As informações disponíveis na mídia e redes sociais sobre o protesto contra o assassinato do refugiado político congolês de Moïse Kagambe, num quiosque da Barra da Tijuca/RJ, em 24 de janeiro de 2022, tiveram uma dupla conotação. De um lado, visibilizar a indignação que o ato brutal contra o trabalhador informal, que ironicamente procurou segurança no Brasil ao fugir da guerra em seu país, e a necessidade de manifestar o grau de barbárie que se instalou como uma forma de solução de conflitos. De outro lado, marcar o posicionamento político dos presentes no ato – organizado pelo vereador da Câmara de Curitiba/PR Renato Freitas (PT), em 5 de fevereiro e 2022 –, denunciando o racismo e violência estrutural entranhadas na sociedade brasileira, bem como a urgente necessidade de sua superação. Porém, o ato que tinha forte potencial de indignação acabou sendo confusão.
Segundo declarações do próprio organizador, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, erguida por escravos em 1737, foi escolhida por ser considera símbolo de resistência contra a escravidão em solo brasileiro. Numa primeira leitura, a opção simbólica foi uma evocação histórica acertada pelo peso político e religioso que possa ter. Porém, durante o protesto vieram à tona acusações à Igreja Católica sobre os resquícios de racismo religioso que a acompanham, revelando a longa convivência do cristianismo com a escravidão, uma das diversas dimensões que o termo encerra. Tanto o aspecto simbólico quanto os conteúdos (racismo religioso, racismo estrutural, violência, perda de humanidade) do protesto são válidos e legítimos, mas, talvez a performance na ocupação da igreja não tenha tido o impacto desejado. Isso porque, protestos em espaços sagrados têm sua própria lógica e a eficácia política advêm do uso da linguagem religiosa (por exemplo vigílias frente à igreja, silêncios prolongados, velas e cruzes, procissões etc.).
Além disso, forma parte do impacto desses atos as articulações com os grupos religiosos, como por exemplo, neste caso, a pastoral do imigrante, pastoral do negro, pastorais sociais. Tudo isso, contribui para angariar adesão à “causa”, legitimidade no uso do espaço e reverbera entre os fiéis e a sociedade a performance que tem como palco o espaço sagrado. Constata-se no protesto liderado pelo vereador um duplo barulho: uma contradição entre os conteúdos da denúncia do racismo religioso e a escolha assertiva da igreja como palco performático. Essa colisão neutralizou o objetivo principal do ato e o protesto rumou por caminhos contrários e indesejados, até para os organizadores. Todavia, estão por vir as consequências e o seu desfecho, possivelmente com repercussões jurídicas, administrativas e processuais para seus envolvidos.
Sem dúvida que, uma das reações institucionais é a de preservação patrimonial, zelo pelo uso do espaço sagrado, o que é válido e legítimo. Muitas vezes a defesa desse espaço (territorial e simbólico) obriga seus guardiões (sacerdotes e bispos) a invocar o direito à defesa da liberdade religiosa e reagir perante possíveis ameaças de profanação, depredação. Mesmo assim, seguramente, que tanto o pároco quanto a Arquidiocese concordam que o assassinato de Moïse Kagambe foi um ato de barbárie e uma afronta à convivência entre seres humanos. Certamente a adesão a toda manifestação de indignação é endossada pela Igreja Católica, pois isso a faz coerente com a ética cristã que prega, e, ao mesmo tempo alinha-se com o Papa Francisco que não cansa de denunciar os atos de xenofobia e de racismo que sofrem os refugiados nos diversos países, o que não exclui o Brasil da listagem.
Fora das repercussões no âmbito eclesiástico e judiciário, o ato de protesto traz uma revelação que nos lembra cenários anteriores acerca do clima pré-eleitoral. O crescente ambiente de polarização social, propiciando enfrentamentos nas esferas públicas, religiosas e familiares vem em crescendo desde 2014, elevando a temperatura em 2018. Este ano parece não se vislumbrar diferente. A produção de desinformação, conteúdos falsos, incentivo ao ódio, deslegitimarão das instituições democráticas, descrédito dos mecanismos democráticos tem sido a tônica que pauta a pandemia e o clima da contenda no acesso ao Planalto. Evidentemente que, o ganho político que o protesto possa gerar dependerá do contexto eleitoral, ora pode ser objeto de inúmeras distorções que mirem o público religioso, nutrindo imaginários de ameaça e agressão religiosa, ora pode ser apenas um incidente episódico que cai no esquecimento.
No entanto, o interessante é observar como o fato provocou certas reações e posicionamentos das pessoas nas mídias sociais. Muitas ficaram indignadas diante do que se denominou como “invasão” e cujos argumentos trazem à tona o pensamento ultraconservador, político e religioso, que percorre suas reações. Assim, percebe-se como é gerado, imediatamente, um posicionamento de um nós contra eles, sejam eles do Partido dos Trabalhadores ou de outras alas da Esquerda. As acusações perpetuam clichês que desqualificam seus militantes como sendo baderneiros, desordeiros, arruaceiros etc. Até aqui nenhuma novidade, pois são termos já presentes nos idos anos de 1989, no primeiro pleito eleitoral pós-ditadura militar. O novo, onde emerge um alerta, é quando se passa de um posicionamento antagônico, próprio da arena política, para uma identificação do outro como inimigo, seja indivíduo seja coletivo, com uma motivação inerente à linguagem bélica. No campo religioso esse inimigo assume conotação teológica, sendo demonizado. Tal passagem, política e religiosa, se torna perigosa porque situações de violência estrutural, como a que vivemos, o inimigo deve ser eliminado de qualquer forma e a qualquer custo. Assim, um pensamento polarizado leva identificar e classificar os outros sob o prisma da ameaça o que muitas vezes se concretiza em agressão (física, verbal, simbólica, moral) como forma ofensiva de defesa, muitas vezes justificada religiosamente.
Há um outro elemento interessante nessas reações contra o manifesto na Igreja de São Benedito: invocar a perseguição aos cristãos como objetivo do ato político. Em países como na Índia, Coreia do Norte, Afeganistão, Argélia, entre outros, onde os cristãos são minorias, frequentemente se verifica hostilidade e perseguição a eles. Não é o caso do Brasil, que é histórica, demográfica e culturalmente cristão, contudo, há um imaginário de perseguição religiosa que as elites pastorais e influencers religiosos vem cultivando nos últimos anos sob o mote de cristofobia. Entretanto, as acusações de uma perseguição cristofóbica, na verdade, esconde a justificativa de uma ofensiva contra grupos considerados inimigos da religião cristã. De acordo com essa lógica cristofóbica existem grupos que conspiram contra o cristianismo e impedem os fiéis o direito de exercer sua liberdade religiosa e/ou a possibilidade de impor a moralidade cristã como moralidade pública a ser assumida na sociedade brasileira, independente de serem todos seus membros religiosos de outros credos ou de não ter religião. Evidentemente que, há um elemento comum na desqualificação da esquerda política e na cristofobia: a manifestação de uma alteridade tida como inimiga. De tal forma que, identificar o antagônico e/ou o diferente (religioso ou não) como inimigo que deve ser eliminado, promover ódio entre pessoas e grupos diferentes, resolver de forma violenta atritos e problemas comuns, valorizar a linguagem violenta, machista e homofóbica são alguns dos traços ideológicos caracterizam grupos de ultradireita, cada vez mais atuantes internacionalmente. Desgraçadamente, esses traços devem nos acompanhar na atual conjuntura sociopolítica-eleitoral.
Enfim, se é verdade que o ato de protesto diante do trágico fim do asilado Moïse Kagambe descortinou finas nuances políticas, religiosas e ideológicas, também é certo que a evocação simbólica de São Benedito pode inspirar o fortalecimento da indignação: mecanismo eficaz contra a naturalização da violência que como suave torpor adormece consciências.
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Foto de capa: reprodução do Facebook