Podemos nos perguntar se no início do Cristianismo já havia perturbação nas comunidades causada por falsas notícias e documentos apócrifos.
A Segunda Carta de Paulo aos Tessalonicenses dá a entender que esse fenômeno já existia. Paulo alerta:
“A respeito da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo e de nossa reunião junto a ele, nós vos pedimos, irmãos, não vos perturbeis tão depressa, nem vos alarmeis por causa de uma revelação profética, de uma afirmação ou carta, apresentadas como se procedessem de nós e que vos fariam crer que o dia do Senhor chegou. Que ninguém vos engane, de maneira alguma”. (2 Ts 2,1-3a)
De fato, a comunidade de Tessalônica se situava numa região atravessada por diferentes culturas e religiões, por ser uma cidade portuária, de grande movimento comercial. Havia um ambiente de agitação e conflitos religiosos e políticos, sob o domínio implacável do império romano. Os cristãos, recém convertidos e batizados, sofriam perseguição da Sinagoga local, aliada aos poderosos da cidade, que exploravam os trabalhadores.
Nesse ambiente, a volta do Cristo glorioso e o juízo final apareciam como o restabelecimento da justiça e a conquista da recompensa para os cristãos. Mas, ao mesmo tempo, espalhavam o medo. Então surgiam notícias e falsas profecias sobre o fim do mundo, com fenômenos apocalípticos, que deixavam as pessoas inquietas e ameaçadas. Mais ainda, circulavam falsas cartas atribuídas a Paulo. Por isso, ele vai alertar para que as pessoas não se deixassem levar por essas mentiras e nem dessem crédito às cartas falsamente atribuídas a ele e seus companheiros.
Por esse motivo, Paulo vai terminar sua carta tomando ele mesmo a pena e redigindo do próprio punho a despedida:
“A saudação é de próprio punho, minha, de Paulo. Assim é que assino todas as cartas. Esta letra é minha.
Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja com todos vós.” (2Ts 3,17-18)
Lendo a Segunda Carta aos Tessalonicenses podemos ver que, já desde o início do Cristianismo, o fenômeno das falsas notícias, boatos e cartas apócrifas circulavam nas comunidades. A emoção provocada por tais boatos é sobretudo o MEDO, o temor, a inquietação – os mesmos sentimentos que estimulam a propagação de fake news nos dias de hoje.
Paulo vai responder a esse problema alertando para que os cristãos não se deixassem perturbar ou alarmar “tão depressa”. Que não se deixassem enganar de forma nenhuma. E antes de terminar sua carta ele pede: “Que o Senhor da paz vos dê a paz sempre e em tudo” (2 Ts 3,16).
**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.
O Portal de notícias Gospel Prime veiculou a informação de que a deputada Päivi Räsänen, do Partido Democrata Cristão da Finlândia, ex-ministra do Interior, está sendo processada por emitir opiniões em relação à sexualidade humana com base na Bíblia. Gospel Prime reproduz matéria publicada no site estadunidense Faithwire, que afirma que “o dilema de Räsänen começou em 17 de junho de 2019, quando ela tuitou o texto de Romanos 1:24-27, que condena a homossexualidade como pecaminosa.”
Segundo o portal gospel, o processo em questão é motivado por perseguição ao Cristianismo, religião da deputada.
Bereia checou as informações sobre o caso.
Imagem: reprodução Gospel Prime
Quem é Päivi Räsänen
Päivi Maria Räsänen, 63 anos, é uma política finlandesa do partido Democrata Cristão (KD). Ela se envolveu na política no início dos anos 1990 e foi apresentada ao parlamento da Finlândia em 1991, do qual se tornou membra em 1995. Em 2004, Päivi Räsänen foi eleita líder do partido KD. Após as eleições na Finlândia em 2011, ela se tornou ministra do Interior no gabinete do então Primeiro-ministro, Jyrki Katainen no período de 2011 a 2015.
Päivi Räsänen é médica, com confissão cristã luterana, uma das igrejas nacionais do país (a outra é a Ortodoxa), casada com o pastor da igreja Niilo Räsänen, com quem tem cinco filhos. Ela mora em Riihimäki e é membra do Conselho da Cidade.
De acordo com checagem do Bereia realizada em 03 de maio de 2020, “A parlamentar é conhecida por defender os pontos de vista conservadores sobre aborto, eutanásia, educação sexual e casamento. Desde que entrou para a política tem levantado posições contra o casamento homoafetivo, adoção por casais de mesmo sexo e contra o direito de casais de mulheres ou mulheres solteiras realizarem inseminação artificial. Em 2004 ela escreveu uma cartilha contra a homoafetividade para a Fundação Luther: “Ele os criou, homem e mulher – a homossexualidade desafia o conceito cristão de homem”.
Já o site All Famous diz que Päivi Räsänen é “Uma conservadora social convicta, que gerou polêmica ao expressar publicamente suas visões negativas tanto dos muçulmanos quanto das pessoas LGBT”.
O tema da Igreja perseguida no contexto do caso Räsänen
Bereia se deteve na informação do Gospel Prime, de o caso ser relacionado a “Igreja Perseguida”. A equipe buscou pesquisar se, de fato, a parlamentar foi processada por ser cristã, o que caracterizaria perseguição religiosa na Finlândia contra cristãos.
Gospel Prime tomou como fonte, de onde reproduziu matéria sobre o processo do Ministério Público finlandês contra Räsänen, o site Faithwire. O espaço digital é um portal de propagação de conteúdo religioso, de tendência conservadora, com ênfase na pauta de costumes, com forte apelo contrário aos direitos LGBTI+.
Bereia apurou que, desde 2004, a deputada Räsänen move uma campanha antidireitos LGBTI+ na Finlândia. No início do ano, a deputada caracterizou, publicamente, entre outras ofensas, a homoafetividade como um distúrbio do comportamento, vergonha, pecado. Em 2019, em um programa transmitido por uma estação de rádio pública finlandesa, a Yle, Räsänen descreveu a homossexualidade como uma forma de “degeneração genética.”
Bereia apurou teor do atual processo contra a deputada. De a acordo com a nota à imprensa divulgada pela Autoridade Nacional do Ministério Público da Finlândia, Räsänen estaria sendo processada por incitação contra contra grupos étnicos, neste caso, grupos de pessoas homoafetivas representados pela comunidade LGBTI+ daquele país. Conforme nota à imprensa:
“As acusações referem-se a três entidades diferentes.
Räsänen redigiu o escrito “Mieheksi ja naiseksi hän sikke loi. Homosuhteet haastavat kristillissen ihmiskäsitysken.” (Ele os criou homem e mulher. As relações homossexuais desafiam a visão cristã do homem). Em seus escritos, Räsänen apresentou opiniões e informações que são depreciativas para os homossexuais. Entre outras coisas, Räsänen afirmou que a homossexualidade é um transtorno de desenvolvimento psicossexual cientificamente comprovado. Pohjola publicou o texto no site da Fundação Luther na Finlândia e da Fundação Evangelical Lutheran Mission na Finlândia.
Além disso, Räsänen publicou em sua conta no Twitter e Instagram, bem como em sua página no Facebook, uma opinião depreciativa sobre os homossexuais, segundo a qual a homossexualidade é uma vergonha e um pecado.
Räsänen também está no programa da rádio Yle Puhe, em um episódio com o título “O que Jesus pensava sobre os homossexuais?” fez declarações depreciativas sobre homossexuais. Lá, Räsänen disse que se a homossexualidade é genética, é uma degeneração genética e uma herança genética que causa uma doença. De acordo com a visão de Räsänen, os homossexuais também não são criados por Deus como os heterossexuais.
De acordo com o processo, as declarações, especificadas mais detalhadamente nas acusações contra Räsänen, são depreciativas e discriminatórias contra os homossexuais. As declarações violam a igualdade e a dignidade humana dos homossexuais, razão pela qual ultrapassam os limites da liberdade de expressão e de religião.
O Procurador-Geral acredita que as declarações de Räsänen implicam preconceito, desprezo e ódio para com os homossexuais.
Portanto, a afirmação de que a publicação de um trecho da Bíblia seria a razão da promotoria ter denunciado a parlamentar do Partido Democrata Cristão finlandês à justiça, não corresponde ao histórico de Räsänen, de cunho antidireitos LGBTI+, conforme registros de sua atuação.
A fonte do Gospel Prime, o site Faithware, divulgou o caso com a interpretação de se tratar de perseguição religiosa, por citação da Bíblia. No entanto, tal informação omite do público que declarações depreciativas que atacam os direitos da pessoa humana ultrapassam os limites da liberdade religiosa. Que os membros das Igrejas tem a obrigação de cumprir as leis de seus países, sobretudo, na Finlândia onde a maioria das denominações são financiadas pelo Estado.
De acordo com checagem do Bereia em 2020, a Constituição da Finlândia “garante a liberdade religiosa e de consciência, que inclui o direito a professar e praticar uma religião, expressar as próprias crenças e pertencer ou não a uma comunidade religiosa. Proíbe igualmente a discriminação baseada na religião. Além disso, a Lei da Liberdade Religiosa regulamenta o reconhecimento das comunidades religiosas, com possibilidade de receber fundos públicos. As comunidades religiosas reconhecidas incluem a Igreja Luterana Evangélica da Finlândia, a Igreja Ortodoxa da Finlândia e outras comunidades, como a Igreja Católica, as Testemunhas de Jeová, a Igreja Evangélica Livre e os Adventistas do Sétimo Dia. A religião pode ser praticada sem registro junto das autoridades estatais”.
Ainda conforme o Relatório 2023 da ACN sobre liberdade religiosa na Finlândia: “Parece que não houve restrições governamentais novas ou maiores à liberdade religiosa durante o período em análise, mas a liberdade de expressão poderia estar em risco por meio da utilização da lei da ‘agitação étnica’. Os elevados índices de crimes de ódio por motivos religiosos ainda são uma área de preocupação. O nível consistentemente elevado de imigração muçulmana associado à retórica antimuçulmana de extrema-direita poderia criar problemas significativos no futuro para a Finlândia”.
O avanço da extrema-direita nos países Nórdicos
A observação da ACN, sobre os crimes de ódio contra islâmicos, tem relação com a atual tendência observada nos países membros da União Europeia (EU), também os países nórdicos, Finlândia, Noruega, Islândia, Suécia e Dinamarca. Eles estão abrindo espaço para a extrema-direita na política. Na Finlândia e na Suécia, partidos da extrema-direita já fazem parte dos governos desses países, eleitos recentemente.
Na Dinamarca,o bloco de esquerda da primeira-ministra social-democrata Mette Frederiksen, ganhou as eleições em novembro de 2022, “mas sem maioria face ao bloco que junta a direita e extrema-direita, de acordo com as sondagens à boca das urnas”, segundo o site de notícias Sapo.
“Migração, crise econômica e a ameaça russa são alguns dos temas que têm contribuído para o avanço da extrema-direita na Europa, segundo os analistas”, informa o canal EuroNews com a chamada: “Extrema-direita ganha poder na EU via coligações”.
Por que a extrema-direita da deputada Räsänen avança na Finlândia
De acordo com a doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mariah Lança, “a ascensão da extrema-direita no mundo é uma tendência como uma reação a uma série de processos econômicos e políticos cujos ciclos parecem estar chegando ao fim”. A cientista política cita como exemplo o estado de bem-estar social que concedia direitos e uma rede de proteção para os europeus de uma forma geral que lhes proporcionou uma qualidade de vida muito boa nas últimas décadas. “Este estado de bem-estar está quebrando por conta das sucessivas crises econômicas que a Europa passa nos últimos anos e, isso gera um empobrecimento da população . A economia sempre acaba falando mais alto na busca de soluções que prometem resolver essa situação que atinge os países”, explica.
A professora afirma ainda que além dessa perda de qualidade de vida, uma outra questão que explica o fortalecimento da extrema-direita em países europeus é o processo de globalização acelerado que “faz com que pessoas, grupos, circulem no mundo, muito especificamente na Europa, como nunca antes havia acontecido; processo migratórios mais intensos, que embora sempre tenham existido, se intensificaram a partir do final do século 20 e início do século 21. E, nesse sentido, começam a se destacar grupos reacionários que se sentem ameaçados, não só do ponto de vista econômico, mas principalmente cultural, como se houvesse uma perda da identidade nacional e uma consequente busca sobre quem pode ser o povo dentro daquele Estado/nação”.
Para a cientista política, “esse purismo/fascismo cultural é responsável pelo fortalecimento dos grupos de extrema-direita na Europa que têm discursos como fechamento de fronteiras e a defesa de uma nacionalidade. O nacionalismo radical está na base de todos os grupos fascistas da extrema-direita, muito aliados ao poder, ao sistema neoliberal no qual o Estado deixa a economia com seus processos predatórios e como fonte de enriquecimento para esses. O sociólogo Michael Löwy , afirma no artigo “Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil”, que “A orientação reacionária nacionalista, na maioria das vezes, é ‘complementada’ com uma retórica ‘social’, em apoio às pessoas simples e à classe trabalhadora (branca) nacional. Em outras questões – por exemplo, neoliberalismo, democracia parlamentar, antissemitismo, homofobia, misoginia ou secularismo – esses movimentos são mais divididos”.
Partido de centro-direita, aliado à extrema direita, governa a Finlândia
Na Finlândia, os membros do Parlamento finlandês (Eduskunta) elegeram em junho deste ano, como primeiro-ministro do país, o líder ultraconservador Petteri Orpo. Ele fez uma campanha baseada em uma agenda anti-imigração e eurocética. Em 2 de abril deste ano, as eleições gerais na Finlândia deram vitória à Coligação Nacional, partido de centro-direita e conservador.
Depois de um período tumultuado de negociações que se seguiram às eleições legislativas de abril, Petteri Orpo anunciou uma coalizão com o Partido dos Finlandeses, de extrema direita, que ficou em segundo lugar nas eleições legislativas, e outras duas formações de direita. Os quatro aliados têm 108 das 200 cadeiras do Parlamento.
Análises indicam que ” a Finlândia, com 5,5 milhões de habitantes, poderá assim juntar-se à onda nacionalista que varre a Europa, após a ascensão dos conservadores ao poder na vizinha Suécia e a vitória da extrema direita na Itália”.
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Bereia considera enganosa a notícia reproduzida no Gospel Prime. Embora o conteúdo trate de um fato ocorrido, a matéria do portal religioso, além de imprecisa, sem apresentar o caso com a amplitude necessária para ser considerado informação, manipula dados para incutir a ideia de perseguição à deputada por ser cristã.
Além da matéria não oferecer dados substanciais do teor do processo do Ministério Público finlandês contra a deputada Päivi Räsänen, esconde o histórico da atuação antidireitos LGBTQIA+ da parlamentar, o que leva o público a crer que existe perseguição ao Cristianismo naquele país.
Räsänen está sendo processada por causa das suas declarações depreciativas e discriminatórias contra as pessoas hhomoafetivas. Está sendo responsabilizada por suas declarações, tendo utilizado veículos públicos de comunicação, contra a dignidade humana dessas pessoas. Na avaliação das autoridades, as declarações da deputada ultrapassam os limites da liberdade de expressão e de religião.
Igreja Perseguida é tema amplo no mundo e o Gospel Prime coloca um caso individual sob este guarda chuva, na linha do terrorismo verbal, com o objetivo de criar medo da perseguição a cristãos, e fazer crer que se alguém como Päivi Räsänen é perseguida fora do Brasil, também pessoas serão perseguidas aqui.
A tentativa de se construir a ideia da perseguição aos cristãos no Brasil, sob a noção da suposta “cristofobia “, tem sido uma constante em sites de notícias religiosas, tendo como fontes personalidades da extrema direita brasileira ou de outros países, como é o caso desta checagem. Bereia já verificou várias vezes o assunto e mostra que liberdade religiosa, em um Estado laico e plural, não quer dizer liberdade para ofender e impedir direitos em nome de uma única doutrina religiosa.
A publicação do Gospel Prime representa desinformação por usar a imprecisão e manipular dados.
* Matéria atualizada em 25/08/2023 para acréscimo de informações
Circula em mídias sociais uma postagem que afirma que o Sistema Único de Saúde (SUS) incluiu as religiões de matriz africana como auxiliares do SUS, com suposta exclusão do Cristianismo no grupo.
O texto afirma:
“No Brasil, a Constituição Federal garante a liberdade de crença e culto religioso e toda religião é aceita !!! AGORA… Incluir o candomblé e congêneres como auxiliar do SUS na gestão da saúde, na cura de enfermidade e recebimento de recursos públicos (impostos) pagos por Cristãos (em sua maioria) SEM INCLUIR O CRISTIANISMO NO MESMO PATAMAR… É algo absurdo e um exemplo claro de CRISTOFOBIA.”
Conforme definido no site do Ministério da Saúde , o Conselho Nacional de Saúde (CNS) é uma instância colegiada, deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS), integrante da estrutura organizacional do Ministério. Criado em 1937, sua missão é fiscalizar, acompanhar e monitorar as políticas públicas de saúde nas suas mais diferentes áreas, levando as demandas da população ao poder público, por isso é chamado de controle social na saúde. As atribuições atuais do CNS estão regulamentadas pela Lei n° 8.142/1990.
O CNS é composto por 48 conselheiros(as) titulares e seus respectivos primeiros e segundos suplentes, que são representantes dos segmentos de usuários, trabalhadores, gestores do SUS e prestadores de serviços em saúde. Além do Ministério da Saúde, fazem parte do CNS movimentos sociais, instituições governamentais e não-governamentais, entidades de profissionais de saúde, comunidade científica, entidades de prestadores de serviço e entidades empresariais da área da saúde.
Etapas municipais e estaduais das Conferências de Saúde e a organização da 17ª Conferência Nacional
Dentre as principais atribuições, o CNS é responsável por realizar conferências e fóruns de participação social, além de aprovar o orçamento da saúde e acompanhar a sua execução, e avaliar o Plano Nacional de Saúde a cada quatro anos. Tudo isso para garantir que o direito à saúde integral, gratuita e de qualidade, conforme estabelece a Constituição de 1988, seja efetivado a toda a população no Brasil.
A etapa nacional das conferências de saúde, com o tema “Garantir Direitos, defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã vai ser outro dia!”, foi o resultado das etapas preparatórias para a 17ª Conferência Nacional de Saúde. Os eventos mobilizaram dois milhões de pessoas de Norte a Sul do País.
O CNS organizou a 17ª Conferência Nacional de Saúde reuniu, entre os dias 02 e 05 de julho de 2023 mais de 5000 participantes dentre as quais 4.048 pessoas foram eleitas delegadas para deliberar sobre 1.500 propostas e diretrizes, elaboradas em conferências municipais, estaduais e conferências livres.
O que é e o que diz a Resolução 715
A 17ª CNS apontou 245 diretrizes e 1.198 propostas em seu relatório final, deliberadas pelas 3.526 pessoas delegadas eleitas nas etapas anteriores da conferência. E são essas diretrizes que compuseram o texto da Resolução 715 do CSN.
A finalidade da Resolução está registrada no seu artigo 1º:
Publicar as orientações estratégicas para o Plano Plurianual (PPA) e para o Plano Nacional de Saúde (PNS) 2024-2027, formuladas a partir das diretrizes aprovadas na 17ª Conferência Nacional de Saúde e das prioridades para as ações e serviços públicos de saúde pelo CNS, com vistas a contribuir com o processo democrático e constitucional de formulação da política nacional de saúde, baseados nos Anexos I e II desta Resolução.
Nessa direção, a orientação nº 46 do anexo II, estabelece como proposta de atividade estratégia encaminhada pela 17ª Conferência Nacional de Saúde:
46. (Re)conhecer as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde e 1ª porta de entrada para os que mais precisavam e de espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar e com isso respeitar as complexidades inerentes às culturas e povos tradicionais de matriz africana, na busca da preservação, instrumentos esses previstos na política de saúde pública, combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras.
Como o texto registra, o que o item estabelece é o reconhecimento de terreiros, terreiras, barracões, casas de religião de matriz africana, como“equipamentos promotores de saúde e cura”, o que, historicamente foi concedido a outras religiões, entre muitos exemplos. Verifica-se que não se trata de excluir o Cristianismo. Bereia buscou na resolução elementos que produzisse restrições a outros grupos religiosos e não as localizou, ao contrário do que diz o post.
Bereia realizou busca online sobre o posicionamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito da participação das igrejas cristãs como parceiras na implementação políticas públicas de saúde e em outras áreas de interesse da sociedade e, como resultado das buscas, destaca a citação da Carta aos Evangélicos:
“Como todos devem se lembrar, no período de meu governo, tivemos a honra de assinar leis e decretos que reforçaram a plena liberdade religiosa. Vivemos, entretanto, um período em que mentiras passaram a ser usadas intensamente com o objetivo de provocar medo nas pessoas de boa-fé. Com a prosperidade que ajudamos a construir, foi no nosso governo que as igrejas mais cresceram, principalmente as evangélicas, sem qualquer impedimento e até tiveram condições de enviar missionários para outros países. Posso lhes assegurar, portanto, que meu governo não adotará quaisquer atitudes que firam a liberdade de culto e de pregação ou criem obstáculos ao livre funcionamento dos templos. Se Deus e o povo brasileiro permitirem que eu seja eleito, além de manter esses direitos, vou estimular sempre mais a parceria com as igrejas no cuidado com a vida das pessoas e das famílias brasileiras.” (PRESIDENTE LULA, 2022).
Nessa direção, destacamos também a checagem do site Boatos.org sobre assunto, onde é mostrado que os espaços de culto das Igrejas cristãs de tradição evangélica já tem sido utilizados como espaço terapêutico para tratamento de doenças como no exemplo do ocorrido no Estado do Amapá. Checagem do Bereia já exemplificou como as afirmações noticiosas sobre a existência de cristofobia na forma de preconceitos ou restrições à participação das Igrejas e seus locais de culto nas políticas públicas em saúde e demais áreas de interesse da sociedade não correspondem à realidade.
Cristofobia, uma mentira repetida
O tema da suposta cristofobia no Brasil vem sendo utilizado para crítica política há algum tempo. Bereia já checou diversas publicações a respeito, como nas eleições de 2022.
A perseguição a cristãos no Brasil, sob o rótulo de “cristofobia”, tem apelo porque é um discurso que responde à ideia do cristão perseguido como prova de fidelidade ao Evangelho”. No entanto, o termo “cristofobia” não tem aplicabilidade no Brasil, uma vez que o país tem maioria de cristãos e existe completa liberdade de prática de fé para esse grupo.
A pesquisadora de religiões Brenda Carranza explica: “Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político. Isto se configura uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que pedem mais liberdade e usam desta expressão para garantirem voz contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”, em especial, direitos sexuais e reprodutivos e os de comunidades quilombolas e indígenas. Histórias relacionadas a situações ocorridas no exterior são amplamente utilizadas para reforçar a ameaça de que o que se passa fora pode ocorrer no Brasil.”
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Diante da apuração, Bereia conclui que a postagem checada é enganosa. A Resolução 715 do CNS, ao reconhecer a cultura dos povos tradicionais de matriz africanas, bem como os seus espaços e equipamentos religiosos como participantes importantes na promoção de saúde no país, não excluiu e nem discriminou outros grupos culturais, espaços, equipamentos e tradições religiosas como elementos promotores de saúde na sociedade brasileira. Ao contrário disso, incluiu grupos de brasileiros e brasileiras historicamente excluídos do debate público e da participação e controle social no estabelecimento de políticas públicas em saúde.
Da mesma forma que outros grupos e coletivos sociais, os grupos e coletivos de matriz africanas passam a ser considerados para contribuírem com o Sistema Único de Saúde (SUS) na elaboração de políticas públicas em saúde de maneira participativa, integrando os espaços públicos disponibilizados pelo governo. Desta forma, não é verdade que a Resolução 715 inclua as religiões de matriz e exclua outros grupos religiosos ou coloque algum grupo religioso em situação privilegiada em relação aos demais.
A postagem adota as mesmas estratégias de desinformação observadas em outras checagens, ao silenciar sobre fatos relevantes a respeito da decisão proferida, contextualizar de maneira insuficiente e inverter a relevância dos fatos para induzir leitores a crerem que cristãos sofrem perseguição de instituições públicas no Brasil.
Sexta-feira, dia 07 de julho, tive a alegria de participar, a convite do Instituto Intercultural para o Diálogo, da Festa do Sacrifício, que rememora uma passagem comum a judeus, cristãos e muçulmanos: a ordem, dada por Deus a Abraão, para sacrificar seu filho Ismael como demonstração de fidelidade. Abraão, segundo os relatos, não hesitou em cumprir o mandato de Deus e, a pesar da dor, concordou em realizar a ordem de Deus. A demonstração de fé de Abraão salvou Ismael, pois Deus o liberou de cometer tamanha atrocidade.
Durante a celebração inter-religiosa da Festa do Sacrifício, ocorrida em Brasília, nos foi explicado que, para este dia, é sacrificado um animal e sua carne é distribuída, seguindo três critérios: um terço da carne é destinada às pessoas economicamente vulnerabilizadas, um terço para a família e um terço para os vizinhos. De modo que, no centro da celebração está a prática de uma fé que fortalece a experiência comunitária e se solidariza com as pessoas excluídas do mercado de trabalho.
A ideia do serviço à pessoa próxima, da partilha, da inconformidade em relação à concentração de riquezas, responsável pela pobreza, é central em todas as tradições de fé, inclusive na cristã.
Quando lemos o Evangelho, encontramos Jesus caminhando, empoeirando-se, conversando e colocando-se à disposição das pessoas que eram desumanizadas: mulheres, especialmente as viúvas, pessoas doentes e com necessidades especiais (cegos, sem mobilidade, leprosos, crianças), entre outras.
Jesus não era autocentrado. Em suas parábolas e conversas sempre destacava a centralidade de Deus-Pai. Jesus não proclamou a si mesmo, mas proclamou a boa-nova do Evangelho, que critica, justamente, a religião autocentrada e aliada com o poder.
Nas últimas semanas ganhou repercussão a pregação realizada pelo “pastor” André Valadão , vinculado à Igreja Lagoinha, em que conclamava os seus seguidores a uma guerra santa contra pessoas LGBTQIA+. Disse o tal “pastor” que, caso Deus pudesse mataria as pessoas LGBTQIA+. Diante disso, estava nas mãos dos seguidores do referido “pastor” irem para cima, ou seja, fazer o que Deus não poderia fazer.
O tal “pastor” realiza as suas “pregações” dos Estados Unidos da América. Talvez já com a intencionalidade de não ter que responder à justiça brasileira por seus crimes presentes em seu discurso de ódio. Por mais que tente se explicar, não consegue se justificar, pois LGBTQIA+fobia é crime, previsto em lei.
Não é necessário dizer o quanto este assunto repercutiu, o que, provavelmente, era a intenção do “pastor”. Mobilizar a rede de ódio que por anos serviu de alicerce para o movimento cristão fundamentalista. O “pastor” desejava holofotes e conseguiu, no entanto, nenhuma de suas explicações serão suficientes para livrá-lo do discurso criminoso. De imediato, uma ação do MPF pediu que o “pastor” assuma com os custos de produção e divulgação de “contrapontos aos discursos feitos, a retração pelas ofensas, e o pagamento de R$ 5 milhões por danos morais coletivos”. O MPF também pediu ao Instagram e ao Google a análise do conteúdo das publicações de André Valadão, diante de possível violação à política de combate ao discurso de ódio nestas plataformas.
A resposta do Google foi que o vídeo foi revisado e não foi removido por violação das diretrizes da comunidade. A Meta, dona do Instagram, disse que não comentaria o caso. A postura destas empresas não surpreende, pois parte de suas riquezas é oriunda com a difusão de discurso de ódio. A aliança entre plataformas digitais e expressões religiosas fundamentalistas é altamente lucrativa.
Ao longo deste texto, ao me referir a André Valadão, coloquei seu título de pastor entre aspas. Explico por quê. Na tradição cristã, o exercício do ministério com ordenação é estar a serviço da pessoa próxima, contribuindo para a cultura da paz e da boa convivência. É certo que, por vezes, doutrinas e dogmas religiosos, acabam se sobrepondo e se contrapondo a princípios e valores voltados à cultura de paz. Não é possível ignorar que as barreiras para a aceitação de pessoas LGBTQIA+ são comuns na maioria das igrejas no Brasil. Geralmente, as justificativas estão amparadas em dogmas e doutrinas que são facilmente invalidadas quando contrapostas à centralidade do amor. Há sempre a tendência a justificar a exclusão com a fidelidade às doutrinas. No entanto, apesar disso, as igrejas não são autorizadas a pregar o ódio e a violência contra pessoas LGBTQIA+. Diga-se de passagem que parte significativa das igrejas não fazem este discurso de ódio, mas articulam debates internos para a revisão dos dogmas. Mesmo que este processo de revisão pode levar anos e décadas, contribui para que os preconceitos sejam gradativamente descontruídos, acolhendo pessoas LGBTQIA+ .
Voltando ao “pastor” André Valadão. Seu discurso e prática colocam-se em total contradição com o ministério com ordenação. Primeiro porque ele atribui a si mesmo uma autoridade que não lhe é conferida: a de dizer o que Deus quer ou deixa de querer. Segundo, porque ele se coloca como o centro da pregação, que está em total contradição com a tradição cristã evangélica. Para igrejas evangélicas, o centro da fé é Jesus Cristo. Pastores e pastoras não são autoridades acima do bem e do mal e muito menos acima de Jesus. Considerando o caro principio protestante de separação entre Igrejas e Estado, caberia ao pastor pedir afastamento de sua igreja, ou então, a igreja afastá-lo, até que os órgãos públicos competentes realizassem uma investigação sobre se ocorreu ou não intencionalidade de incitação ao crime.
Acontece que vivemos em um país que, primeiro, não compreende o sentido da laicidade. Segundo, por aqui se aceita a falsa concepção de que uma pessoa com ordenação está autorizada a realizar os discursos que quiser. Terceiro, o cristianismo autocentrado é o mais característico no país, isso significa, a concepção de um cristianismo em que as pessoas são orientadas a se preocuparem unicamente com elas mesmas e, quando muito, com suas famílias, deixando de lado a empatia, a cultura do encontro e a abertura para a pluralidade. O discurso de André Valadão acende uma luz com vermelho intenso para todas as igrejas, pois aponta para o risco de um processo de decadência da tradição cristã. Neste sentido, cabe ao conjunto das igrejas, especialmente, evangélicas, avaliar o conteúdo das pregações realizadas, tanto nos cultos de domingo, quanto nas redes.
**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.
Os grandes analistas da história nos confirmaram que já há um século vivemos uma fase nova do espírito de nossa cultura. É a fase da secularização. Com isso se quer significar que o eixo estruturador da sociedade moderna não reside mais no mundo religioso, mas na autonomia das realidades terrestres, no mundo secular. Daí falar-se em secularização. Isso não significa negar Deus, mas apenas que Ele não representa mais o fator de coesão social. Em seu lugar entra a razão, os direitos humanos, o processo de desenvolvimento científico que se traduz numa operação técnica, produtora de bens materiais e o contrato social.
Não cabe aqui discutir os avatares desse processo. Cabe assinalar as transformações que trouxe para o campo religioso, nomeadamente, pelo cristianismo de versão romano-católica.
Havia um descompasso enorme entre os valores da modernidade secularizada (democracia, direitos humanos,liberdade de consciência, diálogo entre as igrejas e religiões etc) e o catolicismo tradicional. Essa desconexão foi superada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) no qual a Igreja hierárquica procurou acertar o passo que veio sob o nome de aggiornamento, pôr em dia o caminhar da Igreja com o caminhar do mundo moderno.
O transfundo de todos os textos conciliares era o mundo desenvolvido moderno. Na América Latina, nas várias conferências episcopais, se procurou assumir as visões do Vaticano II no contexto do mundo subdesenvolvido, coisa praticamente ausente nos textos conciliares. Daí nasceu uma leitura libertadora, pois se entendeu o subdesenvolvimento como desenvolvimento da pobreza e da miséria, portanto, da opressão que demanda libertação. Aqui se encontram as raízes da Teologia da Libertação que tem por base a prática das Igrejas, empenhadas na superação da pobreza e da miséria, a partir dos valores da prática de Jesus e dos profetas.
O processo de secularização trouxe à luz três formas de se viver a mensagem cristã no continente latino-americano e brasileiro.
Há uma forma que chamaríamos de um cristianismo cultural, que desde a colonização impregnou a sociedade. As pessoas respiram o cristianismo em seus valores humanísticos de respeito aos direitos humanos, de cuidado dos pobres, mesmo sob a forma de assistencialismo e paternalismo, a aceitação da democracia e a convivência pacífica com outras igrejas ou caminhos espirituais. Dos mais de 70% de católicos, são apenas 5% que frequentam as missa. Não negam o valor da Igreja mas ela não é uma referência existencial. Seja porque não renovou substancialmente sua estrutura clerical-hierárquica, sua linguagem doutrinária e seus símbolos herdados do passado.
Há um outro tipo de cristianismo de compromisso. Trata-se de pessoas que, ligadas à Igreja hierárquica, assumem a sua fé em suas expressões sociais e políticas. A referência maior não é a Igreja institucional mas a categoria do Jesus histórico, do Reino de Deus. O Reino não é um espaço físico nem se assemelha aos reis deste mundo. É uma metáfora para uma revolução absoluta que implica novas relações individuais – a conversão – sociais- relação de fraternidade, ecológicas – guardar e cuidar do Jardim do Éden, vale dizer da Terra viva e por fim, uma nova relação religiosa – uma total abertura a Deus, tido como Abba – paizinho querido, cheio de amor e misericórdia. Estes cristãos criaram seus movimentos como a JUC, a JEC, o Movimento Fé e Política, a Economia de Francisco e Clara e outros.
Há uma outra forma de se viver o Cristianismo, sem se referir conscientemente a ele, de forma secularizada. Trata-se de pessoas que podem se qualificar como agnóstica ou como ateias ou simplesmente sem se auto-definir. Mas seguem um caminho ético de centralidade ao amor, de fidelidade à verdade, de respeito a todas as pessoas sem discriminação, preocupação para com os empobrecidos e de cuidado com o Criado e outros valores humanísticos.
Ora, estes valores são os conteúdos da pregação do Jesus histórico. Como se lê nos quatro evangelhos, ele sempre esteve ao lado da vida e daqueles que menos vida têm, curando-os, compadecendo-se deles, defendendo as mulheres, contra a tradição extremamente patriarcal da época, e convocando para uma abertura irrestrita a todos, chegando a afirmar que “quem vem a mim eu não mandarei embora”(Jo 6,37). No evangelho de São Mateus (25,41-46) que podemos denominar como o evangelho dos ateus humanísticos se diz que quem “atendeu a um faminto ou sedento, peregrino ou enfermo ou na cadeia….foi a mim que o fizeste”(v.45).
Portanto, para viver o cristianismo é preciso viver o amor, ter compaixão e sentir a dor outro. Quem não vive estes valores, por mais piedoso que seja, está longe do Cristo e suas preces não chegam a Deus.
São João em suas epístolas enfatiza:”Deus é amor e quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele”(1Jo 4,16). Num outro lugar afirma: “quem pratica o bem é de Deus”(3Jo 1,11).
Aqui se realiza o que dizia o grande teólogo [evangélico] alemão que participou de um atentado frustrado a Hitler, Dietrich Bonhöffer: “viver como se Deus não existisse”( etsi Deus non daretur).
**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.
Circula em portais de notícias religiosas um vídeo com uma fala descontextualizada da advogada Laura Astrolabio, sobre um suposto projeto político da “esquerda comunista” que visa infiltrar-se em igrejas evangélicas, para a cooptação de crianças em prol das políticas comunistas.
Em evento da Revista Fórum, intitulado “Mulheres no poder em um momento bolsonarista!, transmitido ao vivo no domingo, 11 de setembro de 2022, a advogada e estudante de Mestrado em Direitos Humanos (UFRJ) Laura Astrolabio dialogou com a candidata a deputada estadual, Benny Briolly (PSOL, RJ), que se destaca como primeira vereadora transsexual do Rio de Janeiro, e a ativista política e candidata a deputada estadual Chirley Pankará (PSOL, RJ), que é liderança indígena do povo Pankará, sob a mediação do jornalista Anderson Morais.
O grupo de debatedoras abordou temas ligados às pautas feministas, etnicidades, patrimônio sociocultural, intolerância religiosa, gênero e sexualidade. Tais temas tiveram como fio condutor o combate às pautas políticas conservadoras da extrema-direita. O trecho do debate que vem ganhando repercussão nos meios de comunicação religiosos, por meio de vídeo, é um fragmento da fala de Astrolábio, em que ela afirma.
“[…] Acho que a gente precisa conversar coletivamente, No mestrado eu cheguei a falar uma vez que a gente tinha que se infiltrar nas igrejas. Outro dia eu encontrei uma amiga minha da época em que eu era da igreja, porque eu fui cristã durante 30 anos, eu já fui até para Jerusalém, no dia em que contar o que foi essa viagem, eu acabo com o Cristianismo no Brasil”, disse, e continuou, “eu falei ‘amiga, vamos voltar pra igreja’, porque hoje eu sou candomblecista, não tenho um terreiro que eu vá frequentar, porque eu não sou religiosa, mas eu amo os orixás, agora, que nós temos que voltar para a igreja, ou ir para ela, a gente tem. Ela [e a amiga] disse que eles (fiéis) não iriam permitir, e eu disse ‘quem disse que a gente vai falar pra eles? a gente vai para a escolinha dominical’. O que mais a igreja quer é pegar uma irmãzinha pra tomar conta das crianças. Enquanto eles estão no culto, tem uma sala de aula cheia de crianças. Aí você pega a Bíblia e começa a falar que Jesus amava os pobres e que os ricos não entrarão no Reino dos céus…”, explicou a advogada.
A fala em questão ocorre após a participante ser questionada sobre a existência dos “pobres de direita”. Na resposta que abordou a integração entre política e religião, a advogada deu um exemplo para ilustrar como esquerdas podem enfrentar o conservadorismo da extrema-direita: “infelizmente essa pessoas [os pobres de direita] não têm acesso a esses debates, a essas discussões, os debates feitos dentro dos partidos políticos não chega a essas pessoas […], então eu acho que temos que pensar em estratégias para fazer esse debate chegar lá, a eles”, disse.
O trecho selecionado do discurso de Laura Astrolábio, usado para denunciar planos da “esquerda comunista para ocupar as igrejas”, segundo várias postagens em mídias sociais, refere-se a possíveis estratégias de enfrentamento da extrema-direita. Na concepção da advogada, as pessoas devem se “armar” (simbolicamente) de seus direitos constitucionais e lutar por suas demandas, “o Estado é laico e a gente tem que cobrar”. Para ela, a extrema-direita deve ser combatida por meio de ferramentas de reeducação cívica e militância organizadas.
Ouvida para avaliar o caso, a pesquisadora em Comunicação e Religiões e editora-geral do Bereia Magali Cunha pondera:
“Ao falar para um público de esquerda (seguidores da revista Fórum), a advogada Laura Astrolabio opta por usar as igrejas evangélicas em exemplo, por meio de um discurso crítico, com expressões exageradas como ‘eu fui cristã durante 30 anos, eu já fui até para Jerusalém, no dia em que contar o que foi essa viagem, eu acabo com o cristianismo no Brasil’, e de oposição, como ‘hoje eu sou candomblecista, não tenho um terreiro que eu vá frequentar, porque eu não sou religiosa, mas eu amo os orixás’. Ela introduz a fala sobre o processo educativo com ‘a gente tinha que se infiltrar nas igrejas’ e segue com o discurso crítico e o exemplo do espaço importante das escolas dominicais com as crianças”.
Magali Cunha considera que “não há qualquer problema em alguém enxergar que as igrejas, por meio das escolas dominicais e do trabalho com crianças, sejam vistas como espaço em que a educação para a realidade da desigualdade social (pobres x ricos) deveria ser praticada. Porém, o que vemos neste caso é que o uso do exagero, “eu acabo com o Cristianismo”, junto com “a gente tinha que se infiltrar”, mais o termo “criancinhas” como alvo de uma possível ação educativa para a crítica, formam um conjunto de expressões inadequadas em um discurso público pela internet, que certamente geram desconforto justificável em pessoas das igrejas evangélicas, e são um ‘prato cheio’ para produtores de desinformação e de pânico moral contra candidaturas de esquerda nestas eleições, tendo como alvo os o segmento evangélico”.
A professora acrescenta que “na era digital, produtores de conteúdo e participantes de espaços de debate precisam usar de sabedoria com o que expressam publicamente. A máxima hoje é ‘tudo o que você disser pode ser usado contra você e contra seus pares’, afinal, tudo pode ser manipulado e sempre há quem acredite no que se produz deliberadamente para enganar”.
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Bereia classifica o conteúdo disseminado em vídeo em espaços digitais religiosos, com trecho da fala da advogada Laura Astrolábio, em evento da revista Fórum, como enganoso.
O discurso em questão, que contém termos críticos e exagerados sobre as igrejas, foi recortado, descontextualizado e relativizado para tornar possível a defesa de uma proposta de intervenção política organizada por uma suposta “esquerda comunista”. A fala completa da advogada diz respeito a políticas de militância e enfrentamento ao racismo e misoginia, atuação política baseada em um regime de Estado laico e democrático.
As informações disponíveis na mídia e redes sociais sobre o protesto contra o assassinato do refugiado político congolês de Moïse Kagambe, num quiosque da Barra da Tijuca/RJ, em 24 de janeiro de 2022, tiveram uma dupla conotação. De um lado, visibilizar a indignação que o ato brutal contra o trabalhador informal, que ironicamente procurou segurança no Brasil ao fugir da guerra em seu país, e a necessidade de manifestar o grau de barbárie que se instalou como uma forma de solução de conflitos. De outro lado, marcar o posicionamento político dos presentes no ato – organizado pelo vereador da Câmara de Curitiba/PR Renato Freitas (PT), em 5 de fevereiro e 2022 –, denunciando o racismo e violência estrutural entranhadas na sociedade brasileira, bem como a urgente necessidade de sua superação. Porém, o ato que tinha forte potencial de indignação acabou sendo confusão.
Segundo declarações do próprio organizador, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, erguida por escravos em 1737, foi escolhida por ser considera símbolo de resistência contra a escravidão em solo brasileiro. Numa primeira leitura, a opção simbólica foi uma evocação histórica acertada pelo peso político e religioso que possa ter. Porém, durante o protesto vieram à tona acusações à Igreja Católica sobre os resquícios de racismo religioso que a acompanham, revelando a longa convivência do cristianismo com a escravidão, uma das diversas dimensões que o termo encerra. Tanto o aspecto simbólico quanto os conteúdos (racismo religioso, racismo estrutural, violência, perda de humanidade) do protesto são válidos e legítimos, mas, talvez a performance na ocupação da igreja não tenha tido o impacto desejado. Isso porque, protestos em espaços sagrados têm sua própria lógica e a eficácia política advêm do uso da linguagem religiosa (por exemplo vigílias frente à igreja, silêncios prolongados, velas e cruzes, procissões etc.).
Além disso, forma parte do impacto desses atos as articulações com os grupos religiosos, como por exemplo, neste caso, a pastoral do imigrante, pastoral do negro, pastorais sociais. Tudo isso, contribui para angariar adesão à “causa”, legitimidade no uso do espaço e reverbera entre os fiéis e a sociedade a performance que tem como palco o espaço sagrado. Constata-se no protesto liderado pelo vereador um duplo barulho: uma contradição entre os conteúdos da denúncia do racismo religioso e a escolha assertiva da igreja como palco performático. Essa colisão neutralizou o objetivo principal do ato e o protesto rumou por caminhos contrários e indesejados, até para os organizadores. Todavia, estão por vir as consequências e o seu desfecho, possivelmente com repercussões jurídicas, administrativas e processuais para seus envolvidos.
Sem dúvida que, uma das reações institucionais é a de preservação patrimonial, zelo pelo uso do espaço sagrado, o que é válido e legítimo. Muitas vezes a defesa desse espaço (territorial e simbólico) obriga seus guardiões (sacerdotes e bispos) a invocar o direito à defesa da liberdade religiosa e reagir perante possíveis ameaças de profanação, depredação. Mesmo assim, seguramente, que tanto o pároco quanto a Arquidiocese concordam que o assassinato de Moïse Kagambe foi um ato de barbárie e uma afronta à convivência entre seres humanos. Certamente a adesão a toda manifestação de indignação é endossada pela Igreja Católica, pois isso a faz coerente com a ética cristã que prega, e, ao mesmo tempo alinha-se com o Papa Francisco que não cansa de denunciar os atos de xenofobia e de racismo que sofrem os refugiados nos diversos países, o que não exclui o Brasil da listagem.
Fora das repercussões no âmbito eclesiástico e judiciário, o ato de protesto traz uma revelação que nos lembra cenários anteriores acerca do clima pré-eleitoral. O crescente ambiente de polarização social, propiciando enfrentamentos nas esferas públicas, religiosas e familiares vem em crescendo desde 2014, elevando a temperatura em 2018. Este ano parece não se vislumbrar diferente. A produção de desinformação, conteúdos falsos, incentivo ao ódio, deslegitimarão das instituições democráticas, descrédito dos mecanismos democráticos tem sido a tônica que pauta a pandemia e o clima da contenda no acesso ao Planalto. Evidentemente que, o ganho político que o protesto possa gerar dependerá do contexto eleitoral, ora pode ser objeto de inúmeras distorções que mirem o público religioso, nutrindo imaginários de ameaça e agressão religiosa, ora pode ser apenas um incidente episódico que cai no esquecimento.
No entanto, o interessante é observar como o fato provocou certas reações e posicionamentos das pessoas nas mídias sociais. Muitas ficaram indignadas diante do que se denominou como “invasão” e cujos argumentos trazem à tona o pensamento ultraconservador, político e religioso, que percorre suas reações. Assim, percebe-se como é gerado, imediatamente, um posicionamento de um nós contra eles, sejam eles do Partido dos Trabalhadores ou de outras alas da Esquerda. As acusações perpetuam clichês que desqualificam seus militantes como sendo baderneiros, desordeiros, arruaceiros etc. Até aqui nenhuma novidade, pois são termos já presentes nos idos anos de 1989, no primeiro pleito eleitoral pós-ditadura militar. O novo, onde emerge um alerta, é quando se passa de um posicionamento antagônico, próprio da arena política, para uma identificação do outro como inimigo, seja indivíduo seja coletivo, com uma motivação inerente à linguagem bélica. No campo religioso esse inimigo assume conotação teológica, sendo demonizado. Tal passagem, política e religiosa, se torna perigosa porque situações de violência estrutural, como a que vivemos, o inimigo deve ser eliminado de qualquer forma e a qualquer custo. Assim, um pensamento polarizado leva identificar e classificar os outros sob o prisma da ameaça o que muitas vezes se concretiza em agressão (física, verbal, simbólica, moral) como forma ofensiva de defesa, muitas vezes justificada religiosamente.
Há um outro elemento interessante nessas reações contra o manifesto na Igreja de São Benedito: invocar a perseguição aos cristãos como objetivo do ato político. Em países como na Índia, Coreia do Norte, Afeganistão, Argélia, entre outros, onde os cristãos são minorias, frequentemente se verifica hostilidade e perseguição a eles. Não é o caso do Brasil, que é histórica, demográfica e culturalmente cristão, contudo, há um imaginário de perseguição religiosa que as elites pastorais e influencers religiosos vem cultivando nos últimos anos sob o mote de cristofobia. Entretanto, as acusações de uma perseguição cristofóbica, na verdade, esconde a justificativa de uma ofensiva contra grupos considerados inimigos da religião cristã. De acordo com essa lógica cristofóbica existem grupos que conspiram contra o cristianismo e impedem os fiéis o direito de exercer sua liberdade religiosa e/ou a possibilidade de impor a moralidade cristã como moralidade pública a ser assumida na sociedade brasileira, independente de serem todos seus membros religiosos de outros credos ou de não ter religião. Evidentemente que, há um elemento comum na desqualificação da esquerda política e na cristofobia: a manifestação de uma alteridade tida como inimiga. De tal forma que, identificar o antagônico e/ou o diferente (religioso ou não) como inimigo que deve ser eliminado, promover ódio entre pessoas e grupos diferentes, resolver de forma violenta atritos e problemas comuns, valorizar a linguagem violenta, machista e homofóbica são alguns dos traços ideológicos caracterizam grupos de ultradireita, cada vez mais atuantes internacionalmente. Desgraçadamente, esses traços devem nos acompanhar na atual conjuntura sociopolítica-eleitoral.
Enfim, se é verdade que o ato de protesto diante do trágico fim do asilado Moïse Kagambe descortinou finas nuances políticas, religiosas e ideológicas, também é certo que a evocação simbólica de São Benedito pode inspirar o fortalecimento da indignação: mecanismo eficaz contra a naturalização da violência que como suave torpor adormece consciências.
Há pouco, todos nós estávamos preocupadíssimos com o que estava acontecendo no Afeganistão. “Os democratas de plantão” estavam gritando que os valores democráticos – que nunca foram conquistados naquele país apesar da presença de 20 dos EUA e aliados – seriam enterrados e o país seria regido pelas “leis islâmicas antidemocráticas”. Tudo bem que o Talibã e seus semelhantes colaboram muito bem com esse discurso dos internectuais e especialistas formados(as) nas redes sociais e filmes de Hollywood sobre o Islam, Oriente Médio e os muçulmanos. Porém, ao fazer isto, os mesmos “democratas” vieram, no dia 7 de setembro, em defesa do fechamento de instituições essenciais da democracia brasileira.
Tudo que falo acima é meramente experiência própria. Os mesmos indivíduos, “intelectualmente” alimentados por certos autores autodeclarados conservadores ou ultraconservadores, difamam um grupo fundamentalista que se diz islâmico – sem fazer aqui nenhum juízo de valor – e praticam por exato as mesmas coisas que este mesmo grupo no país em que vivem. Aquelas pessoas tão preocupadas com as mulheres muçulmanas que “seriam obrigadas a usar a burca” uma semana atrás estavam se ocupando em demandar intervenção de forças armadas, fechamento do poder judiciário brasileiro e, ainda por cima, como sempre é de costume, etiquetam os dissidentes de “traidores, comunistas etc.” Como falei, tudo isso eu digo com base nas minhas experiências nas redes sociais. Não quero aqui incluir todos que levantaram a voz diante dos acontecimentos no Afeganistão.
Certa vez, conversei aqui com os meus queridos leitores e queridas leitoras sobre a pandemia de partidarismo. É uma pandemia, pois não se restringe ao Brasil. Vive-se ela em todo lugar do mundo quase. E um dos sintomas deste vírus é a preocupação da pessoa com um problema em outro lugar enquanto tende a causar o mesmo ou um semelhante no lugar onde vive. Prejudica o ambiente em que vive, mas pensa em como resolver o prejuízo do outro lugar.
Madre Teresa de Calcutá tem uma frase muito pontual para este tipo de situação: “É fácil amar os que estão longe, difícil é amar os que estão próximos.” Esta é a frase que resume tudo. É o paradoxo da condição humana, infelizmente.
É necessário, claro, que nós nos preocupemos com o outro. Porém, deve-se começar pelo ambiente mais próximo. Como uma pedra que cai na água e cria círculos. A preocupação deve ocorrer desta forma. Primeiro, os mais próximos.
Voltando ao início, por três semanas consecutivas falei aqui a respeito das mulheres muçulmanas, sharia e a relação do Islam com a democracia. Sempre acompanhei os comentários que eram feitos nas redes sociais da CartaCapital. Eram todos, sem exceção, islamofóbicos desde os comentários dos conservadores e da ala direitista da política até os daqueles que se dizem progressistas e da ala esquerdista da política. Nenhuma exceção. Todos reproduzindo as mesmas coisas na sinfonia de um coro unidos e conduzidos por um maestro: a mídia internacional predominantemente americana.
Não muito tarde, em duas semanas vimos o espírito do Talibã se erguer nas principais avenidas das capitais do Brasil declarando guerra ao STF e as instituições democráticas. E desta vez, não eram sequer muçulmanos. Maioria se declara cristão conservador e defensor de uma certa família tradicional. São estas as pessoas que nas redes sociais se formaram especialistas em política internacional, Islam e Oriente Médio. Enfim, meus amigos, vivemos em um mundo repleto de controvérsias.
O diabo é uma figura surgida na tradição cristã, que está relacionada à encarnação do mal. São variadas as interpretações, religiosas e científicas, antigas e modernas, de como a existência deste mal encarnado se dá. Boa parte das vezes, a figura do diabo é reduzida à imagem de uma entidade, representada de muitas formas, dependendo da cultura e do clima social. Por isso, as imagens variam de um homem vermelho, com tridente e rabo, a um galã elegante e sedutor, e são tanto fonte de medo, de narrativas orais, teatrais ou cinematográficas, algumas bem atrativas, como motivo de humor ou de fantasia do Carnaval.
Entretanto, vale refletir que, na teologia cristã, o diabo está para além de uma entidade. A origem do termo explica. No grego, diabolos e no hebraico, satan, o sentido é o mesmo: “aquele que divide”, “provocador de confusão, discórdia”. Isto significa que, enquanto Deus, o Criador, age para transformar o caos, unir, harmonizar, trazer paz, o diabo trabalha no contrário: divide, confunde, mente, causa injustiça, destruição e provoca violência seja ela física, psicológica ou simbólica. Diabolos é, portanto, nas bases da teologia cristã, uma postura, uma força, um caráter, revelados nas pessoas que assumem tais expressões.
Não vamos adiante com discussões teológicas, que são importantes, mas não são objetivo deste artigo. Importa aqui, neste espaço, refletir como o significado de diabolos pode nos ajudar a pensar sobre o que está acontecendo neste exato momento do Brasil, com as expressões de confusão, mentira, injustiça, destruição e violência no processo eleitoral.
É fato que temos o permanente desafio de superarmos os controversos binarismos certo-errado, legal-ilegal, bem-mal, entre outros, que disfarçam as complexidades das relações humanas e de sua extensão na cultura, na economia, na política. No entanto, em nome da promoção da vida em sua plenitude, em todas as suas dimensões, pela causa da paz e da justiça, precisamos chamar o mal pelo nome (como já escrevi em artigo neste espaço) e denunciar ações diabólicas que estão em curso. Algumas delas, para dividir e confundir, usam até mesmo o nome de Deus para seduzir cristãos (coisa que, de acordo com registros da Bíblia cristã, o diabo faz muito bem).
Por isso, Jesus, ao se deparar com as ações antivida, aquelas que instituem privilégios, segregação, desigualdade, que impedem a plenitude e a abundância de vida a todas as pessoas, desejo de Deus, compara estas práticas diabólicas às de um “ladrão”, que surge para roubar, matar e destruir (João 10.10). Ele também identificou disseminadores de mentiras como quem age a partir de desejos diabólicos: “… [no diabolos] não há verdade; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio; porque é mentiroso, e pai da mentira” (João 8.44).
Neste sentido, podemos classificar como diabólicas as campanhas políticas para eleições municipais no Brasil, que fazem uso de mentiras agressivas para destruir a imagem de concorrentes. Isto acontece principalmente, mas não exclusivamente, nas capitais Rio de Janeiro, Vitória, Recife, Fortaleza e Porto Alegre. Estas ações, que visam convencer eleitores pela confusão que causa medo, partem de candidatos como o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus que pleiteia a reeleição como Prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (Republicanos). Em vídeo espalhado pela internet, Crivella afirma que o concorrente Eduardo Paes (DEM), tem apoio do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pela promessa de ocupar a Secretaria de Educação e introduzir pedofilia nas escolas.
Além da mentira sobre pedofilia nas escolas, o atual prefeito do Rio afirmou, na companhia de deputado federal da Igreja Assembleia de Deus Otoni de Paula (PSC/RJ), que o PSOL é inimigo do Presidente da República e deseja dar uma segunda facada nele (referindo-se ao atentado sofrido por Jair Bolsonaro em 2018). A campanha diabólica de Crivella também distribui panfletos com o mesmo conteúdo na porta de igrejas e em espaços públicos, usando funcionários da Prefeitura.
Pesquisa sobre este discurso acusatório em vídeos de candidatos e apoiadores (inclusive do Presidente da República e seus ministros), folhetos sem identificação e registro (por isso, ilegais) e áudios que circulam por grupos religiosos no WhatsApp, verifica prioritariamente o convencimento com mentiras pela imposição do medo. Há também vídeos com falsidades e pânico moral (terrorismo verbal produzido para criar aversão social a pessoa ou grupo) de contracampanha, ou seja, de influenciadores políticos e religiosos que não apoiam candidatos, mas agem contra outros que querem destruir. Os vídeos do pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, para interferir em cidades com as quais, curiosamente, ele não tem qualquer relação, são fortes exemplos de contracampanha.
Desde as eleições de 2018, candidatos que buscam apoio de eleitores religiosos recorrem a conteúdo falso e ao pânico moral com base em temas relacionados à sexualidade humana, ao que chamam de “defesa da família tradicional” aliada a “proteção das crianças nas escolas”, e ao enganoso conceito de “ideologia de gênero” (como já tratei neste espaço). Neste 2020, foi acrescentado o tema da “perseguição a cristãos”, criando pânico em torno de candidatos que, se eleitos, atuariam para “fechar igrejas usando como desculpa a prevenção ao coronavírus”.
É fato que qualquer tema que levante o assunto “sexo” e “sexualidade” mexe com o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções (tratei disto também no artigo “Por que os evangélicos só pensam em sexo?”). É de se considerar também que, nos últimos anos, o contexto político brasileiro ressuscitou e realimentou o velho temor do comunismo e do marxismo. Como a maioria nunca leu uma linha das teorias de Karl Marx, acaba acreditando nos irmãos de fé que falam de “doutrinação de mentes”.
É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e a LGBTI+, e ampliam a participação destas populações no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a cura dos LGBTI+. Uma moralidade ressentida.
Por isso, para estes grupos, o trabalho das agências de pesquisa e dos sites que promovem a checagem de informações, por mais detalhado e correto que seja, acaba não tendo um efeito suficiente. Não adianta que interlocutores, pacientemente, tentem mostrar que o que se divulga é falsidade e mentira. Isto porque o que sustenta este processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância, mas o fato de que a audiência acredita no que escolhe acreditar.
Quando um grupo se identifica com mentiras, mesmo que elas sejam demolidas em nome da ética e da justiça, permanece com elas e as defende de qualquer jeito. Não importa que seja uma falsidade, o conteúdo não é apagado dos espaços virtuais e continua a ser reproduzido. Mais: aquele que desmascarou a notícia ou a ideia, que pode ser um familiar, amigo ou irmão na fé, chega a ser objeto de desqualificação e rancor.
Eis aí o sentido do diabólico, da imposição de divisão, confusão, de destruição da imagem do outro com mentira.
A despeito de tudo isto, sempre há chance de exorcizar o diabo: expeli-lo do processo. Por isso há que se ter esperança da presença pública de cidadãos e grupos, religiosos ou não, que atuam pela superação das ações diabólicas em nome da paz e da justiça. Eles/as estão por aí, pessoas eticamente responsáveis, agências de checagem de notícias, como fermento na massa, tentando juntar e não dividir, construir e não destruir. Como disse Jesus, “pelos frutos os conhecereis” (Mateus 7.20).
Em tempos eleitorais aumenta a circulação de mensagens de gente que usa o nome da Igreja Católica para justificar suas propostas e/ou para combater seus adversários. Convém esclarecer esse uso indevido do Cristianismo, porque ele prejudica tanto a Igreja quanto a boa política.
Toda pessoa deve votar nas propostas políticas que lhe parecem melhores. A Igreja aponta os valores e diretrizes éticas para iluminar o discernimento político de seus membros, sabendo que um mesmo valor pode concretizar-se em diferentes políticas. Por isso mesmo a Igreja católica recusa-se a identificar-se com um Partido, como se só houvesse uma proposta política digna de seu apoio. Não se furta, porém, a dar orientações éticas.
Um tema é especialmente sensível em tempos de eleição, porque funciona como foco que concentra a atenção dos cristãos, deixando os outros temas políticos na penumbra: o aborto. Por isso é sobre ele que teço aqui as considerações que me parecem mais importantes para a orientação da comunidade católica.
Quando um Partido ou agremiação política propõe descriminalizar o aborto (pois no Brasil ainda não há propostas concretas de sua legalização), não está defendendo o aborto enquanto tal: propõe, apenas, que a mulher que decide interromper uma gravidez não seja tratada como criminosa pelo Direito Penal. É como o adultério, que no passado foi classificado como crime, sujeitando as mulheres à prisão. Ao descriminaliza-lo, o Direito brasileiro não incentivou ninguém ao adultério: apenas retirou uma punição que a sociedade brasileira julgou descabida. Assim também, a descriminalização do aborto não implicaria que o SUS operasse a interrupção de gravidez, mas nada impediria a rede privada de oferecer esse serviço. Para efeito comparativo, é como o caso da cirurgia plástica para fins estéticos: o SUS não faz, mas a rede privada sim.
Há muitos argumentos contra a atual legislação que proíbe a interrupção da gravidez (exceto em alguns casos já estabelecidos pelo STF). Penso que os três mais fortes são: (1) não impede que sejam realizados anualmente muitos milhares de abortos clandestinos que causam elevado número de mortes, (2) dificulta o tratamento de hemorragias e outras decorrências de abortos clandestinos, porque a equipe médica só pode atuar caso haja risco de morte, e (3) aumenta o sofrimento da mulher que deve permanecer internada até que a equipe médica entre em ação sem risco de ser processada por crime de aborto, o que pode levar mais de uma semana. Ou seja, os custos financeiros e humanos são altos!
Diante dessa realidade, nós, cristãos, somos chamados a fazer uma escolha: qual a política pública mais adequada para evitar os abortos e suas decorrências nefastas? Endurecer mais ainda a legislação, ou aceitar a descriminalização para poupar sofrimentos e mortes de mulheres? Esta é uma escolha política, a ser iluminada pela Ética, que cabe a nós, cidadãos e cidadãs fazer em todo processo eleitoral – inclusive nas eleições municipais.
O texto reproduz matéria do Portal Guia-me, que sintetiza a entrevista que o Ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo deu à rede de TV CNN, em 22 de setembro passado. Araújo defendeu a relevância do discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, no qual abordou o combate à cristofobia. Na entrevista, o ministro afirmou que o conceito existe e o presidente não foi o primeiro a usar.
Araújo acrescentou à CNN que existe uma conscientização pequena ao redor do mundo acerca da cristofobia e chama a atenção para essa realidade em países cuja maioria da população é cristã e onde, às vezes, o cristianismo é atacado e outras religiões não são.
Ele se referiu ao discurso de Bolsonaro na ONU que incluiu o tema da liberdade religiosa e mencionou o conceito de cristofobia, em defesa dos cristãos que sofrem perseguição.
De acordo com a matéria, parte da imprensa teria repercutido negativamente o discurso do presidente do Brasil, alegando a inexistência de cristofobia no Brasil. Folha Gospel destaca que o ministro acredita que o Brasil é um país majoritariamente cristão, por isso tem responsabilidade em defender os cristãos perseguidos ao redor do mundo (em torno de 260 milhões, número apontado pela ONG Cristã Portas Abertas e reproduzido no Folha Gospel).
Na edição publicada pela Folha Gospel, o ministro Araújo avalia que, em um país como o Brasil, que apresenta a porcentagem de 90% de cristãos, o cristianismo é responsável por parte da sua identidade e da sua essência, o que levaria as autoridades brasileiras a assumirem a responsabilidade de chamarem a atenção para a questão.
A matéria traz a citação do ministro à CNN, referente a um estudo enviado ao Ministério de Relações Exteriores do Reino Unido, que aponta que 80% dos perseguidos por religião no mundo são cristãos. Araújo, segundo a síntese publicada pela Folha Gospel, defende o uso do termo “cristofobia”, já que islamofobia é utilizado para definir a perseguição aos muçulmanos. “Isso precisa ter um nome, para que as pessoas se conscientizem disso”, destacou, de acordo com a edição da Folha Gospel.
Ernesto Araújo afirmou à CNN, segundo a matéria reproduzida, que o discurso do presidente nas Nações Unidas não se limitou à diplomacia, mas foi “relevante, inovador e corajoso”. “Falar de cristofobia pode incomodar algumas pessoas, mas vamos chamar atenção para isso”, disse o ministro na entrevista.
A síntese publicada pela Folha Gospel destaca que o ministro foi questionado por jornalistas da CNN sobre o discurso de Jair Bolsonaro não ter contemplado brasileiros de outras religiões, e ele esclareceu que o presidente não deixou de olhar para as outras religiões, pois defende a liberdade religiosa para todos. A matéria destacou, novamente, que Araújo ressaltou que, pelo fato do Brasil ser um país cristão, as autoridades se sentem responsáveis por chamar a atenção sobre a intolerância religiosa. “Não excluímos ninguém, mas queremos recuperar a identidade nacional, não queremos ser um país genérico”, afirmou o ministro à CNN.
O discurso do presidente Bolsonaro na ONU
Em seu discurso de abertura da 75° Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que durou pouco mais de quatorze minutos, o presidente Jair Bolsonaro destacou a covid-19 e o desemprego, como dois problemas a serem resolvidos e apontou a imprensa brasileira como agente disseminador de pânico entre a população. Falou sobre as medidas tomadas pelo governo federal no âmbito da pandemia, como o auxílio emergencial.
Bolsonaro falou ainda sobre a Amazônia e o Pantanal e a propagação de “desinformação” sobre os incêndios que devastaram os dois ecossistemas, que segundo o presidente, começaram na área em que índios e caboclos mantém plantações, sendo que estas áreas já se encontram desmatadas e comentou sobre o derramamento de óleo venezuelano em 2019 na costa brasileira.
Ao afirmar que “a liberdade é o bem maior da humanidade”, Bolsonaro faz uso do tema da liberdade religiosa e do combate à cristofobia e afirma que “o Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família a sua base”.
Sobre o conteúdo do discurso do presidente Bolsonaro na ONU, o projeto Aos Fatos verificou 41 afirmações, tendo avaliado 12 delas como verdadeiras e 29 como desinformação, entre 11 falsas, 7 imprecisas, 6 insustentáveis, 4 contraditórias e uma exagerada. O tema da cristofobia não foi verificado.
A doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora sobre religião e política, jornalista e editora-geral do Coletivo Bereia Magali Cunha afirma que o discurso de Bolsonaro na ONU se revelou recheado de falácias, ou seja, informações falsas, estrategicamente utilizadas para passar a impressão de serem verdadeiras.
A apresentação do tema da “cristofobia” como uma das grandes questões a serem enfrentadas no mundo, representou, para Magali Cunha, um forte aceno aos apoiadores do presidente, tanto católicos quanto evangélicos brasileiros e não é dirigida como “apelo à comunidade internacional”, como faz parecer.
De acordo com a editora-geral do Coletivo Bereia, o termo “cristofobia” não se aplica ao Brasil, por conta dos cristãos serem ampla maioria religiosa e, não haver nesse contexto, perseguição à religião cristã, como ocorre em outros países. Casos de perseguição religiosa a este grupo no país são pontuais, reflexos da ignorância e do preconceito contra evangélicos e de situações, como atentados a símbolos e templos católico-romanos por extremistas evangélicos.
São as religiões de matriz africana que sofrem perseguição religiosa recorrente no Brasil, conforme apontam relatórios elaborados pelo governo federal, fruto de histórica demonização destas religiões por conta da hegemonia cristã exclusivista e do racismo estrutural, por serem expressões de fé da cultura negra. Segundo Magali Cunha, a estratégia discursiva adotada pelo presidente visa a ampliação de forças fundamentalistas anti-direitos de minorias sociais. Para isso, o governo brasileiro tem buscado assessoria de juristas fundamentalistas entre católicos e evangélicos. A atuação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) com o ministro Ernesto Araújo em pautas internacionais, é um exemplo.
O professor da Universidade de Brasília (UNB) e coordenador do grupo de pesquisa sobre Filosofia da Religião na instituição, Agnaldo Cuoco Portugal, afirmou em entrevista ao Portal Congresso em Foco que o discurso de combate ao ódio contra cristãos não é necessariamente novo. “Já vi o Papa Francisco falando desta perseguição. O patriarca de Moscou também. Aí faz sentido a estas autoridades falar contra a perseguição de cristãos”, disse, referindo-se ao líder da Igreja Católica Apostólica Romana e a Cirilo I, líder da Igreja Ortodoxa Russa.
O discurso bolsonarista mostra que não se trata apenas da interferência da religião na política, mas também da interferência da política na religião. Qualquer uma das duas manobras, pondera Agnaldo, é perigosa. “O chefe de nação defender determinada religião incorre no perigo de aumentar sua legitimidade política. E é algo perigoso numa democracia por conta de sua laicidade- o Estado não pode tomar uma posição religiosa, em detrimento de uma ou outra expressão”, explicou.
O conceito de cristofobia
Em entrevista ao Coletivo Bereia, o teólogo e pastor batista Irenio Chaves analisou o uso do termo “cristofobia”.
Não existe cristofobia no Brasil. Esse termo foi usado para descrever a perseguição a cristãos em países dominados por outros fundamentalismos e regimes extremistas, muitas vezes com martírio, desterro e violência. Não é o nosso caso. Não resta a menor dúvida de que há uma herança histórica de preconceito a protestantes, que vem diminuindo e quase desaparecendo, que é aquele que diz que todo o crente é sem entendimento e de classes sociais inferiores.
Irenio Chaves
Ouvida por Bereia, a professora de Antropologia da Religião na Unicamp Brenda Carranza explica que o uso do termo “cristofobia” pode estar relacionado às falas do Deputado Marco Feliciano em reação à Parada Gay em São Paulo. “Utilizar pública e aleatoriamente o termo Cristofobia é pavimentar a ideia de que existe um ódio contra o cristianismo. Tal ódio, segundo os disseminadores do termo, é nutrido por minorias sociais, étnicas e demográficas (entre elas comunidades LGBTQ+, movimentos sociais, indígenas, negros, pobres e feministas) que ameaçam o moral e costumes cristãos e acalentam desejos de atacar os cristãos”, afirma a pesquisadora. Em 2015, o então Presidente da Câmara Eduardo Cunha tentou votar com urgência um projeto de lei sobre cristofobia. O PL se encontra na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e teve relatório favorável em 2019.
No entanto, o pastor Irênio Chaves interpreta que o aumento de antipatia a segmentos fundamentalistas do evangelicalismo brasileiro acontece devido a um alinhamento deles a uma mensagem política e social imbuída de discurso de ódio, obscurantismo e negacionismo.
“Infelizmente, esse discurso é assumido por lideranças que têm acesso a grandes somas de dinheiro, a uma grande quantidade de pessoas e ao uso de mídias e redes sociais. Infelizmente, essa realidade tem favorecido o fortalecimento da extrema direita, como sinônimo de ‘conservadorismo’, e a divisão nas comunidades, com perseguição e ataques aos que pensam diferente. Se podemos falar em alguma ‘cristofobia’ no Brasil, é o que parte de fundamentalistas contra esses cristãos que querem colocar em prática a mensagem de amor e acolhimento de Jesus no contexto atual.”
Irênio Chaves
O pesquisador e mestre em Ciência das Religiões, Nelson Lellis, ouvido por Bereia, explica que o conceito é impossível de ser aplicado no Brasil:
O conceito Cristofobia diz sobre intolerância religiosa aos cristãos, o que é impossível sua aplicação no Brasil. Cristãos católicos ainda são a maioria; os evangélicos, em crescimento constante, protagonizarão esse cenário em 2032. O atual governo possui vários atores cristãos no poder. O presidente se declara cristão e frequenta missas e cultos. Como o Brasil pode ser cristofóbico? O fato é que as religiões de matriz africana continuam em primeiro lugar como foco de intolerância religiosa. Os principais “perseguidores” são evangélicos. Além de demonizarem sua teologia, destroem terreiros e apedrejam membros desses segmentos. O uso do termo “cristofobia” faz parte de uma tarefa propagandista política conservadora do atual governo. Seu intento é garantir a pauta “Deus, pátria e família”, um mote já bastante conhecido e defendido por igrejas bolsonaristas.
Nelson Lellis
Em entrevista ao Portal O Povo o padre Rafhael Maciel, sacerdote eleito pelo Papa Francisco como Missionário da Misericórdia, disse que o termo cristofobia se refere à aversão ou ridicularização pública de uma pessoa, em razão de sua fé em Jesus Cristo. “A igreja é repleta de mártires, vários santos no passado foram perseguidos porque acreditavam em Cristo. Naqueles primeiros tempos, não chamávamos de cristofobia”, esclarece o padre, recordando que a perseguição contra os cristãos se tornava testemunho de fé.
O sacerdote reconhece que o termo também é empregado para mascarar discursos que negam o extremismo religioso por parte de cristãos. O padre Rafhael salienta que assim como existem preconceitos de raça ou sexual, existem preconceitos ligados à questão religiosa.
Também entrevistado pelo portal O Povo, Christian Dennys, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudioso sobre religião há 25 anos, afirma que o conceito de cristofobia tem sido utilizado por supremacistas de direita para afirmar que maiorias cristãs são vítimas “das esquerdas”. Segundo o pesquisador, o termo ganhou novo significado com a midiatização (via mídias sociais) e a judicialização (através de bancadas evangélicas).
“‘Cristofobia’ não existe: mas pode virar uma lei para incriminar, de forma hedionda, quem atente contra a pregação de um ‘neopentecostal’- ultimamente tornado sinônimo do verdadeiro evangélico cristão”, comenta o professor. No entendimento de Dennys, o discurso da cristofobia é instrumento de revanchismo usado por grupos de extrema direita.
Dentro das esferas evangélicas o termo cristofobia tem sido utilizado para se referir a perseguições sofridas por adeptos do cristianismo em diversos países, principalmente onde são minoria. Há inúmeros relatos de prisões, violência e assassinatos de cristãos na Ásia, em países do Oriente Médio e da África.
No Brasil o termo tem sido usado para se referir a episódios de preconceito e discriminação contra evangélicos, embora não exista no país um sistema estruturado de perseguição violenta contra esse segmento religioso.
Entrevistado pela BBC Brasil, Marco Cruz, secretário-geral da ONG Portas Abertas, disse que não dá para falar em “cristofobia” no Brasil. “Há casos isolados de preconceito, mas, no nosso contexto, não consideramos que exista no Brasil uma perseguição estruturada e sistemática contra cristãos, como em outros países. Nós podemos expressar nossa fé livremente, ninguém é expulso de algum local por ser cristão, nenhuma pessoa morre ou é presa no Brasil por ser cristã”, afirma.
Magno Paganelli, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), disse à BBC Brasil que embora as religiões afro-brasileiras sofram mais com a discriminação, acredita que de fato existe cristofobia no Brasil, “se você considera o rigor do conceito de islamofobia, lgbtfobia e afins”, afirma.
Liberdade religiosa e perseguição de cristãos ao redor do mundo
“Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.”
Além de instituições religiosas como Porta Abertas e Ajuda à Igreja que Sofre, que colocam atenção à perseguição de cristãos, há organizações, como Pew Research Center, órgão de pesquisa estadunidense, que olham a questão de forma ampla, para além do Cristianismo, e têm publicado levantamentos anuais a respeito das restrições à liberdade de qualquer crença ao redor do mundo.
O pesquisador Brian Grim expôs a metodologia do estudo do Pew Research Forum em um TEDx: mede-se tanto as restrições governamentais quanto as hostilidades sociais relacionadas à liberdade religiosa ou de crença. De forma geral, 52 países (26% do total) impunham grandes ou muito grandes restrições governamentais à crença em 2017. Já os países com grandes ou muito grandes hostilidades sociais relacionadas à religião somavam 56.
Ao separar por religião, o estudo aponta o Cristianismo como confissão mais alvo de restrições em 2017. São 143 países em que cristãos sofrem alguma forma de assédio (termo usado pela pesquisa). Logo atrás vêm o islamismo, com 140 países em que restrições são impostas a seus praticantes. A pesquisa nota que essas religiões são mais alvejadas porque também são os maiores grupos religiosos do mundo.
Cristãos sofrem restrições em todos os 20 países do Oriente Médio e Norte da África e em 75% dos países da região Asiática do Pacífico. Já muçulmanos têm algum tipo de restrição em 95% do Oriente Médio e Norte da África e 93% da Europa. Vale lembrar a explicação de Grim: esses dados levam em conta todo tipo de restrição (governamental ou social): desde a prefeitura de Moscou restringir a 4 o número de mesquitas em seu território até o Paquistão punir o crime de blasfêmia com prisão ou pena capital. Ainda que o estudo avalie a gravidade das restrições por país, não o faz por religião.
Por último, é importante notar que o tema da liberdade religiosa voltada para cristãos faz parte de uma das prioridades da política externa estadunidense sob Donald Trump, como um aceno político ao apoio que recebe desse segmento religioso . A Casa Branca já publicou uma Ordem Executiva tratando do tema em 2020 e o Departamento de Estado dos EUA deixa público relatórios sobre o assunto produzidos desde 2017. A menção de Bolsonaro à liberdade religiosa e à cristofobia faz parte de um alinhamento brasileiro à política externa norte-americana nessa questão, buscando acenar também a seus apoiadores cristãos. inserir esta referência
O cristianismo como elemento formador da identidade brasileira
Em seu discurso, Bolsonaro disse que o Brasil é um país cristão, ponto reafirmado por Ernesto Araújo. No entanto, esta afirmação é enganosa, pois, apesar da predominância numérica cristã, o Brasil é um país com ampla pluralidade de religiões, e não pode ser chamado de cristão.
A predominância cristã tem relação com a colonização por Portugal, uma nação que esteve no regime do Padroado. De acordo com Eduardo Navarro, livre-docente do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo, nesse regime, a Igreja Católica assistia o direito ou incumbia o dever aos reis de Espanha e Portugal de evangelizar as terras colonizadas. Além disso, os patronos também podiam nomear bispos e comandar missionários em seu território.
Durante o Império de Pedro I e Pedro II, o Brasil manteve o Catolicismo Romano a religião oficial do Estado, ainda que permitisse outras práticas (como a protestante muitas vezes trazida por imigrantes como alemães luteranos na região sul ou ingleses anglicanos), sem autorização de erguer-se templos. Foi apenas com a Proclamação da República em 1889 que o país tornou-se laico, o que não mudou o caráter hegemônico do catolicismo entre os brasileiros. Os símbolos tradicionais dessa vertente do cristianismo ainda se fazem presentes no espaço público, como os crucifixos em prédios da Justiça.
No entanto, o cristianismo não é o único elemento formador da identidade brasileira. A cultura indígena tem marcas profundas na religiosidade popular e a cultura africana dos que foram trazidos como escravizados durante séculos também se faz presente entre os brasileiros, seja na culinária, música e também na religião. Em 2010, 0,3% da população brasileira se declarava umbandista ou candomblecista. Além disso, 8% da população se diz sem religião, 2% segue o espiritismo e há uma pluralidade de religiões de diferentes origens presentes no país, conforme o Censo de 2010.
Nesse sentido, ainda que cristãos sejam a maioria, o Estado é laico e, portanto, não favorece nem persegue credos específico e deve garantir que todos tenham plena liberdade de crer e de não crer , conforme definem os Artigos 5º e 19 da Constituição Federal de 1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI – e inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Art. 19 “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II – recusar fé aos documentos públicos; III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”
Constituição Federal de 1988
O Coletivo Bereia classifica a matéria da Folha Gospel como imprecisa. O texto que reproduz matéria de outro veículo gospel, o Portal Guiame, faz uma edição de conteúdos da entrevista concedida pelo Ministro das Relações Exteriores do Brasil à CNN que atua como promoção da fala do político e, por sua vez, do tema da cristofobia, na linha de uma assessoria de imprensa, sem contextualização das diversas afirmações do político apresentadas de forma imprecisa. Além disso, a matéria da Folha Gospel ainda acusa veículos de imprensa de repercutirem negativamente o discurso de Jair Bolsonaro na ONU, sem informar quais foram estes veículos e o que disseram exatamente. Com isso, Folha Gospel (e o Portal Guia-me) produz desinformação e animosidade do público contra veículos de imprensa em geral, tendo transformado o tema, tratado pelo ministro de forma vaga, em título da matéria.
Meu ponto de partida é meu corpo. Corpo que possuí diversas identidades, que negocia, troca, toca, experimenta. Corpo que foi construído pelos cristianismos de centro. Corpo que foi desconstruído pelos cristianismos das margens. Corpo que agora é devir. Por que começar essa breve fala com o corpo? Porque é ele que experimenta a religião, é ele que a constrói, é ele que pisa e sente o território místico e dá significados.
Cristianismo nunca é no singular. Cristianismos. Plural. Usando as categorias de “centro” e “margem” dos estudos pós-coloniais tento entender o que se passa com os cristianismos no Brasil. Há um cristianismo de centro? Há um cristianismo das margens? Como os discursos dentro de uma religião podem ser tão distintos? Para encontrar novos caminhos é preciso discutir os caminhos existentes.
Os fundamentalismos têm tomado conta do cenário nacional e mundial. Existem diversas teorias sobre qual a origem do fundamentalismo religioso, todas elas têm suas falhas. Porém, há uma constatação a ser feita: o fundamentalismo é um fenômeno religioso, mas não é ligado com a religião em si. Em menos de uma semana estava na Índia estudando os processos de fundamentalismo religioso e lá há um partido de ultradireita chamado Bharatiya Jananta Party (Partido do Povo Indiano). Partido esse que reivindica uma Índia Hindu, que quer trazer de volta os princípios religiosos dos Vedas, das castas (que ainda é um problema na Índia), doutrina Hinduvta – orgulho de ser hindu, e que quer expulsar os cristãos e os muçulmanos da Índia. O centro, império, é o hinduísmo. Existem algum movimento hindu que não concorda com essa postura do governo em poder? Sim. Nenhuma religião é singular, há sempre o plural.
No Brasil temos como religião de centro o cristianismo, em uma mistura de católico com evangélico, considerando um crescimento notável nas últimas décadas do movimento evangélico. Qual é a imagem do movimento evangélico-protestante-pentecostal? Bem, posso dizer a partir de dentro de que de um lado temos os fundamentalistas escrachados, discursos de ódio, teologia da prosperidade, do outro lado os ditos teólogos ortodoxos, que destilam intolerância com cara de conhecimento científico, que obtém o “verdadeiro conhecimento da Bíblia” e o resto é tudo, claro, é tudo heresia. E não preciso dizer sobre a bancada dita evangélica, apenas mencionar é o bastante.
Engana-se, entretanto, em pensar que o movimento de evangélicos progressistas é algo novo ou uma renovação. Muito pelo contrário, nomes como Anivaldo Padilha, metodista que participou da resistência contra a ditadura e foi denunciado pelo próprio pastor, sendo sequestrado e torturado, estão aí para fazer história e construir essa resistência cristã. Ele é apenas um exemplo, poderia citar outros tantos que não se dobraram ao Centro da fé e da política, continuaram nas margens da fé.
Temos que entender que os evangélicos progressistas representam as margens das margens, pois são marginais da própria fé e marginais da própria esquerda que quase sempre excluiu a religião de qualquer análise social e fechou os diálogos com os crentes com um ar de superioridade colonial. Teologias como teologia gay e queer, teologia negra, teologia feminista, teologia da libertação são marginalizadas pelos centros – da fé e até mesmo pela esquerda.
Acredito que não há um “crescimento” ou mesmo “renovação” do movimento evangélico, entretanto, tem ocorrido mais visibilidade e publicidade das lutas e pautas estabelecidas entre o meio progressista evangélico. O movimento de religiosos evangélicos engajados em pautas sociais e não-conservadoras sempre existiu, não é um fenômenos novo e há muito tempo estão na luta. O que é novo talvez seja uma melhor compreensão teórica, conceitual e política e também uma melhor articulação. Se há muito tempo religiosos evangélicos, de maneira anônima e desarticulada, atuam em causas relacionadas aos direitos humanos e sociais, hoje, de maneira mais articulada e organizada, estes evangélicos qualificaram e organizaram melhor suas expressões e práticas sobre esses temas e causas. Há diversos interesses nessa nova visibilidade também, interesses políticos, partidários, midiáticos, e esses fatores estão influenciando a publicização do movimento progressista evangélico no Brasil.
Movimento das margens da fé
Os primeiros movimentos progressistas evangélicos surgiram em meados da década de 20 e 30, porém eram institucionalizados e obtinham um caráter mais tradicional. Hoje encontramos esses movimentos mais nas margens, se costurando com outros corpos, outras identidades para além de um cristianismo ocidental-patriarcal-branco-heterossexual-capitalista. Há diversos movimentos se movimentando por aí: Evangélicos Pelo Estado Democrático de Direito, Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Feministas Cristãs, Espiritualidade Libertária, Movimento Negro Evangélico. Mas voltarei aos corpos únicos que vivem essa experiência com o sagrado nas margens.
Ronilso Pacheco, teólogo, negro, mora no Rio de Janeiro, autor do livro “Ocupar, Resistir, Subverter” pela editora Novos Diálogos. Ronilso constrói sua fé nas margens de sua cor. Como um corpo negro experiência a luta, dor, alegria e o mistério da fé?
Ana Ester, teóloga, lésbica, de Belo Horizonte. Pesquisadora sobre a teologia queer, sobre um Deus que flui como nós. Vivência a fé cristã no corpo de uma mulher lésbica.
Alexya Salvador, pastora da Igreja Comunidade Metropolitana em SP, transexual, educadora. Nas margens da sociedade e da fé encontra o divino que lava os seus pés. E agora passa a lavar os pés de sua comunidade de fé, alunos e família. Corpo divinamente queer.
Nancy Cardoso, pastora metodista, teóloga, mora nos quatro cantos do Brasil, feminista, reivindica uma leitura erótica da Bíblia, tão erótica que escorre para a terra, onde ela mais trabalha, na Comissão Pastoral da Terra, autora de diversos livros sobre teologia feminista.
Entre muitos outros que se fazem nas margens e constroem a partir dela suas teologias. Cristianismos de fronteira, de margens, bem distintos do que é propagado na mídia sobre um cristianismo conservador, preconceituoso, frio e seco. Acreditamos naquilo que somos, nossa religião é nossa imagem e semelhança.
A potência da margem: o corpo marginal da fé
Comecei a reflexão falando dos corpos. Nosso corpo é a nossa linguagem. Quando os corpos são marginalizados não temos mais voz. A minoria tem seus corpos oprimidos e silenciados pelo colonialismo. O corpo religioso é um corpo oprimido duplamente, cultural-social e religioso – se é que pode haver essa separação. Um corpo LGBTI não tem lugar na reflexão teológica, da mesma forma que um corpo negro, que um corpo de uma mulher, um corpo indígena. A liberdade é definida pela sua genitália, cor, classe social e sexualidade. Obviamente o centro do cristianismo não quer que as margens teologizem. Relembrando Spivak: Pode o subalterno teologizar?
Os corpos marginais da fé são um potencial de desafiar a hegemonia presente, um potencial de criatividade, um potencial de sonhar diferentes espaços religiosos e sociais. Ser marginal dentro do centro é desestabilizar as “normas” teológicas, questionar as doutrinas opressoras, é criar uma nova narrativa religiosa a partir do corpo que sente. É viver nas margens, nas fronteiras, nos entrelugares. Homi Bhabha diz:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (2001, p. 27)
Outro ponto que as margens vivem em constante negociação. Uma das perguntas que mais ouço sendo uma teóloga feminista “como você pode ser feminista e cristã?” ou ainda além: “por que você ainda se considera cristã?”. Ou de uma esquerda tão cega quanto a própria fé que me diz: “não precisamos de vocês na nossa luta” – mesmo sendo a luta feminista. Como negociar entre essas fronteiras? O entrelugar é uma categoria necessária para entender os movimentos evangélicos emergentes na contemporaneidade. Negociam entre as margens e assim criam um novo lugar, um entrelugar de potências e diversidade. É o “rompimento das totalidades impostas e a superação dos fantasmas de cultura universal e culturas puras” (RIBEIRO, 2012, p. 169).
Um cristianismo-puro-singular-ortodoxo não tem mais espaço para os corpos marginais da fé. Viver nas fronteiras das diferentes situações produz um novo sentido para a realidade. Ainda mais, é preciso residir no além das fronteiras. Para Bhabha: “residir ‘no além’ é ainda… ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de cá. Nesse sentido, então, o espaço intermédio ‘além’ torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora” (2001, p. 27)
A vida é essa mistura de identidades que se interligam, interconectam, entrelaçam. É o passado e presente se fazendo novo. Os movimentos progressistas cristãos inspiram um novo a vir, uma comunidade que vem. Há sempre o perigo da margem querer se tornar centro, e assim perder a potência de criação e ser apenas uma repetição do velho, espero que isso não aconteça, mas antes crie o novo, novas relações com a fé e a sociedade, novas leituras das Escrituras que não mais oprimem o corpo, novas formas de se relacionar com o contexto atual. Ser evangélico é ser portador de uma boa nova, que essa boa nova se faça carne nos corpos marginais da fé.
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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução
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REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
RIBEIRO, Cláudio. Fronteiras. entrelugares” e lógica plural: a contribuição dos estudos culturais de Homi Bhabha para o método teológico. Estudos de Religião, v. 26, n. 43, p. 9-21, 2012.
*Publicada originalmente no IHU.Republicada no Cebi. Imagem: Cebi/Reprodução
“Dizer que a Virgem Maria é mais importante que os apóstolos só serve para que tudo continue igual. Isso não vem do Evangelho”. A teóloga brasileira Ivone Gebara é uma das máximas representantes da teologia feminista no mundo.
De Comillas [Espanha], onde esta tarde participou de algumas conversas organizadas pela Associação de Teólogas Espanholas, Gebara critica a “Igreja patriarcal” que, afirma, corre o risco de “perder as mulheres que pensam”. Conversamos com ela exclusivamente.
A entrevista é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 01-10-2018. A tradução é do Cepat.
EIS A ENTREVISTA.
Em sua exposição, você fala em alteridade, diferença e igualdade. O que quer dizer com tudo isso?
São conceitos muito relacionados com o feminismo, e por isso algumas filósofas feministas trabalharam, e eu também, estes conceitos, que não nasceram com o feminismo, mas de outras reflexões filosóficas, como as do filósofo judeu francês Levinas, que falou muito do outro, de quem é o outro. Minha contribuição é levantar uma suspeita de que as reflexões sobre a alteridade colocaram a mulher como ‘a outra’. E quando se fala de diferença, se faz dentro de um contexto, onde a universalidade masculina é bastante forte.
Vivemos uma ética machista?
Não necessariamente machista. Quero dizer que nem sempre estão relacionados a uma ética, mas, ao contrário, a uma maneira de reduzir o outro, de não levar em conta a diferença. Estes conceitos passam a ser teóricos, quase vazios na prática. A igualdade, a alteridade, a diferença… estão relacionadas a algo. Igual a quê, diferente de quê. Neste sentido, quero falar de algo que está relacionado à vida das mulheres, que é a beleza. Fabrica-se uma só beleza, que na realidade são os produtos que se vendem. As mesmas marcas produzidas para diferentes marcas…
Esta é uma teia de aranha na qual todas nós caímos, porque essa beleza é algo exterior, e é muito sacrificada. Temos que nos sacrificar muito para ter o peso ideal, a pele sem rugas… milhares de escravidões. Finalmente, falo do corpo feminino a partir do Cristianismo. E é interessante que no Cristianismo, e quando falo do Cristianismo falo da teologia, não do tempo de Jesus, o ideal da beleza feminina é um ideal ‘espiritual’, mas é a beleza do serviço. A mulher que é boa é a que serve, a que é muito boa mãe… Por exemplo, todas estas mulheres que vão à rua para falar dos direitos das mulheres traem o ideal da mulher como mãe, cuidadora, contida, dona de casa, zeladora da Igreja, servidora dos padres. São as mulheres que cozinham para eles, limpam os seminários…
A Igreja não percebe que o dia em que as mulheres disserem: ‘Já basta’ de ser servas, escravas… e não a outras coisas dentro dessa Igreja, a Igreja pode ficar vazia?
É que até agora eles veem este projeto de mulheres muito distante, sobretudo na América Latina. Percebem, mas agem como se o problema não existisse. Eu conheço alguns padres que pagam um salário mísero e, ao mesmo tempo, falam de justiça social. Estas contradições existem, porque existe a pobreza em que as mulheres vivem. Pobreza material, em primeiro lugar, mas também há uma ‘compensação’, porque às vezes o padre é bom tipo, educado, não é como o bêbado do marido. Existe o consolo…
Sim, mas a mulher não muda seu papel, permanece submetida…
Mas, a submissão é diferente. O padre não a pega, o padre lhe agradece, diz que irá rezar por ela. Há uma ideia do padre como representante de Jesus. Esta simbologia, de certa maneira, atrasa o processo.
Isso, aqui, se chama ‘micromachismos’, sem você se dar conta…
… está fomentando a injustiça. E o dia em que o padre perceber, as relações irão mudar. Mas são mais relações de amizade.
Quando a Igreja também reconhecerá as mulheres como discípulas de Jesus?
A primeira coisa que é necessário dizer é que se dizemos ‘discípulas’, já estabelecemos uma hierarquia. Eu prefiro falar de ‘Movimento Jesus’. Neste movimento, Jesus não sempre tinha a última palavra. As teologias masculinas destacaram uma sabedoria infundida em Jesus, como se não necessitasse aprender nada de ninguém, até o ponto de dizer que Maria foi a primeira discípula de seu filho. Isso não pode se sustentar. Jesus tinha que aprender, ser contestado, responder, se equivocar. Acredito que temos uma ideia muito romântica de Jesus de Nazaré, e ao falar de movimento estamos descendo à realidade da vida. No mundo judeu, as mulheres têm um papel importantíssimo, como mães, educadoras, que são escutadas. O mundo patriarcal, o Cristianismo a partir do século II e III, irá se vincular à ideia de poder do Império Romano, e aí as coisas começam a mudar. A autoridade pública da mulher se perde totalmente.
A Igreja, é machista?
Eu prefiro não usar a palavra machismo, porque essa palavra tem uma conotação de subjetividade e emotividade muito negativa. Nem todos os homens são machistas, nem todos os bispos são machistas, por isso eu prefiro falar de um fundamento patriarcal. Aqui, quem manda é o varão porque é o representante de Jesus, e eu não sou. Então, eu poderia estar mais com a razão do que você, mas a última palavra é sua. O mundo patriarcal não apenas subsiste na Igreja.
É evangélico que somente os homens possam ser sacerdotes, que as mulheres não tenham um papel sacramental na Igreja?
Isto não vem do Evangelho. Os sacerdotes querem ver os 12 apóstolos, varões, como uma escolha de Jesus. Eu não vejo isso. A hermenêutica bíblica feminista vê outras coisas, mas infelizmente não nos leem, não nos escutam e nos deixam de fora das instituições de formação. As poucas teólogas que ensinam nas faculdades de Teologia precisam se ajustar às normas.
Eu sou muito crítica. Não sou a única que pensa assim. Primeiro, quem escolheu estas teólogas como representantes? Podem ser representantes do feminino, mas não do feminismo católico. Porque o que incomoda a Igreja não é o feminino, é o feminismo. Porque o feminino quer dizer, como disse o Papa, a Virgem Maria é mais importante que os apóstolos, esse é um discurso romântico e que serve para que tudo continue igual. O Papa coloca três mulheres, entre elas há uma freira, duas teólogas alemãs. Por que não perguntou às diferentes organizações de teólogas, por exemplo, para a ATE da Espanha, que nomes indicariam?
Acredita que é mais um assunto de cota, e não de convencimento?
Claro, e depois colocam dois cardeais velhos que não tem nada a ver. Dizem que estão estudando, mas não chegarão a conclusão nenhuma. Já de antemão, ele já disse não à ordenação presbiteral. Agora, abre uma pequena brecha para a diaconal, mas não se deve ter muita esperança.
O que nós católicos feministas, homens e mulheres, que entendemos que a Igreja deve ser um lugar onde a igualdade seja praticada, precisamos fazer?
Acredito que os varões falam muito pouco disto. Podem fazer isso em círculos fechados, mas não falam em congressos, não escrevem ao Papa. Estão satisfeitos, ainda que se poderia fazer diferente. Não há vozes masculinas. Há os dominicanos, jesuítas, que falam de respeito às mulheres, contra a violência, há textos muito bonitos sobre isto. Contudo, entre isto e dizer ‘É preciso mudar a teologia’, até quando falarmos dos apóstolos, de Deus Pai Todo-Poderoso, dos sacramentos somente relacionados à figura masculina de Jesus…, então, não haverá mudanças. E se houver mudanças, estou certa de que não será agora, mas é preciso começar a mudar.
Por onde deveríamos começar?
Cada comunidade, em cada grupo, em cada país, precisa começar a partir de sua própria realidade. Eu convidaria as mulheres para que se reúnam, que estudem, por sua parte, e aos varões que reflitam por seu lado.
Que futuro espera pela Igreja, caso não rompa com o paradigma de varões com poder e mulheres servidoras?
Não sei falar do futuro, mas no presente o que ocorre é que muitas mulheres saem da Igreja. A Igreja já perdeu os operários, já perdeu o campesinato, e irá perder as mulheres que pensam. As mulheres que pensam e as líderes de movimentos populares. A Igreja católica já não lhes diz quase nada. No mundo indígena, esta maneira da Igreja com o feminismo comunitário, não lhes diz nada. Sim, algumas permanecerão, mas perderão muitas.
Do combate à varíola no início do século XIX até as confusões atuais sobre o COVID19, as epidemias são períodos privilegiados para a análise das estratégias de comunicação entre autoridades e a população, especialmente na sua parcela mais fragilizada. Neste artigo, as mensagens de lideranças políticas e religiosas atuais são examinadas à luz de outros momentos históricos marcados pela ameaça de caos social trazida por doenças.
O termo “cristofascismo” foi cunhado pela teóloga alemã Dorothee Sölle em 1970 para descrever as relações entre as igrejas cristãs e o partido nazista, beneficiado pelo apoio de lideranças religiosas. Utilizado no Brasil por Fábio Py (entre outros), o conceito tem se consolidado como uma proveitosa chave de leitura para entender a relação do governo Bolsonaro com sua base de apoio, a qual o enxerga como o Messias que se sacrifica pelo seu povo, em defesa de uma suposta “família tradicional brasileira” cuja saúde física, moral e econômica estaria sob ameaça. A imagem abaixo, postado no Instagram da deputada estadual fluminense Alana Passos no dia 26 de abril de 2020, sintetiza a mensagem:
O post coleciona mais de 14 mil curtidas até o final de maio (e alguns comentários críticos também). Dada a sua popularidade, torna-se urgente avaliar como o discurso cristofascista é recebido dentro de seu público-alvo em tempos de pandemia e levantar hipóteses que conectem esse ideário político a uma história do controle do Estado sobre a população em termos da pauta dos costumes e de sua relação com a saúde pública.
No Brasil atual, a mensagem de que o Covid-19 é uma maldição impetrada pelo pecado pode ser compreendida à luz do discurso moral que dá sustentação política ao grupo no poder. Se o cristofascismo tenta aproxima Jair Messias de Jesus Cristo, seu corolário é que contrariar o primeiro é também chamar para si e para o país a fúria do último, e, portanto, a morte. E que, ao invés das ações recomendadas pelas autoridades sanitárias, o que pode salvar o país da doença é a obediência às lideranças religiosas, especialmente aquelas alinhadas com o discurso do Executivo federal.
Dentro desse quadro, há aspectos de continuidade e de ruptura com outros momentos da história brasileira nos quais as epidemias foram interpretadas como oportunidade de aumentar o controle sobre a população e combater as culturas de resistência ao poder instituído. Em seu livro “Cidade Febril”, Sidney Chalhoub mostra que os cem anos de políticas públicas anteriores à Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, são elucidativos. A introdução da vacina antivariólica no Rio de Janeiro em 1804 marca, à primeira vista, uma saudável preocupação em acompanhar a vanguarda mundial da política pública de saúde na época. Entretanto, ela é também o primeiro passo de uma sequência de ações que incluem o combate à epidemia de febre amarela em 1850, do cólera em 1855 e deságuam na Reforma Pereira Passos em 1906.
Estes momentos possuem em comum a retirada do direito de moradia no centro da cidade das parcelas mais pobres da população, conjugada a intervenções violentas sobre os corpos negros agravada pela falta de diálogo com as culturas estabelecidas nestas populações sobre o uso do corpo e os sentidos de doença. Os órgãos de saúde pública não demonstraram nenhuma preocupação em comunicar-se com escravos, alforriados e pobres livres a partir de suas próprias culturas. Se assim tivessem feito, descobririam outras visões para doenças como varíola, cólera ou tuberculose. Teriam de explicar, por exemplo, porque sua preocupação se circunscrevia aos bairros onde a população branca era maioria, se estas enfermidades eram mais mortíferas entre os negros. Descobririam que, por isso mesmo, tais doenças eram vistas como feitiçaria de brancos para matar os negros.
Mas nem tudo era vitória dos “feiticeiros brancos”; o fato de a febre amarela atingir, em 1850, mais brancos do que negros, foi lida como uma vingança de São Benedito ao fato de ele não ter sido levado na tradicional procissão de 4ª feira de Cinzas, no ano anterior, por não ter branco que aceitasse carregar santo preto. A aproximação do santo a Omolu, orixá do candomblé capaz de infligir a doença, conferiu mais plausibilidade a essa interpretação.
Há, porém, novidades significativas para o caso atual. Nos casos antigos, a exclusão social se justificou como uma medida científica, higiênica. As autoridades políticas e científicas atuaram de forma uníssona para comunicar uma mensagem: não era necessário ouvir os pobres para saber que eram eles os responsáveis pela doença e que não deveriam obstruir o Brasil que se civilizava.
No cenário atual, as autoridades científicas, políticas e religiosas assumem papéis radicalmente distintos. Entre os primeiros, um século de estudos em saúde pública dotaram os profissionais da saúde de maior sensibilidade com os problemas sociais. As autoridades políticas e religiosas também inovam na emissão de uma mensagem que dialoga de modo ambíguo com certos preconceitos estabelecidos na população. Ao convocar um jejum no dia 04 de abril em meio à pandemia, o presidente admite que a crise do país é de fundo sobrenatural; ao mesmo tempo, minimiza em seus discursos o efeito do morticínio e oferece saídas milagrosas, como a hidroxicloroquina. Desse modo, dialoga com visões sobre epidemias estabelecidas pela cultura popular na longa duração, mas confere novo sentido a elas dentro de sua lógica totalitária. Posiciona-se em papel messiânico, no sentido de quem traz a cura/salvação através da fé e reserva aos supostos desviantes o justo castigo da morte. A consequência é uma nova forma de eugenia: não se trata de decidir quem deve morrer na câmara de gás, mas quem deve ter acesso ao respirador para sobreviver.
Uma resposta a este procedimento pressupõe uma disputa em diversos âmbitos, inclusive teológicos, sobre como deve ser interpretada a figura de Cristo, entendido como encarnação divina, e da Providência. Exige, portanto, a retomada de uma linhagem de pensamento que enxerga no Jesus de Nazaré uma mensagem pacifista e de propagação dos direitos humanos, que a impeça de ser retomada como fiador da legitimidade de atos de violência. De modo semelhante, exige compreender que afirmar que a vontade divina pode ser a responsável pela morte de alguém implica em uma contradição com os valores historicamente assumidos pelos Evangelhos, no Cristianismo Primitivo.
*Este texto que me tirou da cama na madrugada trata de um olhar muito particular sobre a pandemia que assola nosso mundo, mas que nessa abordagem se restringirá à realidade que me rodeia se estendendo ao máximo ao nosso país.
A pandemia que vivemos é uma experiência única para os que atualmente vivem na terra. A pandemia anterior a essa é datada de 1918, há 102 anos atrás, impossibilitando termos em nosso meio alguém que tenha sobrevivido a ela. Mesmo que tenhamos pessoas com essa idade ou alguns anos a mais, esses seriam recém-nascidos ou bem pequeninos na época, e talvez tenham vivido em lugares que sequer a pandemia tenha passado.
Meus pais, cuja a idade é de 94 anos, dizem a todo momento que nunca viveram ou viram falar de algo parecido. Isso se explica pela idade, mas também pelo local onde viveram a infância, interior da Bahia, e pela falta de acesso as notícias, sejam elas escritas ou via rádios.
Podemos dizer então, que estamos vivendo o que costumamos chamar, popularmente, de experiência ímpar, para qual não existe um par ou semelhança com outra.
Tendo dito sobre a singularidade dessa experiência vivida por nós nesse momento pandêmico, outras singularidades se apresentam derivadas da complexidade dessa realidade. Uma das singularidades é a forma como tem sido tratada a pandemia no nosso país e, por conseguinte, nos estados e municípios.
Nesse tempo específico vivemos um momento de reabertura das atividades econômicas e sociais. Lembrando, entretanto, que nunca tivemos fechados totalmente. Mas o que é importante tratar nesse aspecto específico é como a população e as instituições se comportam diante desse novo cenário de retorno à chamada vida “normal”. E é sobre esse ponto que me é sugerido escrever esse texto.
Nosso comportamento é regido por leis visíveis, palpáveis e com certa logicidade, mas também por outras que aparentemente nos são invisíveis, inexistentes e, em alguns casos, incompreensíveis. Longe de querer afirmar aqui algo do campo de alguma sobrenaturalidade. Pelo contrário, trato aqui de algo muito natural.
Antes de continuar falando sobre o que chamo de leis naturais, quero trazer um exemplo de infância que me veio quando ainda lutava entre o sono e a provocação de escrever esse texto. Quando criança num bairro pobre da periferia da cidade onde moro, costumávamos ter poucos brinquedos. Um brinquedo muito presente era a bola de plástico. Objeto barato e de fácil acesso. Quando, porventura a bola furava, colocávamos uma fita adesiva ou, na maioria das vezes, um esparadrapo. Isso acontecia dezenas de vezes com a mesma bola. Outros furos e o alargamento do furo anterior, mesmo tendo sido tapado, o que dizia da ineficácia do “curativo”. Até que a bola não resistia, murchava de tal forma que nada mais podia ser feito. Havíamos perdido o brinquedo e a brincadeira tão importante para nós naquelas pequenas possibilidades de diversão e lazer.
Por que me veio essa história de tempos tão passados? Acredito que porque ela nos guia para uma boa analogia que deixe mais claro o que estou chamando de “lei invisível”. É como o ar na bola escapando da bola. Era um pequeno furinho que um pedaço de esparadrapo dava conta. Mas o uso insistente nas brincadeiras vai fazendo surgir novos furinhos e alargando os furos anteriormente tamponados. Ninguém via como acontecia. Só víamos o acontecimento. E, muitas vezes, só nos dávamos conta quando a bola estava totalmente vazia e sem possibilidades de regeneração, tão entretidos que estávamos na brincadeira.
O fato das normas de isolamento social estarem sendo flexibilizadas, os estabelecimentos abertos e a vida social retornando às atividades, são furos nessa bola, sem que, assim como as crianças, se perceba logo o dano. Possivelmente, só poderá ser visto quando a bola estiver totalmente vazia.
Onde poderia estar a invisibilidade desses furos, já que é noticiado em ampla rede de comunicação as decisões de cada abertura e flexibilização? Está no ar saindo da bola sem que a gente veja. Na medida em que a aparência de “normalidade“ vai sendo construída com as reaberturas, ao mesmo tempo vai sendo construído dentro de mim, sem que eu perceba, um certo atenuar da realidade, dos riscos da doença e de sua contaminação e, talvez o mais forte em nós, o desejo de retornar a vida como era antes.
Os governantes, quando por uma imensa irresponsabilidade decidem permitir a reabertura do comércio, voltar às atividades produtivas, sociais, de lazer e religiosas, eles estão mandando um recado para esse desejo. Eles estão fazendo o furinho na bola. E todos nós somos atingidos por esse recado “não dito”.
Fico olhando para os jovens, incluindo meus filhos, e me perguntando: quantos bois são necessários matar para resistir aos encontros dos amigos, a ida aos bares, ao futebol, aos churrascos e festas? Todas essas atividades já estão acontecendo e os chamando para participar. Falo isso dos que estavam ou estão em isolamento. Porque existe um grupo que nunca fez isolamento algum, burlou o que pode e com muita maestria, diga-se de passagem, todas essas normas. E muitos desses não desenvolveram a doença (o que não significa que não ajudaram a espalhar a doença). Este fato acabou colaborando na crença de que eles, os jovens, são “imunes” e a que essa doença tem baixa letalidade.
Penso agora no vídeo que circulou esses dias dos “inocentes do Leblon”.
Entre as falas captadas estavam a pouca importância com essa doença, sua disseminação e letalidade. Aparentemente, nada diferente dos outros lugares que abriram seus bares para a garotada. Mas, a diferença existe não quanto ao comportamento e sim quanto às consequências.
Para onde vai essa garotada do Leblon caso seja infectada? E a quem contaminará? E para onde vão os jovens da Baixada, por exemplo, caso ocorra o mesmo? Que tipo de assistência terão? E ainda, quantos serão os contaminados por eles caso fiquem doentes?
Dizia o rapper Emicida em uma entrevista, o que já era percebido por nós: a grande letalidade desse vírus é a desigualdade social.
Existe um inconsciente operando e regendo a população, tornando muito difícil para todos resistir ao seu encanto. Quem tem conseguido se manter consciente tem sido como o personagem Ulisses, amarrado no mastro de seu navio, pelos seus marinheiros. Por sinal, essa analogia serve também para dizer que é a vida comunitária e fraterna, mesmo que à distância, que tem sido para nós, os marinheiros de Ulisses, a corda que nos amarra ao mastro desse navio que navegamos.
Quando o bem cede ao mal, mesmo que um pouquinho como disse no título desse texto, esse inconsciente ganha muita força e as cordas se tornam fracas e a bola murcha.
Na dedicação de evitar qualquer tipo de julgamento, olhemos. Quando os pais cedem aos filhos suas brincadeiras na rua, quando os jovens cedem ao desejo de se encontrar, quando as famílias cedem às festividades, quando as escolas cedem às aulas presenciais, quando os templos religiosos cedem a abertura de suas celebrações, permitimos que os furinhos se alarguem e que a anormalidade tome lugar na realidade. E, em última instância, vamos abrindo mão do bem.
Quero me ater nesse momento à possível abertura dos templos religiosos, especificamente na igreja católica, na qual pratico a minha fé. Em alguns lugares já reabriram, mas em outros, como em minha cidade, ainda permanecem fechadas em via de reabertura a partir de um protocolo.
As religiões, e digo especificamente da minha, são espaços de cultivo e preservação da vida, dom maior que Deus nos deu: vai e escolhe a Vida. Somos guardiões da vida. Por ela devemos lutar e defendê-la de qualquer ameaça. Seja ela do campo objetivo e material, ou seja em sua imaterialidade e sacralidade
Nada justifica se abrir para o mal, mesmo que seja um pouquinho. Mesmo que este esteja revestido de bem. O Bem é Deus e se estamos ao seu lado é a esse Bem que devemos servir.São 67.113 pessoas, com nome e sobrenome, criaturas do Altíssimo que foram ao seu encontro precocemente. São milhares de pessoas e famílias enlutadas, chorando seus mortos ou lutando pela vida em um hospital. É a Páscoa de Nosso Senhor vivida na nossa gente e de forma mais cruel nos pobres e pequeninos, os por Ele amados.
É a Páscoa de Nosso Senhor vivida na nossa gente e de forma mais cruel nos pobres e pequeninos, os por Ele amados.
A hora é de defender a vida, de lutar por ela, de denunciar o que vem acontecendo como nosso povo diante desses governantes. É hora de gastar toda nossa energia lutando pelo Reino e amparando os sofredores, amarrando nosso povo ao mastro para livrá-lo do canto da sereia da dita normalidade, indo contra a maré nesse mar nebuloso que envolve os fiéis em outra fidelidade apenas com a aparência de boa.
INEXISTE protocolo algum que possa proteger nosso povo indo às celebrações. Isso é uma ilusão e faz parte da sustentação da anormalidade como realidade. É um reforço nesse inconsciente coletivo, nessas trevas que se abateram sobre nós e que agora se disfarça de luz.
No entanto, não devemos nos deixar enganar. Precisamos ser luz de verdade. Nos manter acordados e de olhos bem abertos diante da noite escura, mesmos que nossos olhos pesem clamando pelo sono. Precisamos ajudar nosso povo a entender a gravidade do momento, que nada passou e que vai demorar a passar. Se flexibilizamos, a mensagem que estamos enviando, mesmo com as melhores intenções, é que o pior passou e que a gravidade arrefeceu.
Entendo as dificuldades de natureza econômica de manutenção da instituição e de todos que ganham seu pão trabalhando nas atividades da igreja. Mas assim como tem sido com o povo mais pobre, a instituição haverá de encontrar caminhos de solidariedade que possam permitir a sua subsistência.
É possível que haja também algo de natureza religiosa que nos diz respeito às outras denominações cristãs que já estão realizando seus cultos, e, algumas, diga-se de passagem, sem nenhum protocolo, e outras ainda, que sequer fecharam. Mas isso não pode nos fazer sair do caminho da verdade. Lamentamos por esses irmãos e pelo mal que possam ter realizado, mesmo querendo e pregando o bem. E, se ao final desse tempo formos poucos, temos o consolo e a força de Nosso Senhor: não tenham medo pequeno rebanho.
O momento ainda é de manter a bola fechada, sem furos ou com estes bem pequeninos, que possam ser tamponados. Podem me dizer: tudo já está aberto. Mas nós não somos esse tudo. Nós fomos chamados a ser a voz que clama no deserto. É no deserto o nosso chamado. É na contramão que Jesus foi chamado para ser fiel à escolha pela Vida e, por isso, atravessou seu deserto com altivez. Em fidelidade àquele que seguimos mantenhamos nossos corações abertos e nossas portas fechadas até que tenhamos um pouco mais de segurança para nos encontrarmos em nossos templos, igrejas e capelas.
Em 01 de julho, a coluna Giro Cristão disponível no site da Rádio 93 FM, emissora com sede na cidade do Rio de Janeiro, do Grupo MK, do senador evangélico Arolde de Oliveira (DEM/RJ) focada em temas cristãos, publicou uma matéria intitulada: “Pastor é espancado na Índia depois de orar por um doente”.De acordo com o texto, assinado pela jornalista Marcella Bastos, oito ataques contra cristãos teriam acontecido na Índia após a flexibilização do isolamento social por causa da Covid-19.
Um deles teria sido contra o pastor Suresh Rao. O ato contaria com cerca de 150 pessoas que o arrastaram e espancaram, sob a justificativa de que Rao teria orado por uma pessoa doente. “Eles me arrastaram para a rua e me jogaram no chão. Começaram a pisar em mim, rasgaram minhas roupas, me chutaram por todo o corpo e socaram meu olho esquerdo. Sofri uma lesão ocular grave como resultado de um coágulo sanguíneo”, explicou a vítima em depoimento. Segundo a matéria, que não cita a fonte da notícia, os agressores acusaram o pastor de converter hindus ao Cristianismo, afirmando que a Índia seria uma nação hindu e não teria lugar para cristãos.
Bereia verificou que sites de notícias cristãs do exterior publicaram matéria sobre o caso, dias antes. Um deles é o CBN News (Christian Broadcasting Network) que noticiou a agressão ocorrida no dia 21 de junho, ocasião em que o Pastor Rao estaria orando por um doente na vila de Kolonguda. As informações foram baseadas em texto de outro grupo cristão que publica notícias na internet: International Christian Concern (ICC), instituição de caridade, sem fins lucrativos, que se declara prestadora de assistência, conscientização e serviços jurídicos a igrejas cristãs perseguidas em todo o mundo, desde 1995. A matéria na coluna “Persecution” [Perseguição], provavelmente a base para as demais, relaciona o aumento repentino de ataques a cristãos na Índia a partir da suspensão do isolamento social imposto contra a Covid-19.
“Eles disseram que a Índia é uma nação hindu e que não há lugar para cristãos”, explicou Rao ao ICC. Em outro ponto, ele afirma: “Estou preparado para esse tipo de eventualidade”, explicou o pastor Rao. “Conheço o custo de servir a Jesus nessas aldeias remotas e continuarei a servir as pessoas desta região”.
O ICC aponta também um outro incidente da mesma natureza no estado indiano de Tamil Nadu, onde uma igreja teria sido reduzida a cinzas, deixando 100 cristãos sem local de culto. “Fiquei tão angustiado e com dores no coração“, disse Ramesh, pastor da Igreja da Paz Real, em entrevista ao ICC, replicada também na matéria da CBN News.
“Foi um trabalho árduo por dez anos construir a igreja. Todo o trabalho árduo e doações de sacrifício dos pobres membros da congregação foram derrubados no chão. Tudo o que resta são cinzas”. Na entrevista, ele acrescentou: “Nos últimos dez anos, radicais me disseram várias vezes para fechar a igreja. Pela graça de Deus, fui capaz de suportar todas essas dificuldades e abusos, mas desta vez é uma devastação total”, acrescentou o pastor.
Um terceiro exemplo apontado na publicação diz respeito a possíveis ameaças de radicais aos membros da Igreja Evangélica Leigos, realizadas em 13 de junho, feitas quando eles estavam montando a igreja para reabrir após o confinamento motivado pela Covid-19. Como explicitado na matéria, o pastor Augustine salientou que os radicais estariam dizendo aos cristãos que orar ou se reunir na igreja era proibido e que os cristãos haviam causado a propagação do vírus.
“Não sabemos o que o futuro reserva”, disse o pastor Augustine. “No entanto, estamos preocupados que os radicais não nos permitam ter um culto na igreja”.
O texto apresenta o temor dos cristãos indianos, preocupados que a perseguição continue à medida que mais pessoas comecem a emergir do isolamento social.
O site evangélico brasileiro Gospel Mais também publicou a notícia sobre o espancamento do pastor Suresh Rao, além de ter abordado o momento político na Índia, considerando-o como extremista, tendo à frente o líder ultranacionalista Narendra Modi, do Partido Bharatiya Janata, no comando do país desde 2014. Gospel Mais sinaliza ainda as restrições da liberdade religiosa aprovadas em 2018, baseadas em argumento de que evangelistas “forçam” ou dão benefícios financeiros aos hindus para convertê-los ao cristianismo.
Entenda a situação dos cristãos na Índia
A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, ficando atrás da China. De acordo com o World Christian Database (WCD), a maior religião do país é o hinduísmo, com 72,5% da população. A religião predomina a Índia há séculos (começou a se desenvolver entre 500 e 300 a.C.). A segunda maior religião na Índia é o islamismo, com 14,4% da população. Já o cristianismo desponta como a terceira maior religião no país, com 4,8% da população. Em seguida, vêm as chamadas etno-religiões, com 3,8% da população, que são religiões tribais tradicionais anteriores à chegada do hinduísmo e do budismo no país. Por último, está o budismo, com 0,7% da população, e se originou na Índia Antiga em algum momento entre os séculos 4 e 6 a.C., de onde se espalhou por grande parte da Ásia.
Estudos atribuem a introdução do cristianismo na Índia pelo Apóstolo Tomé, que supostamente desembarcou em Kerala em 52 d.C. Há, porém, consensos de vários estudiosos de que o cristianismo foi estabelecido na Índia pelo século 6 d.C., por algumas comunidades que usaram liturgias sírio-aramaicas. Os cristãos são encontrados em toda a Índia, entre católico romanos, ortodoxos de várias tradições e evangélicos, com grandes grupos em partes do sul e da costa sul do país, a costa de Konkan, e também no Nordeste da Índia.
Igrejas protestantes e ortodoxas, bem como organizações ecumênicas, conselhos regionais e agências cristãs da Índia estão articuladas no Conselho Nacional de Igrejas da Índia (NCCI, sigla em inglês). O Conselho foi estabelecido em 1914 como Conselho Missionário Nacional e, em 1979, o Conselho se transformou no que é conhecido como Conselho Nacional de Igrejas na Índia. O NCCI é composto por 30 igrejas-membro, 17 conselhos cristãos regionais, 18 organizações da Índia e 7 agências relacionadas. Representa cerca de 14 milhões de pessoas na Índia.
O Conselho e seus membros constituintes declaram estar ativamente engajados nos serviços religiosos, na construção da nação e na transformação social. É um Conselho autônomo inter-confessional que indica promover e coordenar vários tipos de atividades pela vida e pelo testemunho responsáveis, pela defesa da dignidade humana, pela justiça ecológica e econômica, pela transparência e prestação de contas e pela equidade e harmonia, através de seus membros constituintes e em parceria com a sociedade civil, ONGs, movimentos populares e simpatizantes em nível local, nacional e internacional.
Cristãos indianos sempre contribuíram significativamente para a vida pública na Índia, segundo o NCCI, e estão representados em várias esferas da vida nacional, entre ministros de Estado, governadores e comissários eleitorais principais.
A intolerância religiosa na Índia
Apesar da constituição da Índia ser secular e tolerante no tocante à liberdade religiosa, de haver representação religiosa ampla em vários aspectos da sociedade, incluindo no governo, do papel ativo desempenhado por órgãos autônomos, tais como a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Índia e a Comissão Nacional para as Minorias, e do trabalho de organizações não- governamentais, há um histórico de perseguição a cristãos e muçulmanos na Índia. Vinham sendo ações pontuais de grupos radicais hindus que consideram tanto o islamismo quanto o cristianismo religiões estrangeiras que devem ser removidas do país, desta forma, muçulmanos e cristãos enfrentam intolerância de parte destes grupos. Já os budistas e siques (membros do siquismo, religião monoteísta que se originou no século XV, em Punjabe, cidade que limita a Índia e o Paquistão) são muito mais aceitos pelos radicais hindus, pois essas religiões se originaram em território indiano.
“Esse pode parecer um objetivo nobre o suficiente [liberdade religiosa]; no entanto, argumentamos que as leis anticonversão realmente servem para gerar violenta perseguição anticristã, criando uma cultura de vigilantismo nos estados onde essas leis existem. Nossa análise conclui que os estados que aplicam leis anti-conversão têm, de fato, estatisticamente mais probabilidade de dar origem a violenta perseguição contra os cristãos do que estados onde essas leis não existem”.
A situação se agrava desde 2014, quando o partido de extrema-direita Bharatiya Janata (BJP, na sigla em inglês) tomou o poder e tem incentivado a ideia de que a Índia deve ser uma nação hindu, com o hinduísmo como sua única fé. Ligada à legenda, a organização Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) é a principal responsável por disseminar essas ideias, por meio da perseguição religiosa.
Cristãos e muçulmanos têm visto o aumento drástico dos casos de agressão física, de ataques contra igrejas e comunidades, de prisões arbitrárias e de violência sexual, desde que o BJP conquistou a maioria dos assentos no Parlamento e seu líder, Narendra Modi, assumiu o comando do país como primeiro-ministro. Modi renovou o mandato nas eleições de 2019.
Um relatório da organização Human Rights Watch (Observatório de Direitos Humanos) trata dos graves eventos ocorridos em 2018, com perseguição da parte do governo do BJP a ativistas, advogados, defensores de direitos humanos, jornalistas que se colocaram diante dos ataques a minorias religiosas e comunidades marginalizadas. Foram contabilizados 18 ataques apenas no mês de novembro daquele ano.
Em 2017, o jornal O Globo noticiou a prisão de um grupo de 32 católicos enquanto ouvia músicas de Natal no estado de Madhya Pradesh, na Índia, sob suspeita de tentar converter outras pessoas ao cristianismo. Na data, quando um grupo de sacerdotes foi à delegacia de polícia indagar sobre as detenções, o carro em que estavam foi incendiado no estacionamento. Os suspeitos pertencem a um grupo hindu de direita, de acordo com informações do secretário geral da Conferência Episcopal da Índia, Theodore Mascarenhas.
O NCCI (Conselho Nacional de Igrejas da Índia) tem, frequentemente, se manifestado publicamente contra as ações violentas contra cristãos e muçulmanos, por meio de cartas abertas dirigidas ao primeiro-ministro. Da mesma forma a Conferência Cristã da Ásia, organização regional que representa 15 conselhos nacionais de igrejas de mais de 100 denominações cristãs.
Lei recentemente aprovada pelo parlamento indiano foi condenada pelo NCCI e teve repercussão mundial. É a emenda à Lei da Cidadania, aprovada em 2019, que dá cidadania aos hindus, sikhs, budistas, jainistas, parses e cristãos não-indianos residentes na Índia antes de 2014, mas exclui os muçulmanos. O comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que esta lei é “fundamentalmente discriminatória”.
“Na Índia, estou cada vez mais perturbado pela discriminação e violência dirigida a minorias, incluindo dalits e outras castas programadas, e minorias religiosas como muçulmanos. Em alguns casos, essa injustiça parece ativamente endossada por autoridades locais ou religiosas. Estou preocupado com o fato de as críticas de políticas governamentais serem frequentemente contestadas por alegações de que constituem sedição ou ameaça à segurança nacional. Estou profundamente preocupado com os esforços para limitar as vozes críticas através do cancelamento ou suspensão do registro de milhares de ONGs, incluindo grupos que defendem os direitos humanos e até grupos de saúde pública”.
* * *
Diante da verificação empreendida pelo Coletivo Bereia, é possível afirmar que casos de intolerância e perseguição religiosa contra cristãos e outras minorias religiosas, em especial muçulmanos, que eram pontuais na Índia há muitas décadas, estão ocorrendo com mais intensidade desde que o partido de extrema-direita Bharatiya Janata, com o primeiro ministro Narendra Modi, chegaram ao poder em 2014.
É possível que o relato do espancamento do pastor Suresh Rao tenha ocorrido, diante deste quadro, no entanto, este caso específico não pode ser comprovado nas pesquisas empreendidas pelo Bereia. A matéria da Rádio 93 FM, do Rio, publicada também no Gospel Mais, a partir de veículos de notícias cristãs internacionais, é classificada, portanto, como imprecisa. A matérianão apresenta dados relevantes como a fonte de onde foi baseada a notícia, a data do ocorrido, o nome da igreja ao qual o pastor está vinculado, a cidade onde ocorreu a possível ação violenta e as providências tomadas por justiça em relação a este caso de violência e o contexto em que se dá o caso (exceção do Gospel Mais, neste ponto).
Além disso faz uso de foto enganosa. A foto de um homem sendo espancado atribuída pela Rádio 93 FM ao pastor Rao, é, na verdade, da Agência Reuters, de caso ocorrido em 26 de junho de 2020, com ataque ao muçulmano Mohammad Zubai que se dirigia a uma mesquita. A possível fonte localizada pelo Coletivo Bereia, o International Christian Concern também não oferece dados sobre o caso, apenas diz que o pastor atua no estado de Telangana mas não publicou fotos atribuídas ao caso.
Este tipo de matéria sobre a perseguição religiosa desinforma, pois, além de reforçar o sensacionalismo de imagens de violência, silencia sobre outros grupos religiosos que são alvo, além dos cristãos, até mesmo com mais discriminação por leis. O caso do uso da foto enganosa é bem ilustrativo desta postura desinformativa. Com isso se faz, leitores pensarem que apenas cristãos sofrem violações naquele país, reforçando imaginários de vitimização exclusiva. De igual modo, as matérias ignoram as ações diante desta violação de direitos humanos nos países em que ocorre a perseguição, inclusive as dos próprios Conselho de Igrejas locais e as pressões de órgãos internacionais por procedimentos de justiça nestes casos, levando à falsa compreensão de que nada é realizado.
Giuliano Martins Massi. Cristianismo na Índia: os cristãos de São Tomé, sua constituição, suas tradições e suas práticas religiosas. Dissertação de Mestrado, Ciência da Religião UFJF. Disponível em: http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFJF_7564a2e9be6e6356aa1ff80bf65c2653 Acesso em 06 de julho de 2020.
Nilay Saiya, Stuti Manchanda. Anti-conversion laws and violent Christian persecution in the states of India: a quantitative analysis. Ethnicities Volume: 20 issue: 3, page(s): 587-607 Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1468796819885396. Acesso em 07 jul 2020
O Estado de São Paulo. Ódio religioso: políticas de líder indiano acendem barril de pólvora, 6 mar 2020. Disponível em: https://outline.com/aKrUdz. Acesso em 07 jul 2020.
“Se não der, tenta ligar A gente resume a distância Me conta da tua janela Me diz que o mundo não vai acabar”.
“Me conta da tua janela”, Canção popular de Anavitória
Para início de conversa…
A pandemia causada pelo coronavírus impactou o mundo todo e trouxe consequências as mais diversas, afetando dramaticamente o âmbito da saúde pública, com um número enorme de mortes. Afetou também a economia, devido às medidas de isolamento social, e à sociedade como um todo, devido aos impactos emocionais no enfrentamento da doença.
As inquietações e receios em torno da pandemia suscitaram reações das mais diversas ao redor do mundo. Entre elas, destacamos o reforço de diferentes formas de espiritualidade, religiosas ou não, para o enfrentamento das questões relativas à morte, à fragilidade física e emocional e ao isolamento social.
Ao mesmo tempo, muitos temas e argumentos religiosos se destacaram nas conversas e debates, seja pelo clima de obscurantismo estimulado por alguns grupos, seja pela busca de uma compreensão mais ampla e bem fundamentada de um fenômeno que é social. Como entender mais adequadamente esse quadro é uma pergunta que vários grupos têm feito e muitos têm se dedicado a refletir sobre ela.
As causas da pandemia, por exemplo, têm sido analisadas por várias pessoas de diferentes setores do conhecimento. Tais análises não estão dentro do nosso objetivo neste pequeno texto, mas são muito importantes. Indicamos as reflexões científicas do teólogo Leonardo Boff, que nos apresentou uma síntese no artigo “A terra se defende”, publicado pelo Instituto Humanitas da Unisinos (IHU).
O autor afirma que “a pandemia do coronavírusnos revela que o modo como habitamos a Casa Comum é nocivo à sua natureza. A lição que nos transmite soa: é imperioso reformatar a nossa forma de viver sobre ela, enquanto planeta vivo. Ela nos está alertando que assim como estamos nos comportando não podemos continuar. Caso contrário a própria Terra irá se livrar de nós, seres excessivamente agressivos e maléficos ao sistema-vida”.
Em nossas reflexões sobre espiritualidade vamos nos ater às consequências da pandemia, embora reconheçamos que uma visão aprofundada sobre suas causas seja de grande importância para nos sensibilizar na direção de outras formas de espiritualidade, que reforcem a sustentabilidade da vida e do mundo, e que nos indiquem a necessária crítica ao sistema econômico atual e à forma excludente como a sociedade está organizada. Todas essas dimensões estão relacionadas à espiritualidade.
O que a pandemia tem nos mostrado
Proponho que tenhamos um outro olhar: entre os vários aspectos negativos desta situação tão difícil e dramática que vivemos, há aqueles que revelam possibilidades para a reorganização da sociedade, tanto em termos das vivências pessoais no cotidiano quanto na estrutura social. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos chamou estas possibilidades de “a cruel pedagogia do vírus”, título de seu mais recente livro.
Entre as conclusões que podem ser tiradas deste processo, destacamos:
A pandemia revelou que o sistema econômico no qual a sociedade está estruturada, mesmo com as variações entre os países e continentes, não atende às demandas da dignidade humana e dos direitos básicos das pessoas. Há um pequeno texto deste mesmo autor, denominado “Para o Futuro Começar”, que nos oferece uma boa síntese;
A situação no Brasil mostrou que os riscos e os maiores problemas se concentram nos setores mais pobres da sociedade e que a realidade das populações de áreas favelizadas e de moradores de rua é dramática;
O número expressivo de mortes causou forte inquietação e insegurança para a maioria das pessoas em relação ao futuro da vida, tanto em termos pessoais quanto planetário;
O isolamento social manteve boa parte das pessoas em suas casas. Isso trouxe variadas consequências. Para as famílias que possuem moradias minúsculas, a convivência se tornou tensa, com maior número de violência doméstica e conflitos (uma boa análise deste ponto encontramos no texto “Patroas, empregadas e coronavírus”, da antropóloga Debora Diniz e da cientista política. Giselle Carino).
As atividades profissionais desenvolvidas pelas pessoas em casa pela Internet reforçaram a precarização as relações de trabalho, aumentaram o volume de tarefas e subverteram a noção do lar como espaço de aconchego e descanso;
Houve uma movimentação social muito significativa, com iniciativas e campanhas de solidariedade, envolvendo amplos setores sociais, profissionais de saúde e grupos de defesa dos direitos humanos e da cidadania. Entre as diversas experiências, uma campanha comunitária no Rio de Janeiro nos chamou muita atenção. Ela está apresentada neste vídeo, que articula a assistência social necessária para as famílias pobres com a firme defesa dos direitos humanos e da cidadania. Um testemunho belíssimo!
Uma parcela das pessoas, devido ao isolamento social, se sentiu sensibilizada em relação à valorização das relações humanas, da amizade e de visões mais humanizantes, e à necessidade de se dar maior atenção aos filhos. Há muitas reflexões teológicas e pastorais sobre esses aspectos. O teólogo Faustino Teixeira, no artigo “A dimensão espiritual da crise do coronavírus”, faz uma análise dos impactos globais da pandemia, destacando a crise como oportunidade de se encarar a precariedade e a fragilidade humanas;
Sinais de diminuição da poluição nas grandes cidades e a redução do consumo desenfreado. Quem desejar um aprofundamento deste tema, encontrará no artigo “Voltar à normalidade é se auto-condenar”, de Leonardo Boff, uma reflexão muito consistente e desafiadora.
Todos esses aspectos, complexos e desafiadores, mostram caminhos significativos para a vida e para a vivência espiritual.
Mas, afinal, o que é espiritualidade?
Sabemos que entre uma série de aspectos que marcam a vivência humana está a incessante busca de superação de limites, do ir além das contingências e das ambiguidades históricas, da procura por absolutos que possam redimensionar a relatividade e a precariedade da vida, assim como se busca também o desfrutar das potencialidades, realizações e alegrias da vida nos seus mais diversos planos. Muitos denominam esta dimensão humana como espiritualidade.
Em certa medida, tal visão está relacionada ao olhar crítico das teologias que tem produzido uma saudável distinção entre fé e religião. É fato que tal relação é complexa e possui numerosas implicações, mas, no que diz respeito às nossas reflexões, é preciso afirmar que a primeira, a fé, requer uma espiritualidade que, embora seja autenticamente humana, vem de uma realidade que transcende as engrenagens históricas. Nesta perspectiva, a espiritualidade humana é recebida, acolhida. A espiritualidade, irmã da fé, é vista pela teologia como dom divino.
Nas reflexões mais recentes, tem sido cada vez mais comum a indicação de que a fé é antropológica e que pode tornar-se religião. As experiências religiosas, historicamente, pretenderam e pretendem possibilitar respostas para essa busca, a qual inicialmente nos referimos. Na diversidade de tais experiências confluem elementos os mais diversos, desde os preponderantemente numinosos, “santos”, espontâneos e indicadores de uma transcendência, até aqueles marcadamente ideológicos, facilmente identificados como reprodução de filosofias ou culturas e artificialmente criadas.
Há, entre os estudos de religião, uma série de análises sobre as distinções conceituais entre religião, crença, fé, espiritualidades e outras expressões similares. Em função dos limites de nossas reflexões, destacamos apenas a distinção entre as práticas religiosas mais institucionalizadas e a dimensão transcendente mais ampla, de caráter antropológico, que se expressa no humano e que vai além dos aspectos formais da religião. Em ambas a espiritualidade está presente.
Há também a noção de espiritualidade não religiosa. Ela, conforme nos indica o cientista da religião Flávio Senra, se constitui no “âmbito da crença em Deus que se desenvolve à margem das instituições religiosas ou desligadas de seu antigo pertencimento a instituições religiosas, consideradas as pessoas que se afirmam sem religião ou não afiliadas, mas mantêm a crença em Deus (perspectiva teísta)”.
E como tem se dado a relação entre espiritualidade e a pandemia?
Tanto as formas mais espontâneas de espiritualidade quanto as expressões religiosas mais tradicionais ou institucionalizadas estão presentes no debate acerca da pandemia e do isolamento social. Ambas têm marcado a vida de muita gente e tem estado presente, de diferentes maneiras, em cada situação enfrentada.
As formas de expressão dessas espiritualidades, como sabemos, são muito diferenciadas. Há visões religiosas que negam a dramaticidade da pandemia, ou mesmo, seguindo argumentos ideológicos obscurantistas em voga, atribuem a disseminação da doença à ira e ao castigo de Deus aos seres humanos pecadores e, até mesmo, à supostos interesses comunistas para afrontar a fé cristã.
Há abordagens e formas de espiritualidade de caráter mais intimista, que destacam a importância da vida devocional, das orações e da meditação como caminho de equilíbrio interior, considerando que os tempos atuais são de incertezas e inseguranças.
E há aquelas que buscam interpretações de fé mais consistentes, conectadas com os aspectos sociopolíticos evidenciados nesta crise social revelada pela pandemia e ancoradas nos princípios da solidariedade, da comunhão e da responsabilidade com os destinos da vida e do mundo.
Desafios não nos faltam!
***
Claudio de Oliveira Ribeiro é Pastor metodista e Doutor em Teologia (PUC-Rio)
Um dos sintomas relatados pelos pacientes do Covid19 é a perda do olfato e do paladar. Enquanto está com a doença, o infectado não consegue mais sentir nem o gosto, nem o cheiro das coisas. Hoje, se me perguntarem quais são os sintomas que tem predominado em nossa sociedade nesse tempo de pandemia misturado com instabilidade política, eu diria sem pestanejar que perdemos totalmente o gosto pela busca da verdade.Ousaria dizer que ela já quase não importa mais.
Quando criança, minha mãe dizia:
“Fale sempre a verdade, ainda que venha a sofrer por isso”.
Foi algo que me marcou. Igualmente marcante foi o fato de ter crescido no universo protestante. Mais do que qualquer outro grupo cristão, o protestantismo sempre primou pela busca apaixonada da verdade. Para nós, um culto agradável a Deus não é quando há milagres, curas, ou revelações, e sim aquele em que a Palavra da Verdade foi pregada com autoridade. Daí porque nos incomoda tanto as heresias, os desvios, os falsos ensinos…
E foi o que Paulo prescreveu à igreja:
“Seguindo a verdade em amor, cresçam naquele que é o cabeça, Cristo” (Ef 4.15).
Seguindo a verdade… É ela que deverá nortear a nossa vida. Impossível crescer em Cristo, desprezando a verdade em qualquer área da existência. Se há uma batalha que todo cristão deve se engajar de corpo e alma é aquela em favor da verdade. E como filhos de Deus isso não é opção.
Sabemos que muitos evangélicos têm se fechado a ‘determinada’ emissora para não assistir noticiários com possíveis ilações mentirosas. Perfeito. Mas, contraditoriamente, se mantêm abertos a toda sorte de ‘fontes’, muitas delas anônimas, duvidosas, e então, ironicamente, continuam da mesma forma, absorvendo mensagens falsas, e plantadas com o propósito de levar ao erro e ao engano. Consegue perceber?
Toda vez que abrimos mão de “filtrar”, de ler com olhos críticos, e de confirmar a veracidade, acabamos por dar crédito a coisas tão infantis, pueris e absurdas, que não resistem sequer a uma verificação acurada. E olha que a Bíblia ordena:
“Não apliques o coração a todas as palavras que se dizem…” (Ec 7.21)… “Em todas as coisas sejam criteriosos” (Tt 2.6)…
Saiba que informações falsas podem ser tão perigosas quanto a doença que estamos combatendo. Colhi algumas delas. Por ex.:
É falso que Manaus está enterrando caixões vazios para levar pânico à população… Que Caixões são enterrados com pedra e madeira em Belo Horizonte…. Que as covas nos cemitérios foram abertas para a TV filmar, e depois foram fechadas… Que a “ivermectina” (uso veterinário e humano) é a cura para o Covid19…. Que as 6 mil mortes no Brasil são fictícias, e estão sendo “inflacionadas” pela imprensa… Que há máscaras contaminadas vindo da China… Que o Governador da Bahia pediu à prefeita de Porto Seguro inventar 200 casos de covid19… E mais, muito mais…
Pesquise, analise… Se apela para o emocionalismo barato, não repasse, pois visa levar ao erro os mais simples e sugestionáveis… Se houver uma única dúvida sobre a veracidade, não compartilhe… E principalmente, seja crente, mas não seja “crédulo”…
“Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém…” (1Jo 3.7)
* Daniel Rocha, Pastor da Igreja Metodista em Santo André/SP
Edir Macedo e Silas Malafaia reagiram à suspensão das atividades religiosas. Isso é responsabilidade cristã?
A crise socioeconômica agravada pela pandemia provocada pelo coronavírus é realidade que, por mais que muitos tentem amenizar e até esconder, não há como ser desconsiderada. A vida cotidiana foi drasticamente alterada, o medo do sofrimento e da morte foi potencializado, a lógica do mercado e do capital que rege políticas foi posta à prova com altas demonstrações de fracasso.
Num dado momento dos últimos dias, os grupos religiosos, principalmente as igrejas, estiveram no centro de discussões. Enquanto medidas sanitárias orientavam o isolamento social para preservação de vidas, emergiu a questão: igrejas devem continuar com suas atividades presenciais?
O ministério da Saúde alertou que a medida de evitar aglomerações incluía missas e cultos, indicando que as igrejas poderiam permanecer abertas para quem quisesse fazer suas orações. Vários estados e municípios formalizaram ações desde a restrição do número de participantes até o fechamento dos templos e espaços de reuniões religiosas.
Alguns líderes religiosos de igrejas autônomas, de imediato, rejeitaram veementemente a indicação de suspensão de atividades coletivas. Como justificativa, alegaram a obrigação das igrejas reunirem os fiéis para prestar culto a Deus (que espera isto de seus servos e servas) somada à importância de se testemunhar a fé, afinal, afirmam, quem se apega a ela não deve ter medo de nada.
Dois religiosos se destacaram na rejeição à suspensão das atividades: o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, e o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Malafaia divulgou um vídeo nas mídias sociais, em 14 de março, afirmando que ninguém o impediria de manter os “seus cultos”. Em 15 de março, também por vídeo, Macedo afirmou que o coronavírus é uma invenção de Satanás e da mídia para induzir pessoas ao pânico e utilizou o depoimento de um patologista da Unifesp que desacreditava os alertas sobre a gravidade da pandemia.
A Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional divulgou nota, em 18 de março, defendendo a abertura de templos para os cultos. Os deputados argumentaram que precisam de orações para enfrentar a “pandemia maligna”.
Estes grupos receberam o apoio do presidente da República, Jair Bolsonaro, que, em entrevista a um programa de entretenimento no dia 19 de março, defendeu que as igrejas devessem funcionar, com pastores e padres decidindo o que fazer se os locais se tornassem muito cheios.
Com o agravamento da pandemia, o pastor Malafaia acabou cedendo às pressões sociais e suspendeu os cultos presenciais, passando a oferecê-los pela internet. O pastor também declarou em mídias sociais ter oferecido os espaços de sua igreja para as autoridades de saúde utilizarem no atendimento a pessoas contaminadas.
Já o bispo Edir Macedo apagou o vídeo que havia publicado nas mídias sociais, justificando, em nota, que o fez “assim que se constatou que o especialista da Unifesp havia excluído o depoimento que publicara no YouTube”.
Outras igrejas tiveram atitude marcadamente diferente tão logo foram divulgadas medidas de isolamento social e declararam apoio. As históricas, Católica Romana e evangélicas como a Presbiteriana do Brasil, a Presbiteriana Unida, a Convenção Batista Brasileira, a Aliança de Batistas do Brasil, a Metodista, a de Confissão Luterana do Brasil, a Episcopal Anglicana do Brasil, e igrejas pentecostais e outras autônomas como a Cristã Nova Vida, Renascer em Cristo, Batista da Lagoinha, Sara a Nossa Terra, Cristã Maranata, Evangelho Quadrangular, Assembleia de Deus Betesda, tiveram essa postura. Estas igrejas divulgaram notas de suspensão de suas atividades coletivas, com orientação aos fiéis para praticarem o isolamento social e participarem de atividades virtuais, de culto, oração e estudo.
Algumas destas igrejas ofereceram seus espaços para atuarem em parceria com o serviço público de saúde no atendimento a pessoas contaminadas, bem como na solidariedade a famílias que têm o seu sustento comprometido pelo isolamento social.
Em pronunciamento oficial, o presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) pastor luterano Inácio Lemke, pediu tranquilidade e incentivou que as pessoas fiquem em casa: “O momento pede calma e prudência. Precisamos ter responsabilidade com aquilo que falamos. Incentivar que um fiel vá à igreja, sabendo que isso expõe não apenas ele, mas toda a sua família, é extremamente irresponsável, além de representar um risco real para a saúde pública”.
Esta atitude de responsabilidade cristã tem sido seguida também por igrejas em outras partes do mundo. O secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) Rev. Dr Olav Fykse Tveit, e a moderadora Dra. Agnes Abuom, conclamaram pessoas e igrejas ao redor do mundo a darem máxima prioridade a “fazer o que puderem para proteger a vida”, pedindo às igrejas que não celebrem cultos abertos ao público, e que sigam estritamente as diretrizes das autoridades com base nas orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O CMI sugere às suas 350 igrejas-membro que reconsiderem seu modo de trabalhar. “Este é um momento para tocar o coração um do outro, pelo que dizemos, o que compartilhamos, o que fazemos – e o que não fazemos – para proteger a vida que Deus tanto ama. Nesse amor, devemos adaptar nossos modos de louvor e comunhão às necessidades deste período de pandemia”. Também convidou as igrejas a tornarem o domingo num dia de oração pelas pessoas mais vulneráveis, como refugiados, idosos e pessoas afetadas pela covid-19 e a orarem por toda a comunhão de igrejas e pela família humana em todo o mundo.
Vários espaços religiosos na internet recuperaram uma carta que o mais destacado inspirador da Reforma Protestante, Martinho Lutero, escreveu, em 1527, durante a epidemia da chamada “Peste Negra” que pôs fim a milhões de vidas na Europa (do livro Luther’s Works, Vol. 43, Fortress Press, 1968, p. 116). A carta foi dirigida ao pastor Johannes Hess, com uma série de orientações para que os protestantes seguissem as medidas de prevenção e cuidassem dos sofredores. Lutero, então, escreve:
“Pedirei a Deus para, misericordiosamente, proteger-nos. Então farei vapor, ajudarei a purificar o ar, a administrar remédios e a tomá-los. Evitarei lugares e pessoas onde minha presença não é necessária para não ficar contaminado e, assim, porventura infligir e poluir outros e, portanto, causar a morte como resultado da minha negligência.
Se Deus quiser me levar, ele certamente me levará e eu terei feito o que ele esperava de mim e, portanto, não sou responsável pela minha própria morte ou pela morte de outros. Se meu próximo precisar de mim, não evitarei o lugar ou a pessoa, mas irei livremente conforme declarado acima. Veja que essa é uma fé que teme a Deus, porque não é ousada nem insensata e não tenta a Deus.”
Fonte: Reproduzido de Coluna Diálogos da Fé, revista CartaCapital, 24/03/2020.
Fonte imagem: Culto no templo de salomão (foto tirada na inauguração do templo, em 30 de julho de 2014 / crédito: demétrio koch)