* Matéria atualizada em 21/07/2023 para ajuste de texto e em 21/08/2023 para inserção de informações (ao final do texto)
Matéria publicada pelo site religioso Gospel Mais, replicada por outros diversos espaços digitais, afirma que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por decisão unânime dos desembargadores, proibiu o uso da frase “sob a proteção de Deus” na abertura das sessões legislativas da Câmara de Vereadores da cidade de Araçatuba (SP).
Imagem: reprodução do site Gospel Mais
A publicação do site Gospel Mais é baseada em matéria do portal de notícias G1. O texto explica corretamente que “o Regimento Interno da Câmara Municipal de Araçatuba previa que, na abertura de cada sessão, o presidente da Casa ou o presidente da sessão declarasse que ‘sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos’, seguido da leitura de um versículo bíblico por um dos vereadores presentes”.
Depois, relata que o “Ministério Público moveu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), e em maio deste ano o Tribunal de Justiça decidiu que a prática violava o conceito do Estado laico, onde uma religião não pode ser privilegiada em detrimento de outras, repetindo uma decisão semelhante tomada contra a Câmara Municipal de Engenheiro Coelho”.
Ao final, porém, sem apuração sobre as bases da decisão e sem ouvir especialistas, Gospel Mais insere sua interpretação conclusiva: “A frase ‘sob a proteção de Deus’, apesar de ser parte do preâmbulo da Constituição Federal, agora é considerada inconstitucional em Araçatuba”.
De acordo com a assessoria de imprensa da Câmara Municipal de Araçatuba, o desembargador Tarcisio Ferreira Vianna Cotrim afirmou que o dispositivo viola o princípio da laicidade do Estado brasileiro, uma vez que a Câmara de Araçatuba, sendo uma instituição pública e que está inserida em um Estado laico, não pode privilegiar uma religião em detrimento das demais.
Nesse sentido, conforme a decisão do TJ-SP, a Câmara de Araçatuba não usará a frase “sob a proteção de Deus” e também não fará leitura da Bíblia no rito de abertura das sessões legislativas, pois, de acordo com o TJ-SP, esta prática “configura uma interferência do Estado no direito à liberdade religiosa, ofendendo também os princípios da isonomia, da finalidade e do interesse público, uma vez que não traz benefícios para a coletividade”.
Outras decisões do TJ-SP
O Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu de maneira semelhante anteriormente. O Órgão Especial do Tribunal anulou artigo de uma lei da cidade da cidade de Engenheiro Coelho que previa a leitura de versículos da Bíblia antes do início das sessões na Câmara Municipal.
Fez o mesmo com artigos de leis das cidades de Piracicaba e de Itapecerica da Serra, que também garantiam a leitura de versículos da Bíblia ainda do início das sessões legislativas nas Câmaras Municipais.
Em 2022, o Órgão Especial do TJ-SP validou lei da cidade de Porto Ferreira que previa a colocação de uma Bíblia no plenário da Câmara de Vereadores. A ação contra a prática proposta pela Procuradoria-Geral de Justiça foi negada e o desembargador Damião Cogan relatou que:
“O conceito do Estado laico relaciona-se a neutralidade estatal, mas não preconiza o ateísmo, sendo perfeitamente possível e constitucional que se conviva com símbolos religiosos, principalmente porque dizem sobre sua história e sua cultura, muitas vezes de parcela considerável de seu povo, não se mostrando como intuito do legislador constitucional proibir exibição de objetos, imagens, escrituras religiosas de qualquer religião, porque tais medidas não cerceiam os direitos e liberdades concedidos aos cidadãos”.
Estado Laico
Na decisão que anulou dispositivo legal da Câmara Municipal de Piracicaba, o desembargador Ferreira Rodrigues citou entendimento do STF de que nenhum ente da federação está autorizado a incorporar, a seu ordenamento jurídico, preceitos e concepções, seja da Bíblia ou de qualquer outro livro sagrado. O jurista acrescentou que, ao optar por uma orientação religiosa, a lei quebrou não apenas o dever de neutralidade estatal, como também a liberdade religiosa e de crença:
“Não compete ao Poder Legislativo municipal criar preferência por determinada religião, voltado exclusivamente aos seguidores dos princípios cristãos, alijando outras crenças presentes tradicionalmente no tecido social brasileiro como a judaica, a muçulmana etc., bem como de outras que não ostentem essa percolação, justamente à vista da laicidade do Estado brasileiro”.
Sobre o que isto significa em relação à liberdade religiosa como direito, a professora e pesquisadora Magali Cunha explica que:
“Estado laico não é sinônimo de Estado ateu ou de Estado neutro. Tem que valorizar o lugar das religiões na sociedade, com toda a diversidade interna que elas possuem, e ao mesmo tempo, atuar na garantia de liberdade e igualdade para todos os indivíduos e grupos religiosos e não religiosos no campo dos direitos”.
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Bereia checou o conteúdo e concluiu que a notícia divulgada pelo site Gospel Mais é enganosa. O TJ-SP, de fato, determinou anulação de dispositivo legal da Câmara dos Vereadores de Araçatuba que previa leitura da Bíblia no início das sessões legislativas. Entretanto, tal entendimento, quanto a incompatibilidade com o princípio da à laicidade do Estado, é corroborado por decisões do Supremo Tribunal Federal, encontra ampla discussão na doutrina jurídica e nas teorias acadêmicas.
Nada disso foi mencionado na matéria de Gospel Mais, desenvolvida para confundir e distorcer as informações apresentadas e fazer crer que a decisão é fruto de perseguição religiosa . Este tema já foi alvo de várias checagens do Coletivo Bereia, como o suposto fechamento de igrejas e a perda de mandato político de um deputado federal.
A matéria de Gospel Mais adota as mesmas estratégias de desinformação observadas em outras checagens, ao silenciar sobre fatos relevantes a respeito da decisão proferida, contextualizar de maneira insuficiente e inverter a relevância dos fatos para induzir leitores a crerem que cristãos sofrem perseguição de instituições públicas no Brasil.
ATUALIZAÇÃO: O Tribunal de Justiça de São Paulo, a partir de ação movida pelo Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo declarou como inconstitucional o artigo do regimento interno da Câmara de Araçatuba, que obrigava que toda sessão deveria ser iniciada com uma leitura bíblica. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) citada sentença determinou que tal prática violaria a Constituição Federal, que determina que o Estado é laico. Nesse sentido, o Judiciário proibiu que vereadores sejam obrigados a ler a Bíblia no início dos trabalhos; estes parlamentares não estão impedidos de citar trechos do livro em nenhum momento como algumas reações em mídias sociais, em torno da decisão do TJ-SP, querem fazer crer. Aos Fatos checou algumas delas: https://www.aosfatos.org/noticias/justica-de-sp-nao-proibiu-biblia/.
Referências de checagem:
ConJur.
https://www.conjur.com.br/2023-mai-12/leitura-biblia-camara-municipal-viola-laicidade-estatal-tj-sp Acesso em: 18 JUL. 2023
https://www.conjur.com.br/2022-out-01/lei-obriga-leitura-biblia-camara-inconstitucional Acesso em: 18 JUL. 2023
https://www.conjur.com.br/2022-jul-12/biblia-camara-vereadores-nao-viola-principio-laicidade Acesso em: 18 JUL. 2023
Câmara Municipal de Araçatuba.https://www.aracatuba.sp.leg.br/noticia/Justica-julga-inconstitucional-leitura-biblica-no-inicio-das-sessoes Acesso em 17 JUL. 2023
Coletivo Bereia.
https://coletivobereia.com.br/apos-perda-de-mandato-de-dallagnol-politicos-religiosos-propagam-narrativa-enganosa-de-perseguicao/ Acesso em 17 JUL 2023
https://coletivobereia.com.br/cristofobia-perseguicao-a-cristaos-e-fechamento-de-igrejas-estao-entre-os-temas-com-mais-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/ Acesso em 17 JUL 2023
Unisinos. https://ihu.unisinos.br/categorias/581841-religioes-politica-e-estado-laico-como-superar-equivocos Acesso em: 18 JUL. 2023
Fundação Perseu Abramo. Significado político da manipulação na grande imprensa. https://fpabramo.org.br/csbh/significado-politico-da-manipulacao-na-grande-imprensa/ Acesso em: 18 JUL. 2023
A era da desinformação: pós verdade, fake news e outras armadilhas. Marco Schneider Rio de Janeiro, Garamond, 2022.
Aos Fatos. https://www.aosfatos.org/noticias/justica-de-sp-nao-proibiu-biblia/ Acesso em: 21 AGO. 2023
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. https://esaj.tjsp.jus.br/cposg/search.do;jsessionid=AA5ED9AF2407BA2D6FEB2FD8D440A6E1.cposg2?conversationId=&paginaConsulta=0&cbPesquisa=NUMPROC&numeroDigitoAnoUnificado=2294532-79.2022&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=2294532-79.2022.8.26.0000&dePesquisaNuUnificado=UNIFICADO&dePesquisa=&tipoNuProcesso=UNIFICADO. Acesso em: 21 AGO. 2023
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Foto de capa: Câmara Municipal de Araçatuba/Facebook