Matéria da Agência Pública denuncia proselitismo evangélico em comunidades quilombolas

A Agência Pública veiculou em seu site e redes digitais, em 3 de julho de 2023, matéria denunciando o proselitismo abusivo dos evangélicos sobre os praticantes de religiões de matriz africana nas comunidades remanescentes dos quilombos de Pernambuco. De acordo com o texto, os habitantes das comunidades Sítio Bredos, Baixas, São Caetano e Teixeiras, situadas no município de Betânia, no sertão pernambucano, são pressionados a abandonarem suas práticas religiosas e se converterem ao Cristianismo Evangélico. 

Imagem: reprodução do site da Pública

O interesse na prática religiosa dos moradores da região do município de Betânia não começou nesta matéria da Pública. A mesma jornalista, Géssica Amorim,  já havia estado no quilombo Teixeira, em setembro de 2021 e, mais recentemente, em abril deste ano, para conversar com uma mulher que seria a última praticante da Umbanda a se converter ao evangelho na localidade. O The Intercept, usando dados da mesma matéria, também produziu reportagem sobre o tema

Imagem: reprodução do site Marco Zero

Imagem: reprodução do site The Intercept Brasil

De acordo com o texto da Pública, a região, onde vivem aproximadamente 900 famílias, foi tomada por intensa atividade missionária evangélica desde a construção da primeira igreja Assembleia de Deus, há aproximadamente 20 anos e, desde então, nove templos de denominações pentecostais e neopentecostais se instalaram nas comunidades, dentre as quais, Assembleia de Deus, Adventista do Sétimo Dia e a Mundial do Poder de Deus. Ainda, segundo a reportagem, os poucos praticantes da Umbanda que restaram, se sentem intimidados ao realizarem seus rituais e sofrem pressão para deixarem sua religião e se converterem ao Cristianismo Evangélico. 

O que diz a ciência?

A matéria da Pública ouviu a doutora em sociologia, historiadora, escritora e pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Carolina Rocha, que estuda conflitos religiosos. Ela explica que o apagamento, a perseguição e a criminalização das tradições de matriz africana é histórica no Brasil de uma forma geral, não apenas em comunidades tradicionais. A pesquisadora ressalta ainda que existe uma série de atores nesse processo, não somente as igrejas cristãs. “Não são só as igrejas que estão despotencializando essas comunidades quilombolas. O Estado também é hostil e racista. O próprio sistema judiciário, que tira filhos de suas mães ou pais porque são levados a terreiros, é racista”, afirma Rocha à Pública. 

Diante da denúncia levantada pela publicação, Bereia ouviu outros pesquisadores que atuam especificamente com o tema das comunidades tradicionais. O sociólogo e antropólogo, doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Alef Monteiro explica que, diferente do que supõe o senso comum, que imagina os quilombos como “pedacinhos perdidos da África nos interiores do Brasil”, a realidade não é desta forma. “Até onde nós – estudiosos de comunidades quilombolas sabemos – baseados em evidências arqueológicas, documentais e etnográficas, a religião praticada originalmente nos quilombos é o Catolicismo em sua modalidade popular”, afirma o professor, desfazendo a ideia de que religiões de matriz africanas são as “originais” nesses espaços.

O antropólogo e sociólogo da USP pesquisa movimentos evangélicos em quilombos da Amazônia e recentemente escreveu o artigo: “Dos seus pecados e iniquidades não me lembrarei mais”: intolerância religiosa, ressignificação e “esquecimento” das religiões de matriz afro-brasileira no Quilombo São Pedro, publicado no livro As tramas da intolerância e do racismo, organizado por Ana Paula Mendes de Miranda, Ilzver de Matos Oliveira e Lana Lage da Gama Lima. No estudo, Monteiro apresenta dados que comprovam que a conversão de mais da metade dos moradores da Comunidade Quilombola São Pedro, no município de Castanhal, no Pará, à fé pentecostal, tem apagado as tradições ligadas às religiões de matriz afro-brasileiras na comunidade em questão. “Em minha pesquisa, além de alguns outros efeitos, percebi que a conversão ao pentecostalismo engendra uma ressignificação depreciativa das práticas religiosas de matriz afro-brasileiras, bem como o não acesso das gerações mais jovens ao conhecimento das vivências religiosas de suas famílias no passado”, analisa na primeira página do capítulo supramencionado. 

Imagem: reprodução da capa do livro “As tramas da intolerância e do racismo”

Para o pesquisador da USP,  a reportagem de Géssica Amorim, publicada no site da Agência Pública, apesar de valiosa por trazer ao debate público o fenômeno do crescimento das igrejas evangélicas e decréscimo de religiões de matriz afro-brasileira nos quilombos brasileiros a partir de alguns casos no interior de Pernambuco, deixa lacuna por  desconsiderar fatores científicos já apurados por pesquisadores da área

“Considero algumas ideias exageradas, cientificamente pouco plausíveis e algumas equivocadas. Por exemplo, a ideia de que a chegada das igrejas citadas mudou a dinâmica religiosa local a tal ponto que o avanço evangélico passou a ‘ameaçar as religiões afro’ desconsidera todas as mudanças estruturais pelas quais os quilombos brasileiros, e os quilombos pernambucanos em questão, vêm passando nas últimas décadas”, declarou  ao Bereia o pesquisador Alef Monteiro.  

Monteiro ressalta também que as igrejas evangélicas são apenas uma parte dessa mudança estrutural. “Além de outros motivos corolários, os quilombolas se convertem às religiões evangélicas porque estas lhes parecem estruturalmente dotadas de maior plausibilidade, uma vez que realizam de modo mais eficiente a intermediação entre o imaginário mágico-religioso popular, a racionalidade capitalista moderna e a religiosidade cristã historicamente hegemônica”.  

O doutor em sociologia e professor da Universidade Federal do Maranhão (Ufma) Gamaliel da Silva Carreiro afirma no estudo “O crescimento do pentecostalismo entre quilombolas: por uma sociologia da presença pentecostal em comunidades quilombolas de Alcântara (MA)”, realizado com membros de 16 povoados desta região que, em alguns grupos, o número de evangélicos já supera outras tradições religiosas. “Detectou-se o desaparecimento de parte da cultura oral dos grupos, tais como: contos, lendas e mitos que povoam os mais diferentes lugares da região e o imaginário popular. E, finalmente, verificou-se o questionamento das regras de uso comum da terra. Conclui-se que o pentecostalismo é parte das causas internas que, em consonância com as externas, estão alterando os padrões culturais dos grupos”, aponta no resumo. 

No decorrer do estudo, o pesquisador avalia as causas que levaram os quilombolas de Alcântara à conversão ao pentecostalismo e suas consequências. Assim como o entrevistado pesquisador da USP Alef Monteiro, Carreiro atribui a mudança de crença a uma série de fatores, não apenas ao proselitismo praticado pelas igrejas evangélicas presentes nessas comunidades. “Os quilombos não estão mais isolados no meio da mata, mas encontram-se inseridos em relações capitalistas e elas se intensificam à medida que as distâncias entre os grupos e as grandes cidades diminuem. (…) O pentecostalismo é um pouco mais moderno do que o catolicismo popular, possuindo maiores afinidades eletivas com os valores da sociedade contemporânea. Funcionaria como uma atualização cognitiva que permite ao sujeito entrar e se adaptar no novo mundo”, destaca. 

A geógrafa e pesquisadora do Grupo de Pesquisa GeografAR (vinculado à Universidade Federal da Bahia – UFBA) Edite Luiz Diniz, também foi ouvida pelo Bereia. Mestre em Geografia pela UFBA, Diniz se dedica ao estudo das comunidades tradicionais no litoral norte da Bahia. Segundo a pesquisadora, a situação relatada por Géssica Amorim é um pequeno exemplo de uma realidade que acontece em outras comunidades remanescentes de quilombos no país. “Este caso em Pernambuco reflete justamente a realidade que não está somente em Pernambuco, mas nos diversos territórios onde estão as comunidades tradicionais. Isso é uma pena porque vamos perdendo a nossa cultura, a cultura de base, a cultura do povo, para grupos que têm uma mentalidade totalmente diferente, que usam a religião para que Deus resolva os problemas das comunidades”, afirma.

Ainda de acordo com a geógrafa, a ação de religiosos nos quilombos leva ao enfraquecimento de sua organização interna e de sua capacidade de enfrentamento em prol dos seus direitos básicos, como o acesso à terra, além de gerar o silenciamento. “Os membros das comunidades tradicionais enfrentam a discriminação racial, cultural e religiosa de diversas formas. Eles são desvalorizados, invisibilizados e têm suas fontes de sobrevivência, como a água, contaminados”.  Ela ressalta ainda o exemplo de duas comunidades baianas que estão sofrendo com ataques discriminatórios. “Os quilombos Rio dos Macacos e Porto de Dom João têm sofrido com o fechamento de escolas, não há professores que ensinem sobre a cultura e religiosidade afro-brasileiras. No momento que a religiosidade não é respeitada, contribui com o enfraquecimento da luta pelos direitos dessas comunidades, além de trazer uma outra visão de mundo”, reitera.

O que são povos e comunidades tradicionais? 

De acordo com a definição apresentada pelo Governo Federal, povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (inciso I, Art. 3°, Decreto 6.040/2007).

São considerados como povos e comunidades tradicionais no Brasil os povos indígenas, as comunidades remanescentes de quilombos, os pescadores artesanais, ribeirinhos, os povos ciganos, os povos de terreiro, os pantaneiros, os faxinalenses do Paraná (que consorciam o plantio da erva mate com a suinocultura e com o extrativismo do pinhão, as comunidades de fundo de pasto da Bahia, os geraizeiros, os apanhadores de flores sempre-vivas, entre outros que, somados, representam grande parcela da população brasileira.

Imagem: Reprodução do site do Governo Federal/Instituto Chico Mendes

Os quilombolas

Sobre as comunidades remanescentes de quilombos, a historiografia oficial afirma que os primeiros quilombos surgiram no Brasil ainda no século XVI, no início da colonização, quando grupos de africanos e afrodescendentes, fugindo do sistema escravista decidiram se reunir em comunidades para resistir à recaptura, ocupando terras de difícil acesso, longe das fazendas, mas também com o anseio de manterem suas tradições e culturas vivas.

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no dia 27 de julho de 2023, a população quilombola no Brasil é de 1.327.802 pessoas e  representa 0,65% do total dos habitantes do país. Essa é a primeira vez que o IBGE investiga os quilombos brasileiros, os dados fazem parte do Censo 2022. Ainda dentro das informações divulgadas, a região Nordeste continua sendo a maior concentração de quilombolas, com 68,19%. De todos os estados brasileiros, a Bahia possui a maior quantidade de quilombolas: 397.059 pessoas, um percentual de 29,90%. O estado ultrapassa o Maranhão (com 269.074 pessoas), Minas Gerais (135.310), Pará (135.033) e Pernambuco (78.827). Bahia e Maranhão concentram metade (50,16%) da população quilombola do país.

Imagem: reprodução do site do IBGE

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Bereia teve acesso às matérias da Agência Pública e do site Intercept Brasil publicadas em em 3 de julho de 2023 e 10 de maio de 2023, respectivamente, e, dada a relevância do tema, foi feita uma pesquisa mais abrangente sobre outras abordagens referentes à temática.

  • o pesquisador Alef Monteiro ouvido pela reportagem alerta para um conjunto de situações para além do proselitismo de igrejas evangélicas que afetam a sobrevivência de tradições de matriz africana em quilombos,  e entende que apontar a ação pentecostal como principal causa é exagerado, “cientificamente pouco plausíveis e equivocado”. Para ele, a conversão se dá, porque há um interesse maior nessa religião em detrimento da anterior por fazer uma ponte mais racional entre o espiritual e o capitalismo. 
  • Gamaliel Carneiro em suas pesquisas também fala dessa peculiaridade que torna o pentecostalismo tão atraente aos quilombolas. Ele aborda fatores externos e internos que causam tais mudanças nas comunidades objetos do estudo em questão. Sobre os internos, reconhece o papel das igrejas pentecostais, entre os externos está a proximidade com as cidades, centros urbanos, dando acesso ao “estilo de vida atraente” desses locais. De acordo com Carneiro, os quilombolas são atraídos para as igrejas evangélicas por estas terem “afinidades eletivas com os valores da sociedade contemporânea”. 
  • A pesquisadora da UFBA Edite Luiz Diniz, também ouvida pelo Bereia, reconhece o pentecostalismo como agente nocivo à manutenção das tradições quilombolas e aponta essas igrejas como responsáveis por prejuízos que vão além da religiosidade, questão também citada por Carneiro ao reconhecer a valorização do indivíduo em detrimento do coletivo como uma mudança cultural trazida pela igreja evangélica. 

Bereia considerou a matéria imprecisa pois, apesar de trazer dados verdadeiros e relevantes, não considera os amplos elementos contextuais que são responsáveis pelas mudanças ocorridas nos quilombos em Betânia (PE). O artigo não traz à baila a reflexão promovida por diversas pesquisas específicas da área. Com isso, pode-se levar leitores e leitoras a um julgamento equivocado de que as denominações evangélicas presentes na região são as únicas responsáveis pelo processo de extinção de expressões religiosas e culturais quilombolas que está em curso. Tal abordagem generalizante pode reforçar preconceitos e promover intolerância religiosa.

Bereia identificou que, ao final da matéria da Pública, foi buscado superar o risco da generalização e destacada a existência de atuação de evangélicos, em especial de um pastor de uma Igreja Batista na região, por meio do projeto Nós na Criação, em apoio aos quilombos, em diálogo e cooperação inter-religiosa. Como a abordagem foi muito resumida, Bereia buscou contato com as fontes citadas para ampliar, aqui nesta matéria, a informação sobre a atuação deste grupo de evangélicos. Os pastores até retornaram o contato mas estão em uma imersão e não puderam responder às questões enviadas. Tão logo enviem uma resposta, esta matéria será atualizada.

Referências de checagem:

Agência Pública:

https://apublica.org/2023/07/avanco-evangelico-ameaca-religioes-afro-em-quilombos-de-pernambuco/ Acesso em 25 de outubro de 2023

Brasil de Fato:

https://www.brasildefato.com.br/2023/07/04/avanco-evangelico-ameaca-religioes-afro-em-quilombos-de-pernambuco Acesso em 25 de outubro de 2023

Africas:

https://www.africas.com.br/noticia/avanco-evangelico-ameaca-religioes-afro-em-quilombos-de-pernambuco Acesso em 25 de outubro de 2023

Marco Zero: 

https://marcozero.org/a-conversao-da-ultima-umbandista-do-quilombo-teixeira/ Acesso em 25 de outubro de 2023

The intercept Brasil: 

https://www.intercept.com.br/2023/05/10/neopentecostais-intimidam-adeptos-de-religioes-afro-com-assedio/ Acesso 25 de outubro de 2023

Editora Telha: 

https://editoratelha.com.br/product/as-tramas-da-intolerancia-e-do-racismo/ Acesso 25 de outubro de 2023 

Instituto Chico Mendes:

https://www.gov.br/icmbio/pt-br/assuntos/populacoes-tradicionais Acesso em 25 de outubro de 2023

Fundação Interamericana:

https://www.iaf.gov/pt/content/historia/making-their-own-way-brazils-quilombola-communities/  Acesso em 25 de outubro de 2023

IBGE: 

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37464-brasil-tem-1-3-milhao-de-quilombolas-em-1-696-municipios Acesso em 25 de outubro de 2023

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