Decisão judicial determina que Igreja Universal devolva doação feita por fiel

Diferentes portais de notícias divulgaram a decisão judicial que determinou a devolução de doações feitas por uma fiel à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Com o auxílio da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, as fiéis contestaram na justiça as doações feitas pela primeira à Igreja. A IURD recorreu da decisão em primeira instância, mas o pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Imagem: reprodução do site Mais Goiás

Imagem: reprodução do Metrópoles

Segundo as matérias, no pedido à Justiça, foi afirmado que a fiel frequentou cultos na IURD entre os anos de 1999 e 2018, e que as doações ocorreram nos dias 15 de dezembro de 2017 (R$ 7.500,00) e 14 de junho de 2018 (R$ 193.764,25 e R$ 3.035,75) totalizando R$ 204.500,00, o que corresponderia  a todo o patrimônio amealhado por ela durante a sua vida. Alega-se, ainda, que as doações comprometeram parte indisponível da herança da filha e,  por fim, a fiel afirmou que foi coagida a realizar as doações. 

Bereia checou que o processo existe e, segundo as informações disponíveis, A Igreja Universal do Reino de Deus, depois de citada pelo Poder Judiciário, alegou ausência de coação e reafirmou a liberdade da organização religiosa. Alegou ainda que a coautora Flaurinda Valeriano frequentava suas dependências para exercício da fé e as doações foram realizadas de forma livre e espontânea. 

O processo 

Desta forma, como a realização das doações tem, como um de seus elementos essenciais, a declaração livre e espontânea de vontade das partes, discutiu-se no processo se houve coação moral.  Também foi considerado que para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa,à sua família, ou aos seus bens.

“Coação é toda ameaça ou pressão injusta exercida sobre um indivíduo para forçá-lo, contra a sua vontade, a praticar um ato ou realizar um negócio. O que a caracteriza é o emprego da violência psicológica para viciar a vontade. Não é coação, em si, um vício da vontade, mas sim o temor que ela inspira, tornando defeituosa a manifestação de querer do agente”.

Após analisar todos os documentos anexados ao processo e ouvidas as testemunhas, o Poder Judiciário afirma que é incontroverso que a fiel realizou três doações em favor da IURD, nos valores de R$ 7.500,00, R$ 3.035,75 e R$ 193.964,25, em 14/6/2018.

Verificou-se também, segundo consta no processo, que a fiel foi vítima de coação na realização das doações à IURD, considerando as pressões psicológicas empreendidas pelos membros da organização religiosa para realização de tais ofertas na campanha denominada Fogueira Santa.

Alegações da Igreja Universal 

A IURD admitiu em contestação que:

“A crença divulgada pela Igreja Universal, decodificada por Jesus, no sentido de que o fluxo de ofertar completa-se no refluxo de receber as bênçãos divinas, esclarecendo que o ato de entregar tudo a Deus não está adstrito a bens e valores, compreendendo também a entrega de sua vida a Deus”.

Desta maneira, o Poder Judiciário entendeu que, segundo as doutrinas da ré, não basta o fiel pautar suas condutas de acordo com os ensinamentos bíblicos, pois também se reforça a necessidade de entrega de bens e valores, inclusive na sua totalidade. 

Segundo consta no processo, tais alegações corroboram as palavras das autoras de que os pastores divulgam a necessidade de entrega de dinheiro para o recebimento de recompensa divina e que uma das campanhas de doações promovidas pela IURD, denominada Fogueira Santa, é espécie de sacrifício material em que o fiel espera ser honrado por divindade. 

O sacrifício máximo seria incentivado pelos pastores, fazendo alusão à passagem bíblica em que Abraão oferece a vida de seu filho a Deus como prova de fé. A doação então seria vista como prova de fé no ambiente da IURD e que se algum fiel estivesse em posição semelhante à da fiel, com recebimento de montante expressivo decorrente de indenização trabalhista e esperando uma suposta recompensa espiritual prometida pelos pastores, faria doação total à IURD.

Testemunhas confirmam coação de fiéis 

Ainda segundo partes do processo, as testemunhas arroladas pelas autoras foram uníssonas ao afirmar a existência de coação moral dos pastores para doação de bens e valores pelos fiéis nas campanhas denominadas Fogueiras Santas, sempre com promessas de recebimento de bênçãos divinas.

A decisão judicial

No entendimento da Justiça, a fiel fez a doação total de seus bens, sem que fizesse reserva para sua subsistência ou de valor destinado à sua herdeira, e determinou a nulidade das doações, com base nos artigos 548, 549 e 1.846, do Código Civil. Nesses artigos, consta que: 

É nula a doação de todos os bens sem que tenha sido feita reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador. A doação também pode ser invalidada se o doador dispor da parte que exceder, no momento da liberalidade, o que poderia dispor em testamento. Por fim, os herdeiros necessários têm direito a metade dos bens da herança, constituindo-a legítima.” 

Portanto, a Igreja Universal do Reino de Deus foi obrigada a restituir a fiel no valor total de R$ 204.500,00 (duzentos e quatro mil e quinhentos reais), incidindo correção monetária pela tabela de correção dos débitos judiciais do Tribunal de Justiça e juros de um por cento ao mês ambos a partir de cada desembolso.

Ainda no processo que condenou a IURD, outra decisão semelhante é apontada como prova das mesmas práticas de coação praticadas contra a fiel. Neste caso, outra fiel da igreja, sob coação, teria feito doação de veículo Honda Fit, num momento de instabilidade psicológica devida a graves problemas financeiros, tendo sido levada a celebrar o negócio, após 21 dias de afastamento do mundo no chamado “jejum de Daniel”. A doação foi feita em virtude do que foi classificado em processo judicial de “ameaças feitas pelo pastor”, que a visitou em sua casa e lhe telefonou repetidas vezes exortando-a a doar o veículo para que fosse queimado na “Fogueira Santa”, de modo a evitar um mal que recairia sobre ela. 

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Bereia considera o conteúdo checado como verdadeiro, pois de fato houve um processo judicial contra a Igreja Universal do Reino de Deus e após todos os trâmites legais, a igreja foi condenada ao ressarcimento a uma fiel de doação que lhe foi feita, classificada, segundo os autos, sob “coação moral”. 

Referências de checagem:

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. https://esaj.tjsp.jus.br/cjpg/pesquisar.do?conversationId=&dadosConsulta.pesquisaLivre=igreja+universal+do+reino+de+deus&tipoNumero=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=&foroNumeroUnificado=&dadosConsulta.nuProcesso=&dadosConsulta.nuProcessoAntigo=&classeTreeSelection.values=&classeTreeSelection.text=&assuntoTreeSelection.values=&assuntoTreeSelection.text=&agenteSelectedEntitiesList=DivID%3Ddivagente7928%3B%5EdadosConsulta.agentes%5B0%5D.cdAgente%3D7928%5EdadosConsulta.agentes%5B0%5D.nmAgente%3DCarlos+Alexandre+B%C3%B6ttcher%24&contadoragente=1&contadorMaioragente=1&cdAgente=7928&nmAgente=Carlos+Alexandre+B%C3%B6ttcher&dadosConsulta.agentes%5B0%5D.cdAgente=7928&dadosConsulta.agentes%5B0%5D.nmAgente=Carlos+Alexandre+B%C3%B6ttcher&dadosConsulta.dtInicio=&dadosConsulta.dtFim=14%2F08%2F2023&varasTreeSelection.values=&varasTreeSelection.text=&dadosConsulta.ordenacao=DESC. Acesso em 14  AGO 2023   

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.  http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do Acesso em 14  AGO 2023

Mais Goiás. https://www.maisgoias.com.br/brasil/universal-e-condenada-a-devolver-r-200-mil-a-fiel-que-buscava-lugar-no-ceu/ Acesso em 14 AGO 2023

Metrópoles. https://www.metropoles.com/sao-paulo/sp-justica-manda-igreja-universal-devolver-r-204-mil-para-fiel-que-doou-todo-patrimonio Acesso em 14 AGO 2023

Revista Fórum. https://revistaforum.com.br/brasil/2023/8/11/igreja-universal-condenada-devolver-r-200-mil-para-professora-coagida-142144.html Acesso em 14 AGO 2023

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Foto de capa: reprodução do site Universal.org

Conteúdo enganoso sobre proibição de frase cristã na Câmara Municipal de Araçatuba repercute nas mídias

* Matéria atualizada em 21/07/2023 para ajuste de texto e em 21/08/2023 para inserção de informações (ao final do texto)

Matéria publicada pelo site religioso Gospel Mais, replicada por outros diversos espaços  digitais, afirma que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por decisão unânime dos desembargadores, proibiu o uso da frase “sob a proteção de Deus” na abertura das sessões legislativas da Câmara de Vereadores da cidade de Araçatuba (SP). 

Imagem: reprodução do site Gospel Mais

A publicação do site Gospel Mais é baseada em matéria do portal de notícias G1. O texto explica corretamente que “o Regimento Interno da Câmara Municipal de Araçatuba previa que, na abertura de cada sessão, o presidente da Casa ou o presidente da sessão declarasse que ‘sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos’, seguido da leitura de um versículo bíblico por um dos vereadores presentes”.

Depois, relata que o “Ministério Público moveu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), e em maio deste ano o Tribunal de Justiça decidiu que a prática violava o conceito do Estado laico, onde uma religião não pode ser privilegiada em detrimento de outras, repetindo uma decisão semelhante tomada contra a Câmara Municipal de Engenheiro Coelho”.

Ao final, porém, sem apuração sobre as bases da decisão e sem ouvir especialistas, Gospel Mais insere sua interpretação conclusiva: “A frase ‘sob a proteção de Deus’, apesar de ser parte do preâmbulo da Constituição Federal, agora é considerada inconstitucional em Araçatuba”.

De acordo com a assessoria de imprensa da Câmara Municipal de Araçatuba, o desembargador Tarcisio Ferreira Vianna Cotrim afirmou que o dispositivo viola o princípio da laicidade do Estado brasileiro, uma vez que a Câmara de Araçatuba, sendo uma instituição pública e que está inserida em um Estado laico, não pode privilegiar uma religião em detrimento das demais.

Nesse sentido, conforme a decisão do TJ-SP, a Câmara de Araçatuba não usará a frase “sob a proteção de Deus” e também não fará  leitura da Bíblia no rito de abertura das sessões legislativas, pois, de acordo com o TJ-SP,  esta prática “configura uma interferência do Estado no direito à liberdade religiosa, ofendendo também os princípios da isonomia, da finalidade e do interesse público, uma vez que não traz benefícios para a coletividade”.

Outras decisões do TJ-SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu de maneira semelhante anteriormente. O Órgão Especial do Tribunal anulou artigo de uma lei da cidade da cidade de  Engenheiro Coelho que previa a leitura de versículos da Bíblia antes do início das sessões na Câmara Municipal. 

Fez o mesmo com artigos de  leis das cidades de Piracicaba  e de Itapecerica da Serra, que também garantiam a leitura de versículos da Bíblia ainda do início das sessões legislativas nas Câmaras Municipais. 

Em 2022, o Órgão Especial do TJ-SP validou lei da cidade de  Porto Ferreira que previa a colocação de uma Bíblia no plenário da Câmara de Vereadores. A ação contra a prática proposta pela Procuradoria-Geral de Justiça foi negada e o desembargador Damião Cogan relatou que:

 “O conceito do Estado laico relaciona-se a neutralidade estatal, mas não preconiza o ateísmo, sendo perfeitamente possível e constitucional que se conviva com símbolos religiosos, principalmente porque dizem sobre sua história e sua cultura, muitas vezes de parcela considerável de seu povo, não se mostrando como intuito do legislador constitucional proibir exibição de objetos, imagens, escrituras religiosas de qualquer religião, porque tais medidas não cerceiam os direitos e liberdades concedidos aos cidadãos”. 

Estado Laico

Na decisão que anulou dispositivo legal da Câmara Municipal de Piracicaba, o desembargador Ferreira Rodrigues citou entendimento do STF de que nenhum ente da federação está autorizado a incorporar, a seu ordenamento jurídico, preceitos e concepções, seja da Bíblia ou de qualquer outro livro sagrado. O jurista acrescentou que, ao optar por uma orientação religiosa, a lei quebrou não apenas o dever de neutralidade estatal, como também a liberdade religiosa e de crença: 

“Não compete ao Poder Legislativo municipal criar preferência por determinada religião, voltado exclusivamente aos seguidores dos princípios cristãos, alijando outras crenças presentes tradicionalmente no tecido social brasileiro como a judaica, a muçulmana etc., bem como de outras que não ostentem essa percolação, justamente à vista da laicidade do Estado brasileiro”

Sobre o que isto significa em relação à liberdade religiosa como direito, a professora e pesquisadora Magali Cunha explica que:

“Estado laico não é sinônimo de Estado ateu ou de Estado neutro. Tem que valorizar o lugar das religiões na sociedade, com toda a diversidade interna que elas possuem, e ao mesmo tempo, atuar na garantia de liberdade e igualdade para todos os indivíduos e grupos religiosos e não religiosos no campo dos direitos”.

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Bereia checou o conteúdo e concluiu que a notícia divulgada pelo site Gospel Mais é enganosa. O TJ-SP, de fato,  determinou anulação de dispositivo legal da  Câmara dos Vereadores de Araçatuba que previa leitura da Bíblia no início das sessões legislativas. Entretanto, tal entendimento, quanto a incompatibilidade com o princípio da à laicidade do Estado, é corroborado por decisões do Supremo Tribunal Federal, encontra ampla discussão na doutrina jurídica e nas teorias acadêmicas. 

Nada disso foi mencionado na matéria de Gospel Mais, desenvolvida para confundir e distorcer as informações apresentadas e fazer crer que a decisão é  fruto de perseguição religiosa . Este tema já foi alvo de várias checagens do Coletivo Bereia, como o suposto fechamento de igrejas e a perda de mandato político de um deputado federal. 

A matéria de Gospel Mais adota as mesmas estratégias de desinformação observadas em outras checagens, ao silenciar sobre fatos relevantes a respeito da decisão proferida, contextualizar de maneira insuficiente e inverter a relevância dos fatos para induzir leitores a crerem que cristãos sofrem perseguição de instituições públicas no Brasil. 

ATUALIZAÇÃO: O Tribunal de Justiça de São Paulo, a partir de ação movida pelo Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo declarou como inconstitucional o artigo do regimento interno da Câmara de Araçatuba, que obrigava que toda sessão deveria ser iniciada com uma leitura bíblica. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) citada sentença determinou que tal prática violaria a Constituição Federal, que determina que o Estado é laico. Nesse sentido, o Judiciário proibiu que vereadores sejam obrigados a ler a Bíblia no início dos trabalhos; estes parlamentares não estão impedidos de citar trechos do livro em nenhum momento como algumas reações em mídias sociais, em torno da decisão do TJ-SP, querem fazer crer. Aos Fatos checou algumas delas: https://www.aosfatos.org/noticias/justica-de-sp-nao-proibiu-biblia/.

Referências de checagem:

ConJur.

https://www.conjur.com.br/2023-mai-12/leitura-biblia-camara-municipal-viola-laicidade-estatal-tj-sp Acesso em: 18 JUL. 2023

https://www.conjur.com.br/2022-out-01/lei-obriga-leitura-biblia-camara-inconstitucional Acesso em: 18 JUL. 2023

https://www.conjur.com.br/2022-jul-12/biblia-camara-vereadores-nao-viola-principio-laicidade Acesso em: 18 JUL. 2023

Câmara Municipal de Araçatuba.https://www.aracatuba.sp.leg.br/noticia/Justica-julga-inconstitucional-leitura-biblica-no-inicio-das-sessoes Acesso em 17 JUL. 2023

Coletivo Bereia.

https://coletivobereia.com.br/apos-perda-de-mandato-de-dallagnol-politicos-religiosos-propagam-narrativa-enganosa-de-perseguicao/ Acesso em 17 JUL 2023

https://coletivobereia.com.br/cristofobia-perseguicao-a-cristaos-e-fechamento-de-igrejas-estao-entre-os-temas-com-mais-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/ Acesso em 17 JUL 2023

Unisinos. https://ihu.unisinos.br/categorias/581841-religioes-politica-e-estado-laico-como-superar-equivocos Acesso em: 18 JUL. 2023

Fundação Perseu Abramo. Significado político da manipulação na grande imprensa. https://fpabramo.org.br/csbh/significado-politico-da-manipulacao-na-grande-imprensa/ Acesso em: 18 JUL. 2023 

A era da desinformação: pós verdade, fake news e outras armadilhas. Marco Schneider Rio de Janeiro, Garamond, 2022. 

Aos Fatos. https://www.aosfatos.org/noticias/justica-de-sp-nao-proibiu-biblia/ Acesso em: 21 AGO. 2023

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. https://esaj.tjsp.jus.br/cposg/search.do;jsessionid=AA5ED9AF2407BA2D6FEB2FD8D440A6E1.cposg2?conversationId=&paginaConsulta=0&cbPesquisa=NUMPROC&numeroDigitoAnoUnificado=2294532-79.2022&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=2294532-79.2022.8.26.0000&dePesquisaNuUnificado=UNIFICADO&dePesquisa=&tipoNuProcesso=UNIFICADO. Acesso em: 21 AGO. 2023

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Foto de capa: Câmara Municipal de Araçatuba/Facebook