Por Delana Corazza, Angelica Tostes e Marco Fernandes¹
Conteúdo originalmente publicado no site www.thetricontinental.org
Nos últimos meses, temos presenciado o desespero de diversos pastores midiáticos insistindo na reabertura das Igrejas, fechadas por conta da pandemia da Covid-19. E também uma aproximação, cada vez mais estreita, desse grupo com o governo federal – que frente à crise política que se encontra, aposta em sua base evangélica como uma das estratégias para se manter no poder. O iminente golpe financeiro nas igrejas, resultado da não arrecadação presencial dos dízimos, pode ser a razão desse desespero das portas fechadas. No entanto, a questão econômica como parte em destaque nas disputas políticas não é o único problema enfrentado pelos pastores midiáticos que hegemonizaram a visão de quem seriam os evangélicos nesse país. É importante aprofundarmos o problema para compreender que o risco ultrapassa os dízimos perdidos nos cultos não presenciais.
Para o Pastor Ricardo Gondim, da Igreja Betesda de São Paulo, muitos destes pastores têm sua teologia edificada no fundamentalismo, que enxerga na Bíblia uma verdade absoluta, fetichizada, não crítica e não contextualizada: “usa-se os versículos sem contexto para justificar qualquer pauta moral que se julgue necessária. Insistir no discurso é necessário para esses pastores porque se não insistirem, vão ter que assumir que o que sempre pregaram estava errado”, afirma o pastor. Falaremos mais adiante sobre as contradições entre as falas fundamentalistas dos pastores – que tem apostado na fé como principal forma de cura e prevenção – e a realidade em tempos de Covid-19.
Do outro lado estão os evangélicos frequentadores das igrejinhas neopentecostais que vão se multiplicando como o milagre dos pães nas periferias das cidades e nos cantos deste país. Periferias e cantos esquecidos pelo Estado, abandonados à própria sorte, onde, apesar das inúmeras tentativas de imersão dos diversos setores do campo popular, ainda não foi possível consolidar um trabalho de base e uma organização que desse conta dos anseios e necessidades de nossa classe. Não é mais tão novo no nosso campo falarmos da importância que as igrejas têm cumprido nos territórios periféricos; são elas que constroem cotidianamente uma visão de mundo para a classe trabalhadora. Essa visão vai para além das interpretações bíblicas, se constrói com uma metodologia que nos últimos 30 anos têm ganhado corações e mentes de parte significativa da classe trabalhadora, dando respostas concretas, subjetivas e objetivas para nosso povo.
nesses espaços o povo encontra respostas que, no fundo, não dizem respeito somente à Deus ou à Palavra, mas também às demandas demasiadamente humanas, concretas, essenciais, como o desejo de fazer parte de grupos ou coletivos que nos acolham (sentimento de pertencimento), de ter acesso a bens simbólicos, ao belo e ao lazer (rituais festivos e catárticos), a esperança de melhorias materiais e financeiras, bem como a urgência em obter tratamentos para o corpo e a alma (curas “milagrosas”), demandas que nos são cada dia mais negadas pelo capitalismo periférico contemporâneo e por um sistema de saúde falido. Sem o atendimento a tais demandas, sentimo-nos frágeis e desesperados, entregues a uma vida despedaçada. (…)
FERNANDES, 106
É na Igreja também que os jovens têm a possibilidade de aprender a tocar um instrumento musical e vivenciar um espaço de sociabilidade no inacabável tempo de ociosidade que o desemprego proporciona para grande parte desse segmento da sociedade. As histórias de superação testemunhadas diariamente nas igrejas dão forças para que outros fiéis possam mudar a própria vida, já que enxergam no pastor e nos irmãos e irmãs de fé alguém como eles próprios. É nessas igrejas que a classe trabalhadora empobrecida tem alguma chance de elaborar o trauma da humilhação dos patrões, da mídia e do Estado e, quem sabe, recuperar algo da dignidade que lhe é roubada numa sociedade marcada por quase quatro séculos de escravidão, agravados pela precarização da vida em tempos neoliberais.
A mulher negra e pobre que passou o dia lavando o banheiro do seu patrão, e gastou horas intermináveis nos precários meios de transportes públicos, pode cantar e encantar a sua comunidade levando “a palavra” por meio de uma música, deixando ali de ser invisível². “Durante a semana, elas (as mulheres trabalhadoras frequentadoras das igrejas) não têm um emprego executivo, a mulher é empregada doméstica, mas no domingo ela se arruma, porque o melhor lugar que ela vai durante a semana é a igreja (…) é um espaço de solidariedade, mas também de ascensão social”, completa o pesquisador e frequentador da Igreja Betesda, Gedeon Alencar.
Em tempos de pandemia em que a crise sanitária e econômica acertam bem no meio do peito a vida dos trabalhadores periféricos, as igrejas cumprem o papel de preencher esse vazio nos corações e mentes das pessoas. “Sinto depressão, a igreja é o alimento da alma”, nos conta Cleonice Vitor, trabalhadora doméstica e moradora do bairro Peri Alto, periferia da Zona Norte da cidade de São Paulo, onde os casos de morte por coronavírus aumentam assustadoramente. Simone Stoco, dona de casa, moradora do mesmo bairro, vive a angústia de ficar em casa: “para nós foi um choque porque antes a gente vivia dentro de casa, não tinha contato com muitas pessoas, então conforme a gente foi para a igreja a gente começou a se relacionar bastante, ter muitas amizades, nós temos muitas amizades na igreja, minha casa estava sempre cheia, é muito estranho não encontrar, não poder abraçar, a gente saía com eles (membros da igreja), o isolamento para nós foi um choque”.
O culto online foi a resposta possível que as igrejas evangélicas construíram para manter a relação entre pastores e comunidade, mas é possível perceber que a necessidade da igreja para os trabalhadores periféricos vai além das palavras pregadas no culto. Para boa parte destes trabalhadores, os cultos online aparecem como uma tentativa de continuidade de um trabalho consolidado das igrejas, mas que na realidade não é tão efetivo, pois não dá conta de abarcar as demandas subjetivas da classe empobrecida. Enquanto a classe média tem a opção de elaborar seu sofrimento por meio de inúmeras terapias disponíveis, para a classe trabalhadora, esse é mais um alimento que irá faltar na mesa.
Culto online: alternativas teotecnológicas de espiritualidade
Com as novas demandas de um mundo vivenciando o CoronaChoque³, as igrejas também estão em processos de adaptação. O culto online é uma tentativa de resposta, já conhecida de grandes igrejas, para a espiritualidade em tempos de pandemia. Em um levantamento de dados realizado pelo pesquisador Livan Chiroma (UNICAMP), entre janeiro e abril de 2020, no mês de março a busca pelo termo “culto online” aumentou 10.000% no buscador Google. Um aumento exponencial que reflete a busca de respostas da fé para o enfrentamento do vírus. E isso significou uma mudança no cotidiano de muitas igrejas e fiéis que tiveram que se adaptar a essa nova forma de culto e ação pastoral.
A pastora batista Odja Barros conta como foi a experiência desse novo formato na Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió (AL). “A primeira vez fizemos uma live de uma das salas da igreja, somente eu, Wellington e mais três pessoas do louvor. E foi bastante estranha para nós, eu me senti perdida porque foi a primeira experiência que a gente tinha feito. Nossos cultos são gravados normalmente e depois editados a partir da mensagem e colocado no blog da igreja, mas nunca tínhamos feito lives de culto. Ninguém sabia direito como fazer, foi bem tenso, bem diferente a experiência. Eu que preguei e foi a primeira vez que tive que fazer um sermão para um público que não existia na minha frente, sem as respostas dos olhares, da presença da comunidade. Foi um aprendizado.”
O desafio que a pandemia impôs às igrejas evangélicas fez com que pastores e pastoras rompessem algumas barreiras pessoais. O pastor Rosivaldo da Catedral da Adoração – Igreja com Propósito, de Goiás (GO), não gosta de redes sociais, mas a demanda do momento o fez iniciar os trabalhos com as transmissões ao vivo: “Por um lado, nós tivemos que nos revelar. Isso trouxe para mim pessoalmente, e outros pastores do ministério, um desconforto. […] Aqui desde o começo da quarentena fizemos lives. É uma forma de você manter a igreja integrada e alimentar as pessoas com as pregações, cultos, hinos.”
Claudio Ferreira de França, da Igreja Visão Plena, aponta o constrangimento em relação ao dízimo: “No começo deu certo receio, um certo constrangimento na verdade […] para a gente era meio constrangedor: na nossa igreja, nós ficamos aqui, não está tendo culto presencial, mas as contas precisam ser pagas, aí você pede ou não pede a oferta? Nós precisamos quebrar essa barreira”. Um outro desconforto ocorreu com o Pastor Felipe dos Anjos, da Igreja Batista da Água Branca, na Zona Oeste de São Paulo. “Fazer o louvor entre cadeiras vazias foi assustador! Louvor com o templo vazio é quase uma impossibilidade da experiência, ela retarda em acontecer porque falta o outro. Fica um mal-estar, mesmo que o desejo seja em servir os outros.”
Além da estranheza da ausência dos fiéis, a pastora Odja compartilha os percalços com as plataformas e maneiras de realizar o culto online. Após a primeira experiência, a igreja não fez mais cultos dentro do templo, mas cada um em sua casa explorando outras tecnologias. “Fomos nos tateando e sofrendo com isso. Foi a assessoria da igreja e da juventude que foi descobrindo por onde a gente devia ir”, relata Odja. Além dos processos de adaptação há um novo mercado em ascensão que tem lucrado nesse período: plataformas de reuniões online. Os serviços gratuitos para encontros onlines tem suas limitações, seja de ferramentas ou tempo disponível, por isso é necessário fazer as assinaturas desses serviços para obter uma melhor transmissão. Odja Barros nos conta que “foi preciso um investimento em tecnologia que a gente não tinha. Por exemplo, tivemos que comprar uma assinatura de um programa que possibilitasse as entradas do pessoal de onde estiver participando ao vivo.”
O pastor metodista André Guimarães, que pastoreia uma pequena comunidade em Engelho Velho da Federação, em Salvador (BA) – uma igreja em meio a um território de disputa de facções -, compartilha a experiência inicial do culto online. “Antes eu estava gravando áudios pelo Whatsapp. Fazia um culto sozinho. Algo como meio rádio, entendendo que o povo tem dificuldade com Facebook e Instagram. Mas uma irmã veio com a assinatura do Zoom e colocou à disposição da igreja. E viabilizou a participação dos membros nos momentos de louvor, intercessão…”. A plataforma Zoom possibilita conferências remotas com múltiplos participantes, o serviço gratuito é limitado a 40 minutos por sessão e restringe outras ferramentas. A assinatura é um investimento para que os usuários consigam utilizar em sua plenitude o que o aplicativo oferece.
As igrejas que não possuem acesso às plataformas similares de interação, seja pelo tamanho da igreja ou por condições financeiras, acabam limitando ainda mais a experiência do culto. Para Ronaldo Oliveira, membro da Assembleia de Deus Ministério Madureira e policial militar, “o culto online não tem a mesma dimensão do estar presente, por mais que ele alcance mais pessoas”. Para muitas igrejas evangélicas o ato do culto é muito mais do que apenas ouvir o sermão, mas sim todas as trocas simbólicas que a experiência cúltica proporciona. Para o pastor pentecostal Francisco Veras, da Igreja Torre Forte, na Zona Leste de São Paulo, o “culto não é uma palestra ou reunião, é necessário a participação da comunidade”. Porém, a igreja tem transmitido seus cultos pelo Facebook, o que tem limitado essa experiência, assim como transmitir as letras dos hinos e louvores para sua comunidade, que expressou ser uma dificuldade no período do louvor e adoração. Nas palavras de Gedeon Alencar, o culto online “vira quase um espetáculo que você está assistindo, uma pessoa falando, uma pessoa cantando, são pessoas que você conhece, mas fica distante…”. O pastor André Guimarães relata as diferenças após a utilização da plataforma Zoom: “Por que a gente aderiu ao Zoom e não ao Facebook ou Instagram? Porque a live acaba restringindo a participação e fica apenas os que estão na transmissão, ou os que comentam. No zoom, há interação. Pessoas podem interceder, orar, é mais participativo. Zoom dá um ambiente de reunião.”
Mesmo com esses limites, pastores e fiéis têm compreendido a necessidade de continuar o culto online no pós-pandemia. A pastora Odja relata que o retorno de sua comunidade em Maceió tem sido positivo e os fiéis têm partilhado suas experiências: “Escutar algumas experiências está mostrando que é possível romper a barreira do espaço, e sentir toque da presença do Espírito, mesmo online. Não é possível reproduzir a celebração presencial, mas é possível viver um tipo de sensação cúltica de espírito comunitário, dessa maneira.”. O pastor Silvio dos Anjos, da Igreja Sara Nossa Terra é enfático: “esse culto online não vai mais poder parar de acontecer.” Embora as experiências sociais online não sejam comparadas a experiências presenciais, muitos tem gostado da praticidade do encontro virtual. Além de cultos online, as igrejas têm realizado outras programações do cotidiano da igreja de maneira virtual, como os estudos bíblicos à distância. Na Igreja Batista do Pinheiro a resposta tem sido positiva. “Tem gente pedindo que quando tudo normalizar continue fazendo online porque não consegue ir aos estudos bíblicos no domingo”, relata a pastora Odja Barros.
As igrejas têm outra tarefa além da transmissão online, o acompanhamento de participação dos membros em seus cultos. O que em grandes igrejas representa algo que foge do controle, mas em pequenas e médias igrejas é possível notar a participação de membros de outras congregações. O jovem militante Jackson Augusto disse que está vendo cultos de outras igrejas, assim como o pastor André Guimarães notou novos visitantes em sua pequena comunidade em Salvador. Pastora Odja Barros salientou que membros de igrejas mais conservadoras tem visto os cultos e reuniões das igrejas, coisa que não acontecia no presencial por conta do envolvimento da Igreja Batista do Pinheiro com causas sociais e de direitos humanos. O pastor Fellipe dos Anjos constatou que “nas primeiras celebrações, quase quintuplicou. A média de acompanhamento ao vivo da IBAB era 3 mil, porém, em um domingo chegou a 30 mil. Uma celebração de sábado 8 mil. Agora chegamos a um platô porque agora você tem muitas opções de ao vivo, lives, cultos, pequenas e médias igrejas”.
A realização da Santa Ceia, a partilha do pão e vinho como forma de comunhão da igreja como Corpo de Cristo, tem sido uma questão emblemática a muitas igrejas. A pesquisadora Magali Cunha pontua que atualmente “as mídias são como mediadoras do sacramento. Coisas que eram barreiras, agora se liberam”. O pastor André Guimarães acompanhou algumas dessas discussões em grupos no Facebook, que alguns pastores/as colocavam como uma heresia a ceia nos lares. “Eu não preciso estar, literalmente, de corpo presente para estar em comunhão contigo, ou para reunir em nome de alguém. Não há nada que impeça a gente de celebrar e interceder pelos outros, e sermos comunidade fora do templo. Não há nenhum problema. Agora é necessário superar os sectarismos! Superar as ideias que foram impostas de uma lógica de templo, e não comunitária”, diz o pastor.
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¹ Nos meses de abril e maio realizamos 21 entrevistas com membros das igrejas evangélicas, frequentadores e pesquisadores do tema. As entrevistas foram realizadas por telefone e vídeo e duraram em média 30 minutos. O assunto inicial era sobre as mudanças da vivência da espiritualidade dos evangélicos por conta dos fechamentos das igrejas e da possibilidade de assistirem aos cultos virtualmente. As conversas ultrapassaram o tema proposto inicialmente e se tornaram material precioso para nossa pesquisa. Este texto, portanto, busca trazer as reflexões dessas conversas e apontar as novas possibilidades de contra-narrativas nas brechas do fundamentalismo religioso e os avanços da luta nos espaços progressistas liderados por evangélicos. Os autores são pesquisadores do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
² A reflexão sobre o papel psicossocial das igrejas evangélicas neste parágrafo e que permeiam esse texto tem como fonte o artigo “Psicoterapia Popular do Espírito Santo: hipóteses sobre o sucesso pentecostal na periferia de metrópolis periféricas”, de Marco Fernandes, publicado originalmente na revista Margem Esquerda n° 29 (2017), da Boitempo Editorial.
³ CoronaChoque é um termo que se refere à forma como o vírus atingiu o mundo com uma força avassaladora e como a ordem social do Estado burguês desmoronou diante dele, enquanto a ordem socialista pareceu mais resiliente.
Foto de Capa: Pixabay/Reprodução