Circula em mídias sociais de perfis cristãos uma mensagem de áudio em que locutor anônimo faz alusão a uma suposta lei, aprovada pelo atual governo, que impediria o uso de determinados termos em orações. O áudio é dirigido a cristãos e aparentemente, alerta sobre o risco de igrejas ou indivíduos responderem à justiça se forem flagrados fazendo uso de palavras para se referirem criticamente a fiéis de religiões de matriz africana.. A pedido de um leitor, Bereia fez a checagem deste conteúdo que tem circulado amplamente.
No áudio, o locutor faz um alerta aos fiéis: “Para quem não sabe, não pode mais orar falando mal dos catimbozeiro, macumbeiro, feiticeiro na oração, não pode. (…) foi uma lei outorgada agora nessa última quinta feira. (…) Sejamos cautelosos nessas questões (…) infelizmente é o presidente que foi elegido (sic) e infelizmente, são as leis do nosso país, agora tem que respeitar.”
Pela data de veiculação do áudio, possivelmente, a norma mencionada trata-se da Lei 14.532, de 2023, aprovada em 11 de janeiro pelo atual governo, com o objetivo de alterar a Lei do Crime Racial (7.716/1989) e o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) para tipificar a injúria racial como racismo. Ao contrário do tom dado ao conteúdo do áudio, não se trata de um cerceamento à liberdade religiosa, mas de mais uma camada de proteção a esta liberdade que, comprovadamente, é historicamente negada às tradições de matriz africana.
Injúria racial e racismo
Ao alterar a redação da Lei do Crime Racial, a Lei 14.532/2023, sancionada logo no primeiro mês de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, equipara o crime de injúria racial ao de racismo e prevê punição para os delitos resultantes de discriminação não apenas por cor, raça e etnia, mas também por religião ou procedência nacional.
A injúria racial é um dos crimes contra a honra, previsto no Código Penal como uma forma qualificada para os atos de injúria. Para que este tipo de crime ocorra, deve haver ofensa à dignidade de uma pessoa por sua raça, cor, etnia, religião ou origem. Já a prática de racismo, prevista na Lei de Crime Racial tipifica esta discriminação contra a coletividade, sem considerar este tipo de violência direcionada ao indivíduo. A injúria racial é uma maneira de conseguir abranger esses tipos de delitos direcionados a uma pessoa.
Com a equiparação, a pena para injúria racial torna-se equivalente à aplicada para racismo. A nova redação prevê pena de dois a cinco anos de reclusão e multa no caso de injúria racial, podendo a pena ser aumentada de metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas. Se cometida no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público, além da pena de reclusão, pode-se aplicar a proibição de frequência a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais (a depender do caso) por três anos – a frequência a locais destinados à prática religiosa permanece garantida. Incorre nas mesmas penas quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas.
Os novos dispositivos podem ser interpretados de diversas formas, a depender do caso concreto em questão. Ouvido pelo Bereia, o advogado, mestre em Direitos Fundamentais e membro da Rede Cristã de Advocacia Popular José Carlos Muniz, afirma que “a interpretação normativa é, em alguma medida, ampla. O que a gente tem que considerar é o contexto. Uma norma dessa pode ser utilizada para finalizar práticas de incitação ou indução à discriminação religiosa contra qualquer religião. Durante muito tempo era muito comum haver preconceito contra evangélicos, mas pode ser contra religiões de matriz africana.” E continua: “Não se pode ter o discurso de uma religião que induza o preconceito e a discriminação de outra, seja qual for”.
Intolerância religiosa no Brasil
Nos últimos anos, o Brasil assistiu ao crescimento de ataques contra centros de umbanda e candomblé. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), levantados pelo Portal UOL, entre 2021 e 2022 houve um aumento de 141% nas denúncias de intolerância religiosa, com 586 denúncias em 2022, contra 243 no ano anterior. O portal ainda expõe que obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação, dados que apontam o registro de mais de 15 mil denúncias de ataques religiosos recebidos pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP).
Em depoimento ao Jornal Nacional, da Rede Globo, o padre Marcus Barbosa Guimarães afirma que a intolerância vem crescendo nas dimensões religiosa, humana e social, e afirma que a nova lei surge como um gesto concreto de combate à intolerância. Já o pastor , da Comunidade Caverna SP Levi Araújo, relembra a etimologia da palavra religião, que conclama a união, jamais o desrespeito.
Para a antropóloga Christina Vital o senso comum sobre a liberdade religiosa não reflete a totalidade da questão no Brasil. Segundo Vital as disputas políticas aumentam a complexidade deste tema. “A ação de evangélicos protestantes e pentecostais foi dada como fundamental para a garantia da liberdade religiosa no Brasil como um meio de ação contra a hegemonia da Igreja Católica. Aos religiosos de matriz afro-brasileira, a identificação com o tema teria surgido mais recentemente e na forma das ações de combate à intolerância religiosa. Contudo, cada vez mais a liberdade religiosa como afirmação da democracia e combate à violência vem sendo ativada por esses religiosos afro-brasileiros como meio de disputa com os grupos majoritários da agenda em nível global” afirma Vital.
Racismo e religião
A discriminação religiosa perpetrada contras as religiões de matriz africana opera, muitas vezes, no que se convencionou chamar de “racismo estrutural”, ou seja, o conjunto de hábitos e práticas que promove, mesmo sem intenção, o preconceito racial. Termos como “macumbeiro”, entendidos como inofensivos por parte da população, carregam uma forte carga de exclusão social daqueles que professam religiões de matriz africana.
Na onda conservadora que atravessa o mundo infiltrando-se em todas as áreas da sociedade, desde a política até a religião, a afirmação de convicções pessoais tem cedido espaço a ataques que provocam cismas sociais. É o que explica Ana Gualberto, historiadora e coordenadora de ações com comunidades negras tradicionais na Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, em entrevista à Rádio Brasil de Fato: “A gente tem vivido, hoje, no mundo e no Brasil, um movimento em que o conservadorismo e as práticas fundamentalistas estão ganhando espaço e, com isso, as pessoas se sentem mais à vontade para infringir a lei”.
O advogado José Carlos Muniz, na entrevista ao Bereia, ressalta que “se alguém tem a intenção de injuriar, o fato de fazer isso em culto religioso não torna a conduta lícita”. Nesse sentido, o novo entendimento acerca da injúria racial, equiparando-a, na lei, ao crime de racismo, vem preencher uma lacuna jurídica, visando a garantir ampla e efetiva liberdade religiosa. Isto é, o Estado atuando de modo a garantir a livre manifestação de todas as crenças, sem ameaças, ataques ou preconceitos.
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Bereia classifica como impreciso o conteúdo do áudio enviado por leitor. A declaração oferece uma informação verdadeira, mas vaga e sem apresentar os fatos e o contexto na amplitude necessária. A ausência de diferentes perspectivas, por exemplo, contribui para a caracterização da desinformação. Assim, o áudio pode colaborar, mesmo que de maneira implícita, para a construção de uma narrativa errônea, segundo a qual o atual governo federal estaria cerceando a liberdade de religião cristã, e protegendo apenas determinadas certas confissões religiosas. Ao desinformar, além de buscar criar aversão de cristãos contra o atual governo, o áudio anônimo ainda transmite a defesa de um falso direito de expressão que libera a ofensa e a injúria contra quem professa fé diferente.O conteúdo, de fato, omite que o que ocorre é a proteção ampla a todos os tipos de crença, na esteira do aumento dos casos de ataques religiosos, e a previsão de penas para crimes comuns praticados dentro ou fora dos espaços da religião.
Bereia alerta leitores e leitoras para a divulgação deliberada de conteúdo impreciso para confundir sobre temas de interesse público. A desinformação, nestes casos, se caracteriza pela falta de consistência na informação veiculada, sem apresentar os fatos e o contexto na amplitude necessária, pelo anonimato (não registra quem está falando e suas fontes), e por recorrentes erros no uso da língua portuguesa.
Bereia também chama à participação cidadã com atenção ao Disque 100 para denúncia de violação de Direitos Humanos, incluídos os casos de intolerância religiosa citados nesta matéria.
Disque 100: https://www.gov.br/pt-br/servicos/denunciar-violacao-de-direitos-humanos
Referências de checagem:
Senado Federal. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/01/12/sancionada-lei-que-tipifica-como-crime-de-racismo-a-injuria-racial Acesso em: 14 fev 2023
Planalto.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm Acesso em: 14 fev 2023
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em: 14 fev 2023
Normas. https://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:2023-01-11;14532 Acesso em: 14 fev 2023
G1. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/01/18/lei-torna-mais-severas-as-penas-para-crimes-de-intolerancia-religiosa.ghtml Acesso em 16 fev 2023
CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/intolerancia-religiosa-existe-no-brasil-e-precisamos-combate-la-diz-antropologa/ Acesso em 16 fev 2023
Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/politica/injuria-racial-foi-equiparada-ao-crime-de-racismo-entenda-o-que-muda/ Acesso em: 15 fev 2023
Ministério Público do Paraná. https://mppr.mp.br/Noticia/Entenda-Direito-Injuria-racial-e-equiparada-ao-racismo Acesso em: 15 fev 2023
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/combate-a-intolerancia-religiosa-volta-a-agenda-do-governo-federal Acesso em: 15 fev 2023
UOL. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/08/10/intolerancia-religiosa-no-brasil-o-que-e-e-como-identificar.htm Acesso em: 16 fev 2023
Folha de S.Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/09/relatos-apontam-proliferacao-de-ataques-as-religioes-afro-brasileiras.shtml Acesso em: 15 fev 2023
Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2022/01/21/em-2021-foram-feitas-571-denuncias-de-violacao-a-liberdade-de-crenca-no-brasil Acesso em: 15 fev 2023
Conectas. https://www.conectas.org/noticias/o-que-e-racismo-religioso-e-como-ele-afeta-a-populacao-negra/ Acesso em: 17 fev 2023
Denunciar violação de Direitos Humanos – Disque 100. https://www.gov.br/pt-br/servicos/denunciar-violacao-de-direitos-humanos
Religião e Poder. https://religiaoepoder.org.br/artigo/liberdade-religiosa/ Acesso em 17 fev 2023
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Foto de capa: Arquivo/Agência Brasil