Deputados e mídias gospel espalham falsidades sobre Projeto de Lei que retira direitos sobre aborto no Brasil

O Projeto de Lei 1904/24, conhecido como “PL do Estupro”, “PL do Aborto”, “PL da Gravidez Infantil” tem gerado intensa mobilização nas mídias sociais, nas primeiras semanas de junho de 2024, sob reações de diversas perspectivas. O texto, proposto por 33 parlamentares da Câmara Federal, sob a liderança do deputado evangélicos Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), foi apresentado em 17 de maio, na Câmara dos Deputados. 

O PL visa alterar o Código Penal para equiparar o aborto, realizado após 22 semanas de gestação, ao crime de homicídio, mesmo nos casos permitidos pela legislação atual, como gravidez decorrente de estupro. Os portais de notícias gospel, como Gospel Prime, Guiame, Pleno News e Gospel Mais, passaram a destacar o processo de apresentação do PL, alinhando-se com a agenda dos autores, classificada por eles próprios e por analistas críticos como conservadora. 

Em 12 de junho, a tramitação do projeto ganhou urgência no plenário da Câmara dos Deputados, graças a uma manobra do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Lira aprovou a urgência do PL em apenas 23 segundos, sem permitir a manifestação contrária de deputados opositores. ​Com a urgência aprovada, segundo as regras da Câmara Federal, o PL pode ser debatido diretamente no plenário, sem precisar passar pelas comissões temáticas que discutem detalhadamente os projetos e emitem pareceres, antes de irem a plenário. 

A apresentação do PL vem sendo avaliada  como uma reação de parlamentares ultraconservadores a uma decisão  do Supremo Tribunal Federal (STF), em maio passado, que suspendeu a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia médicos de realizarem a chamada “assistolia fetal” .

A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) proibia a assistolia fetal em casos de aborto legal após 22 semanas de gestação decorrentes de estupro. O método, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é uma técnica considerada essencial para a segurança das gestantes, pois minimiza os riscos durante o procedimento de aborto. Segundo o ministro do STF, responsável pelo caso, Alexandre de Morais, a proibição da assistolia fetal representava um risco adicional para a saúde das gestantes que necessitavam do procedimento em circunstâncias já previstas pela legislação, como casos de estupro ou risco de vida para a mulher.

O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva manifestou-se sobre o caso em 15 de junho, em entrevista coletiva, durante participação em reunião do G20 na Itália. O perfil de Lula (PT) no X, reproduziu fala, em que ele afirma ser, pessoalmente, contra a prática do aborto, mas reconhece que há necessidade de tratar o assunto como um caso de saúde pública. Lula ainda criticou a proposta de punir as mulheres que abortam após um estupro com penas maiores do que as dos estupradores, classificando a medida como uma “insanidade”. 

A proposta de mudança na legislação sobre o aborto no Brasil 

A legislação atual sobre o aborto no Brasil tem raízes no Código Penal de 1940, aprovado durante o Estado Novo (1937-1945), presidido por Getúlio Vargas. O Código Penal passou a permitir a interrupção da gravidez quando há risco de vida para a gestante ou em casos de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou ação que autorizou a interrupção da gravidez também em casos de anencefalia (má formação do cérebro) do feto. 

Fora dessas exceções, o aborto no Brasil é considerado um crime sujeito a penas de detenção tanto para a gestante quanto para quem realiza o procedimento. Em 2016, no julgamento de um recurso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a de autorização do aborto nos casos de anencefalia  se aplicava também a outras malformações incompatíveis com a vida. 

Nos casos de estupro ou risco à vida da gestante, não há um limite de tempo específico de gestação estabelecido pela lei para que o aborto legal possa ser realizado. 

Para o que estiver fora destas situações e representar aborto por vontade própria, o Código Penal prevê punições como detenção de um a três anos para mulheres que praticam, reclusão de um a quatro anos para médicos ou outras pessoas que realizam o aborto com consentimento da gestante, e reclusão de três a 10 anos para quem provoca aborto sem consentimento da gestante.

Em 2022, no último ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica, com a recomendação de que o aborto legal fosse realizado apenas até 21 semanas e seis dias de gestação. Essa recomendação não tinha poder de lei e não alterou a legislação vigente no Brasil.

Em 21 de março deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução (Resolução CFM N° 2.378) proibindo médicos de utilizarem a técnica de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas nos casos de aborto legal permitidos por lei. No entanto, como o CFM não pode agir em desacordo com a legislação, essa norma foi suspensa pelo STF, como já relatado nesta matéria.

A proposta dos 33 deputados federais por meio do PL 1904/24, prevê as seguintes alterações no Código Penal

  • abortos realizados após 22 semanas de gestação, com ou sem o consentimento da gestante, quando há “viabilidade fetal”, serão tratados como homicídio simples. O juiz poderá considerar as circunstâncias individuais para mitigar ou não aplicar a pena. 
  • Revoga-se a não punibilidade em casos de aborto em gravidez resultante de estupro após 22 semanas, diante da “viabilidade extrauterina do feto” equiparando a pena de homicidio simples, que pode chegar a 20 anos. A pena torna-se mais severa do que a aplicada a estupradores, que de acordo com o artigo 213 do Código Penal, pode variar de seis a dez anos de prisão. 
  • Torna-se obrigatória a notificação compulsória à autoridade policial, por parte dos profissionais de saúde, dos casos de interrupção da gravidez decorrente de estupro, sob pena de detenção de seis meses a dois anos. A interrupção da gravidez em casos de estupro só poderá ser realizada até a 22ª semana de gestação, exceto em casos de risco de vida para a gestante.

O termo-chave “viabilidade fetal” foi explicado pelo médico presidente da Comissão de Medicina Fetal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) Mário Burlacchini, em entrevista à Folha de S. Paulo. Ele explica que a viabilidade “é a capacidade do feto viver fora do útero, nascer e ficar vivo — e que esse número depende de cada maternidade e berçário”.  Burlacchini acrescenta que “em geral, na maioria dos hospitais em São Paulo, a viabilidade é entre 24 e 25 semanas, mas depende de cada berçário. Com certeza outros locais do Brasil devem ter uma idade gestacional maior”.

O coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice), o médico ginecologista e obstetra Cristião Rosas, também foi ouvido pela Folha de S. Paulo. Ele diz que, para a comunidade médica, o conceito de viabilidade fetal é utilizado em relação a partos prematuros, isto é, quando há necessidade de se adiantar o processo de nascimento, por conta das condições da gravidez, de doenças ou outros motivos de força maior.

Esta noção de viabilidade fetal, segundo Cristião Rosas, é utilizada na medicina para orientar a adequação nos cuidados intensivos neonatais, mas deve ser entendida como um último recurso porque prematuros possuem maiores riscos de sequelas e complicações, como as cardiológicas e respiratórias por conta da não formação completa.

Por isso, segundo o médico, ao se referir à legislação de aborto, a questão muda, e o termo não cabe. “Quando falamos em viabilidade fetal pensamos num parto prematuro e espontâneo em que existe um equilíbrio no desejo da mãe em relação ao interesse pelo bebê, então esse conceito não funciona para aborto induzido”, diz Rosas. Para ele, as 22 semanas de um feto são classificadas como prematuridade extrema. Cerca de 26, como prematuridade intermediária, e 37 como “a termo”, ou seja, com menores riscos de sequelas. 

A inclusão da noção de viabilidade fetal no PL 1904, para o médico obstetra, facilita a confusão sobre o tema. “Isso leva a uma banalização perigosa sobre os danos da prematuridade”, afirmou à Folha de S. Paulo.

O perfil dos autores do PL 1904/24

O projeto, que até 18 de junho passado contava com a proposição de 33 parlamentares, após o alto volume de manifestações contrárias da sociedade civil, recebeu a adesão de mais assinaturas proponentes. Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) solicitou à Mesa Diretora da Câmara, naquela data, a inclusão de novos autores no documento. 

Na lista de proponentes, todos estão no espectro político da direita e centro-direita. Em termos de equidade, especialmente no caso de Projeto de Lei 1904/24, que altera legislação que infere diretamente em pessoas com útero,  são apenas 12 mulheres, enquanto 43 são parlamentares do sexo masculino.

 

PARLAMENTARPARTIDOIDEOLOGIARELIGIÃO POR AUTOIDENTIFICAÇÃOVINCULAÇÃOGÊNERO
AbílioPL – MTDireitaCristãIgreja Evangélica não identificadaMasculino
Adilson BarrosoPL – SPDireitaCristãNão identificadaMasculino
André FernandesPL – CEDireitaEvangélicaIgreja Evangélica não identificadaMasculino
Bia KicisPL – DFDireitaCatólicaIgreja CatólicaFeminino
Bibo NunesPL – RSDireitaCristãNão identificadaMasculino
Cabo Gilberto SilvaPL – PBDireitaNão identificadaNão identificadaMasculino
Capitão AldenPL – BADireitaEvangélicaSem denominaçãoMasculino
Carla ZambelliPL – SPDireitaCatólicaIgreja CatólicaFeminino
Coronel AssisUNIÃO – MTDireitaCristãNão identificadaMasculino
Coronel ChrisóstomoPL – RODireitaCristãIgreja CatólicaMasculino
Coronel FernandaPL – MTDireitaEvangélicaAssembleia de DeusFeminino
Cristiane LopesUNIÃO – RODireitaEvangélicaIgreja Santa GeraçãoFeminino
Dayany do CapitãoUNIÃO – CEDireitaCristãIgreja Evangélica não identificadaFeminino
Delegado CaveiraPL – PADireitaCatólicaIgreja CatólicaMasculino
Delegado Eder MauroPL – PADireitaCristãNão identificadaMasculino
Delegado Fabio CostaPP – ALDireitaCristãNão identificadaMasculino
Delegado PalumboMDB – SPCentroCristãIgreja CatólicaMasculino
Delegado Paulo BilynskyjPL – SPDireitaNão identificadaNão identificadaMasculino
Delegado RamagemPL – RJDireitaCristãNão identificadaMasculino
Dr. FredericoPATRIOTA – MGDireitaCatólicaIgreja CatólicaMasculino
Dr. Luiz OvandoPP – MSDireitaCristãIgreja Batista KairósMasculino
Eduardo BolsonaroPL – SPDireitaCristãComunidade Batista do Rio de JaneiroMasculino
Ely SantosREPUBLICANOS – SPDireitaNão identificadaNão identificadaFeminino
Eros BiondiniPL – MGDireitaCatólicaIgreja CatólicaMasculino
Evair de MeloPP – ESDireitaCatólicaIgreja CatólicaMasculino
Filipe BarrosPL – PRDireitaEvangélicaIgreja Presbiteriana do BrasilMasculino
Filipe MartinsPL – TODireitaEvangélicaAssembleia de Deus MadureiraMasculino
Franciane BayerREPUBLICANOS – RSDireitaCristãIgreja Internacional da Graça de DeusFeminino
Fred LinharesREPUBLICANOS – DFDireitaCristãNão identificadaMasculino
General GirãoPL – RNDireitaCristãNão identificadaMasculino
Gilvan O Federal da DireitaPL – ESDireitaCristãIgreja Evangélica não identificadaMasculino
Greyce EliasAVANTE – MGCentroCristãNão identificadaFeminino
Gustavo GayerPL – GODireitaCristãNão identificadaMasculino
José MedeirosPL – MTDireitaEvangélicaIgreja Presbiteriana do BrasilMasculino
Julia ZanattaPL – SCDireitaCristãNão identificadaFeminino
Junio AmaralPL – MGDireitaEvangélicaIgreja Evangélica não identificadaMasculino
Lêda BorgesPSDB – GOCentroCatólicaIgreja CatólicaFeminino
Marcelo MoraesPL – RSDireitaCatólicaIgreja CatólicaMasculino
Marcos PollonPL – MSDireitaCatólicaIgreja CatólicaMasculino
Mario FriasPL – SPDireitaCristãNão identificadaMasculino
Mauricio MarconPODE – RSDireitaCristãNão identificadaMasculino
Messias DonatoREPUBLICANOS – ESDireitaEvangélicaIgreja do Evangelho QuadrangularMasculino
Nikolas FerreiraPL – MGDireitaCristãComunidade Evangélica Graça e PazMasculino
Pastor DinizUNIÃO – RRDireitaEvangélicaAssembleia de DeusMasculino
Pastor EuricoPL – PEDireitaEvangélicaAssembleia de DeusMasculino
Paulo Freire da CostaPL – SPDireitaEvangélicaAssembleia de Deus Ministério BelémMasculino
Rafael PezentiMDB – SCCentroCatólicaIgreja CatólicaMasculino
Rodolfo NogueiraPL – MSDireitaCristãNão identificadaMasculino
Rodrigo ValadaresUNIÃO – SEDireitaEvangélicaIgreja Evangélica não identificadaMasculino
Sargento FahurPSD – PRCentroNão identificadaNão identificadaMasculino
Sargento GonçalvesPL – RNDireitaCristãIgreja BatistaMasculino
Silvia WaiãpiPL – APDireitaEvangélicaIgreja Evangélica não identificadaFeminino
Simone MarquettoMDB – SPCentroCatólicaIgreja CatólicaFeminino
Sóstenes CavalcantePL – RJDireitaEvangélicaAssembleia de Deus Vitória em CristoMasculino
Zé TrovãoPL – SCDireitaNão identificadaNão identificadaMasculino
Fonte: Instituto de Estudos da Religião. Plataforma Religião e Poder (www.religiaoepoder.org.br)

O deputado líder do PL e a propagação de desinformação

Pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e teólogo, Sóstenes Silva Cavalcante é deputado federal pelo Partido Liberal (PL) do Rio de Janeiro, eleito em 2022, em sua terceira filiação partidária. Assumiu seu primeiro mandato em 2015, filiado ao PSD e, em seguida, foi reeleito para um segundo, que se estendeu de 2019 a 2022, pelo DEM. Desde o primeiro mandato tornou-se conhecido como afilhado do pastor presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia.

Em 2015, Sóstenes Cavalcante foi eleito presidente da Comissão Especial, criada na Câmara para analisar o Projeto de Lei  6583/13, denominado Estatuto da Família. O PL havia sido proposto por Anderson Ferreira (PR-PE), arquivado com o fim da legislatura anterior, mas desarquivado pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).  O PL, que ainda tem tramitação aberta na Câmara, propõe uma lei que define   família como a união entre um homem e uma mulher.
Bereia já checou várias afirmações e publicações desinformativas de Sóstenes Cavalcante. No ano do lançamento do site Bereia, 2019, foi publicada matéria sobre a divulgação feita pelo deputado de uma declaração falsa atribuída à Organização Não Governamental (ONG) Greenpeace. Originalmente compartilhada pelo Pastor Silas Malafaia, a publicação acusava o Greenpeace de recusar ajuda na limpeza de óleo vazado em praias do Nordeste, por falta de conhecimento e equipamentos. No entanto, o vídeo compartilhado era uma edição deturpada de uma declaração do Greenpeace. 

Thiago Almeida, ativista da ONG, que desmentiu a distorção, confirmou que voluntários da organização estavam atuando na limpeza das praias afetadas, embora ressaltasse a necessidade de técnicas e equipamentos específicos para combater o óleo derramado. A versão editada do vídeo foi compartilhada pelo deputado e pelo Ministro do Meio Ambiente do governo de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles, para criticar a Greenpeace, . Além disso, o portal Aos Fatos também classificou o vídeo como falso.

Imagem: Coletivo Bereia / Reprodução

Neste junho, cinco anos depois daquela e de outras 15 checagens, Bereia verificou mais um vídeo do deputado Sóstenes Cavalcante, com informações falsas  em resposta a uma reportagem do programa Fantástico, da TV Globo, que abordou o Projeto de Lei 1904/24. Na gravação, eleafirmou que existe uma “indústria mundial do aborto” financiada pelo milionário George Soros e proferiu mentiras sobre o uso de fetos em cosméticos. Estas afirmações foram desmentidas por veículos como a Folha de São Paulo e Aos Fatos, que as classificaram como teorias conspiratórias infundadas. 

Imagem: Coletivo Bereia / Reprodução

Parlamentares desinformam nas redes digitais

O PL 1904 gerou debates nos espaços do Congresso Nacional e também nas mídias sociais de parlamentares. Em levantamento realizado pelo Bereia em publicações no X (antigo Twitter), até a data de fechamento desta matéria, foi observado que os deputados Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF) e Nikolas Ferreira (PL-MG), todos coautores do PL publicaram em suas páginas pessoais comentários sobre o tema, com 29 publicações totais. O pico de atividade ocorreu entre os dias 11 e 13 de junho, que incluiu o momento da votação do pedido de urgência na Câmara, no dia 12.

Já foi destacado nesta matéria o vídeo publicado pelo deputado Sóstenes Cavalcante em que afirma que “Há uma indústria mundial liderada por (…) George Soros, um milionário americano que patrocina mundo afora o aborto (…) Sabe por quê? Porque eles vivem de empresas também que dependem do feto humano para fabricar cosméticos”. 

Fonte: Instagram / Reprodução: Aos Fatos

O deputado Eli Borges (PL-TO), autor do pedido de urgência e presidente da Frente Parlamentar Evangélica, argumentou que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a partir das 22 semanas de gestação, o aborto é considerado assassinato de criança porque o feto poderia sobreviver fora do útero da mãe. 

Bereia verificou que Borges apresenta um argumento falso, sem qualquer referencial, pois a OMS não define aborto como assassinato em nenhuma circunstancia, além de que não há consenso global de quantas semanas seriam necessárias para precisar a viabilidade fetal, ou seja, a capacidade de sobreviver fora do útero. 

Desinformação em portais cristãos

Portais de notícias gospel, como o Pleno News, Guiame e Gospel Prime, têm publicado uma série de matérias em defesa do Projeto de Lei (PL) 1.904/2024. O Pleno News, entre os dias 12 e 15 de junho, disponibilizou quatro matérias desinformativas, com notícias falsas ou que desviam do assunto principal. Nelas é afirmado que a esquerda está mentindo contra o PL, sem dados comprobatórios da assertiva, e que deputados que defendem o PL teriam sofrido ataques de hackers, o que também não tem elementos factuais. Também há destaque para declarações em ataque  ao presidente da República, que são desprovidas de caráter informativo – são opiniões. 

Imagem: Pleno News / Reprodução

O portal Guiame publicou matéria que contrapõe o apelido de “PLdo estupro” com “PL da vida”, e rebate as críticas à proposta, sem apurar as controvérsias como o risco dos abortos tardios e a criminalização de meninas e dos profissionais da saúde que realizam o procedimento. 

Imagem: Guiame / Reprodução

O Gospel Prime, em duas matérias publicadas como notícia, opina sobre autoridades do governo federal. As declarações públicas do presidente Lula (PT) sobre o PL 1904/24, foram classificadas como distorcidas do objetivo do projeto de “punir o assassinato de bebês em ventre materno após o período de formação da criança”. Esse tipo de afirmação desinforma pois é contrária às diretrizes da OMS sobre abortos e não há consenso na comunidade médica quanto ao período de formação de uma criança. 

O ministro dos Direitos Humanos e Cidadania Silvio Almeida, e a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima Marina Silva foram criticados pelo Gospel Prime por terem se manifestado contra o projeto em seus perfis de mídias digitais. Marina Silva foi destacada de forma pejorativa/opinativa como a  “que se apresentava como evangélica”.

Imagem: Gospel Prime/Reprodução

Bereia verificou que, como outros integrantes do governo federal, a ministra Marina Silva tornou pública uma crítica aos políticos proponentes do PL, de instrumentalizar um tema complexo, sem considerar os direitos e a dignidade das mulheres. Ela criticou o PL por ser “altamente desrespeitoso e desumano”, apesar de ela se declarar, pessoalmente, contra o aborto. Na mesma linha, o ministro Silvio Almeida afirmou que o Projeto de Lei é “vergonhosamente inconstitucional” e fere os princípios da dignidade humana. 

A linguagem que desinforma e confunde

Boa parte do conteúdo que tem falsidades e enganos sobre o tema do aborto, que circula em ambientes digitais, recorre ao discurso do medo para ganhar atenção e gerar compartilhamentos. De acordo com a Doutora em Linguística Jana Viscardi, a maneira como se fala sobre direitos reprodutivos e sobre aborto contribui significativamente para criar pânico em torno da questão. A pesquisadora destaca que “a extrema direita sabe muito bem usar apenas a palavra bebê, justamente para gerar indignação e pânico. Para convencer as pessoas de que aborto é desumano, homicídio”. 

Jana Viscardi alerta que é um erro chamar de “bebê” o objeto do aborto e que é importante usar os termos corretos. A professora explica que primeiro, há um embrião, depois, um feto; assim que nasce, um recém-nascido; 28 dias depois, é que existe um bebê. Nesse sentido, a mulher não aborta um bebê, pois um bebê, para existir, precisa ter passado pelas etapas anteriores, ter saído do útero e vivido seus primeiros dias. 

Viscardi também ressalta que “nenhuma mulher é mãe até que escolha ter uma criança. Gravidez não é sinônimo de maternidade. Embrião e feto são estágios que antecedem a existência do bebê. E não são a mesma coisa”. Para a pesquisadora, o uso do termo que não cabe “bebê” é feito para causar emoção e provocar pânico de morte.

Além disso, Viscardi chama a atenção para a questão da “viabilidade fetal” mencionada no PL 1904, sobre a qual não há uma conclusão definitiva e divergências entre médicos na compreensão da questão. 

O uso inadequado dos termos nas discussões públicas sobre aborto leva a uma comoção pública pautada “em um discurso torto, feito justamente para causar desinformação. O embate com a extrema-direita é também um embate discursivo, e ter atenção à linguagem utilizada é fundamental nesse contexto”, orienta Jane Viscardi.

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Foto de capa: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

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