Vídeo crítico ao deputado Nikolas Ferreira o associa ao tráfico de drogas com apelo a desinformação sobre “narcopentecostalismo”

Um vídeo com críticas ao deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e os recentes casos de ilegalidades envolvendo a família do político foi publicado em mídias sociais pelo vereador de Belo Horizonte Pedro Rousseff (PT-MG), em 1 de junho passado. O conteúdo traça uma relação entre o deputado federal e o crime organizado na comunidade “Cabana do Pai Tomás”, em Belo Horizonte (MG). São usadas as noções de “facção evangélica” e “narcopentecostalismo” para criticar o vínculo de Nikolas Ferreira com pessoas ligadas ao crime organizado na região, uma vez que ele é declaradamente evangélico.
Fonte: Reprodução perfil do vereador Pedro Rousseff no Instagram
O que Bereia checou no vídeo de Pedro Rousseff?
No vídeo, o vereador mineiro relaciona Nikolas Ferreira, que é membro da Comunidade Evangélica Graça e Paz em Belo Horizonte (MG), à facção criminosa do Rio de Janeiro, Terceiro Comando Puro (TCP), que usa símbolos cristãos e cujos membros se autointitulam evangélicos. Rousseff se baseia na informação de que os narcotraficantes cariocas passaram a dominar a comunidade “Cabana do Pai Tomás”, na capital mineira, reduto eleitoral do deputado do PL, logo depois de ele ter sido eleito.

Imagem: reprodução do site do deputado federal Nikolas Ferreira
De fato, nos últimos anos, o Terceiro Comando Puro (TCP) assumiu o controle da comunidade “Cabana do Pai Tomás” e assumiu o tráfico de drogas na região. Entretanto, não há nenhuma prova que ligue os criminosos cariocas a Nikolas Ferreira ou à sua família.

Fonte: Reprodução site jornal O Tempo
O vídeo é um dos muitos conteúdos publicados depois da prisão de Glaycon Raniere de Oliveira Fernandes, primo de Nikolas Ferreira, por tráfico de drogas. Ele foi detido com 30kg de maconha e quatro gramas de cocaína, em 30 de maio passado.
As críticas emergiram nas redes digitais pois, além da relação de parentesco, há um vínculo político do deputado mineiro com o traficante preso. Glaycon Fernandes é filho do ex-candidato a prefeito de Nova Serrana (MG) Enéas Fernandes (PL), tio de Nikolas Ferreira. O município foi beneficiado com R$ 1,5 milhão em verbas de emenda parlamentar de Ferreira, conforme ele mesmo divulgou em sua conta no X. Em depoimento, o primo do deputado do PL disse que estava levando a droga para Nova Serrana.
Fonte: Reprodução do perfil de Nikolas Ferreira no X
Os conteúdos críticos, como o vídeo de Pedro Rousseff, têm como alvo também o fato de o deputado do PL e seus aliados do partido, como o tio de Nova Serrana, fazerem uso de discursos morais contra drogas. Neste contexto há ainda as situações em que estes políticos propagam falsidades relacionadas ao tema para atacar opositores, como ocorreu na campanha eleitoral de 2022. Na ocasião, Nikolas Ferreira acusou publicamente o então candidato a presidente da República Lula de incentivar o uso de drogas por crianças e adolescentes.

Imagem: Reprodução de notícia no site UOL, publicada em 10 out 2022
Na checagem do vídeo de Pedro Rousseff, Bereia se deteve no apelo às noções de “facção evangélica” e “narcopentecostalismo”, que caracterizam desinformação relacionada à religião. Bereia já publicou matérias que refutam e explicam porque o uso de expressões como estas, que relacionam o tráfico à religião evangélica, são equivocadas.
Traficante evangélico?
Várias mídias noticiosas estão revendo a forma de apresentar o tema da instrumentalização da fé cristã por criminosos. Matérias jornalísticas recentes abordaram o chamado Complexo de Israel – conjunto de comunidades do Rio de Janeiro comandadas por traficantes autointitulados evangélicos. Porém, apesar de continuarem a usar o termo “traficante evangélico”, portais noticiosos como o G1, Brasil de Fato, entre outros, não mencionaram o termo “narcopentecostalismo” nos textos.
A Folha de S. Paulo, por sua vez, não rotula os criminosos como evangélicos, usa o termo mais apropriado, “autointitulados evangélicos”. Já o jornal Extra, que circula na capital fluminense, nem sequer cita a filiação religiosa dos traficantes do Complexo de Israel, envolvidos em confronto com a polícia, ocorrido neste 10 de junho.

Imagem: Reprodução do site da Folha de São Paulo
Em artigo para a Folha de S. Paulo, o doutor em Teologia pela Universidade de Aberdeen, pastor presbiteriano, psicólogo e líder do movimento Pastores pela Vida (Visão Mundial) Daniel Guanaes critica a forma como a relação entre o crime e a fé evangélica tem sido tratada na imprensa. “Como líder religioso, o tema me sensibiliza. Mas minha angústia é pastoral. Como uma pessoa pode estar na igreja e no tráfico? (…) A conversão a um novo tipo de vida é mais importante do que a adesão ao seu grupo social. Não é possível separar uma religião de sua ética”, ressalta o pastor.
Guanaes recorre a dois personagens da Bíblia para exemplificar o que diz. “Quando um traficante se declara evangélico, a primeira pergunta entre os fiéis é se ele abandonou o tráfico. Essa é a prova de que ele se converteu. Na Bíblia, seria como Saulo de Tarso virando o apóstolo Paulo. Ou como Zaqueu, um coletor de impostos corrupto dizendo, depois de se encontrar com Jesus, que restituiria as pessoas que lesou”.
Para o pastor e teólogo, o crescimento evangélico acelerado na sociedade brasileira pode explicar em parte essa relação nada ortodoxa. “Tudo indica que esse fenômeno ‘narcorreligioso’ seguirá existindo. Não há na religião evangélica uma fiscalização que decide o que ou quem faz parte dela. Ainda que não frequente uma igreja, se um traficante se diz evangélico, quem o proibirá? Seria o mesmo caso ele se apresentasse como praticante de qualquer outra religião. Qualquer tarefa de controle nesse sentido é ineficaz”, argumenta.

Imagem: Reprodução do site da Folha de São Paulo
Bereia já tinha ouvido a doutora em Ciências Sociais, antropóloga, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da equipe do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Christina Vital sobre o tema. A pesquisadora, pioneira no estudo sobre a relação entre lideranças do tráfico de drogas e igrejas evangélicas nas periferias do Rio de Janeiro, identificou nos seus estudos, ainda no limiar dos anos 2000, que, na virada dos anos 1990 para os anos 2000 houve uma mudança radical da sociabilidade nas favelas do Rio de Janeiro, no que diz respeito à relação entre religiosidade e tráfico.
“O que acontece em Acari, como em outras favelas, é o crescimento do número de igrejas formando um público cada vez mais numeroso de pessoas que estão nas igrejas. E mesmo aquelas que não estão começam a partilhar daquilo que poderíamos chamar de ‘cultura pentecostal’. Isso é uma marca estética e uma gramática utilizada pelos moradores de modo que os traficantes são influenciados por essas perspectivas compartilhadas de modo mais geral”, explica a doutora.
Ainda de acordo com Vital, não há base concreta para se denominar tal fenômeno como “narcopentecostalismo”, na atualidade. “Não sabemos do futuro, mas, hoje, não temos uma igreja liderada por alguém que está deliberadamente no crime e que tenha uma liturgia ou teologia voltada somente a esta atividade criminosa. Se é isso que o termo supõe, não se sustenta. A aproximação entre criminosos e redes religiosas não é nova, não foi inventada por evangélicos e nem acontece exclusivamente em torno desta religião”, salienta.
Para a antropóloga, no entanto, a expressão “traficantes evangélicos” tem base concreta para se sustentar, mas deve ser usada com cuidado e ética. “Lancei este termo em 2006 para descrever um fenômeno identificado nas favelas cariocas em que eu pesquisava, e o fiz entre aspas, explicando que não era uma autorreferência dos traficantes em relação a eles mesmos. O termo incomodava muitos evangélicos e evangélicas que se sentiam estigmatizados pelo uso descuidado desta expressão que fazia parecer que sua religião era permissiva em relação ao crime e eles afirmam que não”.
A pesquisadora alertou: “No entanto, usei esta terminologia pioneira e cuidadosamente para descrever um fenômeno que chamava atenção: a emergência de traficantes que atuavam em favelas e faziam orações publicamente, participavam de cultos, alguns eram dizimistas em grandes denominações, falavam sobre a redução de práticas violentas em seu cotidiano. Além dos pedidos de oração facilmente identificados pela mídia, esses traficantes apoiavam a divulgação da Palavra e a faziam de forma direta, eventualmente”, explica.
Christina Vital afirmou, entretanto, que ainda não existem dados que comprovem a existência de “narcopentecostalismo” ou “narcorreligião” no Brasil hoje. “Vemos pessoas que estão no crime e se aproximam de religiões, não só evangélicas, mas com isso não podemos dizer que há uma teologia criminal específica, que haja uma igreja de traficantes, para traficantes, propagando valores criminosos, violentos e o uso de drogas à luz da Bíblia ou de qualquer livro sagrado”.
Vital faz um alerta para a desinformação carregada pelo uso desses termos. “Estes termos atendem mais a um anseio sensacionalista de uma mídia e de pesquisadores mal-intencionados ou não tão bem informados”, pontua a professora que coordena o Laboratório de Estudos Sócio Antropológicos em Política, Arte e Religião (Lepar/UFF).
Na mesma reportagem do Bereia, a teóloga, pastora e autora do livro “Traficantes evangélicos: Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus”, Viviane Costa, aborda o aspecto preconceituoso que essas expressões carregam. “O termo ‘narcopentecostalismo’ é equivocado e vem se revelando como parte de um alinhamento preconceituoso midiático contra evangélicos pentecostais. ‘Narcopentecostalismo’ força a ideia de exclusividade e até de ineditismo da presença de religiões em dinâmicas do crime”, enfatiza.
Ainda sobre o tema, em outro veículo, Costa fala sobre as relações religiosas que sempre se deram entre criminosos. “Religião e o crime sempre se entrelaçaram no Brasil. No passado, traficantes pediam proteção a entidades afro-brasileiras e santos católicos. Se olharmos para o nascimento do Comando Vermelho e depois do Terceiro Comando e do TCP, a presença do catolicismo e das religiosidades afro estão ali desde a sua gênese”, descreve a pastora.
Viviane Costa pondera que “vamos ver a presença de São Jorge, a presença de Ogum, os corpos fechados, as tatuagens, as guias, os crucifixos, os cultos, as velas, as oferendas. Por isso, chamar de narcopentecostalismo é reduzir essa relação tão presente, tão sólida, tão histórica e tradicional do crime com a religião”, analisa a teóloga que prefere falar em uma “narcorreligiosidade”. A teóloga explica que isto tem ligação com “uma relação entre religião e tráfico que sempre existiu e agora se reconfigurou para abarcar a crença evangélica, reflexo do espaço e expressão que esta ganhou na sociedade”.
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Bereia checou o vídeo divulgado nas mídias sociais pelo vereador de Belo Horizonte Pedro Rousseff, pelo qual faz críticas à política do deputado federal Nikolas Ferreira e da ligação dos parentes dele, do interior de Minas Gerais, também políticos, com o tráfico de drogas. Apesar de considerar que as suspeitas de que o parlamentar teria relações com novos narcotraficantes na capital daquele estado são lançadas sem indicação de comprovação, Bereia se deteve no uso de desinformação como apelo no vídeo. O vereador mineiro da esquerda fez uso das noções de “facção evangélica” e “narcopentecostalismo”, em contraposição ao fato de Nikolas Ferreira ser evangélico, e elas representam desinformação promotora de intolerância.
Como esta matéria recupera, diante das evidências apresentadas por pesquisadores e analisadas por Bereia, fica nítido que o termo “narcopentecostalismo” — assim como suas variações, como “narcopastor” e “traficantes evangélicos” — carece de base teológica e sociológica. Sua utilização pelas mídias distorcem realidades complexas vividas nas favelas brasileiras, onde há uma coabitação tensa entre igrejas e o tráfico de drogas, mas não uma fusão entre fé e crime.
Chamar esse fenômeno de “narcopentecostalismo” é sensacionalismo. É espalhar uma ideia deturpada que prejudica a compreensão do que realmente acontece nesses territórios. Bereia alerta leitores e leitoras que esta expressão simplifica uma realidade complexa e contribui para reforçar preconceitos contra os evangélicos, alimentando a intolerância religiosa.
Abordagens críticas no espaço político são importantes, bem como a denúncia de instrumentalização da religião para campanhas, mas é preciso rever argumentos que, ao invés de ajudarem a sociedade a entender os desafios enfrentados por igrejas nas periferias, espalham desinformação e fortalecem julgamentos contra um grupo religioso que também é alvo de intolerância.
Referências de checagem:
BBC.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5ej64934mo Acesso em: 10 JUN 2025
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce8nwrp253jo Acesso em: 10 JUN 2025
G1
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/06/10/policia-encontra-base-no-complexo-de-israel.ghtml Acesso em: 10 JUN 2025
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/06/10/avenida-brasil-fechada.ghtml
Folha de SP
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/06/falsa-igreja-no-complexo-de-israel-era-usada-como-fortaleza-de-traficantes-diz-policia.shtml Acesso em: 10 JUN 2025
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/06/conheca-o-tcp-faccao-que-domina-o-complexo-de-israel-e-alvo-de-operacao-policial-no-rj.shtml Acesso em: 11 JUN 2025
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/07/evangelico-pode-ser-traficante.shtml Acesso em: 11 JUN 2025
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/11/faccao-carioca-que-usa-simbolos-de-israel-e-alvo-de-operacao-em-comunidade-de-bh.shtml Acesso em: 11 JUN 2025
CNN
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/rj/traficante-gospel-torturador-e-alvo-de-operacao-no-rj-veja-quem-e-peixao/ Acesso em: 11 JUN 2025
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/nikolas-apos-prisao-de-primo-quem-e-preso-com-drogas-merece-cadeia/ Acesso em: 10 JUN 2025
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/mg/primo-de-nikolas-ferreira-e-preso-com-30-kg-de-maconha-no-porta-malas/ Acesso em: 10 JUN 2025
Revista Fórum
https://revistaforum.com.br/politica/2025/6/2/nikolas-ferreira-tem-que-explicar-uso-de-r-15-mi-que-enviou-pelo-pai-do-primo-preso-180564.html Acesso em: 10 JUN 2025
Jornal Extra
https://extra.globo.com/rio/casos-de-policia/noticia/2025/06/complexo-de-israel-veja-como-atuavam-os-nucleos-liderados-por-peixao-contra-as-forcas-de-seguranca-do-rio.ghtml Acesso em: 11 JUN 2025
O Tempo
https://www.otempo.com.br/cidades/2024/11/27/conheca-a-faccao-criminosa-que-se-intitula-crista-e-domina-o-tra Acesso em: 11 JUN 2025
Estado de Minas
https://www.em.com.br/politica/2025/05/7160645-primo-de-nikolas-e-preso-com-30kg-de-maconha-e-janones-levanta-suspeitas.html Acesso em: 11 JUN 2025