Uma eleição sem evangélicos

Publicado originalmente na Carta Capital

Em 1998 Sergio Arau dirigiu o brilhante curta-metragem “Um dia sem mexicanos”. Alguns anos depois, em 2004, o curta se tornou um filme não tão bom, mas que popularizou a ideia que o roteiro da atriz Yareli Arizmendi desenvolveu e que é inusitada: na Califórnia, em uma manhã aparentemente normal não havia mais mexicanos nos EUA. Eles haviam sumido. O que seria da Califórnia, Estado em que 30% da população é mexicana, sem a presença desses responsáveis principalmente pelos serviços e outros trabalhos fundamentais para que as coisas funcionem? 

Pensar numa situação inusitada como essas pode dar a oportunidade para importantes reflexões e a impressão que tenho é de que suprimir um segmento similar da população, no caso brasileiro os 30% de evangélicos que aqui residem, seria o desejo de alguns, especialmente no dia 2 de outubro. Ter esse dia sem evangélicos parece ser o necessário para aqueles que não querem a reeleição e que esperam ver a alternância de poder na Presidência.

Se sem mexicanos a Califórnia pararia, as pesquisas parecem indicar que sem evangélicos seria certa a eleição de Lula no primeiro turno. São 150 milhões de eleitores habilitados a votar, se tirarmos os 30% de evangélicos, pelos dados do agregador do Estadão, teríamos Lula com cerca de 60% dos votos válidos. Uma vitória no primeiro turno estaria garantida.

Alguns, erradamente, teimam em atribuir uma pretensa culpa pela vitória de Bolsonaro em 2018 a este segmento. Naquela época escrevi um artigo em que busquei demonstrar que obviamente houve um importante papel do grupo na vitória, porém foi mais um dos vários componentes mobilizados pela campanha que redundou na vitória do candidato nas urnas (eletrônicas). Também cabe lembrar que ninguém é só evangélico, as pessoas são múltiplas e vários elementos contribuem para a nossa identidade e tomada de decisão.

Os evangélicos são o grupo religioso que mais considera a opinião de seus líderes na hora de decidir o seu voto, pesquisas indicam que cerca de 1/3 leva a opinião do líder em consideração. Os evangélicos também possuem impressionantes capilaridade social e organicidade, promovendo regularmente reuniões, sendo mais rápida e efetiva a comunicação voltada para esse grande contingente da população. 

No mundo digital também se destacam, 92% destes afirmaram possuir grupos de WhatsApp ligados à sua igreja ou religião. E possuem vários grupos, como demonstrou a pesquisa “Caminhos da Desinformação”. Entre católicos esse percentual foi de 70% e em outras religiões abaixo dos 50%. Essa profusão de grupos são um caminho aberto para a circulação de informação, propaganda eleitoral e, não podemos esquecer, desinformação.

Um outro elemento importante é uma significativa presença de confiança interpessoal entre evangélicos, dessa forma a tomada de decisão relacionada a “em quem votar”, se reveste de uma grande oportunidade para diálogos e trocas que consideram o compartilhamento de uma percepção de projeto que tem na igreja e nos irmãos e irmãs um importante elemento. 

Ter o voto desses fiéis exige investimento de recursos e de tempo dos candidatos, salientando que por haver uma maior importância das lideranças se estabelece um outro patamar de complexidade. Em um artigo publicado em 1996 explorei isso a partir da antropologia política evocando a importância da brokerage e de como a Igreja Universal inovava em um modelo de clientelismo em que a própria igreja desempenhava um papel de intermediária na relação entre eleitor e candidato.

Porém é importante frisar de que penso estarmos longe disso ter um sentido determinístico ou de alimentar teses sobre alienação e dominação. Podemos estar diante, em alguns casos, de situações que têm sido chamadas de “voto de cajado”, em uma atualização do “voto de cabresto” tão bem retratado na literatura sociológica por Victor Nunes Leal. Se isso é fato, por outro lado, também estamos diante do reconhecimento da presença e relevância social de um setor da população que há pouco tempo recebia em muitos casos olhares de desprezo por sua menor escolaridade, origem humilde e posição subalterna. As formas de alcançar esse público estão por ser descobertas e exigem atenção.

Parece que alguma coisa mudou por aqui e, talvez, da mesma forma que ao final do filme os moradores da Califórnia chegaram à conclusão de que não podiam viver sem os mexicanos, pode ser que nessas eleições de 2022 finalmente os partidos estejam devidamente conscientes de que precisam fazer campanha e dialogar com os/as evangélicos/as e suas lideranças de uma forma atenta e estruturada.

Já que não é possível uma eleição sem evangélicos, a disputa passa por garantir o aumento de votos neste segmento, isso parece ser um foco por parte das duas candidaturas à frente nas pesquisas. Isso se torna especialmente central para Bolsonaro, pois todas as suas tentativas de obter mais votos fracassaram em meio aos auxílios e à PEC Kamikaze. Parece que nessa reta final só lhe resta aumentar seus votos junto a este público que lhe deu ampla vantagem em 2018 e que tem dado sinais de uma certa manutenção da fidelidade. A candidatura do atual presidente sabe que precisa ampliar sua presença no segmento e que somente com ela será possível enfrentar Lula em um segundo turno.

Já para Lula a questão é a mesma, só que com o polo invertido. Isso se torna particularmente necessário diante da situação em que algumas das lideranças midiáticas e denominacionais atuam de forma dedicada na defesa da candidatura de Bolsonaro e, por meio de ações variadas como o acionamento de suas redes e instituições em uns casos e em outros até mesmo pela utilização de meios coercitivos, tomam lado e fazem campanha contra Lula. Um desempenho melhor entre evangélicos pode representar a chancela necessária para uma vitória no primeiro turno. O desafio envolve, então, a definição de um “modo petista” de se fazer campanha para/com evangélicos. Esta é uma condição que se coloca não só para essa, como também para as próximas eleições.

Foto de capa: Luis Quintero – Pexels

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