Templos, igrejas e protestos

Nesses dias, a imprensa ávida por qualquer notícia sensacionalista que legitime denúncias contra movimentos populares e partidos considerados de esquerda, se deleitou com imagens e narrativas do que chamaram de invasão de uma igreja em Curitiba. Autoridades eclesiásticas e civis protestaram contra o desrespeito ao lugar sagrado e o assunto está sendo debatido na própria câmara de vereadores da cidade. 

O debate se dá sobre o fato de os manifestantes terem entrado na igreja depois da missa e terem expressado dentro do templo a denúncia contra o assassinato truculento e cruel de Moïse, jovem congolês, barbaramente torturado e assassinado, em um quiosque na Barra da Tijuca, e também da morte de outro negro, baleado por vizinho policial, que o confundiu com um ladrão. Naquele final de semana, em diversas regiões do Brasil, ocorreram manifestações de protestos contra esses atos extremos de racismo contra negros. Em Curitiba, no centro histórico da cidade, o ato se reuniu em frente a uma Igreja, que foi historicamente de confraria negra. Depois do horário da missa, no final da tarde, os manifestantes entraram na Igreja e encerraram ali o seu protesto pacífico. 

Sobre o fato, podem se fazer várias considerações. Antes de tudo, em termos metodológicos e estratégicos, organizações populares e partidos progressistas tomaram posições críticas em relação ao ocorrido. De fato, o grupo que fazia a manifestação não sofreu nenhuma perseguição. Não fugia de nenhuma repressão e não precisava ter ocupado a igreja, sem permissão dos responsáveis pelo templo. 

Do ponto de vista institucional, todos sabem que a maioria dos eclesiásticos católicos concorda que igrejas sejam usadas para missas de posse de governadores ou prefeitos de direita. No entanto, considera desrespeito ao lugar sagrado qualquer manifestação de categorias populares que possa ser vista como de esquerda. 

Em Roma, o Papa Francisco pode considerar prioritário dialogar com movimentos populares e defender a vida de migrantes africanos, mas essa ainda não é a sensibilidade de muitos ministros e fiéis católicos no Brasil. As pastorais sociais da CNBB e muitos padres e agentes de pastoral participaram dos atos de protesto e de denúncia contra o racismo. Muitos religiosos gritaram com as organizações populares que “vidas negras importam”, mas para muitos cristãos, esse assunto parece não fazer ainda parte do anúncio da fé e da missão da Igreja.  

Na época da ditadura militar brasileira, em Recife, estudantes que protestavam contra a repressão ocuparam uma igreja no centro da cidade. Assim que soube, o próprio arcebispo Dom Helder Câmara foi para a igreja e se colocou lá ao lado dos estudantes até conseguir que eles pudessem sair do templo em segurança. O mesmo ocorreu em Salvador (BA) onde a igreja ocupada pelos rapazes e moças foi a basílica do Mosteiro de São Bento. O abade Dom Timóteo Anastácio não somente abriu as portas da igreja como declarou o Mosteiro como espaço de abrigo e santuário de proteção da juventude. Do mesmo modo, em São Bernardo do Campo (SP), em 1980, a Igreja Matriz foi abrigo para assembleias dos metalúrgicos em greve perseguidos pela ditadura. 

Atualmente, embora em outro contexto político, a sociedade tem direito de cobrar dos responsáveis das igrejas a coerência profética com o evangelho de libertação. Originalmente, o Cristianismo não tinha templos e sim igrejas. Enquanto os santuários se colocam como locais sagrados, igrejas significam espaços de assembleia. 

Quando o apóstolo Paulo chamou as comunidades sobre às quais escrevia como “igrejas”, estava afirmando que eram assembleias de pessoas não reconhecidas como cidadãs pelo império, mas que, nas comunidades cristãs, podiam se reunir e se manifestar como assembleias de cidadãos e cidadãs do reinado divino no mundo. Ainda hoje, quando manifestantes ocupam uma Igreja, de alguma forma, interpelam aos senhores do templo: Qual é o sentido e a missão da Igreja? 

Ao mesmo tempo que desejamos que os movimentos populares sempre se esmerem por respeitar educadamente a todos os ambientes e deem exemplo de diálogo com todas as pessoas com as quais se encontram, pedimos a Deus que os discípulos de Jesus aceitem retomar o caráter profético da fé cristã. 

Mesmo sabendo que a postura do arcebispo e da Arquidiocese de Curitiba tem sido, em geral, mais aberta e solidária, sonhamos com tempos nos quais padres e bispos não somente não se oponham, como fiquem felizes quando suas igrejas forem ocupadas pacificamente por grupos populares que defendem a justiça e a vida para todas as pessoas humanas e na comunhão com todos os seres vivos.

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Foto de capa: Fotografia Curitiba

Protesto em igreja de Curitiba é classificado em vídeo enganoso como crime religioso

* Matéria atualizada em 10/02/2022 às 11:54, 16:12 e 23:15; e em 18/02/2022 às 16:24

Bereia recebeu em seu número de WhatsApp solicitação de verificação de um vídeo que trata da manifestação ocorrida na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Curitiba, liderada pelo vereador Renato Freitas (PT-PR). No vídeo, o deputado estadual e membro da Igreja Cristã Maranata Capitão Assumção (Patriotas-ES), chama o parlamentar de “bandido”, afirmando que a manifestação foi uma “invasão” na qual “centenas de petistas e comunistas forçaram a entrada, durante a missa”. Algumas cenas dos manifestantes dentro da igreja são mostradas enquanto se ouve ao fundo Renato Freitas discursando.

Imagem: reprodução do aplicativo Kwai

Em seguida o deputado do Espírito Santo afirma que o ato deveria ser considerado “crime contra o sentimento religioso, artigo 208 do código penal”, que trataria sobre “escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença religiosa e impedir ou perturbar cerimônia; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto”. Finaliza dizendo que isso seria uma “amostra do que o candidato do PT vai fazer com nossos cultos no Brasil”, evocando uma suposta perseguição religiosa.

Esta não é a primeira vez que Capitão Assumção envolve-se em polêmica a partir de vídeos em mídias sociais. No ano passado a Justiça determinou que ele retirasse do ar um vídeo em que simulava uma entrevista com o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), cujas respostas foram inseridas fora de contexto via montagem, induzindo que houve corrupção na gestão da Secretaria de Saúde do estado. 

O que ocorreu

No dia 5 de fevereiro um protesto contra o assassinato do imigrante congolês Moïse Kagambe começou a ocorrer do lado de fora da igreja durante uma missa, na trilha de um grande número de manifestações que ocorreram em todo o Brasil e fora dele. O local foi escolhido, segundo o vereador Renato Freitas afirmou em seu perfil no Twitter, porque a igreja “foi construída em 1737, durante o regime de escravidão, por pessoas pretas e para pessoas pretas, a quem era negado o direito de entrar em outros lugares”. 

Neste link é possível assistir a gravação de toda a missa. Perto do final, o pároco Luiz Haas reclama do barulho de fora da igreja e diz não ser contra a realização de protestos, desde que não atrapalhem a celebração. Os manifestantes entram após a missa ter acabado e com os fieis já tendo saído, estando o templo vazio. Não houve interrupção da cerimônia religiosa.  O vereador discursa, os manifestantes gritam palavras de ordem e se retiram pacificamente. O padre permaneceu durante o tempo todo com o grupo e em entrevista afirmou que os manifestantes “não quebraram nada, não sujaram nada, que isso fique bem claro”.

Como repercutiu

O caso ganhou muita repercussão nas mídias sociais, com informações e posicionamentos tanto de pessoas comuns quanto de lideranças religiosas e políticas.

Em tuíte divulgado nesta terça-feira, 8 de fevereiro, a vereadora de São Paulo Sonaira Fernandes (Republicanos), ex-estagiária de Eduardo Bolsonaro na Polícia Federal, divulgou a apresentação de uma notícia-crime contra o vereador de Curitiba Renato Freitas (PT). Nas postagens que seguem a vereadora afirma que adotará as medidas jurídicas cabíveis e, caso necessário, sairá às ruas para combater o que ela chama de “hordas demoníacas”. Apesar de acusar Freitas de atuar, baseada em um fato fora da sua jurisdição, a vereadora de São Paulo age contra o vereador de Curitiba sob a justificativa de que a manifestação contra “uma igreja cristã deve ser entendido como um ataque à toda a Igreja de Cristo”. no esforço de universalizar o ato cometido no bairro de São Francisco.

Imagens: reprodução do Twitter

Também no Twitter, o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins associou a presença de uma bandeira do Partido Comunista Brasileiro (PCB) à perseguição religiosa aos cristãos, afirmando que “o ataque ao Cristianismo é regra e não exceção na conduta comunista”, afirmando ser uma “ideologia que assassinou” cristãos e que o faria até os dias atuais. 

Martins também retuitou uma postagem antiga do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), associando uma declaração de apoio ao vereador Renato Freitas, após uma abordagem policial abusiva à uma suposta aprovação ao ato liderado por Freitas dentro da Igreja do Rosário, dessa forma, retirando-a de contexto. O assessor, um dos poucos seguidores do ativista político, inspirador do bolsonarismo, recentemente falecido, Olavo de Carvalho, que restaram no governo Bolsonaro, está sendo investigado pela Polícia Federal no inquérito sobre as “milícias digitais”

Imagens: reprodução do Twitter

Uma postagem falsa de Twitter atribuída ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a defesa da manifestação também foi compartilhada nas redes. 

O ex-juiz e ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Sergio Moro, também repercutiu o ocorrido, afirmando que locais de culto “não podem ser utilizados para ofensas ou propaganda política”. Ontem, o pré-candidato à Presidência da República pelo Podemos divulgou uma “Carta de Princípios para os Cristãos”, buscando se aproximar deste segmento da população.

Imagem: reprodução do Twitter

O jornalista Alexandre Garcia chamou a manifestação de “profanação” e associou o ato aos protestos populares no Chile, em 2021, quando ocorreu o incêndio de um templo católico, insinuando tratar-se de novo caso perseguição religiosa (o que Bereia já verificou a divulgação do caso do Chile por certas lideranças como enganosa).

Imagem: reprodução do Twitter

Movimentos e personalidades de outros matizes políticos também se manifestaram a respeito. O grupo Cristãos Trabalhistas, ligado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), divulgou uma nota de repúdio aos “incidentes finais” do protesto, classificando a entrada na igreja como agressão à liberdade religiosa. O sacerdote do candomblé e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, Babalawo Ivanir dos Santos, manifestou votos de solidariedade ao padre e aos fiéis da igreja.

Imagem: reprodução do Facebook

Em nota, o diretório do PT no Paraná afirmou que “Em relação ao ato público que ocorreu em Curitiba, a Comissão Executiva Estadual do PT do Paraná lamenta o episódio e esclarece que não participou nem da organização nem da decisão de adentrar o templo religioso. Há, por parte da imprensa tendenciosa, a manipulação de fatos para prejudicar o Partido dos Trabalhadores, pois os vídeos evidenciam que no momento em que os manifestantes estiveram no interior da paróquia, a missa já havia terminado e o templo estava vazio.”

O Setorial Inter-religioso do PT soltou nota pública sobre o ocorrido afirmando que “Entendemos que a escolha da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, para manifestação foi justa e legítima, por ser esta igreja construída, no século XVII, como um lugar de veneração, de celebração da fé católica pelos escravizados que eram impedidos de frequentar outras Igrejas juntamente com os brancos.(…) Repudiamos aqueles, sobretudo a imprensa tendenciosa, que manipulam os fatos para prejudicar o Partido dos Trabalhadores e Trabalhadoras e ampliar o discurso do ódio e da intolerância. O PT é defensor histórico da liberdade religiosa, da liberdade de crenças e cultos, bem como respeita os templos, igrejas, terreiros, e demais espaços religiosos representativo do sagrado de todos os segmentos religiosos. Ressaltamos que estes espaços são invioláveis”.

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) também se manifestou por meio de nota de repúdio: “A ANAJURE repudia, ainda, a conduta do vereador Renato Freitas, que, no papel
de representante popular, deveria pautar suas ações com base nos ditames constitucionais,
mas assim não procedeu. (…) A conduta de Freitas não observa o compromisso assumido como um
representante do povo, no sentido de preservar a democracia e a harmonia no tecido social”.

O que diz o vereador

No Twitter o vereador Renato Freitas afirmou que “Vídeos sem contexto e informações falsas estão sendo divulgadas a respeito de ato contra o racismo, a xenofobia e pela valorização da vida, do qual participamos no sábado. A manifestação foi realizada em memória e por justiça para Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho, dois homens negros brutalmente assassinados nos últimos dias. Ressaltamos que não houve invasão à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, pois ela se encontrava aberta e a missa já havia terminado, como facilmente se constata nas imagens, já que o lugar estava vazio”.

ATUALIZAÇÃO: durante sessão da Câmara Municipal de Curitiba o vereador pediu desculpas aos que se sentiram ofendidos pelo protesto. ““Algumas pessoas se sentiram profundamente ofendidas [pela manifestação contra o racismo ter adentrado à igreja] e a elas eu peço perdão, pois não foi, de fato, a intenção de magoar ou ofender o credo de ninguém, até porque eu mesmo sou cristão”, disse Freitas.

O que diz a Igreja Católica

Em nota repercutida pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), a Arquidiocese de Curitiba repudiou a ação, declarada como “profanação injuriosa”. Segundo a nota, como a manifestação transcorria durante a missa os manifestantes foram solicitados a não tumultuarem a liturgia religiosa quando houve, conforme a Arquidiocese, “comportamentos invasivos, desrespeitosos e grotescos” e manifestações de agressividades e ofensas da parte dos manifestantes.

A igreja finaliza a nota afirmando que “não se quer “politizar”, “partidarizar” ou exacerbar as reações”, lembrando que esses tipos de confronto não são pacificadores. A declaração foi assinada pelo arcebispo Metropolitano de Curitiba D. José Antonio Peruzzo, que se envolveu em 2020 num embate com a CNBB, episódio em que o arcebispo saiu em defesa do padre Reginaldo Manzotti para obtenção de licença para operadoras de telecomunicações.

Avaliações

Em declaração ao Bereia, o padre Superior dos Padres Jesuítas em Curitiba (ordem à qual a Igreja do Rosário está ligada), afirmou:“Sobre o ocorrido, sabemos que foi um fato lamentável, mas estamos serenos. Não queremos endossar a espiral de raiva e, sim, promover a paz. Por orientação de Dom Peruzzo, rezaremos pela paz e reconciliação nas missas deste final de semana.”

O Coordenador Nacional do Setorial Inter-religioso do PT, Gutierres Barbosa, disse ao Bereia que “estão transformando um momento, politizando-o, para tentar dizer que o PT é um partido contra as religiões. Isso não procede. Tem um conjunto de fake news, uma série de tentativas de pegar um vídeo, ora balançando a câmera de um lado para outro, para dar a ideia de que há um tumulto. Contudo, quando assistimos outros vídeos de forma frontal, vemos que há um diálogo entre o padre e os manifestantes e não tinha missa. Então tem uma série de informações mentirosas sendo veiculadas. Estão tentando transformar o fato de que existia uma movimentação dentro da igreja, que também entendemos que deveria ser melhor conversada, para não ficar nenhuma dúvida sobre a legitimidade do movimento, que é em favor de duas pessoas negras que foram mortas, e não podemos esquecer isso como centralidade. Mas, ao mesmo tempo, respeitar os espaços de fé. Não queremos colocar lenha na fogueira, para colocar o vereador contra a igreja, a igreja contra o vereador, contra o PT, como é a tentativa de setores da mídia e da parte das fake news. É momento de cautela, queremos um ambiente de paz. Respeitamos muito a liberdade religiosa”.

Sobre o enquadramento penal do caso 

O professor do Ibmec-BH Alexandre Bahia, falou ao Bereia a respeito do enquadramento do protesto no artigo 208 do Código Penal, que trata de ofensa religiosa. “Em tese, numa análise muito superficial, seria possível enquadrar. O caso poderia estar em uma dessas duas possibilidades do artigo: impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso, ou vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Porém,tudo depende de como a coisa de fato aconteceu. Teria-se que provar se uma das duas coisas aconteceu e demonstrar o ‘dolo’ (intenção)”. 

No entanto, Bereia apurou que o próprio padre local não interpretou a atividade dessa forma, uma vez que o protesto ocorreu após a celebração religiosa, e pelo fato de ele  ter declarado que não houve qualquer prejuízo ao templo e seus pertences, e também não registrou queixa. 

O que Bereia avalia

Bereia conclui que o vídeo em que o deputado estadual Capitão Assumção relata os fatos ocorridos na igreja em Curitiba é enganoso. O vídeo se baseia em conteúdos de substância verdadeira, mas a apresentação interpretativa deles é desenvolvida para confundir. As imagens não correspondem ao que foi gravado na íntegra, disponível nas redes digitais. Além disso, o político oferece teores distorcidos que instigam julgamentos negativos de uma pessoa (o vereador Renato Freitas), de um grupo (o Partido dos Trabalhadores e outros de esquerda) e de movimentos sociais (o movimento negro), além de recorrer ao sensacionalismo, com terrorismo verbal, para conquistar audiência. Este material representa desinformação e necessita de correções, substância e contextualização. Bereia apurou que o protesto começou fora da igreja e, de fato, os manifestantes entraram no templo. Porém, a entrada dos manifestantes não foi forçada, e tampouco interrompeu celebração religiosa, como confirmado pelas imagens recuperadas em mídias digitais e pela declaração pública do próprio pároco local. 

Pela desproporção entre o ocorrido e a repercussão, com pesquisa sobre a interpretação e a condução política e midiática do caso, percebe-se que o episódio serviu de motivação para fortalecer a mentira que circula há alguns anos em ambientes religiosos sobre a existência de uma suposta perseguição a cristãos  no Brasil (“cristofobia’), que ganhou força na campanha eleitoral de 2020. 

Conforme avaliação da antropóloga, professora da UNICAMP Brenda Carranza, “numa primeira leitura, a opção simbólica [pelo local do protesto] foi uma evocação histórica acertada pelo peso político e religioso que possa ter. Porém, durante o protesto vieram à tona acusações à Igreja Católica sobre os resquícios de racismo religioso que a acompanham, revelando a longa convivência do cristianismo com a escravidão, uma das diversas dimensões que o termo encerra”.

“Tanto o aspecto simbólico quanto os conteúdos (racismo religioso, racismo estrutural, violência, perda de humanidade) do protesto são válidos e legítimos, mas, talvez a performance na ocupação da igreja não tenha tido o impacto desejado. Isso porque, protestos em espaços sagrados têm sua própria lógica e a eficácia política advêm do uso da linguagem religiosa (por exemplo vigílias frente à igreja, silêncios prolongados, velas e cruzes, procissões etc.)”, avalia a antropóloga.

Carranza ainda explica que “há um outro elemento interessante nessas reações contra o manifesto na Igreja de São Benedito: invocar a perseguição aos cristãos como objetivo do ato político. Em países como na Índia, Coreia do Norte, Afeganistão, Argélia, entre outros, onde os cristãos são minorias, frequentemente se verifica hostilidade e perseguição a eles”. 

A professora, porém afirma categoricamente: “Não é o caso do Brasil, que é histórica, demográfica e culturalmente cristão, contudo, há um imaginário de perseguição religiosa que as elites pastorais e influencers religiosos vem cultivando nos últimos anos sob o mote de “cristofobia”. Entretanto, as acusações de uma perseguição “cristofóbica”, na verdade, esconde a justificativa de uma ofensiva contra grupos considerados inimigos da religião cristã”.

Brenda Carranza analisa com detalhes este caso, em artigo exclusivo para o Bereia. Sobre as mentiras em torno da “cristofobia”, a antropóloga que estuda o tema das religiões, já havia produzido artigo, também para o Bereia, que pode ser acessado aqui.

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Foto de capa: reprodução Instagram

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Referências:

Portal GGN. https://www.portalgn1.com.br/sancionada-lei-do-deputado-capitao-assumcao-que-torna-a-igreja-crista-maranata-patrimonio-historico-do-espirito-santo/  [Acesso 10 Fev 2022]

G1. https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2021/07/07/justica-determina-que-deputado-apague-video-que-simula-entrevista-com-governador-do-es.ghtml   [Acesso 9 Fev 2022]

BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60224204  [Acesso 9 Fev 2022] 

Twitter. https://twitter.com/Renatoafjr/status/1490812142454550529?s=20&t=BptXFu753bUT3hymAp29bQ  [Acesso 10 Fev 2022]

YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=p3PYwJXZ4Rg  [Acesso 9 Fev 2022]

Meio Dia Paraná. https://globoplay.globo.com/v/10281342/  [Acesso 9 Fev 2022]

Câmara Municipal de São Paulo. https://www.saopaulo.sp.leg.br/vereador/sonaira-fernandes/  [Acesso 9 Fev 2022]

Twitter. https://twitter.com/Sonaira_sp/status/1491029556089991174?t=A_oFyP2UHhHVV9zBUpk3MA&s=08  [Acesso 9 Fev 2022]

Plural Curitiba. https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/lula-condena-truculencia-policial-contra-renato-freitas-veja-outras-reacoes/  [Acesso 9 Fev 2022]

Metrópoles. https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/olavista-filipe-martins-depoe-a-pf-no-inquerito-das-milicias-digitais  [Acesso 9 Fev 2022]

Revista Fórum. https://revistaforum.com.br/redes-sociais/twitter-falso-de-lula-ataca-igrejas-e-defende-acao-de-vereador-renato-freitas/  [Acesso 9 Fev 2022]

O Globo. https://oglobo.globo.com/politica/em-carta-aos-cristaos-moro-defende-imunidade-tributaria-de-igrejas-se-posiciona-contra-aborto-25384343  [Acesso 9 Fev 2022]

Bereia. https://coletivobereia.com.br/incendio-de-igrejas-no-chile-nao-e-caso-de-perseguicao-a-cristaos/  [Acesso 9 Fev 2022]

Twitter. https://twitter.com/cristaostrabpdt/status/1490773409768394759/photo/2  [Acesso 9 Fev 2022]

Site do Partido dos Trabalhadores no Paraná. http://www.pt-pr.org.br/Noticia/65031/nota-do-pt-pr-respeito-pelas-instituicoes-religiosas-e-justica-pela-barbarie-contra-o-povo-negro  [Acesso 9 Fev 2022]

Nota pública do Setor Inter-religioso do Partido dos Trabalhadores. file:///C:/Users/lessa/Documents/Freela/Bereia/Checagens/09%20fev%20-%20Renato%20Freitas/Nota%20P%C3%BAblica%20do%20Setorial%20Interreligioso.pdf [Acesso 18 Fev 2022]

Nota de repúdio da Associação Nacional de Juristas Evangélicos. https://anajure.org.br/wp-content/uploads/2022/02/07-02-2022-anajure-nota-invasao-igreja-curitiba.pdf [Acesso 18 Fev 2022]

Câmara Municipal de Curitiba. https://www.curitiba.pr.leg.br/informacao/noticias/201cnao-foi-intencao-ofender-o-credo-de-ninguem201d-diz-freitas-sobre-manifestacao [Acesso 10 Fev 2022]

Instagram. https://www.instagram.com/p/CZry1xRJoUH/  [Acesso 9 Fev 2022]

O Estado de São Paulo. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,arcebispo-de-curitiba-contraria-cnbb-e-defende-padre-que-ofereceu-midia-positiva-a-bolsonaro,70003332069  [Acesso 9 Fev 2022]

JusBrasil.https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10612290/artigo-208-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940  [Acesso 9 Fev 2022]

A indignação de São Benedito no trágico fim de Moïse Kagambe

As informações disponíveis na mídia e redes sociais sobre o protesto contra o assassinato do refugiado político congolês de Moïse Kagambe, num quiosque da Barra da Tijuca/RJ, em 24 de janeiro de 2022, tiveram uma dupla conotação. De um lado, visibilizar a indignação que o ato brutal contra o trabalhador informal, que ironicamente procurou segurança no Brasil ao fugir da guerra em seu país, e a necessidade de manifestar o grau de barbárie que se instalou como uma forma de solução de conflitos. De outro lado, marcar o posicionamento político dos presentes no ato – organizado pelo vereador da Câmara de Curitiba/PR Renato Freitas (PT), em 5 de fevereiro e 2022 –, denunciando o racismo e violência estrutural entranhadas na sociedade brasileira, bem como a urgente necessidade de sua superação. Porém, o ato que tinha forte potencial de indignação acabou sendo confusão. 

Segundo declarações do próprio organizador, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, erguida por escravos em 1737, foi escolhida por ser considera símbolo de resistência contra a escravidão em solo brasileiro. Numa primeira leitura, a opção simbólica foi uma evocação histórica acertada pelo peso político e religioso que possa ter. Porém, durante o protesto vieram à tona acusações à Igreja Católica sobre os resquícios de racismo religioso que a acompanham, revelando a longa convivência do cristianismo com a escravidão, uma das diversas dimensões que o termo encerra. Tanto o aspecto simbólico quanto os conteúdos (racismo religioso, racismo estrutural, violência, perda de humanidade) do protesto são válidos e legítimos, mas, talvez a performance na ocupação da igreja não tenha tido o impacto desejado. Isso porque, protestos em espaços sagrados têm sua própria lógica e a eficácia política advêm do uso da linguagem religiosa (por exemplo vigílias frente à igreja, silêncios prolongados, velas e cruzes, procissões etc.). 

Além disso, forma parte do impacto desses atos as articulações com os grupos religiosos, como por exemplo, neste caso, a pastoral do imigrante, pastoral do negro, pastorais sociais. Tudo isso, contribui para angariar adesão à “causa”, legitimidade no uso do espaço e reverbera entre os fiéis e a sociedade a performance que tem como palco o espaço sagrado. Constata-se no protesto liderado pelo vereador um duplo barulho: uma contradição entre os conteúdos da denúncia do racismo religioso e a escolha assertiva da igreja como palco performático. Essa colisão neutralizou o objetivo principal do ato e o protesto rumou por caminhos contrários e indesejados, até para os organizadores. Todavia, estão por vir as consequências e o seu desfecho, possivelmente com repercussões jurídicas, administrativas e processuais para seus envolvidos.

Sem dúvida que, uma das reações institucionais é a de preservação patrimonial,  zelo pelo uso do espaço sagrado, o que é válido e legítimo. Muitas vezes a defesa desse espaço (territorial e simbólico) obriga seus guardiões (sacerdotes e bispos) a invocar o direito à defesa da liberdade religiosa e reagir perante possíveis ameaças de profanação, depredação. Mesmo assim, seguramente, que tanto o pároco quanto a Arquidiocese concordam que o assassinato de Moïse Kagambe foi um ato de barbárie e uma afronta à convivência entre seres humanos. Certamente a adesão a toda manifestação de indignação é endossada pela Igreja Católica, pois isso a faz coerente com a ética cristã que prega, e, ao mesmo tempo alinha-se com o Papa Francisco que não cansa de denunciar os atos de xenofobia e de racismo que sofrem os refugiados nos diversos países, o que não exclui o Brasil da listagem. 

Fora das repercussões no âmbito eclesiástico e judiciário, o ato de protesto traz uma revelação que nos lembra cenários anteriores acerca do clima pré-eleitoral. O crescente ambiente de polarização social, propiciando enfrentamentos nas esferas públicas, religiosas e familiares vem em crescendo desde 2014, elevando a temperatura em 2018. Este ano parece não se vislumbrar diferente. A produção de desinformação, conteúdos falsos, incentivo ao ódio, deslegitimarão das instituições democráticas, descrédito dos mecanismos democráticos tem sido a tônica que pauta a pandemia e o clima da contenda no acesso ao Planalto. Evidentemente que, o ganho político que o protesto possa gerar dependerá do contexto eleitoral, ora pode ser objeto de inúmeras distorções que mirem o público religioso, nutrindo imaginários de ameaça e agressão religiosa, ora pode ser apenas um incidente episódico que cai no esquecimento. 

No entanto, o interessante é observar como o fato provocou certas reações e posicionamentos das pessoas nas mídias sociais. Muitas ficaram indignadas diante do que se denominou como “invasão” e cujos argumentos trazem à tona o pensamento ultraconservador, político e religioso, que percorre suas reações. Assim, percebe-se como é gerado, imediatamente, um posicionamento de um nós contra eles, sejam eles do Partido dos Trabalhadores ou de outras alas da Esquerda. As acusações perpetuam clichês que desqualificam seus militantes como sendo baderneiros, desordeiros, arruaceiros etc. Até aqui nenhuma novidade, pois são termos já presentes nos idos anos de 1989, no primeiro pleito eleitoral pós-ditadura militar. O novo, onde emerge um alerta, é quando se passa de um posicionamento antagônico, próprio da arena política, para uma identificação do outro como inimigo, seja indivíduo seja coletivo, com uma motivação inerente à linguagem bélica. No campo religioso esse inimigo assume conotação teológica, sendo demonizado. Tal passagem, política e religiosa, se torna perigosa porque situações de violência estrutural, como a que vivemos, o inimigo deve ser eliminado de qualquer forma e a qualquer custo. Assim,  um pensamento polarizado leva identificar e classificar os outros sob o prisma da ameaça o que muitas vezes se concretiza em agressão (física, verbal, simbólica, moral) como forma ofensiva de defesa, muitas vezes justificada religiosamente. 

Há um outro elemento interessante nessas reações contra o manifesto na Igreja de São Benedito: invocar a perseguição aos cristãos como objetivo do ato político. Em países como na Índia, Coreia do Norte, Afeganistão, Argélia, entre outros, onde os cristãos são minorias, frequentemente se verifica hostilidade e perseguição a eles. Não é o caso do Brasil, que é histórica, demográfica e culturalmente cristão, contudo, há um imaginário de perseguição religiosa que as elites pastorais e influencers religiosos vem cultivando nos últimos anos sob o mote de cristofobia. Entretanto, as acusações de uma perseguição cristofóbica, na verdade, esconde a justificativa de uma ofensiva contra grupos considerados inimigos da religião cristã. De acordo com essa lógica cristofóbica existem grupos que conspiram contra o cristianismo e impedem os fiéis o direito de exercer sua liberdade religiosa e/ou a possibilidade de impor a moralidade cristã como moralidade pública a ser assumida na sociedade brasileira, independente de serem todos seus membros religiosos de outros credos ou de não ter religião. Evidentemente que, há um elemento comum na desqualificação da esquerda política e na cristofobia: a manifestação de uma alteridade tida como inimiga. De tal forma que, identificar o antagônico e/ou o diferente (religioso ou não) como inimigo que deve ser eliminado, promover ódio entre pessoas e grupos diferentes, resolver de forma violenta atritos e problemas comuns, valorizar a linguagem violenta, machista e homofóbica são alguns dos traços ideológicos caracterizam grupos de ultradireita, cada vez mais atuantes internacionalmente. Desgraçadamente, esses traços devem nos acompanhar na atual conjuntura sociopolítica-eleitoral.

Enfim, se é verdade que o ato de protesto diante do trágico fim do asilado Moïse Kagambe descortinou finas nuances políticas, religiosas e ideológicas, também é certo que a evocação simbólica de São Benedito pode inspirar o fortalecimento da indignação: mecanismo eficaz contra a naturalização da violência que como suave torpor adormece consciências.

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Foto de capa: reprodução do Facebook