 14- Bambaê Quilombola – Coordenação das Associações Quilombolas de Jambuaçú – Moju – Pará.
Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) , é a segunda pessoa mais popular do Governo Bolsonaro, só perde para o Ministro Sérgio Moro. A popularidade de Damares é a face “terrivelmente evangélica” do governo. Mulher e evangélica, a pastora tem uma forte presença simbólica.
Nos primeiros meses de 2020, com o anúncio de que o MMFDH faria enfrentamento da gravidez precoce (ou gravidez na adolescência) por meio de uma bandeira ligada à pauta de costume, isto é, uma propaganda da “preservação”/“abstinência” sexual, em pleno mês de fevereiro, tempo de Carnaval, provocou vários debates, inclusive sobre o “celibato voluntário”.
O programa de “preservação sexual”, que tem sido chamado pela imprensa de “abstinência sexual”, tem desdobramentos para além do MMFDH, afeta o programa de saúde da família, as políticas do Ministério da Saúde (material de educação sexual, DSTs e vacinação contra HPV) e, finalmente, desdobramentos e interlocuções com o Ministério da Educação por meio do FNDE, especialmente em relação ao material de educação sexual do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Ou seja, ao defender a iniciativa, a ministra Damares não está fazendo campanha religiosa, como tem sido repetido, mas está claramente ampliando sua influência dentro do governo.
Em entrevista recente, a ministra defendeu a abstinência sexual como nova orientação de política pública do governo federal para combater a gravidez precoce na adolescência e as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) – orientar jovens, nas escolas brasileiras, a não fazer sexo. Veja o vídeo aqui.
Damares ampliou suas alianças políticas e também conseguiu chamar a atenção de dois grupos altamente organizados na Internet: cientistas/ médicos (que questionam a eficácia do método) e “incels”/”spamers” (celibatários involuntários e propagandistas de whatsapp).
Os cientistas questionam a falta de dados comprobatórios de que os programas de abstinência sejam eficazes, enquanto os “incels” tomaram de assalto as redes sociais associando “depravação sexual e promiscuidade” com a “esquerda progressista”. Assim, partidos de esquerda foram associados com posturas liberais e libertárias. O que há de verdade nessa campanha toda? E quem ganha com isso?
Areópago já falou da campanha pela abstinência e da
realidade das adolescentes
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) considera adolescente aquele ou aquela que tem entre 10 e 20 anos. O Brasil teve queda nas taxas de gravidez de jovens na última década, mas está bem acima dos demais países da América Latina. Os médicos da SBP já se manifestaram contra a proposta de “abstinência” ou “preservação”, sendo claramente contrários à proposta da ministra.
O documento elaborado pela SBP em oposição à ministra está disponível para leitura e sugere que a imposição (ou sugestão aos adolescentes) não funciona, textualmente: “A SBP reitera o posicionamento da Sociedade Americana de Medicina do Adolescente que aponta para as falhas científicas e éticas da abordagem “abstinence only “, deixando à margem adolescentes sexualmente ativos, aqueles que já são pais, os que não se consideram heterossexuais e as vítimas de abuso sexual. Adicionalmente, compreende-se que a abstinência das relações sexuais pode ser uma escolha saudável para os adolescentes desde que seja uma decisão pessoal deles e não uma imposição ou única opção oferecida, respeitando seu direito à autonomia”.
Celibatários de todo mundo, uni-vos
Os celibatários (incels) são público-alvo das campanhas de desinformação (fakenews), estratégia desenhada por Steve Bannon e pela Cambridge Analytica . Por quê? Porque os celibatários “involuntários” (incels) são os jovens ressentidos que não conseguem namoradas e defendem que o comportamento sexual das mulheres progressistas é a principal causa de sua solidão. A linguagem agressiva com sinais de desequilíbrio psicológicos, associados a episódios de massacres e culto das armas de fogo, fazem desse grupo uma das maiores preocupações da área de segurança. Conforme documentários recentes, o “ódio que os incels têm dos sexualmente ativos” e sua defesa de uma abstinência imposta por autoridades (escolas, governos, grupos) fazem da proposta da ministra uma mistura explosiva, que sugere mais desdobramentos negativos do que positivos por parte de uma política pública.
Não se trata apenas de uma campanha cientificamente questionável, mas de uma campanha que pode acirrar ainda mais os ambientes escolares. E é preciso lembrar que o Brasil passou a viver a realidade estadounidense de massacres escolares justamente por causa do crescimento desses grupos. Empoderar o discurso dos celibatários é um dos efeitos colaterais desse programa!?
Cientistas alertam – educação sexual é saída
O argumento da “abstinência”, denominado “preservação sexual” pelo MMFDH, tem sido contestado com base em pesquisas sociais. Para cientistas e médicos o método mais eficaz contra a gravidez é a “educação sexual”, ou as políticas de “sexo seguro”, bem como estratégias de redução das estatísticas de DSTs e gravidez adolescente. Nota-se também, no cenário atual, que a campanha pela “preservação” esbarra em um fato: como falar em preservação com aqueles que já são ativos?
Justamente, por isso, há grandes reações ao programa de Damares no Ministério da Saúde. Além da idade (razão de uma discordância pública), também está em questão o cronograma de vacinação contra o HPV.
Uma visão distorcida do movimento americano – “Eu escolhi
esperar”
Nos Estados Unidos, o movimento “Eu escolhi esperar” é interdenominacional (o que significa que não tem relações com igrejas) e não-governamental (isto é, não aceita e nem tem patrocínios ou líderes políticos). É protagonizado por jovens youtubers, bandas de música com apostas em ações diretas, em eventos de massa. É parte da cultura religiosa norte-americana manter movimentos que desconfiam das igrejas organizadas e dos governos.
No Brasil, o movimento de “abstinência sexual” foi introduzido por líderes de várias igrejas e é liderado por pastores. O Pr. Nelson Junior do Ministério Eu Escolhi Esperar da Igreja Batista da Lagoinha, a mesma que a ministra Damares faz parte, é uma das referências. Funcionaria um programa voltado para jovens com inspiração eclesial e governamental? Não seria melhor organizar comitês com os jovens?
Quem? Como? Quanto?
Pesa sobre a campanha, por último, uma dúvida. Quem produzirá o material? Para ser distribuído ainda em 2020, nas escolas, o material teria que passar pelo edital do PNLD (programa nacional do livro didático) e pelos diversos editais do Ministério da Saúde. Conforme o cronograma, os textos e campanhas teriam que ter sido produzidos em 2018 e passar pelo processo de seleção pública – a não ser que se pretenda adotar algo que já esteja pronto, ou que tenha sido produzido em outro contexto.
O Ministério da Saúde ainda não esclareceu quando e como irá implementar a política de incentivo à abstinência sexual. Hoje, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza nove métodos contraceptivos, incluindo diferentes tipos de anticoncepcional injetável, pílula (incluindo a do dia seguinte), diafragma, DIU e preservativo. Também há campanha e vacinação ativa contra HPV (para meninas e meninos adolescentes).
O Ministério da Educação já divulgou edital e lista de editoras de material que vai ser distribuído para crianças e adolescentes em todo o Brasil. Serão gastos R$ 862.222.089,49 com livros de diversas editoras, segundo a Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (ABRELIVROS). No Edital do PNLD foram excluídas algumas exigências, como a de que livros didáticos promovam positivamente a cultura quilombola e os povos do campo (p. 39). Foi mantida a exigência de que as obras promovam positivamente a imagem da mulher, mas foi eliminado um trecho requerendo atenção “com a agenda de não violência contra a mulher” (p. 39). Finalmente, as ilustrações não precisam mais retratar a diversidade étnica da população brasileira, a pluralidade social e cultural do país (p. 41).
Existe risco?
O MMFDH manteve a promessa de lançar a campanha pela abstinência sexual a partir de fevereiro de 2020. Dia 23/01/2020 a ministra usou sua página em uma rede social para se posicionar diante da enxurrada de críticas diante da iniciativa de pregar a abstinência sexual.
“Pais e responsáveis por cuidar de adolescentes, digam-me qual é o mal de conversar com um menino ou menina, a partir dos 12 anos, e dizer que talvez ainda não esteja maduro o suficiente para começar a ter relações sexuais? Que grande risco isso pode trazer?”
Há várias respostas para a pergunta da Ministra. Vários riscos, inclusive, de gestão do dinheiro público, já escasso na saúde e educação.
Respeitando as Regras?
A ABRE alertou seus filiados (e as editoras que participaram do último edital) para o risco quanto ao novo decreto do MEC, que permite ao ministério produzir seu próprio material. Além de promover uma insegurança no setor, o decreto abre brechas para a confecção de novos conteúdos, incluindo aqueles que interessam o MMFDH. Ou seja, as regras de produção e difusão do material didático e das campanhas teriam sido burladas?
As Defensorias Públicas da União e do Estado de São Paulo recomendaram ao governo não veicular a campanha de Damares, e citam estudos realizados nos EUA, em especial da Society for Adolescent Health and Medicine, concluindo que a medida não promoveu mudanças positivas na vida sexual dos jovens, não impediu a gravidez na adolescência e nem diminuiu a propagação de infecções sexualmente transmissíveis.
Quanto ao aspecto legal, as Defensorias manifestaram preocupações com a alteração das formulações de políticas públicas, especialmente quanto à necessidade de promover audiências públicas sobre o tema. As defensorias também solicitaram aos ministérios que apresentem o custo total de produção e divulgação da campanha e o valor que isso representa proporcionalmente em relação ao que foi gasto no ano de 2019.
A Lei de Acesso à Informação (LAI) promulgada há mais de sete anos prevê o acesso às informações públicas, especialmente nas questões orçamentárias. Isto foi previsto na Constituição Federal, em especial nos capítulos que tratam dos direitos e deveres individuais e coletivos, dos princípios que regem a administração pública, bem como da gestão da documentação governamental, além de aumentar a eficiência do Poder Público, diminuir os desvios de conduta e ampliar a participação popular. Isto é, as Defensorias, Controladorias e até cidadãos podem cobrar dos ministérios que prestem contas e forneçam informações sobre custo, distribuição e construção das campanhas.
E não adianta esconder dados, pois quem quer moralidade pública precisa respeitar as regras.
Vale a pena esperar transparência por parte dos governos? Se achamos que SIM, devemos cobrar lisura, rigor, estudos, regras e orçamentos claros.