Onda de desinformação sobre decisão do STF quanto ao uso da maconha invade redes religiosas

* Matéria atualizada em 03/07/2024 para acréscimo de informações

Políticos da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional e líderes religiosos usaram as redes sociais para disseminar a falsa informação de que o Supremo Tribunal Federal (STF) havia descriminalizado o uso da maconha. O que motivou as publicações foi a decisão da Corte, na última terça-feira, 25 de junho, pela inconstitucionalidade do Artigo 28, da Lei nº 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas, que criminaliza o porte de maconha para uso pessoal. Por oito votos a três, os ministros decidiram pela descriminalização . 

“A maconha foi legalizada? Não. Ainda continua sendo crime o tráfico da cannabis. No entanto, a maioria formada é para que usuários não sejam mais fichados criminalmente ao serem pegos usando a planta”, explica a deputada federal pelo PSOL/SP Erika Hilton, em seu perfil no X, antigo Twitter

O senador evangélico Flávio Bolsonaro foi um dos que divulgaram falsidades sobre a decisão. Em sua conta, também no X, o político evangélico disse que a corte estava “praticamente liberando o tráfico de drogas. “Hoje o STF descriminalizou a maconha”, afirmou o filho do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

Imagem: reprodução de publicação do senador Flávio Bolsonaro em sua conta no X

O senador espírita Eduardo Girão (Novo-CE) foi além. Em seu perfil no X, o político disse que a corte “formou maioria a favor de todas as drogas”. 

Imagem: reprodução de publicação do senador Eduardo Girão em sua conta no X

A deputada federal católica Bia Kicis também fez questão de emitir opinião sobre o assunto. Para ela, o STF desrespeita o Congresso Nacional com essa decisão. Mesmo não tendo registrado no texto da publicação, na imagem que acompanha sua postagem está escrito: “Supremo atropela o Congresso e libera Maconha”, o que não é verdade.  

Imagem: reprodução de publicação da deputada Bia Kicis em sua conta no X

Uma liderança que não se absteve de dar sua opinião foi o pastor presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia. Em  vídeo publicado em seu canal no YouTube  o pastor acusou o STF de legislar e descriminalizar a maconha. “Povo abençoado do Brasil em mais uma invasão de competência do Supremo Tribunal Federal eles legislam e descriminalizam a maconha, algo que não pertence a eles e sim ao poder legislativo, liberando a maconha para uso recreativos. Os traficantes agradecem”, disse o pastor na gravação.

Malafaia publicou o mesmo conteúdo no X  (ex-Twitter), no Instagram e demais redes digitais nas quais tem conta. Além de desinformar sobre o Supremo estar usurpando a competência do Poder Legislativo, o líder cristão mente sobre haver a “liberação da maconha para uso recreativo”.  Tal afirmação não procede, pois o STF determinou que usuários com até 40g da erva não sejam processados criminalmente pelo porte, entretanto, usar maconha continua classificado como comportamento ilícito.

Bereia checou as publicações.

Imagem: reprodução/YouTube

Entenda o caso

Na última terça-feira, 25 de junho, o STF decidiu, por oito votos a três, descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. Com a decisão, usar   maconha continua classificado como comportamento ilícito – permanece proibido fumar a droga em público, mas as punições definidas contra os usuários passam a ter natureza administrativa, e não criminal. Dessa forma, deixam de valer a possibilidade de registro de reincidência penal e de cumprimento de prestação de serviços comunitários. Também foi determinado um critério para diferenciar usuários de traficantes: para caracterizar o tráfico foi estabelecido porte de 40g ou seis plantas fêmeas,  até que o Congresso Nacional legisle sobre o critério. A quantidade foi definida em 26 de junho. 

“O plenário do STF, por unanimidade, considera que o consumo de drogas ilícitas é uma coisa ruim e que o papel do Estado é combater o consumo, evitar o tráfico e tratar os dependentes”, afirmou o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso ao anunciar o resultado por maioria pela descriminalização. O ministro disse ainda, que o julgamento sobre porte de maconha não foi escolha do Supremo. Ele explicou que se tratou de decisão sobre recurso apresentado à Corte contra a condenação por porte com pouca quantidade e que era necessário estabelecer critérios para diferenciar traficantes e usuários para processos na Justiça. A decisão é válida apenas para a maconha. O porte de outras drogas de consumo pessoal continua sendo crime.

Barroso se refere ao Recurso Extraordinário (RE 635659) movido pela Defensoria Pública de São Paulo, que pede a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343, de 2006. A lei manda punir o porte de maconha e outras drogas proibidas, “para consumo pessoal”, com medidas socioeducativas e prestação de serviços à comunidade. O mesmo vale para quem semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância, também para uso pessoal. 

A Defensoria de São Paulo entrou com o recurso  e questionou a decisão do Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema, em São Paulo, que manteve a condenação de um homem à pena de dois meses de prestação de serviços comunitários pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal. O recurso teve por base na proteção do artigo 5º, X,  da Constituição Federal que torna inviolável a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, visando a decretação da inconstitucionalidade à pena a ele aplicada.

Bereia verifica, portanto, que os ministros do STF não liberaram a maconha, tampouco legalizaram outros entorpecentes, conforme alegou o senador Girão. Inclusive, outras condutas envolvendo a erva, que não o uso pessoal, podem ser configuradas como tráfico. Por exemplo, se uma pessoa for flagrada com maconha, ainda que em quantidade inferior a 40 gramas, e haja elementos de que ela estava vendendo a droga, poderá ser presa e responder pelo crime de tráfico.

De acordo com o pesquisador e assessor do Instituto de estudos da religião (ISER) Erivelto Melchiades, ouvido pelo Bereia, a decisão do STF não deve produzir efeitos imediatos e esperados de desencarceramento nas unidades prisionais, onde se encontram pessoas presas por conta da lei de drogas, porém outros dois efeitos poderão ser notados de imediato. “Pessoas que possuem em seus registros anotações criminais por porte de drogas devem ter seus registros limpos. Isto, de certa forma, tem um impacto significativo, já que grande parte das empresas verifica se há indícios de registros criminais, o que por si só impacta na empregabilidade da população mais vulnerável”, analisa o pesquisador. 

O assessor do ISER também vê um ponto negativo nessa questão. Para ele pode ocorrer uma espécie de “vingança” por parte da força policial, pois ainda que se estabeleceu a quantidade de 40g para definição de quem é usuário, fica a cargo da autoridade definir este critério para a diferenciação. “Como a palavra do policial tem a boa fé (súmula 70, do TJRJ), como se dará a prova da quantidade no momento da abordagem, sabendo-se que existem diversos casos em que houve o flagrante forjado para incriminar usuários? Isto ocorre principalmente nas favelas e periferias! Como será feita a pesagem da droga? Será que a mão do policial não vai pesar mais em determinados territórios, sabendo-se que este roteiro é mais corriqueiro nas regiões periféricas do que nas zonas nobres?”, questiona Melchiades.

Mal-estar com o Congresso

Outra informação que circula nas redes digitais e tem gerado confusão na interpretação das ações do STF é a acusação de que a corte está criando uma lei, legislando, o que é atribuição do Congresso Nacional. Entretanto, a decisão foi de caráter judicial, no contexto de um processo. Os ministros foram provocados a julgar dentro do recurso interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, dentro de suas competências previstas na Constituição. Não aprovaram uma nova lei. 

De acordo com o presidente do STF, a discussão no Tribunal foi sobre o tratamento jurídico a ser dado ao porte de maconha para consumo pessoal e o estabelecimento de um critério para diferenciar traficantes de usuários, pois a Lei de Drogas  não estabeleceu parâmetros. “Não é o Supremo que escolhe decidir essa matéria, os recursos é que chegam aqui. As pessoas são presas e entram com habeas corpus aqui, e o Supremo não tinha como se furtar a essa discussão”, disse.

O presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG), por sua vez, discorda da decisão do STF. Para ele, a decisão invade a competência técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a competência legislativa do Congresso Nacional sobre o tema, além de gerar uma lacuna jurídica no Brasil. 

“Ou seja, a substância entorpecente na mão de quem a tem para fazer o consumo é um insignificante jurídico sem nenhuma consequência a partir dessa decisão do STF. E essa mesma quantidade dessa mesma substância entorpecente na mão de alguém que vai repassar a um terceiro é um crime hediondo de tráfico ilícito de entorpecentes. Há uma discrepância nisso”, avalia Pacheco que é autor da proposta de emenda à Constituição  45/2023, a chamada PEC das drogas, que  insere no art. 5º da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. A PEC foi aprovada no Senado, em 16 de abril de 2024, e tramita na Câmara dos Deputados. 

O deputado evangélico Sóstenes Cavalcante é um dos críticos da decisão do STF e considera o ato uma usurpação das competências do legislativo. 

Em sua conta no X, a deputada federal Erika Hilton discorda de Cavalcante e de Damares Alves. Ela explicou, de forma didática, a decisão do Supremo e as divergências levantadas pela extrema direita. “O STF está legislando no lugar do Congresso? NÃO. Ele cumpriu a sua função de analisar a validade do Art. 28 da Lei de Drogas, e, a maioria dos Ministros entendeu que é inconstitucional. a Lei não definir critérios objetivos para distinguir quem é usuário e quem é traficante, e penalizar os usuários criminalmente”, diz ela e continua. “Ao não definir um critério que leve em conta, por exemplo, a quantidade de maconha, a definição de quem é usuário e traficante fica por conta dos policiais e dos juízes: se é preto, pobre e periférico, então é traficante. Se é rico e branco, é usuário”, ressalta a parlamentar. 

A senadora evangélica Damares Alves também teceu duras críticas ao Supremo. “O STF mais uma vez tensiona com o Congresso Nacional e usurpa do Parlamento a função legislativa. Temas tão sensíveis como a liberação das drogas jamais deveria ser decidido por quem não é representante eleito pelo povo”, lamentou a senadora.  

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Bereia checou e verificou que o conteúdo publicado nas redes digitais dos políticos religiosos é FALSO. 

Não é verdade que o Supremo Tribunal Federal liberou a maconha, tampouco outras drogas. A decisão da corte é à favor do usuário que deve ser submetido a intervenção na área da saúde, e muitas vezes é encarcerado como se traficante fosse. Entretanto, os ministros deixaram claro em seus votos que  mantêm as bases da lei que determina que o consumo de drogas ilícitas é uma coisa ruim e que o papel do Estado é combater o consumo, evitar o tráfico e tratar os dependentes. 

Mais uma vez os parlamentares identificados como  religiosos  espalham falsidades pela internet e causam confusão e pânico entre os menos avisados que consomem as informações falsas sem checar, pois confiam na palavra de agentes públicos. 

Referências de checagem:

Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/06/stf-deve-definir-nesta-quarta-26-quantidade-de-maconha-que-diferencia-traficante-de-usuario.shtml – Acesso em: 26 de junho de 2024.

Perfil no X – Deputada Federal Erika Hilton

https://x.com/ErikakHilton/status/1805673224472084687?t=9jQi_RsTKA8vXzXUBI-5VA&s=19 – Acesso em: 26 de junho de 2024.

https://x.com/ErikakHilton/status/1805731028784288076?t=G9BYXtmAByx6jbkOpxt3Jg&s=19 – Acesso em: 26 de junho de 2024.

Aos Fatos

https://www.aosfatos.org/noticias/falso-stf-liberou-maconha-brasil/ – Acesso em: 26 de junho de 2024

Correio Braziliense 

https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2024/06/6885271-decisao-do-stf-sobre-maconha-gera-onda-de-desinformacao-entenda-o-que-muda.html – Acesso em: 26 de junho de 2024

STF

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-forma-maioria-para-descriminalizar-porte-de-maconha-para-consumo-pessoal/ – Acesso em: 26 de junho de 2024

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-40-gramas-de-maconha-como-criterio-para-diferenciar-usuario-de-traficante/ – Acesso em: 26 de junho de 2024

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/presidente-do-stf-diz-que-julgamento-sobre-porte-de-maconha-nao-foi-escolha-do-supremo/ – Acesso em: 26 de junho de 2024

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4034145 – Acesso em: 26 de junho de 2024

Jota

https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-forma-maioria-para-descriminalizar-o-porte-de-maconha-25062024#:~:text=Logo%20no%20come%C3%A7o%20da%20sess%C3%A3o,criminalizado%E2%80%9D%2C%20disse%20o%20ministro – Acesso em: 26 de junho de 2024

Uol

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/06/25/maconha-foi-liberada-entenda-decisao-do-stf-sobre-descriminalizacao.htm – Acesso em: 26 de junho de 2024

Conjur

https://www.conjur.com.br/2024-jun-25/supremo-forma-maioria-para-descriminalizar-porte-da-maconha-para-consumo-proprio/ – Acesso em: 26 de junho de 2024

G1

https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/06/26/porte-de-maconha-para-uso-pessoal-entenda-como-ficou-apos-a-conclusao-do-julgamento-no-stf.ghtml – Acesso em: 26 de junho de 2024

Congresso em Foco

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/stf-retoma-as-14h-julgamento-sobre-descriminalizacao-do-porte-de-maconha/ – Acesso em: 26 de junho de 2024

Agência Senado

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/03/04/drogas-girao-critica-stf-e-diz-que-barroso-tem-conflito-de-interesse – Acesso em: 26 de junho de 2024

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/16/senado-aprova-pec-sobre-drogas-que-segue-para-a-camara – Acesso em: 26 de junho de 2024

Jus Brasil

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/re-635659-a-descriminalizacao-do-porte-de-drogas/358561903 – Acesso em: 26 de junho de 2024

Alerj

http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/constfed.nsf/fc6218b1b94b8701032568f50066f926/54a5143aa246be25032565610056c224?OpenDocument#:~:text=X%20%2D%20s%C3%A3o%20inviol%C3%A1veis%20a%20intimidade,Crimes%20contra%20a%20honra%3A%20arts. – Acesso em: 26 de junho de 2024

EBC

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-06/supremo-fixa-40g-de-maconha-para-diferenciar-usuario-de-traficante – Acesso em: 26 de junho de 2024

CNN

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pacheco-stf-senado-maconha/ – Acesso em: 26 de junho de 2024

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Foto de capa: Pixabay

Caso Marajó: articulações políticas e religiosas da desinformação – parte 2

* Matéria atualizada em 01/07/2024 às 11:00 para acréscimo de informações

A parte 1 deste conteúdo, levantado pelo Bereia, abordou o caso Marajó, que inundou as redes digitais com desinformação e pânico moral após a viralização de uma música da cantora Aymeê Rocha, apresentada no reality show gospel Dom.

A menção ao tráfico de órgãos no Marajó, feita durante o Dom Reality, tem capítulos mais antigos também associados a grupos religiosos. Em vídeo disponível na plataforma Kwai, o pastor da Zion Church Lucas Hayashi diz que “recentemente, encontraram lá na Ilha do Marajó um cemitério clandestino com corpos sem os órgãos internos, de adultos e também de crianças. Possivelmente, tudo isso é para o comércio de órgãos, transplante”. Na última semana de fevereiro passado, o pastor foi confrontado pelo escritor Ale Santos, durante episódio do podcast Inteligência Ltda. Hayashi disse que não tem provas, e que apenas diz “o que as pessoas estão falando”.

A Zion Church, cujos líderes são os primos Lucas e Teófilo (Téo) Hayashi, descendentes de missionários evangélicos japoneses, tem como extensões da igreja o Instituto Akachi, que atua na Ilha de Marajó, e o Movimento Dunamis, que tem ligações com políticos conservadores e religiosos. 

Nas redes digitais da família Hayashi, o frequente apelo à vida religiosa coaduna-se com a propagação de pânico moral em pautas políticas. Em 7 de julho de 2022, o casal Lucas e Jackeline Hayashi publicou, no Instagram, uma defesa do armamento da população. Além de vídeos em que efetuam disparos em um estande de tiros, o casal, que lidera um programa da igreja voltado à educação infantil, mostra-se à vontade ao empunhar fuzis e posa sorrindo para a foto. A legenda traz alguns apelos: “Cuidado com a ‘beleza’ do desarmamento! Uma das maneiras de implementar um governo dit4dor é através do desarmamento. A 4rm4 é neutra. O problema está em quem a usa”.

Imagem: reprodução Instagram (Lucas e Jackeline Hayashi)

Assim que a música de Aymeê Rocha ganhou relevância nas redes, Lucas Hayashi publicou foto com a cantora em seu perfil no Instagram. Diversos conteúdos sobre o Marajó foram veiculados nos perfis de Lucas, de Téo, do Instituto Akachi e do Movimento Dunamis, incluindo relato de suposta vítima da exploração sexual, também publicado no canal do movimento no YouTube. Chama atenção o tom alarmante das postagens, que utilizam termos como “trazer à tona a verdade sobre Marajó”, e a divulgação da chave Pix do Instituto Akachi, propagada também por outros perfis nas redes.

Luis Barbosa, do Observatório do Marajó, destaca: “é muito importante que o Ministério Público seja acionado quando ocorrem essas denúncias, os conselhos tutelares, nas suas devidas competências, e não fazer campanhas, né? Campanhas feitas por organizações de outros estados para arrecadar fundos, arrecadar Pix, sendo que a gente nem sabe a procedência, de fato, dessa ajuda”.

Imagem: reprodução do Instagram (Lucas Hayashi e Aymeê Rocha)

A utilização do pânico moral e o apelo a experiências sobrenaturais é comum nas atividades coordenadas pelos Hayashi. Durante o lançamento do filme “Som da Liberdade”, envolto em controvérsias religiosas checadas por Bereia, Lucas Hayashi, ao falar sobre o problema da exploração infantil, disse que “trata-se de uma luta que transcende o mundo material natural, é uma guerra cultural de dimensões espirituais”.

No artigo “O Reino de Deus na Terra: Dunamis Movement, religião e política no Brasil contemporâneo”, a mestre em ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Helen Teixeira relata que o Movimento Dunamis é um movimento paraeclesiástico marcado por fluidez e dinamismo. A pesquisa explica que o Dunamis é “composto e cercado de pessoas que pensam da mesma forma, ou passam a pensar concordemente, impactadas pelo senso de pertencimento comunitário, triunfalismo e estilo de vida cool, marcado pelo consumo e pela estética jovem, e também pelos atos milagrosos e místicos”.

Em entrevista ao Bereia, Helen Teixeira detalhou como o Movimento Dunamis importou ideias e conceitos religiosos norte-americanos, como a “teologia das sete montanhas”, para estruturar sua atuação no Brasil. As sete montanhas, ou sete áreas de influência, são: negócios e economia, governo, mídia, artes e entretenimento, educação, família e religião. “A ideia é que a sociedade está dividida em sete áreas que formam uma cultura (…) Isso tem tudo a ver com o dominionismo, com essa ideia de que os cristãos precisam ocupar as áreas de influência, precisam estar em postos de liderança para que a cultura do país volte a parecer a cultura do Reino de Deus”.

A noção de domínio está fundamentada na percepção de que os cristãos, por muito tempo, isolaram-se na esfera religiosa e não atuaram nas demais áreas de influência, razão pela qual a cultura estaria “perdida e decaída”. Fora do campo conceitual, a participação da Zion na vida política no país tem como exemplo maior o festival The Send Brasil, organizado pelos Hayashi, em 2020. O evento ocorreu simultaneamente em três estádios de futebol – Morumbi (SP), Allianz Parque (SP) e Mané Garrincha (DF) – e contou com a participação da então ministra Damares Alves e do então Presidente da República Jair Bolsonaro, que foi ovacionado pela plateia presente no Mané Garrincha, em Brasília. Bereia checou material sobre o evento à época.

Imagem: reprodução Pleno News (Bolsonaro no festival The Send Brasil)

Imagem: reprodução do Guiame (Damares no festival The Send Brasil)

Outra figura importante do Dunamis Movement, Henrique Krigner foi candidato a vereador em São Paulo pelo Partido Progressista (PP). Estreante, não foi eleito, mas recebeu mais de 16 mil votos e doações de grandes empresários. A Big Wave Media, produtora de conteúdo ligada ao Movimento Dunamis, recebeu R$ 40.000 por serviços prestados à campanha.

Em seus perfis em mídias sociais, Krigner diz que está cursando mestrado em Políticas Públicas, na Liberty University, universidade localizada no estado da Virgínia (EUA), fundada pelo pastor batista Jerry Falwell, destacado líder do fundamentalismo naquele país, em 1971, e conhecida por reunir evangélicos articulados com as esferas de poder. Em reportagem, a revista New Yorker descreve a universidade como “um motor de poder e ambição” em que os alunos consideram “o mundo”, ou seja, a própria sociedade, como algo distante de suas experiências pessoais e um lugar que inspira desconfiança.

Imagem: reprodução do Instagram

Embora argumentem que não apoiam políticos específicos, apenas ideias, as lideranças do Movimento Dunamis apoiaram a reeleição de Jair Bolsonaro à presidência em 2022. Em uma publicação sobre como votar naquelas eleições, Téo afirma que é preciso verificar se o candidato “se alinha com a cosmovisão bíblica”. Durante a campanha presidencial, o Movimento Dunamis organizou um podcast com a presença do então candidato Bolsonaro. Em seus perfis no Instagram, ainda estão expostos conteúdos que chamam o atual Presidente da República de “ladrão”, “bêbado” e apresentam diversos argumentos críticos à esquerda, em geral. 

Imagem: reprodução do Instagram (Teo Hayashi e Dunamis Movement)

Mobilização religiosa na política brasileira

Na semana em que, mais uma vez, a Ilha de Marajó foi alvo de desinformação política e religiosa, deu-se um outro acontecimento político e religioso de relevância nacional. O antropólogo e professor do departamento de estudos de mídia da Universidade da Virgínia (EUA) David Nemer publicou, no seu perfil no X, sobre a mobilização popular para a manifestação de 25 de fevereiro na Avenida Paulista, em São Paulo (SP), protagonizada pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e pelo casal Jair e Michelle Bolsonaro.

Nemer relata que, durante semanas, as convocações para a manifestação tinham pouco apelo emocional, indicativo de baixa adesão ao ato. “Bolsonaro não podia aumentar o tom pois nessa própria semana ele foi interrogado pela PF e o próprio está sob investigação – com um sério risco de ser preso muito em breve. Seus aliados políticos, como seus filhos e Nikolas Ferreira, fizeram convocações, mas também contidas”, comentou.

Segundo o professor, dois fatos foram cruciais para o engajamento do público na manifestação que contou com mais de 185 mil pessoas. O primeiro, teria sido a fala do presidente Lula sobre as agressões de Israel contra a Palestina, instrumentalizada pelas igrejas que propagam o sionismo cristão. O segundo, foi a mobilização da extrema direita no caso relativo à Ilha do Marajó, com “divulgação e compartilhamento de fake news sobre cancelamento de ações e projetos do governo federal”. Nos dois fatos, a presença de grupos religiosos exerce papel fundamental para a execução de um ato político.

Imagem: reprodução do YouTube (Michelle Bolsonaro durante ato na Av. Paulista)

O historiador e professor de literatura comparada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) João Cezar de Castro Rocha, em participação no podcast Pauta Pública, falou sobre a fusão de religião e política observada no Brasil contemporâneo: “O que nós vimos no dia 25 de fevereiro de 2024 não foi uma manifestação bolsonarista. (…) A manifestação foi menos bolsonarista do que um chamamento público. Pela primeira vez, a explicitação de um projeto: a teologia do domínio”.

No principal discurso daquele 25 de fevereiro na Avenida Paulista, Michelle Bolsonaro foi categórica: “Por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação”. 

Para combater “o mal”, a extrema direita utiliza o discurso religioso de identidade cristã e propaga informações falsas e pânico moral. Em uma constante mobilização de suas pautas conservadoras, do armamentismo ao papel da religião na política, garante seu espaço nas redes e nas ruas, mesmo que, para isso, precise veicular informações enganosas sobre abuso sexual infantil, como no caso Marajó.

ATUALIZAÇÃO: Silvio Almeida anuncia campanha e estratégia nacional contra exploração e abuso de crianças e adolescentes no Marajó

O Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, anunciou na manhã desta terça-feira (19) em Breves, no Pará, uma campanha nacional do governo federal para combate à exploração e ao abuso sexual contra crianças e adolescentes. A expectativa é de que a iniciativa pública seja lançada em maio deste ano, mês marcado pelo 18 de maio, data oficial de enfrentamento a essas violações de direitos humanos. De acordo com Almeida, a campanha será lançada junto a uma estratégia nacional ligada ao tema. 

“Temos de fazer política pública e sermos absolutamente intolerantes com quem comete violência contra crianças e adolescentes. Isso é inadmissível. Precisamos ter políticas de educação, cultura, cuidar das famílias, ter saúde e olhar para as crianças e que não têm pai nem mãe”, elencou o gestor ao subir o tom contra quem viola direitos fundamentais e promove discurso de ódio nas redes sociais. 

A declaração aconteceu durante lançamento da Escola de Conselhos do Pará, ação do MDHC em parceria com a Universidade Federal do Pará e o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente para formação de atores do Sistema de Garantias dos Direitos do público infantojuvenil, com investimento será de R$ 1 milhão.

ATUALIZAÇÃO: a revista Piauí produziu matéria neste 30 de junho, em que mantém vivo o assunto. O texto da revista destaca como essas informações falsas se espalharam rapidamente pelas redes sociais e foram amplificadas por políticos e influenciadores, prejudicando a imagem da Ilha do Marajó. A reportagem ressalta que esse tipo de desinformação pode ter consequências graves, como a estigmatização de comunidades inteiras. De acordo com o presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente da cidade de Melgaço, no Pará, o arquipélago de Marajó “tem sido vitimado em carregar essa carga, mas nós sabemos que essa é um uma situação que ocorre muito em outras regiões. Se você for ver a questão dos caminhoneiros nas estradas, é alarmante. Você vê meninas que são exploradas, que estão ali expostas, mas o Marajó virou holofote da situação. Eu não estou dizendo que nós não temos problema. Nós temos. Mas nós estamos cuidando deles e fazendo o possível para que isso possa ser resolvido”, conclui.

Referências:

YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=dYez-vJK6PY&t=231s&ab_channel=CortesdoIntelig%C3%AAncia%5BOFICIAL%5D Acesso em: 4 mar 2024

https://www.youtube.com/watch?v=b8cO82bvoE0&ab_channel=Ag%C3%AAnciaP%C3%BAblica Acesso em: 4 mar 2024

Zion Church https://zionchurch.org.br/geracao-5-2 Acesso em: 3 mar 2024

Coletivo Bereia 

https://coletivobereia.com.br/controversias-sobre-filme-som-da-liberdade-sao-transformadas-em-panico-moral-para-propagacao-de-desinformacao/ Acesso em: 1 mar 2024

https://coletivobereia.com.br/movimento-the-send-brasil-e-criticado-por-doutrinar-politicamente-jovens-evangelicos/  Acesso em: 5 mar 2024

https://coletivobereia.com.br/como-expressoes-sionistas-cristas-no-brasil-desinformam-sobre-o-que-ocorre-no-oriente-medio/ Acesso em: 1 mar 2024

TSE – Divulgacand

https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/71072/250000707279 Acesso em: 4 mar 2024

https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/71072/250000707279/integra/receitas Acesso em: 4 mar 2024

Seade http://produtos.seade.gov.br/produtos/eleicoes/candidatos/index.php?page=pol_det&cand=297818 Acesso em: 4 mar 2024

New Yorker https://www.newyorker.com/news/annals-of-education/can-liberty-university-be-saved Acesso em: 4 mar 2024

G1 https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2024/02/26/como-especialistas-da-usp-calcularam-que-havia-185-mil-pessoas-no-ato-de-bolsonaro-na-paulista.ghtml Acesso em: 1 mar 2024

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Foto de capa: reprodução do YouTube

Caso Marajó: religião, política e desinformação – parte 1

As redes digitais foram tomadas, na última semana de fevereiro passado, por discursos político-religiosos e desinformação sobre exploração sexual infantil na Ilha de Marajó (PA). Os debates foram deflagrados, depois da divulgação do extrato de um vídeo, em que a cantora gospel Aymeê Rocha faz referência à região, alcançar mais de quatro milhões de visualizações no YouTube.

Com a ajuda de influenciadores, políticos e grupos religiosos, as mídias sociais foram cenário de publicações falsas, enganosas e descontextualizadas. Bereia apurou o caso e o papel de grupos políticos e religiosos na manutenção do discurso desinformativo sobre o Marajó.

Reality show gospel: Aymeê Rocha e jurados religiosos

A canção “Evangelho de Fariseus”, composta pela cantora paraense Aymeê Rocha, foi interpretada por ela na fase semifinal da segunda temporada do reality show Dom, em 15 de fevereiro. Divulgado como o primeiro programad e música gospel nesta modalidade no Brasil, o “Dom Reality” é produzido pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (UniCesumar) e transmitido no canal de YouTube da instituição.

Em tom emotivo, a canção de Aymeê Rocha apresenta uma crítica a cristãos para quem “o dízimo importa mais do que os corações”, uma alusão ao comportamento de fiéis e à oposição entre egoísmo e altruísmo, ego e amor ao próximo, ganância e assistência humanitária. A certa altura da música, a compositora cita a região de Marajó – maior arquipélago flúvio-marítimo do planeta, situado no estado do Pará – ao cantar “Ah, enquanto isso, no Marajó, o João desapareceu esperando os ceifeiros da grande seara”. A frase serviu de gancho para que os jurados do reality falassem sobre problemas sociais que ocorrem no local.

O produtor musical, fundador e diretor da Criativum Assessoria e Marketing, diretor executivo e artístico do Dom Reality Paulo Alberto questionou Aymeê Rocha sobre a citação ao Marajó: “Em determinado momento da música, não sei se vocês se atentaram, você trouxe a palavra Marajó. Você está se referindo às ilhas de Marajó? Você fala: ‘enquanto isso lá nos Marajós, crianças’… Você fez uma referência a um local. Tem alguma história por trás disso? Porque isso despertou muito forte, eu acho que tem alguma experiência que você viu ou ouviu que marcou seu coração e você trouxe isso para essa música, eu estou errado?”.

Imagem: reprodução YouTube (Aymeê Rocha no reality gospel DOM)

A cantora responde à indagação com a afirmação de que na Ilha de Marajó “tem muito tráfico de órgãos” e crianças de cinco anos “saem numa canoa e se prostituem dentro do barco por R$5,00”. Depois de outro jurado, o produtor musical Alex Passos, apoiar a abordagem de temas semelhantes em músicas gospel, Aymeê diz que, muitas vezes, os cristãos “terceirizam para o governo o que seria de responsabilidade do próprio cristão”.

Em seu perfil no Instagram, Paulo Alberto publicou, em colaboração com o portal de notícias Perfil, um vídeo em que concede entrevista ao veículo e fala sobre sua atuação no destaque ao tema da Ilha de Marajó durante a apresentação de Rocha. Na mesma data, o produtor musical publicou outro vídeo, em colaboração com a revista Caras, em que afirma que “a provocação do tema [sobre o Marajó] partiu do Dom Reality”. Paulo Alberto é apresentado pela Caras como um dos idealizadores do reality gospel e, segundo regulamento da competição, o(a) vencedor(a) garante, entre outros prêmios, um contrato de gestão de carreira atrelado à Criativum Assessoria e Marketing.

Influenciadores políticos e religiosos impulsionaram o tema

Inicialmente, a crítica aos cristãos presente na música de Aymeê Rocha foi o que ganhou espaço entre os comentários nas mídias sociais. Porém,após a abordagem destacada do produtor musical para o tema na apresentação da cantora, os comentários se voltaram para a Ilha de Marajó. Influenciadores digitais, como Carlinhos Maia, Juliette, Gessika Kayane – conhecida como GKAY – e Rico Melquiades compartilharam conteúdo sobre exploração sexual na ilha. No Instagram, alguns desses perfis contam com mais de 30 milhões de seguidores.

Em seu perfil no X, o escritor Ale Santos acusou a extrema direita de articular o compartilhamento de conteúdo ligado ao tema da ilha paraense. “A extrema-direita descobriu o poder das agências de influenciadores e agora as mobilizações de pautas sensíveis misturadas com fake news ficou mais fácil”, afirmou.

Em uma sequência de publicações, Santos expôs a ligação da viralização do vídeo de Aymeê Rocha com ações políticas da extrema direita e voltou a citar uma ação orquestrada. “Será que todos ‘organicamente’ estavam espalhando a música da cantora de um programa que não assistem, de uma bolha que não faz parte dos assuntos que eles lidam todo dia nas redes sociais, focados no próprio umbigo e de repente mobilizados. Eu duvido de viralização orgânica hoje em dia”, publicou.

Imagem: reprodução do X (perfil Ale Santos)

Não tardou para que antigas declarações da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves sobre o assunto fossem resgatadas nos comentários das publicações nas redes digitais. Políticos religiosos, com destaque para os deputados federais Nikolas Ferreira (PL) e Carlos Jordy (PL), logo endossaram o coro com desinformação acerca da exploração sexual de crianças no Marajó. 

Nikolas Ferreira reproduziu conhecidas falsas alegações de Damares Alves, enquanto Jordy divulgou vídeo de outra localidade associando as imagens ao Marajó. A ex-ministra e atual senadora Damares Alves (Republicanos-DF) publicou o vídeo da apresentação da cantora Aymeê Rocha em seu perfil do Instagram, com orientação para que os seguidores prestassem atenção em comentários dos jurados.

Segundo reportagem da Agência Pública, ao menos seis políticos investiram até R$ 100 para alavancar esses conteúdos, a partir de 24 de fevereiro. Conforme apurado, políticos de extrema direita patrocinaram postagens repercutindo denúncias falsas sobre um suposto esquema de exploração infantil no arquipélago. 

Os políticos identificados pela Agência Pública foram os deputados federais Luciano Galego (PL-MA,Maurício Neves (PP-SP), o deputado estadual do Pará e ex-superintendente regional do Incra Coronel Neil (PL), a vereadora de Navegantes (SC) Lú Bittencourt (PL), os vereadores de São Paulo Reinaldo Digilio (PRB) e Lucas Ferreira (sem partido). Juntas, as publicações apareceram 80 mil vezes para usuários do Facebook e Instagram.

Imagem: reprodução da reportagem no site Agência Pública

A antropóloga e coordenadora de Religião e Política no Instituto de Estudos da Religião (Iser), Lívia Reis destaca que a viralização dos conteúdos foi impulsionada pela atuação de influenciadores e que as postagens seguiram um padrão de conteúdo. “Houve uma mobilização de inúmeros influenciadores que produzem conteúdo sobre religião ou de influenciadores que são religiosos – evangélicos e católicos. Embora perfis de igreja tenham também falado sobre o assunto, o compartilhamento via influenciadores foi o que impulsionou a campanha e a circulação do conteúdo”.

Quanto à atuação de políticos como Nikolas Ferreira (PL-MG), Carlos Jordy (PL-RJ) e Damares Alves (Republicanos-DF), Reis destaca que, com essa campanha, políticos e grupos religiosos “visam consolidar a proteção da infância e o combate do abuso sexual infantil, feita de uma maneira mentirosa e assistencialista, como uma pauta dominada pela direita”. 

“Um dos argumentos, por exemplo, é que a sexualização de crianças é promovida pela esquerda, quando ela defende debates sobre gênero ou valorizam culturas periféricas, como o funk. Ignoram, por outro lado, que o maior número de abusos sexuais sofridos por crianças são feitos por familiares próximos dentro das próprias casas da vítima. Por isso trata-se de um argumento demagógico, que ganha adesão fácil da população, que passa a se ver próxima das pautas defendidas por eles”, afirma a pesquisadora.

Imagem: reprodução do Instagram

A Organização Não Governamental (ONG) Observatório do Marajó, que atua em prol da consolidação de instrumentos de ação política na região, divulgou, em 22 de fevereiro, nota pública intitulada “não acredite em tudo o que vês na internet”. Em trecho, a nota destaca que “A propaganda que associa o Marajó à exploração e o abuso sexual não é verdadeira: a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes. Insiste nessa narrativa quem quer propagá-la e desonrar o povo marajoara”.

Em entrevista ao Bereia, o gestor de conteúdo do Observatório do Marajó e fundador do canal Marajoando Cultural Luis Barbosa falou sobre a atuação de grupos religiosos na repercussão do caso. “Eles impulsionaram bastante essa narrativa né, e me parece que é uma narrativa retomada da ex-ministra Damares Alves, que recorrentemente utiliza o Marajó para o uso político mesmo. Isso é muito estranho e acaba sendo muito ruim, porque toda vez a gente tem que reexplicar os problemas novamente”.

Circulação de informações falsas e enganosas

Em meio à grande repercussão do tema, impulsionada por influenciadores e políticos religiosos, houve circulação de diversas publicações mentirosas. Um vídeo que mostra um homem adulto beijando uma criança em um barco circulou nas redes digitais como se o caso tivesse acontecido na Ilha de Marajó. Na verdade, trata-se de um vídeo gravado em Mato Grosso do Sul e que circula como desinformação desde, ao menos, 2021, quando o conteúdo foi verificado pela Agência Lupa. Filmado pela mãe da criança, o vídeo mostra Rosinaldo de Andrade Messias assediando sua enteada. Pouco tempo depois de prestar depoimento à polícia, Messias foi encontrado morto. O caso aconteceu no município de Itaquiraí (MS) e foi noticiado pela imprensa à época.

Outro vídeo falsamente associado à Ilha de Marajó retrata um carro que transportava diversas crianças sendo abordado pela polícia. Nas publicações que agora circularam pelas plataformas digitais, diz-se que a polícia estaria resgatando vítimas de exploração sexual e tráfico humano. Conforme apontado pelo Estadão Verifica, trata-se de uma gravação feita no Uzbequistão, país da Ásia Central. O vídeo está disponível no YouTube com o título em russo: “No Uzbequistão, uma mulher transportou 25 crianças num carro”. O fato foi reportado em setembro de 2023 pelo jornal O Globo e consiste no caso de uma educadora que transportava, irregularmente, alunos até suas casas. À época, as autoridades do país asiático deram publicidade ao caso.

Imagem: reprodução YouTube (uniforme do policial e placa do carro são indícios de que o caso não foi no Brasil)

Enquanto a internet era tomada por incontáveis publicações falsas ou sem contexto sobre a Ilha de Marajó, uma publicação enganosa sobre programas federais direcionados ao arquipélago viralizou, com a afirmação de que o presidente da República Lula pôs fim ao programa Abrace o Marajó, implementado pelo governo Jair Bolsonaro. As publicações omitem o fato de que, em maio de 2023, o governo federal lançou o programa Cidadania Marajó, destinado ao enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e a garantir a cidadania e os direitos sociais na região. A revogação do programa anterior, alvo de denúncias de irregularidades, ocorreu quatro meses depois.

Nas plataformas digitais, diversos vídeos trazem imagens genéricas de populações ribeirinhas ou de crianças em situações de vulnerabilidade acompanhadas de legendas alusivas à exploração infantil e à Ilha do Marajó. Em muitos casos, as publicações valem-se de hashtags alusivas à recente repercussão e associam-se, também, à música gospel da cantora Aymeê Rocha. As postagens têm, em comum, o apelo ao sentimento de injustiça e a ausência de informações verificáveis, elementos frequentes em conteúdos desinformativos.

Imagem: reprodução do TikTok

Histórico de desinformação sobre a Ilha de Marajó

Os casos de desinformação relacionados à Ilha de Marajó não são uma novidade, tampouco a mobilização desse discurso por políticos e religiosos. Durante o lançamento do programa Abrace o Marajó, em 2019, a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves disse ter recebido relatos de que meninas marajoaras eram sexualmente abusadas por não vestirem calcinhas. “Nós temos que levar uma fábrica de calcinhas para o Marajó, gerar emprego lá e a calcinha sair baratinho para as meninas lá. Então estamos buscando, se alguém tiver aí uma fábrica de calcinhas e quiser colaborar com a gente, venha”, disse a ministra, que é pastora evangélica e advogada.

O Ministério Público do Pará (MPPA), por meio do Procurador-Geral de Justiça Gilberto Valente Martins, emitiu nota de repúdio contra as falas da ministra. Em um dos trechos, a nota diz que “a infeliz manifestação reforça a ‘cultura do estupro’, ainda observada em nossa sociedade, que tende a culpabilizar a vítima pela violência sexual sofrida, neste caso, sustentando a ausência de vestuário íntimo como justificativa à prática dos atos ofensivos pelos agressores”.

Em setembro de 2023, a Controladoria-Geral da União (CGU) apontou irregularidades no programa Abrace o Marajó, criado e liderado por Damares Alves. Segundo relatório da CGU, diversas ações do programa não foram concluídas nos prazos previstos ou sequer foram implementadas, o que comprometeu o acesso da população marajoara a seus direitos. O relatório afirma que, se confirmados, o prejuízo aos cofres públicos pode ultrapassar R$ 2,5 milhões.

Imagem: reprodução do Instagram

Em outro episódio, em 2022, durante culto na Assembleia de Deus de Goiânia, Damares Alves disse possuir imagens de crianças brasileiras, vítimas de tráfico, com os dentes arrancados. “Eu vou contar uma coisa para vocês que agora eu posso falar. Nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, de quatro anos, três anos, que, quando cruzam as fronteiras sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral”. Alves continuou e disse ter descoberto que “essas crianças comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”. 

A imagem narrada pela então candidata ao Senado Federal circula desde 2010 em fóruns online que divulgam teorias da conspiração e são frequentados pela extrema direita, como mostrou O Globo. A fala se deu no contexto da campanha presidencial e a esposa do candidato à reeleição, Michelle Bolsonaro, estava presente. No mesmo evento, Damares Alves chamou a busca pela reeleição de Jair Bolsonaro de “guerra espiritual”.

Desta vez, além de o MPPA ter dito que não havia provas do que a ex-ministra dizia, o Ministério Público Federal (MPF) também entrou em cena e negou as alegações dela. Conforme noticiado pela assessoria de imprensa do Ministério Público Federal, “Em 30 anos, nenhuma denúncia ao MPF sobre tráfico de crianças no Marajó mencionou torturas citadas por Damares”. 

Posteriormente, o MPF ajuizou uma ação civil pública para que a União e a ex-ministra Damares Alves indenizem a população do arquipélago de Marajó no valor de R$ 5 milhões. No entendimento dos procuradores que assinaram a ação, houve “utilização sensacionalista da vulnerabilidade social daquela população, associada à divulgação de fatos falsos”, o que gerou danos sociais e morais coletivos, ainda agravados pela rápida transmissão da mensagem nos meios de comunicação.

No caso recente, impulsionado pela música gospel da cantora Aymeê, o Ministério Público do Pará também emitiu nota com o objetivo de esclarecer casos de abuso e exploração sexual no estado. O texto afirma que “as notícias de crimes recebidas nas Promotorias de Justiça são de pronto investigadas com todos os encaminhamentos devidos providenciados junto à rede de proteção” e que “no bojo das notícias de fato em trâmite nas Promotorias de Justiça, não há qualquer notícia de crimes relacionados a tráfico de órgãos”.

***

O caso Marajó não se mostrou apenas uma viralização de conteúdo a partir de uma música em um reality show. Revelou-se, também, um emaranhado de articulações políticas e religiosas ancoradas em desinformação para convencer apoiadores. Confira a parte 2 sobre o caso Marajó – Articulações políticas e religiosas da desinformação.

Referências:

Agência Lupa

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https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2022/10/21/bolsonaristas-recem-eleitos-estrategia Acesso em: 28 fev 2024

https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/02/23/lula-lancou-programa-contra-abuso-infantil-em-marajo-pa-antes-de-revogar-projeto-de-damares Acesso em: 28 fev 2024

https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/02/28/posts-fakes-e-sem-provas-sobre-marajo-voltam-a-ganhar-forca-nas-redes Acesso em: 28 fev 2024

Agência Pública

https://apublica.org/2019/09/investigamos-a-violencia-sexual-no-marajo-e-nao-e-nada-do-que-a-ministra-damares-diz/?utm_source=twitter&utm_medium=post&utm_campaign=marajo Acesso em: 29 fev 2024

https://apublica.org/2024/02/politicos-bolsonaristas-pagaram-para-impulsionar-denuncias-falsas-sobre-marajo/ Acesso em: 29 fev 2024

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https://www.aosfatos.org/bipe/musica-aymee-rocha-reality-gospel-damares-marajo/ Acesso em: 29 fev 2024

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BBC https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46448437 Acesso em: 1 mar 2024

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Dom Gospel

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Estadão https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/video-carro-criancas-trafico-sexual-ilha-marajo-damares-alves-desinformacao/ Acesso em: 1 mar 2024

G1

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Isto É https://istoe.com.br/angelica-juliette-rafa-kalimann-e-outros-famosos-pedem-providencias-contra-abuso-infantil-na-ilha-de-marajo/ Acesso em 1: mar 2024

Ministério Público do Pará

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https://www2.mppa.mp.br/data/files/21/65/A9/9D/736DD8102F73B3D8180808FF/Nota%20MPPA%20Marajo.pdf Acesso em: 29 fev 2024

https://www2.mppa.mp.br/noticias/nota-publica-repudia-posicao-de-ministra-sobre-abuso-sexual-de-meninas.htm Acesso em: 28 fev 2024

https://www2.mppa.mp.br/noticias/promotores-de-justica-do-marajo-emitem-nota-sobre-casos-de-abuso-sexual-no-arquipelago.htm Acesso em: 29 fev 2024

O Globo

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https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/noticia/2024/02/23/guerra-cultural-sobre-pedofilia-na-ilha-de-marajo-envolve-do-planalto-a-nikolas-ferreira-e-artistas.ghtml Acesso em: 28 fev 2024

https://oglobo.globo.com/mundo/epoca/noticia/2023/09/29/video-professora-e-presa-apos-transportar-25-criancas-em-carro.ghtml Acesso em: 1 mar 2024

Paulo Alberto – Criativum Assessoria e Marketing https://pauloalberto.com/ Acesso em: 29 fev 2024

Revista Veja https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/o-que-ha-por-tras-da-aberracao-de-damares/ Acesso em: 29 fev 2024

Secretaria de Estado de Turismo – Governo no Pará https://www.setur.pa.gov.br/polo-marajo#:~:text=O%20Polo%20Maraj%C3%B3%20%C3%A9%20constitu%C3%ADdo,da%20Boa%20Vista%20e%20Soure. Acesso em: 29 fev 2024

Senado Notícias https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/02/26/comissao-pode-investigar-exploracao-infantil-na-ilha-de-marajo Acesso em: 28 fev 2024

Terra https://www.terra.com.br/noticias/aymee-rocha-quem-e-a-cantora-gospel-que-viralizou-com-denuncia-sobre-a-ilha-de-marajo,5fd1af5ae91479401612200c81bbffc5i7m7h6my.html Acesso em: 28 fev 2024

YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=9knadbXLbD4&ab_channel=AYME%C3%8A Acesso em: 27 Fev 2024

https://www.youtube.com/watch?v=HXrucnJQOGo&ab_channel=UOL Acesso em: 29 fev 2024

https://www.youtube.com/watch?v=pNAno1n4DO4&ab_channel=SBTNews Acesso em: 1 mar 2024

https://www.youtube.com/watch?v=qksMX6DUMeE&ab_channel=%D0%98%D0%BD%D1%82%D0%B5%D1%80%D0%B5%D1%81%D0%BD%D0%BE%D0%B5%D0%BE%D0%B1%D0%BE%D0%B2%D1%81%D0%B5%D0%BC Acesso em: 1 mar 2024

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Foto de capa: reprodução YouTube (Aymeê Rocha no reality gospel DOM)

Balanço Janeiro 2024: suspensão de ato que ampliou isenção fiscal a líderes religiosos causa desinformação

O ano começou com polêmicas e informações desencontradas que causaram rebuliços nas redes digitais. Uma dessas celeumas foi a questão envolvendo a suspensão, pela Receita Federal, do Ato Declaratório Interpretativo (ADI) RFB nº 1, de 29 de julho de 2022. Editado pelo secretário da Receita Federal, do governo de Jair Bolsonaro, Julio César Vieira Gomes, o Ato dispôs sobre a não incidência de contribuição previdenciária sobre as “prebendas” – valores pagos por instituições religiosas a padres, pastores, líderes religiosos, em razão do seu ofício. 

Deputados e líderes cristãos publicaram em suas contas no X, antigo Twitter, mensagens sobre o tema, manifestando indignação e revolta com a imprensa e com o atual governo federal pela ação, classificada como desrespeito a pastores, ataque e perseguição. 

Imagem: Reprodução do perfil do Pr. Silas Malafaia no X

Imagem: Reprodução do perfil do deputado Pr. Sóstenes Cavalcante no X

A Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (FPE) também se manifestou. Em seu perfil no Instagram, a entidade divulgou uma nota de esclarecimento, com a acusação sobre “isenção a ministros religiosos” ser “fake news”. A FPE declara que o ADI editado no governo Bolsonaro tinha como objetivo esclarecer dúvidas que a Receita Federal tinha sobre questões previdenciárias dos sacerdotes. Segundo o texto, ao não pagar o valor referente à previdência social das prebendas, deixa-se de descontar do “salário” bruto de seu líder, o que beneficia também a pessoa física.  Além disso, a nota alega risco de líderes religiosos se tornarem alvo de auditores fiscais: “Revogar um ato interpretativo deixa os ministros de qualquer culto à mercê da interpretação particular e do humor dos auditores da Fazenda”. O texto acusa o governo de aplicar “velha tática para promover caos”.

No mesmo dia, as Frentes Parlamentares Evangélicas da Câmara Federal e do Senado Federal distribuíram à imprensa uma “Nota de Repúdio” conjunta na qual acusam a “revogação” do ADI de 2022 como um “ataque explícito” do governo federal ao “segmento religioso”.

Esta posição foi repercutida pelos senadores Magno Malta (PL-ES) e Damares Alves (PL-DF):

Imagem: Reprodução do perfil do Senador Magno Malta no X

Imagem: reprodução do perfil da Senadora Damares Alves no X

Veículos digitais e perfis religiosos também reproduziram a noção de a medida da Receita Federal representar uma perseguição do atual governo a igrejas evangélicas, e obtiveram muitos compartilhamentos de suas publicações.

Imagem: reprodução do site Acre News

Imagem: reprodução do site Poder 360

Entenda o caso

A decisão de suspender o ADI,em 2024, partiu do atual secretário especial da Receita Federal Robinson Barreirinhas,e foi publicada no Diário Oficial da União, em 17/01/2024, seção 1, página 24.

Segundo o ministro da Fazenda Fernando Haddad, a Receita Federal precisava do parecer do Tribunal de Contas da União sobre a legalidade do Ato impetrado em 2022. “Só queríamos um entendimento do TCU sobre a validade do ato”, disse Haddad, em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, no dia 22 de janeiro. O caso está “sob investigação do Ministério Público junto ao TCU” em razão de vícios possíveis. A suspensão se deu porque, segundo a Receita, há dúvidas e a discussão recai sobre quais valores recebidos pelos líderes religiosos são qualificados ou não como “prebendas”. 

O Ato Declaratório Executivo RFB Nº 1, de 2024, que suspendeu o ADI de 2022, se baseou em um processo do Tribunal de Contas da União sobre suspender a eficácia da regra. Entretanto, o TCU desmentiu a Receita e informou, por meio de nota oficial, que o processo que avalia a eficácia da isenção fiscal a líderes religiosos ainda está em análise e negou ter sido o responsável pela decisão do Fisco que determinou essa mudança. “O Tribunal de Contas da União esclarece que o assunto é objeto de análise no processo TC 018.933/2022-0, de relatoria do ministro Aroldo Cedraz, ainda sem decisão do TCU”.

Fernando Haddad também falou sobre o caso à revista Carta Capital, logo após uma reunião no Ministério da Fazenda, em Brasília (DF), no dia 19 de janeiro, com os deputados Silas Câmara (Republicanos-AM), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, e Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. Segundo o ministro, ainda há dúvidas em torno da extensão de benefícios que podem ser indevidos. “O papel da Receita é buscar o entendimento do Tribunal e da Advocacia-Geral para cumprir a lei. Não podemos conviver com uma lei tributária que não dá clareza para o auditor. Então, não foi uma revogação, nem uma convalidação. Foi uma suspensão. Vamos entender o que a lei diz e vamos cumprir a lei”, assegura. 

Haddad explica ainda que a Receita busca entendimento sobre a extensão desse benefício. “Como houve ato não convalidado e há, por parte do TCU, questão que ainda não foi julgada, não podemos continuar convivendo com essa questão (de incerteza sobre interpretação). É para isso que a AGU [Advocacia-Geral da União] foi acionada. Estamos aqui para atender à lei. A AGU foi acionada para pôr fim à discussão. Houve muita politização indevida, estamos discutindo regra e vamos despolitizar isso”, frisa. 

Após o encontro com o ministro, o presidente Frente Parlamentar Evangélica, deputado Silas Câmara recuou em suas críticas. De acordo com matéria publicada no Estadão, os dois anunciaram a criação de um grupo de trabalho para discutir a isenção tributária sobre a remuneração de pastores para evitar a “politização indevida” sobre o tema. 

O histórico da isenção fiscal em questão

De acordo com o artigo publicado no site noticioso JOTA e escrito pelo advogado e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo Eduardo Pannunzio, a não incidência de contribuição previdenciária sobre as prebendas está prevista na legislação brasileira há pelo menos 23 anos. “Foi em 2000, durante o governo FHC, que a Lei 10.170 incluiu um novo parágrafo, 13 ao art. 22 da Lei 8.212/1991 para deixar claro que os valores pagos a título de prebenda não caracterizam ‘remuneração’ e, portanto, não estão sujeitos à contribuição previdenciária”, explica Pannunzio . 

“Do ponto de vista jurídico, portanto, o ADI não representou nenhuma grande novidade. Ainda assim, gerou um fato político que teve significativa repercussão à época”, ressalta Pannunzio, lembrando que 2022 era um ano eleitoral e que tal encaminhamento poderia aproximar ainda mais o ex-presidente Jair Bolsonaro do eleitor evangélico. 

No mesmo artigo, o advogado afirma que o ADI foi suspenso, conforme proposto pelo Ministério Público ao Tribunal de Contas da União (TCU), porque estes desconhecem os motivos jurídicos que levaram à sua adoção (o ato não foi acompanhado da necessária Exposição de Motivos). Entretanto, a Lei 8.212, que garante o benefício, continua vigente. “Portanto, as prebendas, ainda que pagas de forma e montantes diferenciados, continuam não alcançadas pela contribuição previdenciária. A situação das organizações religiosas não foi agravada pela suspensão do ADI”. 

Perdas financeiras 

Outro dado importante levantado, pelo Blog do Otávio Guedes no G1, estima que o Brasil deixou de arrecadar R$300 milhões em tributos após o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ter editado o ato que ampliou a isenção de impostos pagos pelos líderes religiosos. O relatório, ao qual o blog do jornalista global teve acesso, mostra que existem, atualmente, 26 processos administrativos e um judicial questionando a tributação. O valor milionário consta em um relatório sigiloso feito por uma auditoria da Corte de Contas no mês de dezembro de acordo com o blog. A quantia considera valores com “exigibilidade suspensa” ou “parcelada” entre os anos de 2017 e 2023. 

Ainda de acordo com o blog, a auditoria do TCU também recomendou a abertura de uma sindicância contra o ex-secretário da Receita Federa lJulio César Vieira Gomes, que editou o ADI. O relatório aponta que o ex-secretário concedeu benefícios fiscais “sem observar as formalidades legais e regulamentares” e que ele pode ter cometido uma “infração disciplinar e potencial ato de improbidade administrativa”. 

Para quem não se lembra, Vieira Gomes é o mesmo personagem que pressionou seus colegas da Receita para liberar as joias enviadas pela Arábia Saudita ao ex-presidente Bolsonaro. A entrada dos itens no Brasil foi barrada por servidores do Fisco em outubro de 2021, como revelou o jornal Estadão. O secretário foi exonerado no fim de maio de 2023.

Há perseguição a igrejas e suas lideranças com esta medida do atual governo?

Bereia tem realizado várias checagens de publicações, em espaços digitais religiosos, que alegam supostas ações de perseguição sistemática de lideranças políticas, partidos e movimentos da esquerda política a cristãos, particularmente evangélicos, muitas sob a classificação de “cristofobia”. A equipe do Bereia levantou que este tema, casado com o da ameaça de “fechamento de igrejas”, apareceu com mais  intensidade nas mídias sociais a partir de agosto de 2021, quando pesquisas eleitorais passaram a mostrar a força da campanha do Partido dos Trabalhadores (PT) e maior rejeição a Jair Bolsonaro. Cresceu, então, o número de publicações verificadas pelo Bereia que enfatizam a ameaça de fechamento de igrejas com a possível vitória das esquerdas, mais supostas tentativas de silenciamento de lideranças religiosas e de diretores de escola e professores cristãos opostos a pautas referentes à diversidade sexual e à pluralidade religiosa.   

A perseguição a cristãos no Brasil, sob o rótulo de “cristofobia”, tem apelo porque é um discurso que responde à ideia do cristão perseguido como prova de fidelidade ao Evangelho. Porém, o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no país, onde há plena liberdade de prática da fé para este grupo, conforme explica, em artigo para o Bereia, a pesquisadora das religiões Brenda Carranza. Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político. 

Isto se configura uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que pedem mais liberdade e usam desta expressão para garantirem voz contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”, em especial sexuais e reprodutivos e os de comunidades quilombolas e indígenas. Histórias relacionadas a situações ocorridas no exterior são amplamente utilizadas para reforçar a ameaça de que o que se passa fora pode ocorrer no Brasil.

Quando estabelecimentos religiosos precisam se submeter a legislação ou a políticas públicas aos quais certos segmentos resistem cumprir ou se opõem, a noção de perseguição tem se tornado um recurso retórico em contraposição. A equipe do Bereia avalia que parece ser este o caso em relação a encaminhamentos sobre pagamento de impostos, uma vez que a medida alcança todas as agremiações religiosas e a observação das publicações sobre tema indica que apenas uma parcela das lideranças evangélicas explicitou indignação com ela.

Nesta direção, o Sindifisco (Sindicato de Auditores Fiscais da Receita Federal) rebateu a nota da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, que havia insinuado que, com a nova regra, estes profissionais, quando mal humorados, tirariam a paz dos religiosos. A entidade tranquiliza a FPE e diz que os parlamentares não precisam se preocupar com a medida que suspendeu a isenção fiscal a pastores e líderes religiosos. 

Os auditores afirmaram em nota publicada no site da entidade representativa, que atuam de forma isenta e não têm sua atuação pautada por humores ou interpretações particulares. Além disso, alegam que o Ato Declaratório do governo Bolsonaro, que originou toda essa discussão,  invadiu competência do Congresso Nacional, que é quem detém o poder de conferir e limitar isenções tributárias no âmbito da União Federal. 

“A Receita Federal e os Auditores-Fiscais não podem decidir pela ampliação ou redução de isenções tributárias. Esta definição cabe aos deputados federais e aos senadores no exercício do poder a eles conferido pela Constituição Brasileira e pela legislação complementar. As razões pelas quais, à época da publicação do ADI 1 de 2022, o Sindifisco Nacional se manifestou contrário ao Ato Interpretativo, pois tramitou de forma ilegal e usurpou a função do Congresso Nacional de regulamentar o tema”, alega a entidade. 

Outro ponto verificado pelo Bereia é que o senador evangélico Magno Malta, ao verbalizar a sua indignação com o tema na publicação em seu perfil no X, citada nesta matéria, mostrou desconhecer o assunto tratado no Ato Declaratório suspenso pela Receita Federal. No texto divulgado ele confunde o ministro religioso, pessoa física, com a igreja, pessoa jurídica, o que faz propagar mais desentendimento sobre o tema. 

De fato, como diz o senador em seu perfil no X, a isenção fiscal de igrejas e entidades religiosas está prevista na Constituição na Lei Nº 3.193, de 4 de julho de 1957, promulgada pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek. No entanto, o ADI suspenso em janeiro passado  trata do imposto previdenciário, relacionado a proventos pagos a líderes religiosos como indivíduos, pessoa física, com CPF, e não da Igreja como instituição, com CNPJ. 

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Bereia considera enganosas as publicações de líderes religiosos sobre a suspensão da ADI nº 1/2022, pelo atual governo federal, checadas nesta matéria 

No que diz respeito afirmações do Pastor Silas Malafaia e da Nota de Esclarecimento da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, apesar de usarem fatos para construírem suas teses, levam o leitor a acreditar que não houve mudanças com a aplicação do Ato Normativo impetrado durante o governo Bolsonaro. 

De acordo com auditoria que está sendo realizada pelo Tribunal de Contas da União, o ato gerou benefícios fiscais a uma classe específica e portanto deve ser analisado. Não é uma mera orientação, como querem levar a crer os líderes religiosos. Além disso, há uma estimativa de perda de R$300 milhões em tributos, que deixaram de ser arrecadados pelo país durante a vigência do ADI. Portanto, enquanto o TCU analisa o caso, não é possível afirmar que não houve perda ou ganho por qualquer das partes. 

No que diz respeito às acusações de perseguição e ataques a líderes cristãos e a igrejas por conta da medida da Receita Federal em janeiro passado, Bereia alerta  leitores e leitoras sobre a desinformação sobre perseguição a igrejas e cristãos no Brasil. Tal prática não existe e não é projeto de qualquer partido político ou líder religioso. A Constituição do Brasil assegura a liberdade de crença e de culto para todas as religiões. Atos de intolerância contra qualquer grupo religioso devem ser repudiados e denunciados. Afirmações em postagens em mídias sociais sobre a existência de ameaças a igrejas e “cristofobia” (perseguição sistemática) no país não são verdadeiras e são desenvolvidas para campanhas de convencimento e busca de apoio por meio do pânico.

Referências da checagem:

UOL – https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/01/20/tcu-calcula-que-r-300-mi-deixaram-de-ser-arrecadados-com-isencao-dada-por-bolsonaro-a-pastores.htm?cmpid=copiaecola Acesso em: 5 fev 2024

O Antagonista – https://oantagonista.com.br/brasil/fake-news-diz-frente-parlamentar-evangelica-sobre-isencao-a-pastores/#google_vignette  Acesso em: 5 fev 2024

Gazeta do Povo – https://www.gazetadopovo.com.br/republica/bancada-evangelica-diz-que-nunca-houve-isencao-fiscal-a-pastores-dada-por-bolsonaro/  Acesso em: 5 fev 2024

Metrópolis – https://www.metropoles.com/brasil/receita-suspende-isencao-fiscal-a-pastores-dada-por-bolsonaro Acesso em: 5 fev 2024

TCU – https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/nota-de-esclarecimento-8A81881E8C27E349018D197822256C31.htm  Acesso em: 5 fev 2024

EBC – https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-01/tcu-esclarece-que-nao-decidiu-sobre-isencao-lideres-religiosos Acesso em: 5 fev 2024

G1- https://g1.globo.com/politica/blog/octavio-guedes/post/2024/01/18/isencao-a-pagamento-de-pastores-tem-impacto-de-r-300-milhoes.ghtml Acesso em: 5 fev 2024

Poder 360 – https://www.poder360.com.br/congresso/frente-parlamentar-evangelica-fala-em-ataque-explicito-do-fisco/ Acesso em: 5 fev 2024

Jota – https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-provento-de-religiosos-passou-a-ser-tributado-29012024 Acesso em: 5 fev 2024

Carta Capital – https://www.cartacapital.com.br/economia/haddad-recebe-evangelicos-e-diz-que-buscara-entendimento-juridico-sobre-isencoes/ Acesso em: 5 fev 2024

Estadão – https://www.estadao.com.br/politica/silas-camara-frente-parlamentar-evangelica-muda-tom-anulacao-isencao-fiscal-pastores-ministro-fazenda-fernando-haddad-nprp/ Acesso em: 5 fev 2024

Controvérsias sobre filme “Som da Liberdade” são transformadas em pânico moral para propagação de desinformação

Além de ocupar muitas salas de cinema, o filme “Som da Liberdade”, cercado de polêmicas , tornou-se objeto de uma intensa discussão nas redes sociais digitais. 

Portais de notícias gospel e perfis de políticos e líderes religiosos nas mídias digitais elogiaram o filme e convocaram o público para comparecer aos cinemas de todo o país. 

Imagens: reprodução do X (antigo Twitter)

Aqueles que criticam “Som da Liberdade” – seja pela qualidade técnica da obra ou supostas ligações com teorias da conspiração – são acusados de apoiarem o abuso infantil e serem contra a família.

Seria o tráfico internacional de crianças uma guerra travada entre esquerda e direita, como afirmam alguns?

A maioria dos abusos infantis acontecem da maneira como o filme aborda?

Quem critica o filme é condescendente com o abuso infantil?

Bereia checou as informações e as informações oficiais sobre o tema abordado na obra.

Do que trata o filme “Som da Liberdade”?

Baseado em relatos de um ex-agente do governo estadunidense, Tim Ballard, o filme conta a história de um homem que decide combater uma rede internacional de tráfico e abuso infantil

O protagonista atua para resgatar um menino hondurenho separado da irmã por  traficantes de crianças. Na trama, o agente federal descobre que a irmã do menino ainda está em cativeiro e decide embarcar em uma missão perigosa para salvá-la. Com o tempo acabando, ele abandona o emprego e viaja para a selva colombiana, colocando sua vida em risco para libertar a menina.

O filme foi escrito e dirigido por Alejandro Monteverde e conta a história real de ex-agente federal norte-americano. A produção foi filmada em 2018, mas só saiu da gaveta cinco anos depois, sendo distribuída, em um primeiro momento, pela subsidiária latino-americana da 20th Century Fox. 

Após  ter sido vendido para a Disney, o projeto parou, mas foi recuperado por Eduardo Verástegui, um dos produtores do filme. Ele readquiriu os direitos do longa e o ofereceu à Angel Studios, distribuidora de produções cristãs, como The Chosen, que acolheu o projeto. 

O lançamento foi acompanhado de críticas ao filme, que, supostamente, seria promotor de  algumas teorias da Conspiração QAnon, que embasam grupos de extrema-direita.

Som da Liberdade e Teoria da Conspiração Qanon

Ao pesquisar sobre a suposta relação dos produtores do filme com teorias da conspiração extremistas, Bereia verificou que o  ator principal Jim Caviezel, que interpreta o papel do ex-agente, Timothy Ballard, tem histórico de afinidade com tais discursos. Caviezel,  que também atuou no filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson, já participou de uma convenção da extrema direita política nos Estados Unidos, onde promoveu teoria da conspiração sobre suposta drenagem de sangue de crianças para rituais satânicos, tema recorrente nos fóruns de discussão dos adeptos da teoria QAnon.

O grande sucesso do filme entre o público conservador estadunidense, a campanha de compra de ingressos e posterior distribuição gratuita e os elogios recebidos pela obra da parte de personagens da direita americana, gerou análises em torno de “Som da Liberdade”  ser uma propaganda da QAnon.

No Brasil, o filme está lotando as salas de cinemas tendo como público policiais e fiéis cristãos. Os ingressos também estão sendo distribuídos gratuitamente por meio de publicidade em mídidas sociais, associações de policiais estão oferecendo ingressos aos seus filiados, líderes religiosos convocam fiéis para assistirem aos filmes e políticos, como a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), fazem publicidade da obra.

O movimento ou teoria da conspiração QAnon surgiu no final de 2017, nos EUA, quando um usuário do fórum da internet que mantém os usuários anônimos , autointitulado “Q”, alegava ter acesso a documentos e informações sigilosas do Governo dos Estados Unidos. “Q” denunciava uma suposta rede mundial de pedófilos formada por políticos do partido democrata, como o ex-presidente Bill Clinton, celebridades de Hollywood, o magnata George Soros, a chanceler alemã Angela Merkel, apontada como neta de Adolf Hitler e até o Papa Francisco. Para os adeptos dessa teoria, a chamada operação STORM, liderada por Donald Trump, estaria em ação por todo o mundo, no combate à exploração sexual infantil. 

Tais teorias que aparentemente parecem piadas restritas a um pequeno número de seguidores sem crédito, atualmente, são difundidas em massa por apoiadores do ex-presidente Trump. Temas como a negação da pandemia de covid-19 ou a derrota de Trump ter sido uma fraude perpetrada pelas elites globalistas para beneficiar Joe Biden, também fazem parte do repertório QAnon. Em maio de 2019, o FBI declarou que o QAnon representa uma ameaça de terrorismo doméstico.

Como se dá a questão do abuso infantil no Brasil?

O anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apresenta dados assustadores sobre o abuso infantil no país: ao contrário do que expõem algumas obras de ficção, a maioria dos estupros é cometida por pessoas próximas à família, geralmente no momento em que a mãe sai para trabalhar.

De 2020 para 2021 observa-se um  aumento no número de registros de estupro, que passou de 14.744 para 14.921. Já no que tange ao estupro de vulnerável, este número sobe de 43.427 para 45.994, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas).

As meninas são maioria nesta trágica estatística, mas os meninos também são vítimas. No primeiro caso, o número de registros aumenta conforme a menina cresce, já no caso dos meninos, o número de registros aumenta até os seis anos (com pico entre quatro e seis) e depois começa um processo de queda.

Quanto à característica do criminoso, esta continua a mesma: homem (95,4%) e conhecido da vítima (82,5%), sendo que 40,8% eram pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente e 8,7% avós e 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa.

O anuário de Segurança Pública defende a escola como elemento estratégico fundamental para o enfrentamento do estupro de vulnerável. Como a violência acontece dentro de caso e muitas vezes é praticada por um parente,  a escola pode ajudar (e já ajuda) no processo de identificação e denúncia, mas, sobretudo, no processo de prevenção.

Muitas vezes o abusador se aproveita da ignorância da criança e, se ela tiver consciência, dependendo da situação, pode mesmo evitar que o abuso ocorra e denunciar o criminoso. Para aqueles que acham que o ambiente escolar é um risco para os filhos, vale lembrar que apenas 1% dos casos registrados ocorreu em estabelecimento de ensino.

Além dos dados sobre o abuso infantil, o relatóriochama atenção para os casos de exploração sexual e pornografia infantil na internet. Um mapeamento feito em 2020 pela Polícia Rodoviária Federal com a Childhood Brasil aponta que, só nas rodovias federais, há 3.651 pontos de exploração sexual infantil. Mesmo com o problema da subnotificação, este dado aponta que essa é uma questão a ser debatida no Brasil. 

O que se sabe sobre o tráfico internacional de pessoas?

O Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNDOC) explica que os alvos preferenciais dos traficantes são os mais vulneráveis, como migrantes que fogem de países em guerra, em grave crise econômica ou climática. Países em guerra, democracia precária e sem recursos para enfrentar o crime proporcionam aos traficantes um terreno propício para suas operações.

Isso é exacerbado por um maior número de pessoas em uma situação desesperadora, sem acesso às necessidades básicas. Em todos os conflitos analisados, populações deslocadas à força têm sido alvo de traficantes: habitantes de assentamentos de refugiados sírios e iraquianos a afegãos e rohingyas que fogem de conflitos e perseguições. 

A publicação alerta para milhões de mulheres, crianças e homens em todo o mundo que estão sem trabalho, fora da escola e sem apoio social. A previsão é que o risco de tráfico venha a piorar. 

O número de crianças vítimas deste crime triplicou nos últimos 15 anos. A proporção de meninos aumentou cinco vezes. Este grupo é o mais usado para trabalhos forçados. As meninas são mais traficadas para exploração sexual. 

As vítimas do sexo feminino continuam sendo os alvos principais. Quase metade delas identificadas em nível global eram mulheres adultas e 20% meninas. Outros cerca de 20% eram homens adultos e 15% meninos. Em geral, metade das vítimas detectadas foi traficada para a exploração sexual, 38% para trabalhos forçados e 6% envolvidas em atividades criminosas forçadas.

Os dados recolhidos em 148 países identificam 534 tipos de tráfico diferentes e cerca de 50 mil vítimas, embora as vítimas sejam normalmente traficadas dentro de áreas geograficamente próximas.

Num desses exemplos, meninas recrutadas em uma área urbana podem ser exploradas em motéis e bares próximos. Globalmente, a maioria das vítimas é resgatada no próprio país de origem. 

O Relatório aponta que o tráfico de crianças ‒ em especial de meninas ‒ continua sendo uma preocupação fundamental. Desta maneira, o texto indica que as escolas e os professores precisam fazer parte de uma abordagem holística para prevenir o tráfico e reduzir a vulnerabilidade das crianças a ficarem presas em padrões de exploração. 

Segundo o estudo, as intervenções contra o tráfico de crianças podem ser mais eficazes se forem incluídas em programas destinados a proporcionar educação de qualidade a todos, especialmente em contextos com risco acrescido de tráfico, como os campos de refugiados.

A apropriação da pauta da proteção a crianças por extremistas

No Brasil, o filme “Som da Liberdade” tem rendido polêmicas, uma vez lideranças políticas e grupos extremistas têm se apropriado do tema do tráfico infantil para criar pânico moral. Com a abordagem de que “algo está acontecendo sob os olhos das pessoas e nada está sendo feito”, a mensagem do filme é utilizada para alimentar práticas comuns da extrema direita, como a desinformação e o discurso de ódio. 

Para a pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER ) Magali Cunha, “há bastante repercussão sobre o filme nas redes sociais por causa das ações de líderes políticos e religiosos com identidade cristã afinada com a ideologia da extrema-direita”. Os portais de notícias gospel que se identificam com a linha ideológica tem repercutido os assuntos relacionados ao filme. “Todos enfatizam não só a importância de assistir ao filme mas também a conspiração em torno dela”, produzindo a ideia de que as esquerdas políticas se dedicam contra o filme, o que incita a indignação do público alinhado à lideranças que difundem conteúdos desinformativos. 

Para a pesquisadora, “Esse grupo político é notório por lançar mão de pautas relacionadas à defesa da família, das crianças e de jovens para promover pânico moral e teorias da conspiração sobre interesses de ‘um sistema’ que envolveria esquerdas políticas, o comunismo, alguns nomes de empresários, políticos e religiosos interessados na destruição das famílias, na depravação sexual e na exploração de crianças e jovens, inclusive com interesses políticos e financeiros.”

No Brasil, aponta Cunha, a distribuição do filme teve características semelhantes ao que ocorreu nos Estados Unidos. “Toda a publicidade do filme nos Estados Unidos foi construída com essas bases e a defesa dos heróis relacionados à extrema-direita. Nessa propaganda, esses seriam os únicos que estariam, de fato, empenhados em colocar um fim nesse mal.” Com isto, a propaganda omite as ações realizadas no Brasil em diversas frentes, governamentais e não-governamentais.

Bereia classifica como falsas as postagens que atribuem a críticos do filme “Som da Liberdade” uma atuação para que pessoas sejam impedidas de assistir à obra, não gostar de crianças ou comprometimento com pedofilia e tráfico de crianças. As críticas que vêm sendo publicadas ao filme dizem respeito à propaganda conspiracionista em torno dos temas trabalhados pelo filme e às suspeitas em torno dos objetivos da ampla distribuição gratuita de ingressos e da característica dos financiadores.

Bereia alerta leitores e leitoras para o conhecimento dos dados referentes à violência contra crianças e adolescentes no Brasil, na forma de abuso sexual e tráfico humano, e à necessidade de reconhecer as ameaças que existem no âmbito das próprias famílias. É um tema que deve ser tratado com responsabilidade.

Referências de checagem:

UOL.

https://www.google.com/amp/s/www.uol.com.br/splash/noticias/2023/09/22/angel-studios-a-plataforma-crista-por-tras-do-polemico-som-da-liberdade.amp.htm Acesso em 03 OUT 2023

https://cinebuzz.uol.com.br/noticias/cinema/som-da-liberdade-saiba-como-conseguir-ingressos-gratuitos-para-o-filme-mais-polemico-do-ano.phtml Acesso em 05 OUT 2023

Relatório  Global do UNODC de 2022 sobre o Tráfico de Pessoas. https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf  Acesso em 02 OUT 2023

Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas. https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_TIP/Publicacoes/relatorio-de-dados-2017-2020.pdf  Acesso em 02 OUT 2023

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/14-anuario-2022-violencia-sexual-infantil-os-dados-estao-aqui-para-quem-quiser-ver.pdf  Acesso em 02 OUT 2023

Childhood Brasil. https://www.childhood.org.br/pesquisa-mapear/ Acesso em 02 OUT 2023

Movimento QAnon e a religiosidade hackeada: big data, algoritmos e a captura da razão. https://pt.scribd.com/document/576925278/Apresentacao-Anais-Do-VIII-Seminario-Internacional-de-Pesquisas-Em-Midia-e-Cotidiano Acesso em 02 OUT 2023

Folha de São Paulo.

https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/tonygoes/2023/09/a-quem-interessa-que-voce-veja-som-da-liberdade-de-graca.shtml  Acesso em 02 OUT 2023

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/09/som-da-liberdade-e-comercial-meloso-contra-a-sordidez-humana.shtml?pwgt=l4b44773r72po3ukeby0xu4q1l20v6cgcnvm79ngs2mx0b9e&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift Acesso em 03 OUT 2023

https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/tonygoes/2023/09/a-quem-interessa-que-voce-veja-som-da-liberdade-de-graca.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa Acesso em 03 OUT 2023

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/09/som-da-liberdade-e-comercial-meloso-contra-a-sordidez-humana.shtml  Acesso em 02 OUT 2023

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/filhos-de-bolsonaro-damares-e-aliados-exaltam-filme-queridinho-do-qanon.shtml Acesso em 04 OUT 23

https://cinebuzz.uol.com.br/noticias/cinebuzzjaviu/som-da-liberdade-cinebuzz-ja-viu-critica.phtml  Acesso em 02 OUT 2023

Angel Studios. https://www.angel.com/pt-BR Acesso em 02 OUT 2023

Brasil Paralelo. https://www.brasilparalelo.com.br/ Acesso em 02 OUT 2023

Plano Crítico. https://www.planocritico.com/critica-som-da-liberdade/ Acesso em 03 OUT 2023 

Rotten Tomatoes. https://www.rottentomatoes.com/m/sound_of_freedom  Acesso em 03 OUT 2023

Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2021/03/03/qanon-a-teoria-conspiratoria-que-mirou-a-politica-e-acertou-as-relacoes-pessoais Acesso em 03 OUT 2023

El País. https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-12/teorias-conspiratorias-do-qanon-varrem-o-mundo-e-sao-mais-perigosa-do-que-parecem.html Acesso em 03 OUT 2023

Observatório Evangélico. https://www.observatorioevangelico.org/som-da-liberdade-a-estreia-tao-aguardada/ Acesso em 04 OUT 2023

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxx6kl13w7po?ref=observatorioevangelico.org Acesso em 04 OUT 2023

Escreva Lola Escreva. https://escrevalolaescreva.blogspot.com/2023/09/o-som-das-teorias-da-conspiracao.html Acesso em 04 OUT 2023

Portal Making Of. https://portalmakingof.com.br/brasil-paralelo-fecha-parceria-para-o-lancamento-de-som-da-liberdade-no-brasil/ Acesso em 04 OUT 2023

Omelete. https://www.omelete.com.br/filmes/sound-of-freedom-entenda-a-polemica-do-filme#13 Acesso em 05 OUT 2023

Portal G1. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/09/28/som-da-liberdade-a-mobilizacao-de-evangelicos-e-bolsonaristas-para-filme-ser-lider-de-bilheteria-no-brasil.ghtml Acesso em 05 OUT 2023

Twitter. https://twitter.com/DamaresAlves/status/1708266584437850222 Acesso em 05 OUT 2023

Coletivo Bereia. https://coletivobereia.com.br/q-anon-ou-o-novo-discurso-desinformativo/ Acesso em 05 OUT 2023

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Foto de capa: divulgação

Conteúdo sobre drogas em avião da Igreja do Evangelho Quadrangular segue circulando nas mídias sociais

No último 27 de maio, um avião de propriedade da Igreja do Evangelho Quadrangular foi apreendido no Aeroporto Internacional de Belém (PA), com uma carga de 290 quilos de skunk (uma forma concentrada de maconha). A operação realizada pela Polícia Federal (PF) resultou na prisão em flagrante de um indivíduo, por tráfico interestadual de drogas. A PF informou que a droga seria levada para a cidade de Petrolina, em Pernambuco. Minutos antes da decolagem, prevista para 7h30, o responsável pela droga foi abordado, enquanto caminhava do pátio à aeronave. Ao ver a polícia, correu para fora do aeroporto mas foi alcançado e foi autuado em flagrante por tráfico interestadual de drogas.

Ainda de acordo com o relato da PF, a  droga ocupava todo o espaço que sobrava na aeronave, além dos assentos para um passageiro e o piloto. Detalhes da circunstância do crime serão investigados a partir de inquérito aberto.  O piloto não foi preso, pois não foi verificada participação dele no crime. A aeronave foi apreendida, assim como o celular do preso.

A repercussão da notícia foi grande,  porque a imprensa apurou que o avião, com o prefixo PR-WYN, pertence à Igreja do Evangelho Quadrangular, liderada, no Pará,  liderada pelo ex-deputado federal (PTB-PA) e pastor, secretário-executivo da Igreja, Josué Bengtson, tio da senadora Damares Alves (Republicanos-DF).

Segundo a Polícia Federal o pastor Bengtson e  seu filho, o também ex-deputado federal Paulo Bengtson (PTB-PA), atualmente secretário de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia do Pará · coordenavam as movimentações da aeronave no Aeroporto Internacional de Belém.

Pai e filho declararam à PF não terem conhecimento de que a droga seria carregada no avião da igreja.   Ao G1 Pará, Paulo Bengtson afirmou que o avião é da igreja há três anos para transporte de pastores pelo estado. “Durante a pandemia, foi utilizado de forma intensa para o traslado de enfermos (coisa que ocorre até os dias de hoje)”, disse.

O secretário do governo do Estado do Pará afirmou que a aeronave já foi usada para “pequenos transportes de terceiros” por meio de “permutas de voos” mas é “a primeira vez que algo semelhante a esse caso acontece”. Paulo Bengtson também disse que a igreja aguarda a conclusão dessa investigação, na certeza da punição de todos os envolvidos.

PF já investigava o uso ilícito do avião

A Igreja do Evangelho Quadrangular distribuiu à imprensa uma nota, em29 de maio, na qual se posiciona sobre o caso:

A Igreja do Evangelho Quadrangular recebeu com surpresa a notícia do envolvimento do monomotor Bonanza, de sua propriedade, com carga não autorizada.

Ao tomar conhecimento, imediatamente, a Igreja do Evangelho Quadrangular do Estado do Pará acionou a Polícia Federal, que efetuou a prisão de uma pessoa e apreendeu a carga.

É interesse da Igreja que tudo seja esclarecido e, portanto, reafirma o seu compromisso de colaborar com as investigações.

Atenciosamente,

Igreja do Evangelho Quadrangular

Por meio de sua conta no Instagram,  a senadora Damares Alves reforçou a nota da igreja, dizendo que a denúncia sobre a carga de drogas no avião foi feita pela própria Igreja Quadrangular. O site de notícias Metrópoles publicou a nota da assessoria da parlamentar em 29 de maio: “A senadora Damares Alves confirma que o ex-deputado federal Josué Bengston é seu tio. Sobre a operação realizada pela Polícia Federal em Belém, nesse final de semana, a senadora tomou conhecimento hoje pela manhã, através da imprensa. Damares Alves entrou em contato com a família e foi informada que a denúncia à Polícia Federal sobre uma carga suspeita carregada na aeronave foi realizada pelos responsáveis pelo avião, ou seja, pela própria Igreja. Em seguida, a Polícia Federal assumiu o caso e tomou as medidas cabíveis”.

Damares ALves no plenário do Senado.
Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Entretanto, a jornalista Andréia Sadi afirmou ter procurado a PF para esclarecimento do assunto em 30 de maio: “Em nota, a corporação disse que a ‘ação foi realizada a partir de informações de inteligência do Núcleo de Polícia Aeroportuária da PF’”.

Andréia Sadi afirmou que a Polícia Federal não fez qualquer menção ao que afirmaram a Igreja Quadrangular e Damares Alves de que a direção da igreja é que teria acionado a instituição para denunciar o ocorrido. Ainda conforme apuração da jornalista, “já havia um acompanhamento da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), da PF, pela movimentação suspeita com a aeronave, o que levou ao flagrante”.

Tio e padrinho político de Damares Alves

O pastor e ex-deputado federal Josué Bengtson, além de tio, é também padrinho político de Damares Alves.

A senadora foi consagrada pastora da Igreja Quadrangular pelo tio, nos anos 1980. Em 1999, ela entrou no mundo da política, quando passou a trabalhar como auxiliar parlamentar no gabinete de Bengtson, então eleito deputado federal pelo PTB-PA.

A família Bengtson tem histórico de envolvimento em situações ilícitas. O pastor Josué Bengtson perdeu o mandato na Câmara Federal e os direitos políticos por oito anos, em 2018, quando foi condenado pela Justiça Federal por enriquecimento ilícito em um esquema de desvios de recursos da saúde no Pará, caso conhecido como “Máfia das Ambulâncias”. O pastor ainda foi condenado a multa de R$ 150 mil.

Com o pai inelegível, um dos filhos, Paulo Bengtson, se candidatou em 2018 e foi eleito deputado federal também pelo PTB-PA. Durante o mandato, foi secretário da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), grupo que reúne, no Congresso, deputados e senadores da bancada ruralista. Ele não conseguiu se reeleger em 2022 e se tornou secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia do Pará.

Josué Bengston quando deputado federal. Foto: Leonardo Prado / Câmara dos Deputados

Marcos Bengtson, outro filho do pastor Josué Bengtson, foi preso em 2010, acusado de ser o mandante do assassinato do sem-terra José Valmeristo Soares, o Caribé, em Santa Luzia (PA). Na época do assassinato, Marcos Bengtson era administrador da Fazenda Cambará, atualmente Acampamento Quintino Lira, terra pública possivelmente grilada pela família Bengtson, segundo o Observatório do Agronegócio no Brasil. A área já está georreferenciada para criação do assentamento.

Em 2014, após ação de reintegração de posse pedida pela família e negada pela Justiça, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realizou vistoria e demarcou a área. Dias depois, a demarcação foi destruída a mando do fazendeiro. As agressões aos sem-terra continuaram.  Há um requerimento na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em curso na Câmara Federal, para que Marcos Bengtson seja ouvido como testemunha.

Saiba mais sobre a Igreja [Pentecostal] do Evangelho Quadrangular, fundada no Brasil, em São João da Boa Vista, São Paulo, em 1951, por missionários dos EUA, aqui.

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De acordo com a checagem, Bereia considera inconclusiva a notícia sobre o possível envolvimento da Igreja do Evangelho Quadrangular em Belém (PA) em transporte de drogas, uma vez que há uma investigação em cursopela Polícia Federal. As notícias sobre o avião apreendido com 290 kg de skunk, que pertence à Igreja do Evangelho Quadrangular, bem como do envolvimento de seus líderes em ilícitos anteriores, oferecem conteúdos de substância informativa, mas não apresentam todos os elementos necessários para uma afirmação de que a igreja e/ou suas lideranças tenham um envolvimento neste caso.  Bereia conclama leitores e leitoras a pesquisarem sobre os desdobramentos desta situação e de quaisquer outra sob investigação antes de divulgarem qualquer afirmação acusatória a pessoas ou instituições.

Referências de checagem:

G1. https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2023/05/30/pf-ja-acompanhava-movimentacao-de-aviao-de-igreja-flagrado-com-290-kg-de-droga-no-para.ghtml. Acesso em 2 jun 2023

CNN. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pf-detem-uma-pessoa-e-apreende-290-kg-de-maconha-em-aviao-da-igreja-quadrangular/. Acesso em 5 jun 2023

O ESTADO DE SÃO PAULO. https://www.estadao.com.br/brasil/aviao-de-igreja-flagrado-com-290-quilos-de-maconha-no-para-policia-federal-investiga-o-crime-nprm/. Acesso em 2 jun 2023

GGN. https://jornalggn.com.br/noticia/familia-da-ministra-de-direitos-humanos-tem-historico-de-corrupcao-e-violencia/?fbclid=IwAR1_0YYBpoHuWzMIoz9Yqju4LqIKT6tSBz_YZkLsR6NY9sHVY6hYcpSQfOE. Acesso em 5 jun 2023

METRÓPOLES. https://www.metropoles.com/brasil/aviao-apreendido-com-290-kg-de-skunk-era-usado-pelo-tio-de-damares-alves. Acesso em 2 jun 2023

O GLOBO. https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/05/damares-se-manifesta-apos-pf-apreender-290-kg-de-maconha-em-aviao-da-igreja-de-seutio.ghtml?utm_source=Twitter&utm_medium=Social&utm_campaign=OGlobo. Acesso em 6 jun 2023

REVISTA FORUM. https://revistaforum.com.br/politica/2023/5/30/avio-de-tio-de-damares-com-290kg-de-skunk-no-teria-sido-denunciado-pela-igreja-136819.html . Acesso em 2 jun 2023

Instagram  https://www.instagram.com/p/Cs1hmtPO_pH/?igshid=MTc4MmM1YmI2Ng%3D%3D&fbclid=IwAR2v1rO4lfXO5RL1Pw-vlvlVH8qkMiVNYUsh-z7hGLC7-Oa_8g3tLR9wEc4. Acesso em 2 jun 2023

SBT News. https://www.sbtnews.com.br/noticia/policia/248600-pf-apreende-290kg-de-droga-em-aviao-de-igreja-no-para . Acesso em 5 jun 2023


Polícia Federal. https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2023/05/policia-federal-apreende-carga-de-290kg-de-skunk Acesso em 12 jun 2023

*** Foto de capa: site da Polícia Federal

Senadora evangélica publica montagem desinformativa sobre o desemprego

Na tentativa de comparar dados sobre o desemprego no Brasil para criticar o atual governo, a senadora evangélica Damares Alves (Republicanos/DF) publicou uma montagem que utiliza reportagens da Rede CNN e do portal de notícias G1, da Rede Globo, junto com as fotos de Lula e Bolsonaro. As matérias anunciam dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Imagem: reprodução do Instagram

Bereia consultou os dados da ​​pesquisa do IBGE, mencionados por Damares Alves em sua comparação. É correto, de acordo com o instituto, que no período de julho-agosto-setembro do ano passado, a taxa de desemprego no Brasil foi de 8,7%. Já no período de dezembro-janeiro-fevereiro deste ano a taxa foi, de fato, de 8,6%.

Porém, a variação percentual nesses trimestres não é informada na publicação da senadora, o que pode levar seguidores ao erro. No trimestre outubro-novembro-dezembro, ainda no governo Bolsonaro, por exemplo, a taxa chegou no menor valor, 7,9%. O número aumentou logo no trimestre seguinte, novembro-dezembro-janeiro para 8,4%. 

Quando considerados apenas os dois períodos citados nas manchetes dos jornais (8,7% – 8,6%) por Damares Alves, a taxa se mantém estável.

Imagem: reprodução site IBGE

Como comparar as taxas de desemprego

Uma comparação correta entre as taxas de desemprego é a que leva em conta o trimestre anterior (no caso, novembro-dezembro-janeiro, no final do mandato do governo Bolsonaro, que teve 8.4%), o que demonstra uma alta em dezembro-janeiro-fevereiro de 2023, nos primeiros meses do governo Lula de 0,2%. 

Outra comparação corrente e correta deve se dar entre o trimestre atual e o mesmo trimestre do ano anterior, 2022. Nesse caso, verifica-se dezembro-janeiro-fevereiro de 2023 com 8,6% frente a dezembro-janeiro-fevereiro de 2022 com 11,2%, durante o governo Bolsonaro, o que representa uma baixa nestes primeiros meses do governo Lula, equivalente a 2,6%.

Imagem: reprodução site IBGE

Bereia considera que a montagem publicada pela senadora é enganosa, pois utiliza dados verdadeiros do IBGE, mas produz comparação descabida entre trimestres avulsos, além de omitir informações relevantes ao leitor: (1) não faz as comparações corretas, com dados do trimestre anterior e do mesmo trimestre do ano anterior; (2) não considera fatores sazonais, como o aquecimento do comércio durante as festas de final de ano, por exemplo, com trabalho temporário, que decresce nos meses seguintes.

Referências de checagem:

G1 https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/03/31/desemprego-sobe-a-86percent-no-trimestre-encerrado-em-fevereiro-diz-ibge.ghtml Acesso em: 4 abr 2023

CNN https://www.cnnbrasil.com.br/economia/desemprego-cai-para-87-no-trimestre-encerrado-em-setembro-diz-ibge/ Acesso em: 4 abr 2023

IBGE

https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?edição=36565 Acesso em: 4 abr 2023

https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?edicao=35281 Acesso em: 4 abr 2023

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Foto de capa: Marcelo Casal Jr./Agência Senado

Lideranças evangélicas publicam falsidades sobre a crise humanitária dos Yanomamis

* Matéria atualizada em 24/01/2023 às 12:54 para ajustes de texto e inserção de informações

Bereia recebeu pedido/s de checagem quanto à crise humanitária do povo Yanomami. Após a /divulgação de denúncias  da grave situação de inanição e desnutrição de homens, mulheres e crianças indígenas, uma comitiva liderada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e os ministros dos Direitos Humanos, da Saúde, dos Povos Originários e da Defesa visitou, em 21 de janeiro, a região dos yanomamis em Roraima.

Apesar dos documentos anteriores (que somaram várias páginas), ações de socorro aos povos da tribo Yanomami abortadas e dos relatos do drama daquelas pessoas, que vieram à tona nos últimos dias, influenciadores evangélicos e simpatizantes do ex-presidente Jair Bolsonaro disseminaram desinformação.  Publicações em mídias digitais passaram a questionar a veracidade das imagens, os dados apresentados, a nacionalidade dos indígenas (com a falsa alegação de que são venezuelanos) e, também, o grau de responsabilidade do governo anterior diante das denúncias de etnocídio e pelas mortes por inanição, que  entre elas mais de 500 crianças. 

Imagem: reprodução do site Poder DF
Imagem: reprodução do Instagram do pastor Ricardo Martins

O Ministério da Saúde instalou o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE – Yanomami) como mecanismo nacional da gestão coordenada da resposta neste campo. A gestão do COE estará sob responsabilidade da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai/MS), considerando a tipologia da emergência. 

Uma equipe da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) com 13 profissionais instalou um Hospital de Campanha. Outra equipe multidisciplinar com oito profissionais da área de saúde da Aeronáutica (FAB) foi deslocada de Manaus (AM) para a região de Surucucu (a cerca de 270 km a oeste da capital roraimense).  Outra medida é o início do transporte de retorno para as aldeias dos yanomamis sem problemas de saúde e que se encontram na Casa de Saúde Indígena de Boa Vista. 

Por determinação do presidente Lula, os ministros de diversas áreas estão adotando uma série de medidas de enfrentamento à grave crise.

A ação interministerial irá acompanhar de perto a crise sanitária do povo Yanomami, vítima de desnutrição e de outras violações dos direitos humanos – com atenção especial para as ameaças de morte a autoridades, agentes de saúde e indigenistas, já anteriormente denunciadas ao Governo Federal (leia aqui o inteiro teor das denúncias anteriores)

Damares se defende, mas cai em contradição

No campo das denúncias que circulam nas mídias sociais, além de Jair Bolsonaro,  o nome mais citado de autoridades a serem responsabilizadas  é o da ex-ministra e senadora eleita Damares Alves (PL/DF).

Imagem: reprodução do site Yahoo!Notícias
Imagem: reprodução da coluna de Guilherme Amado, no site do jornal O Globo

Imagem: reprodução de tweets do procurador do MPF Mario Bonsaglia relatando a situação com os Yanomamis nos últimos três anos

Com a publicação de matérias jornalísticas que expuseram documentos e ofícios que mostram omissão do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos diante de denúncias da grave situação dos yanomamis, desde 2019, Damares Alves publicou tuítes nos quais alega ter realizado ações a favor dos indígenas, afirmando que os governos anteriores é que provocaram o caos. Tais justificativas, que serão checadas posteriormente pelo Bereia, acabaram contrapondo seus próprios apoiadores e os do governo Bolsonaro que insistiam nas publicações de negação da crise humanitária e da identidade dos yanomamis.

Imagem: reprodução do Twitter do Ministério da Saúde

Na noite de 23 de janeiro, o Ministério da Saúde publicou nota com a afirmação de que é falsa a informação de indígenas encontrados em estado grave não são brasileiros. 

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Bereia verificou serem falsas as publicações que circulam em mídias digitais de lideranças e influenciadores religiosos negadoras da crise humanitária e da própria identidade dos yanomamis brasileiros, habitantes da terra indígena em Roraima. Qualquer publicação neste sentido, além de falsa, é manifestação de desumanidade diante da situação dramática vivida por aquela população.

Referências de checagem:

Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/conheca-as-medidas-de-socorro-aos-yanomami-ja-anunciadas-pelo-governo-federal Acesso em: 23 jan 2023.

Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2197283 Acesso em: 23 jan 2023.

O Globo.
https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme-amado/damares-alegou-falta-de-consulta-indigenas-ao-pedir-veto-para-oferta-de-uti-agua-potavel-24632056?versao=amp Acesso em: 23 jan 2023.

Yahoo!Notícias. https://br.noticias.yahoo.com/veto-de-bolsonaro-a-lei-de-protecao-a-indigenas-foi-pedido-de-damares-141323609.html Acesso em: 23 jan 2023.

Twitter.
https://twitter.com/Mario_Bonsaglia/status/1617315163626946560?t=4gdNGTxGwgxuBFU1LO-AYg&s=19 Acesso em: 23 jan 2023.

https://twitter.com/DamaresAlves/status/1617219040535089154?cxt=HHwWhMC8scSJwvEsAAAA Acesso em: 23 jan 2023.

https://twitter.com/minsaude/status/1617648714566471693 Acesso em: 23 jan 2023.

Ministério da Saúde. https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/ministerio-da-saude-esclarece-que-indigenas-resgatados-no-territorio-yanomami-sao-brasileiros-1 Acesso em: 23 jan 2023.

FERNANDES, Rhuan Muniz Sartore. A epidemia do garimpo ilegal e o avanço da covid-19 na terra indígena Yanomami. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 214-226, maio-agosto de 2021.

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Foto de capa: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Matérias da Folha de S. Paulo e de O Globo alimentam desinformação sobre perseguição a igrejas no período pós-eleitoral

Matéria publicada pela Folha de S. Paulo, em 24 de novembro passado, com o título “Lula diz que vai cobrar apoio de evangélicos a vacinas ou responsabilizar igrejas por mortes” foi fonte para uma série de publicações críticas ao presidente eleito em mídias digitais religiosas. 

Imagem: Reprodução do site do jornal Folha de S. Paulo

As publicações, como as reproduzidas a seguir, em sites de notícias gospel e mídias sociais de apoiadores religiosos do atual governo, ganharam tom de terror verbal e deram fôlego ao tema desinformativo mais disseminado durante as eleições, segundo levantamento do Bereia, a “perseguição a cristãos e a igrejas”. 

Imagem: reprodução site Pleno.News

Interface gráfica do usuário, Texto, Aplicativo
Descrição gerada automaticamente
Imagem: reprodução do Twitter, perfil de Damares Alves, 24 nov 2022

Imagem: reprodução do Instagram do senador eleito Magno Malta (PL/ES), 26 nov 2022

A matéria da Folha de S. Paulo

A matéria que serviu de base para nova safra de publicações sobre “perseguição a igrejas”, relata reunião fechada da equipe de saúde do governo de transição com representantes de várias áreas da saúde, em 24 de novembro, em Brasília. Segundo o jornal, a reunião teve formato híbrido e a participação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se deu por vídeo. 

No relato da Folha de S. Paulo, Lula teria afirmou aos participantes da reunião: “Eu pretendo procurar várias igrejas evangélicas e discutir com o chefe delas: ‘Olha, qual é o comportamento de vocês nessa questão das vacinas?’”. Ele teria dito ainda, segundo o texto: “Ou vamos responsabilizar vocês pela morte das pessoas”.

O presidente eleito ainda teria dito, de acordo com a matéria, que os primeiros cem dias de seu governo terão como foco a recuperação do PNI (Programa Nacional de Imunizações), o aumento da cobertura vacinal e a restauração da confiança da população, que, segundo a avaliação de Lula, foi afetada por fake news sobre o tema. “Vamos ter de agora pegar muita gente que combateu a vacina que vai ter de pedir desculpa”, teria dito o presidente eleito.

A matéria da Folha de S. Paulo relatou ainda que Lula se comprometeu a “enfrentar a burocracia da máquina pública” diante do sofrimento da população na busca de atendimento médico e atender demandas com a questão do autismo. Além destes temas e o da cobertura vacinal, o fortalecimento do Serviço Único de Saúde (SUS) também foi pauta do diálogo com o presidente eleito, segundo o jornal.

A reportagem cita a participação de ex-ministros da Saúde na reunião (Alexandre Padilha, Arthur Chioro, José Gomes Temporão, José Agenor e Humberto Costa, bem como de representantes do Instituto Butantan, da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), da Fiocruz, do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) e ex-chefes de PNI, entre outros órgãos. 

A fala do presidente eleito na reunião fechada durou cinco minutos, foi assistida por algum interlocutor em um notebook, gravada em telefone celular e publicada em link da TV UOL. O link está inserido na matéria da Folha de S. Paulo. A menção às igrejas evangélicas foi uma parcela do total da exposição de Lula que durou 38 segundos.

Reações e novo destaque no noticiário

O destaque do jornal Folha de S. Paulo à parcela da fala do presidente que mencionou as igrejas provocou publicações críticas, como as citadas acima, e notas públicas de organizações evangélicas. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) publicou nota de repúdio à fala de Lula na reunião fechada, em 25 de novembro, com base na matéria do jornal. 

Segundo a nota da Anajure, o repúdio refere-se ao fato de Lula, “ao generalizar o segmento evangélico, desconsidera os múltiplos exemplos de colaboração de interesse público ocorridos na pandemia e na sociedade brasileira, afastando-se da via adequada para os debates acerca da vacinação com as entidades religiosas e o público em geral, qual seja, o do consentimento informado”. 

A Anajure afirma na nota que “tal perspectiva, que aposta num consentimento informado, colide com discursos excludentes que, próximos da ameaça, terminam por se mostrar contraproducentes”.

A Frente Parlamentar Evangélica também publicou nota de repúdio, assinada pelo presidente, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), também em 25 de novembro. No texto, a FPE se coloca “em defesa de todos os Evangélicos do Brasil” para repudiar a fala de Lula. Segundo o texto, “ao complementar a fala LULA disse que vai ‘pegar muita gente’ demonstrando claro intuito de perseguir preconceituosamente à comunidade Evangélica, visto que não se referiu a nenhuma outra organização religiosa, sindical e ou a qualquer outro segmento da sociedade que defende a ampla liberdade de escolha de seus integrantes”.

A FPE, mantendo a postura de oposição ao presidente eleito com uso do terror verbal, ainda afirma na nota que: “Discursos como esse reforçam a necessidade de continuarmos conclamando nossa sociedade a refletir sobre os fundamentos e os princípios que nortearão a República, caso Lula assuma e permaneça na presidente, eis que tal fala conduz o país ao temeroso caminho da discriminação, preconceito e intolerância religiosa, especificamente contra os Evangélicos”.

O jornal O Globo repercutiu o caso, na mesma direção da Folha de S. Paulo, e publicou, em 26 de novembro, matéria com o título “Pastores e bancada evangélica reagem a cobrança de Lula sobre vacina”. 

Imagem: reprodução de O Globo, 26 nov 2022

Para o conteúdo, o jornal fez uso de um vídeo publicado em mídias sociais, pelo pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, no qual ele critica o Partido dos Trabalhadores (PT) e afirma que o presidente eleito tem “preconceito com a igreja evangélica”.

O Globo ainda transforma em notícia um extrato da gravação do pastor Malafaia em que ele ataca o presidente eleito e o Supremo Tribunal Federal de forma grosseira: “Que moral o Lula tem para cobrar alguma coisa? Vai lavar essa sua boca de cachaça. você só está aí porque tem amiguinho no STF (Supremo Tribunal Federal) que liberou você. Você foi condenado em todas as instâncias por corrupção. Quero ver que líder evangélico que vai receber esse crápula”.

Além de Silas Malafaia, os pastores ouvidos por O Globo, críticos à fala de Lula, foram os deputados federais vinculados às Assembleias de Deus, apoiadores da reeleição de Jair Bolsonaro, Sóstenes Cavalcate, Otoni de Paula (MDB/RJ) e Marco Feliciano (PL/SP). Um deputado federal pastor foi ouvido “em contraponto”, Davi Soares (União/SP), da Igreja Internacional da Graça de Deus, que, segundo a matéria, afirmou que “sua igreja ‘é 100% a favor da imunização’ e que tomou quatro doses da vacina contra a Covid-19”. O pastor e deputado apoiador do atual governo, declarou à reportagem ter as portas abertas ao diálogo com Lula: “O presidente, tendo contato com as lideranças das igrejas, verá que apoiamos a vacinação por completo. Tomara que ele as procure”.

O tom da reunião da equipe de transição 

Para compreender o contexto da fala do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na reunião com o Grupo de Trabalho em Saúde da equipe de transição para o novo governo, Bereia ouviu a pesquisadora da Fiocruz e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) Dra. Socorro Souza. Ela integra o GT como representante da diversidade regional, racial e de gênero na área da saúde. 

Socorro Souza avalia que a matéria da Folha de S. Paulo cobre “incorretamente ou insuficientemente alguns dos importantes pontos abordados na reunião; que não somente a fala do presidente eleito”.   A ex-presidente da CNS relata que foi tratado o relevante tema da defasagem no orçamento da saúde decorrente do teto de gastos, superior aos 22,7 bilhões  anunciados. Segundo ela “este valor a ser recomposto resulta da aplicação da Lei 141/2012, que determina à União aplicar o valor do ano anterior somado à variação do PIB. Algo que se aproxima de 10% da receita corrente líquida da União”. 

Sobre a vacina e o Plano Nacional de Imunização (PNI), Socorro Souza explica que “o presidente iniciou sua fala referindo-se à importância de se falar com a sociedade, as famílias e o povo (e não somente os evangélicos) para que possam voltar a acreditar na eficácia das vacinas, e não mais nas ‘brincadeiras’ ditas pelo atual governo”.  

A pesquisadora acrescenta que Lula “fez elogios aos trabalhadores da saúde e afirmou que quer que o trabalhador tenha qualidade de vida. Que vai procurar conversar com líderes religiosos (das igrejas)”. Socorro Souza acrescenta que o presidente eleito “mencionou, neste contexto, a responsabilidade sanitária de autoridades. Sobre responsabilidade por mortes, a referência foi feita a Bolsonaro, atual Presidente da República”.

A ex-presidente do CNS ouvida pelo Bereia, reitera a fala do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, citada na matéria da Folha de S. Paulo, que, segundo ela, “contextualiza e usa palavras que retraram o exato sentido dos conteúdos abordados na reunião”. Ela se refere ao trecho da reportagem que cita a afirmação de Chioro: “Muito bom saber que nós temos um presidente que participa da reunião com a sociedade de especialistas e que se compromete [com a pauta]. O Brasil vai contar com o presidente da República liderando a retomada do nosso Programa Nacional de Imunização e do enfrentamento da pandemia”.

A fala de Lula na reunião (transcrição em blocos de assuntos):

00:00 a 1:30 (um minuto e meio): Primeiro, eu estou muito feliz com a reunião. Era exatamente este tipo de discussão que eu queria ouvir. E estou mais preocupado é como vocês vão sistematizar toda esta história. O dado concreto, gente, é que vou sair agora e só queria dizer o seguinte. Nós vamos ter que tratar neste mandato na saúde tentando vencer um pouco a burocracia na máquina pública. Você foi ministro, Padilha foi ministro, Humberto foi ministro, Temporão foi ministro, e sabe como às vezes a máquina emperra, a máquina não anda. Às vezes um burocrata faz e não faz, nós vamos ter que tentar lidar com isto porque todo o nosso lema, além da saúde de qualidade é a gente tentar atender este povo, povo está muito sofrido. Consegue até ir a Upa depois não consegue mais nada. O povo fica esperando, esperando e a gente não pode deixar isto. 

1:31-2:09 (38 segundos): A gente não pode, de forma precipitada, achar que a gente anunciar vacina, o povo vai tomar. Não. O povo tem que ser convencido outra vez da eficácia da vacina, e nós vamos ter agora que pegar muita gente que combateu a vacina, que vai ter que pedir desculpa. Eu, pelo menos, pretendo procurar várias igrejas evangélicas e discutir com o chefe deles o seguinte: ‘Qual é o comportamento de vocês nessa questão da vacina?’ Ou nós vamos responsabilizar vocês pelas mortes das pessoas.

2:10-2:19 (nove segundos): Outra coisa que me preocupa é que temos que levar médicos para o interior longínquo, para aqueles lugares que ninguém quer ir.

2:20-2:49 (29 segundos):  Estamos com um desafio muito grande. Nós temos que tentar fazer. Neste ano, eu tenho desejo de fazer neste ano tudo o que eu não fiz em oito anos. A gente não conseguiu fazer porque não conseguiu, não tinha expertise para fazer. Hoje nós temos muita gente com expertise, temos aí cinco ministros, muita gente com expertise para ajudar. 

2:50-3:00 (10 segundos): Nos próximos dias eu vou passar a escolher o ministério e qualquer ministro da saúde, da educação, vai ter uma gama de gente para ajudar, não para atrapalhar. 

3:01-3:36 (35 segundos): A saúde para mim é uma coisa muito dura porque a gente ouve no palanque, quando a gente desce do palanque, as pessoas que vêm abraçar a gente, muitas vezes, vêm pedir coisas, e uma coisa que me assusta é a preocupação com o autismo. Você não tem noção, Chioro, quantas pessoas no palanque falavam ‘Lula, faz alguma coisa pelo autismo, eu tenho um filho autista”. É uma coisa que eu nem me dava conta. 

3:37-4:16 (39 segundos): nós precisamos voltar a ter uma medicina humanizada, qualificada e funcional. Esta é a ideia básica e por isso é que eu estou gostando da reunião. Esta reunião serve de base para a gente ter um bom começo de mandato. Eu não posso estar anunciando algumas coisas e esperar três meses para começar. Tem que ser logo. Por exemplo, farmácia Popular, estas coisas, nós vamos ter que dar de bico, e começar a ganhar este jogo. 

4:17-5:00 (43 segundos): eu queria só agradecer. Padilha, a Janja acha que eu estou falando demais, eu queria agradecer [comentários]. Espero que vocês vão ter um relatório disto que eu gostaria de receber – está gravando, né Padilha? Eu quero receber tudo. Vocês vão ficar até que horas? [comentários]. Se eu puder eu entro um pouco à noite. Muito obrigado.

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Bereia classifica as matérias da Folha de S. Paulo e de O Globo como imprecisas. Os veículos de notícias desinformam com imprecisão em vários elementos.

A Folha de S. Paulo promove desinformação ao dar destaque à menção de 38 segundos sobre as igrejas evangélicas na fala do presidente eleito, sem contextualizá-la, no que dizia respeito ao tratamento do tema do Plano Nacional de Imunização, colocado na reunião como uma das prioridades para o novo governo na área da saúde.  O papel das igrejas evangélicas não foi o tema central da reunião e nem da fala de cinco minutos de Lula, que teve oito blocos temáticos, como se pode observar na transcrição oferecida pelo Bereia nesta matéria. 

A desinformação, produzida por extrato de material de reunião fechada da equipe com a participação do presidente eleito, destacada no título da matéria (muitas vezes, o único conteúdo lido pelo público), induz à compreensão de um destaque às igrejas evangélicas que não ocorreu. A opção do jornal por uma hierarquização temática, que provocou reações entre os evangélicos, citados brevemente na reunião, leva à conclusão de ter ocorrido uma deliberada alimentação da tensão já existente com o presidente eleito desde o período eleitoral, com a suposta ameaça de perseguição a igrejas em futuro governo de esquerda.

Isto se reflete na forma como as reações se deram em publicações de indivíduos e de mídias religiosas apoiadores do atual governo e nas notas públicas de organizações ligadas ao segmento evangélico. Elas reacenderam o tema desinformativo da “perseguição a igrejas” como usado na campanha eleitoral de oposição à candidatura de Lula. 

A ação desinformativa da Folha de S. Paulo se estende na matéria de O Globo, que repercute várias reações críticas de líderes evangélicos, a maioria políticos de oposição ao presidente eleito. O jornal chega a publicar um ataque grosseiro a Lula, em vídeo publicado na internet, que atinge também o STF e faz uso de mentiras, sem informação que ofereça contraposição. 

A reportagem de O Globo ouviu apenas um deputado federal pastor “em contraponto” e desconsiderou outros que teriam relevância para o tema, como lideranças fora do campo político, que pudessem opinar sobre uma possível cobrança de apoio das igrejas em relação à vacinação.

A desinformação se configura ainda no fato de que nem a Folha de S. Paulo nem O Globo recuperaram o papel exercido por diferentes lideranças evangélicas no contexto da pandemia de covid-19 para se verificar a pertinência de uma “responsabilização” em relação a “comportamento em relação a vacinas” da parte do futuro governo. Estes veículos de notícias também não buscaram informação dos participantes da equipe de transição sobre o porquê da menção de igrejas evangélicas pelo presidente eleito quando o tema tratado foram as vacinas.

Referências de checagem:

TV UOL. https://tvuol.uol.com.br/video/lula-participa-de-reuniao-online-com-grupo-tematico-de-saude-na-transicao-04028C183072C4897326. Acesso em 28 nov 2022.

Anajure. https://anajure.org.br/nota-publica-sobre-fala-de-lula-quanto-a-responsabilizacao-de-igrejas-evangelicas-em-relacao-a-vacinacao/. Acesso em 28 nov 2022.

Frente Parlamentar Evangélica. https://www.facebook.com/fparlamentarevangelica/posts/pfbid02uft5L2zjkaTD9fnfgS95NdKuxrvPFssrqVBsRQ4xJA9jJaX3uqDEKonbdya3cJ8Vl. Acesso em 28 nov 2022.

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“Ideologia de gênero” é um dos temas explorados por quem produz desinformação em espaços religiosos nestas eleições

Um dos conteúdos falsos e enganosos mais explorados em espaços digitais religiosos em períodos eleitorais no período recente é o da “ideologia de gênero”. Surgido no ambiente católico e abraçado por distintos grupos evangélicos, que reagem negativamente aos avanços políticos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações diversas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. 

Nessa lógica, a “ideologia de gênero” é falsamente apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional” com educação sexual para “depravação sexual” e conversão à “homossexualidade”, “defesa do aborto e da pedofilia”, com geração de pânico moral e terrorismo verbal entre grupos religiosos. 

De acordo com o pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados da Universidade de Brasília (UnB) Rogério Diniz Junqueira, “a maioria dos estudiosos do tema concorda que o sintagma [a expressão] ‘ideologia de gênero’ é uma invenção católica que emergiu sob os desígnios do Pontifício Conselho para a Família e da Congregação para a Doutrina da Fé, entre meados da década de 1990 e no início dos 2000”.

Instrumentalizado pela extrema direita nas eleições de 2018, o tema da “ideologia de gênero” abriu espaço para a escalada ultraconservadora cristã (diga-se católicos e evangélicos de direita), articulado a outras pautas nas eleições de 2022.

Fonte: Bereia. Levantamento até 03/10/2022

O Bereia selecionou as checagens com o tema da ideologia de gênero, que desde as eleições de 2018 ganharam força nas mídias:

Desinformação sobre “ideologia de gênero” nas escolas e universidades e como ameaça a crianças

https://coletivobereia.com.br/site-religioso-afirma-que-lego-vai-lancar-brinquedos-com-ideologia-de-genero/

https://coletivobereia.com.br/kit-gay-continua-sendo-alvo-de-politicos-de-direita/

https://coletivobereia.com.br/nao-ha-duvida-a-existencia-de-um-kit-gay-organizado-por-fernando-haddad-e-falsa/

https://coletivobereia.com.br/grupos-evangelicos-e-olavistas-ajudaram-a-espalhar-fake-news-de-bolsonaro-sobre-esquerda-e-pedofilia/

https://coletivobereia.com.br/deputado-afirma-que-cartilha-de-escola-em-palmas-promove-ideologia-de-genero/

https://coletivobereia.com.br/acao-proposta-pelo-psol-nao-exige-que-ideologia-de-genero-seja-obrigatoria-nas-escolas/

https://coletivobereia.com.br/fake-news-sobre-livro-de-educacao-sexual-infantil-nas-escolas-volta-a-circular/

https://coletivobereia.com.br/suposta-demissao-de-professora-por-perseguicao-religiosa-e-ideologica-no-es-e-destaque-em-midias-evangelicas/

https://coletivobereia.com.br/acao-proposta-pelo-psol-nao-exige-que-ideologia-de-genero-seja-obrigatoria-nas-escolas/

https://coletivobereia.com.br/sao-falsas-as-declaracoes-do-ministro-da-educacao-sobre-maconha-nas-universidades-e-kit-gay-nas-escolas/

Desinformação sobre “ideologia de gênero” propagada pela ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves

https://coletivobereia.com.br/e-verdade-que-deputada-evangelica-confronta-damares-sobre-ideologia-de-genero/

https://coletivobereia.com.br/em-video-que-volta-a-circular-ministra-propaga-panico-sobre-erotizacao-em-desenhos-animados-e-universidades/

https://coletivobereia.com.br/ministra-afirma-em-entrevista-que-ha-risco-de-legalizacao-da-pedofilia-no-brasil/

Desinformação sobre “ideologia de gênero” propagada pelo presidente Jair Bolsonaro

https://coletivobereia.com.br/o-presidente-do-brasil-e-a-falaciosa-ideologia-de-genero/

https://coletivobereia.com.br/presidente-bolsonaro-mente-ao-dizer-que-esquerda-quer-descriminalizar-pedofilia/

Desinformação sobre “ideologia de gênero” relacionados aos poderes executivo e legislativo

https://coletivobereia.com.br/e-enganoso-que-decreto-do-governador-witzel-foi-revogado-por-favorecer-ideologia-de-genero/

https://coletivobereia.com.br/projeto-de-lei-rejeitado-pela-comissao-de-educacao-da-camara-federal-nao-pretende-fortalecer-ideologia-de-genero/

https://coletivobereia.com.br/marcelo-crivella-e-deputado-federal-apoiador-proferem-mentiras-na-campanha-para-prefeitura-do-rio/

https://coletivobereia.com.br/eleicoes-2020-bispo-marcelo-crivella-recorre-a-conteudos-falsos-em-debate-na-tv/

Estudos publicados por Bereia sobre Ideologia de gênero e Religião

https://coletivobereia.com.br/catolicismos-direitas-cristas-e-ideologia-de-genero-na-america-latina-uma-questao-de-ascensao-ou-de-tolerancia/

https://coletivobereia.com.br/ecumenismo-neoconservador-pacto-programatico-religioso-na-defesa-da-agenda-anti-genero/

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-estrategia-discursiva-e-arma-politica/

https://coletivobereia.com.br/ao-encontro-da-verdade-sobre-gravidez-precoce-o-problema-social-que-nao-pode-escolher-esperar/

Referências de checagem:

Revista Psicologia Política. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v18n43/v18n43a04.pdf Acesso em: 10 out 2022

Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/evangelicos-foram-alvo-privilegiado-de-mentiras-na-campanha-do-1o-turno-veja-as-principais/amp/ Acesso em 10 out 2022

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Foto de capa: Pexels/Magda Ehlers

Pronunciamento de lideranças do governo federal desinforma sobre o lugar das mulheres nas políticas públicas

Um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão no Dia das Mães, 8 de maio de 2022, foi realizado pela esposa do presidente da República Michelle Bolsonaro. A declaração foi gravada ao lado da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Cristiane Brito, que assumiu a pasta em abril, em substituição a Damares Alves, que deixou o cargo para disputar as eleições deste ano. 

No vídeo, a primeira dama e a ministra afirmam que:

(…)o governo federal tem implementado uma série de ações que beneficiam as mães brasileiras: 

1 – hoje elas são prioridades no auxílio Brasil, nos programas habitacionais e em todos os processos de regularização fundiária. 

2 Trabalhamos também pela inclusão produtiva dessas mulheres. são bilhões de reais em crédito disponibilizado por meio do Programa Brasil Para Elas. Você, mulher, mãe, pode conhecer mais sobre essa iniciativa e sobre como acessar esses recursos no site gov. Br/Brasil 

3 para elas outra grande iniciativa para as mães está no Programa Renda e Oportunidade o que permite o reembolso de gastos com creche ou a liberação do FGTS para ajudar no pagamento de despesas com educação infantil. 

4 promoção da empregabilidade das mulheres com a qualificação em áreas estratégicas para que essa mulher cresça na profissão e o Apoio às mães no retorno da licença maternidade.

5 o governo federal lançou também o Programa Cuida Mais Brasil com foco na saúde da mulher e na saúde materno-infantil o que reduzir as taxas de mortalidade são mais de 170 milhões de reais investidos para oferecer cuidados as mulheres, antes, durante e depois da gravidez.

6 nessa mesma linha uma das novas estratégias que criamos para alcançar esse público é o Programa Mães do Brasil que promove políticas públicas destinadas à proteção integral da dignidade das mulheres a fingiam pará-las no Exercício da Maternidade desde a concepção até o cuidado com os filhos. Esse é um trabalho realizado em parceria com as prefeituras municipais que podem aderir ao programa por meio do site www.smdh. MG o ponto gov.br se a sua cidade ainda não aderiu cobre de seu gestor Municipal o acesso ao programa.

Bereia checou cada ponto citado no vídeo com base nas informações publicadas pelo próprio governo federal em suas mídias oficiais.  

Programa Auxílio Brasil

O Programa Auxílio Brasil substituiu o Programa Bolsa Família, a partir de  novembro de 2021. Os benefícios podem ser pagos cumulativamente, sem limite de quantidade por família. Podem receber os valores as famílias em situação de extrema pobreza; famílias em situação de pobreza; e famílias em regra de emancipação.

Famílias em situação de extrema pobreza são aquelas que possuem renda familiar mensal per capita de até R$105,00 e as em situação de pobreza, renda familiar mensal per capita entre R$105,01 e R$210,00. As famílias em situação de pobreza e em regra de emancipação podem ser atendidas pelo Programa apenas se possuírem em sua composição gestantes ou pessoas com idade até 21 (vinte e um) anos incompletos. Os benefícios do Programa são:

• Benefício Primeira Infância (BPI): pago por criança, no valor de R$130,00, para famílias que possuam em sua composição crianças com idade até 36 (trinta e seis) meses incompletos. 

• Benefício de Superação da Extrema Pobreza (BSP): valor calculado de forma que a renda per capita da família supere o valor da linha de extrema pobreza, fixada em R$105,00 mensais por pessoa.

• Benefício Composição Familiar (BCF): pago por pessoa, no valor de R$ 65,00, para famílias que possuam em sua composição: a) gestantes; b) nutrizes; e/ou c) pessoas com idade entre 3 (três) e 21 (vinte e um) anos incompletos. A família apenas receberá esse benefício relativo aos seus integrantes com idade entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos incompletos se estiverem matriculados ou concluído a educação básica. Para as gestantes o benefício será encerrado após a geração da 9ª (nona) parcela. Para a concessão do BCF às nutrizes é preciso que a família atualize no Cadastro Único a informação do nascimento da nova criança antes de ela ter completado 7 meses de vida. O pagamento do benefício se encerra após a sexta parcela.

Diferente do Bolsa Família que foi pago durante 18 anos, de outubro de 2003 a outubro de 2021, mas foi encerrado por decisão do governo Bolsonaro, o Auxílio Brasil não tem garantia de continuidade em 2023, o que reforça a tese de críticos ao programa de que Bolsonaro o teria criado visando as eleições.

A diferença para o Bolsa Família, como um programa permanente de transferência de renda, o programa tinha como objetivo contribuir para o combate à pobreza e à desigualdade no Brasil. Ele foi criado em outubro de 2003 e possuía três eixos principais: complemento da renda; acesso a direitos; e articulação com outras ações a fim de estimular o desenvolvimento das famílias.  Na base, o novo programa pretende atender o mesmo público do anterior: a população brasileira em extrema pobreza e pobreza. Porém, os valores de corte dos grupos foram atualizados. Enquanto o primeiro sobe de R$ 89 para R$ 100; o segundo, de R$ 178 para R$ 200. 

Programa Casa Verde e Amarela 

O Programa Casa Verde e Amarela substitui o Minha Casa Minha Vida, lançado em agosto de 2020 para pessoas com renda familiar bruta de até R$7 mil reais, com utilização de recursos do FGTS para financiamento habitacional contratado a partir de 26 de agosto de 2020. 

A medida provisória do programa Casa Verde e Amarela (MP 996/20) determina que tanto o contrato quanto o registro do imóvel sejam feitos, preferencialmente, em nome da mulher. Se ela for chefe de família, não precisará da concordância do marido. Prejuízos sofridos em razão da regra deverão ser resolvidos em causas de perdas e danos.

No caso de divórcio, a propriedade do imóvel comprado ou regularizado pelo programa durante o casamento ou união estável ficará com a mulher, independentemente do regime de bens (comunhão parcial ou total ou separação total de bens). A exceção é para operações financiadas com recursos do FGTS e quando a guarda dos filhos for exclusiva do homem. Nesta última situação, o imóvel será registrado em seu nome ou transferido a ele.

 A principal diferença para o Minha Casa Minha Vida é a divisão dos grupos de financiamento para compra do imóvel próprio. O antigo programa era composto por faixas de renda, o novo programa não será mais composto de faixas, mas sim em grupos. Na prática, na nova política habitacional do governo, deixa de existir a faixa mais baixa do programa Minha Casa Minha Vida, que não tinha juros e contemplava as famílias com renda de até R$ 1,8 mil. Essas famílias passam a ser atendidas pelo primeiro grupo – de pessoas com renda mais baixa – que tem taxas a partir de 4,25% (veja mais abaixo) – semelhante à que era oferecida pelo MCMV na faixa 1,5.

Regularização Fundiária

O Programa de Regularização Fundiária e Melhoria Habitacional, criado em dezembro de 2021, é integrante do Programa Casa Verde e Amarela e se inclui nas medidas do governo federal destinadas a mitigar as carências sociais do país, e coloca como objetivo enfrentar o tema da inadequação habitacional da população de baixa renda residente em núcleos urbanos informais, tanto no que se refere às construções quanto à posse de terra

Brasil para Elas

O Brasil para Elas, lançado em março deste ano, é uma estratégia nacional de empreendedorismo feminino sob a meta de desenvolvimento econômico e social do país.  O programa é uma iniciativa do Ministério da Economia com o objetivo da criação e da ampliação de negócios controlados por mulheres e a oferta de crédito para o empreendedorismo feminino.

No campo do crédito, o programa conta com uma atuação especial por parte dos bancos públicos. O Banco da Amazônia, por exemplo, tem taxas diferenciadas para mulheres. O Fundo de Aval das Micro e Pequenas Empresas (Fampe), administrado pelo Sebrae, cobre 80% e dá crédito assistido a empresas que tenham mulheres em seu quadro societário.A Caixa oferece crédito de capital de giro e o cartão Caixa Mulher sem anuidade.

Renda e Oportunidade e Programa Emprega + Mulheres e Jovens

O governo federal, por meio do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), lançou o Programa Renda e Oportunidade, em março de 2022: uma série de medidas de superação do desemprego e da crise da economia no país. O conjunto de ações promete gerar renda e aumentar o poder de compra dos brasileiros, especialmente entre os de menor renda. Nessa primeira etapa, foram três medidas provisórias e um decreto. Dentre os itens estão a Inserção e Manutenção de Mulheres e Jovens no Mercado de Trabalho – por meio de uma Medida Provisória e de um Decreto, o governo federal prevê medidas para impulsionar boas práticas na promoção da empregabilidade de mulheres e jovens.

Cuida Mais Brasil

O Programa Cuida Mais Brasil outro projeto do governo criado em 2022, com a Portaria nº 937, de 5 de maio, e o propósito de aprimorar a assistência à saúde da mulher e à saúde materno-infantil, no âmbito da Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde. O Cuida Mais Brasil declara considerar aspectos regionais de organização da Rede de Atenção à Saúde (RAS) no Distrito Federal, estados e municípios para levar, por meio de financiamento federal, ações complementares de apoio às equipes de Saúde da Família (eSF) e equipes de Atenção Primária (eAP).

Mães do Brasil

O Programa Mães do Brasil, criado em março de 2022, estabeleceu o objetivo de estimular a integração de políticas públicas e fomentar ações para a promoção dos direitos relativos à gestação e à maternidade, a fim de  garantir os direitos da criança nascida e por nascer, o nascimento seguro e o desenvolvimento saudável, bem como o de fomentar a inserção e a reinserção das mulheres mães no mercado de trabalho, a conciliação trabalho-família e a equidade e corresponsabilidade no lar. 

Como Bereia verificou, os Programas Auxílio Brasil e Casa Verde Amarela são versões de projetos já estabelecidos em governos anteriores, por isso, preveem de forma objetiva políticas voltadas para as mulheres, como os benefícios pagos às gestantes e nutrizes e o registro do imóvel serão feitos, preferencialmente, em nome da mulher. Entretanto, os novos programas, criados em 2022, último ano de mandato deste governo, apresentam medidas genéricas e difíceis de mensurar.   

Em uma análise já realizada pelo Bereia, apontando os dados disponíveis no Portal da Transparência no período de 2020 e 2021, mostra que o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos executou apenas R$ 253,2 milhões de um orçamento de R$ 673,7 milhões, o que corresponde a 38% do valor disponibilizado para a pasta. Em 2021, até a data da publicação da matéria, havia sido usado 18% do orçamento (dos R$ 618,6 milhões, R$ 110 milhões foram gastos pelo Ministério).

É um terço do total de recursos previstos no Orçamento da União, carimbados especificamente para este conjunto de políticas públicas e com emprego autorizado pelo Congresso Nacional. 

Além disso, levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), mostra que a execução financeira da promoção da igualdade racial, medida alocada no Ministério, comandado por Damares Alves até o fim de março, diminuiu mais de 8 vezes entre 2019 e 2021, segundo a pesquisa. Além disso, os recursos gastos com ações voltadas para as mulheres na pasta caíram 46% nesse mesmo período.

No final do pronunciamento oficial da primeira-dama, são mencionadas as mães quilombolas e ribeirinhas. Entretanto, o levantamento do INESC aponta ainda que, no caso dos povos indígenas, os dados mostram que o dinheiro executado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que deveria garantir a proteção territorial e fazer avançar a demarcação de terras, foi utilizado para beneficiar os invasores dessas terras. 

Os dados mostram que, nos últimos 3 anos, 45% dos recursos gastos na ação orçamentária destinada a proteger e demarcar os territórios indígenas foram destinados a indenizações e aquisições de imóveis – medida que beneficia ocupantes não indígenas e que, em 2021 foram gastos apenas R$ 164 mil em atividades de Reconhecimento e Indenização de propriedades Quilombolas, além de R$ 792,4 mil de compromissos assumidos em anos anteriores. Segundo o instituto, mesmo quando há recursos – como é o caso dos R$ 200 milhões advindos de créditos extraordinários para a ação de Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais Específicos – pouquíssimo dinheiro foi, de fato, autorizado para políticas públicas com essa finalidade (neste caso, R$ 18,8 milhões, menos de 10% do orçamento disponível).

Com base neste levantamento, Bereia considera o pronunciamento de Michele Bolsonaro e Cristiane Rodrigues Brito no Dia das Mães como impreciso, visto que mesmo com pontos específicos voltados às mulheres em políticas públicas como Auxílio Brasil e Casa Verde Amarela, que são versões de projetos implementados por governos anteriores, este segmento da população não foi prioridade no mandato deste governo federal. 

Além disso, os diversos programas e medidas provisórias e decretos apresentam conteúdo genérico. Se os programas de qualquer governo não forem alicerçados em medidas objetivas, técnicas e práticas e com indicadores de monitoramento, que possam avaliar sua eficácia, eficiência e efetividade, seus compromissos não passarão de retórica política. E no caso de ano eleitoral – muitas dessas medidas foram criadas neste ano de 2022, depois de muitas críticas de movimentos por direitos das mulheres e até processo judicial contra a ministra da Mulher – a imprecisão pode representar um falso compromisso assumido apenas para outros fins que não o benefício da população.

Referências de checagem:

Governo Federal, https://www.gov.br/cidadania/pt-br/auxilio-brasil Acesso em: 11 mai 2022.

Governo Federal, https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/habitacao/casa-verde-e-amarela Acesso em: 11 mai 2022.

 Governo Federal, https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/habitacao/casa-verde-e-amarela/regularizacao-fundiaria-e-melhoria-habitacional Acesso em: 11 mai 2022.

Câmara dos Deputados, https://www.camara.leg.br/noticias/712841-mulheres-terao-preferencia-no-registro-de-imoveis-do-casa-verde-e-amarela/ Acesso em: 11 mai 2022.

Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2022-03/governo-lanca-programas-de-protecao-e-incentivo-mulheres Acesso em: 11 mai 2022.

Governo Federal, https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/assuntos/rendaeoportunidade Acesso em: 11 mai 2022.

Diário Oficial da União, https://in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.116-de-4-de-maio-de-2022-397571891 Acesso em: 11 mai 2022.

Diário Oficial da União, https://in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.061-de-4-de-maio-de-2022-397571194 Acesso em: 11 mai 2022.

Ministério da Saúde. https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/cuida-mais-brasil Acesso em: 11 mai 2022.

Programa Renda e Oportunidade, https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/assuntos/rendaeoportunidade Acesso em: 11 mai 2022.

Governo Federal, https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2022/marco/governo-federal-cria-o-programa-maes-do-brasil Acesso em: 11 mai 2022.

Ministério da Saúde, https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/cuida-mais-brasil/PortariaCuidaMaisBrasil.pdf Acesso em: 11 mai 2022.

Portal da Transparência, https://portaldatransparencia.gov.br/ Acesso em: 20 de mai de 2022.

Brasil de Fato, https://www.brasildefato.com.br/2022/01/20/com-data-para-acabar-familias-de-pe-dizem-que-sem-auxilio-brasil-a-dificuldade-vai-aumentar Acesso em: 20 de mai de 2022.

Tenda, https://www.tenda.com/blog/minha-casa-minha-vida/entenda-as-diferencas-entre-o-casa-verde-e-amarela-e-o-minha-casa-minha-vida/#:~:text=Acima%20de%20tudo%2C%20uma%20das,faixas%2C%20mas%20sim%20em%20grupos Acesso em: 20 de mai de 2022.

G1, https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/12/10/minha-casa-minha-vida-e-casa-verde-e-amarela-entenda-as-diferencas-entre-os-programas.ghtml Acesso em: 20 de mai de 2022.

Foto de capa: TV Brasil

Filho de sindicalista morta pela ditadura desinforma sobre história da mãe

* Matéria atualizada em 15/04/2022 às 10:56

Bereia recebeu o pedido de verificação do conteúdo que tem sido divulgado em mídias do Nordeste sobre o filho de Margarida Alves, José de Arimatéia Alves, e tem circulado em ambientes digitais católicos.

O filho da sindicalista assassinada há 38 anos, durante o regime militar, na região de Alagoa Grande, no Brejo paraibano, tinha oito anos de idade à época e presenciou a morte de sua mãe, tendo sofrido as consequências psicológicas e econômicas da perda, entre outras, especialmente para uma criança. Atualmente, José de Arimatéia Alves é evangélico ligado à Assembleia de Deus na Paraíba, conhecido como pastor Arimatéia Alves. Tornou-se político do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), aliado do governo federal e se lançou candidato a deputado estadual. No último dia 17 de março, Arimatéia Alves participou de uma cerimônia de filiação ao PRTB.

Arimateia Alves na cerimônia de filiação ao PRTB. Imagem: reprodução do site ClickPB

O candidato tem usado a memória de sua mãe, uma católica, líder sindical de agricultores nas décadas de 60 a 80, considerada mártir da luta camponesa, em sua campanha política e para promover o atual governo que busca reeleição neste ano eleitoral. No evento de filiação, o pastor Arimatéia Alves agradeceu ao governo Bolsonaro “por reparar e indenizar” à família pelo assassinato de sua mãe, Margarida Alves, morta por matador de aluguel em 1983.

Durante um evento realizado em um shopping em João Pessoa, pelo Dia Internacional da Mulher, o filho de Margarida Alves declarou: “Após 20 anos de espera para que o Estado brasileiro pudesse reconhecer a negligência da elucidação do assassinato de minha mãe, foi preciso que um paraibano, um servo de Deus, chegasse à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do governo federal, o Dr. Sérgio Queiroz, então Secretário Nacional de Proteção Global para resolver o caso e a indenização a mim e a minha família. Sérgio Queiroz teve sensibilidade para tomar para si esse processo e só descansou quando foi encerrado em 2019”, afirmou o candidato.

Na ocasião, o procurador da Fazenda Nacional, nomeado pela ministra Damares Alves como secretário de Proteção Global, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e agora pré-candidato ao Senado, Queiroz teria afirmado que conseguiu resolver “um dos mais enigmáticos casos da Paraíba e do Brasil, que se arrastava em cortes internacionais”.

Damares Alves, Arimateia e Sergio Queiroz na cerimônia de reparação pública.
Imagem: reprodução do site Parlamento PB

Uma fonte ligada às  Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica avalia a situação: “De fato, o filho de Margarida Alves foi para um partido de direita, sob influência da igreja que ele participa e todos nós ficamos bem assustados. Eu participei muito tempo com o Arimatéia na Pastoral de Juventude [Católica] aqui em João Pessoa, por isso é meio assustadora esta decisão dele.”. A fonte conta que Margarida participou de muitos encontros de base, com Nequinho, que é o atual presidente do Sindicato em Alagoa Nova e outros ligados à luta da CPT pela terra. “Por isso é assustador. A gente fica com pena do que ele está fazendo, usando a história da mãe para legitimar este governo, não é nada libertador. Saber o que Margarida sofreu do latifúndio e ver o filho dela neste rumo aí. Ele nunca mais me mandou notícias, mas acho que é porque ele sabe a minha posição”, lamenta a fonte.

A marcante história de Margarida Alves 

Margarida Maria Alves nasceu e cresceu em Alagoa Grande, no Brejo Paraibano, em 5 de agosto de 1933.  De acordo com sua biografia, registrada no site da Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Alves (FDDHMA), “foi a primeira mulher presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em sua cidade, por 12 anos. Lá, fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural, uma iniciativa que, até hoje, contribui para o desenvolvimento rural e urbano sustentável, fortalecendo a agricultura familiar”.

Museu Casa Margarida Maria Alves.
Imagem: divulgação

A líder agricultora lutou pela defesa dos direitos dos trabalhadores sem terra, buscando e incentivando todos a buscarem o registro em carteira de trabalho, a jornada diária de trabalho de oito horas, 13° salário, férias e demais direitos, para que as condições de trabalho no campo pudessem ser equiparadas ao modelo urbano. “Durante sua gestão, o Sindicato moveu mais de 600 ações trabalhistas e fez diversas denúncias, como a endereçada diretamente ao Presidente do Brasil, em 1982, João Batista Figueiredo”.

Margarida Alves não viveu para ver o resultado de sua luta. “Por causa do surgimento do Plano Nacional de Reforma Agrária, a violência no campo foi intensificada por parte dos latifundiários, que não queriam perder suas terras, mesmo as improdutivas”. E desde então, “o trabalho de Margarida na defesa dos direitos dos trabalhadores entrou em conflito com os interesses dos latifundiários, tornando-a uma ameaça para eles”.

Durante a comemoração do 1° de maio de 1983, na cidade de Sapé, na Paraíba, Margarida Alves fez um discurso no qual  afirmou: “Eles não querem que vocês venham à sede porque eles estão com medo, estão com medo da nossa organização, estão com medo da nossa união, porque eles sabem que podem cair oito ou dez pessoas, mas jamais cairão todos diante da luta por aquilo que é de direito devido ao trabalhador rural, que vive marginalizado debaixo dos pés deles”.

A trabalhadora rural e presidente do Sindicato foi assassinada três meses depois dessa declaração. “O principal acusado é Agnaldo Veloso Borges, então proprietário da usina de açúcar local, a Usina Tanques, e seu genro, José Buarque de Gusmão Neto, mais conhecido como Zito Buarque. Seu sogro era o líder do Chamado Grupo da Várzea, composto por 60 fazendeiros, três deputados e 50 prefeitos. O crime ocorreu no dia 12 de agosto de 1983, quando um pistoleiro de aluguel, (…) disparou um tiro (…) em seu rosto, quando ela estava na frente de sua casa”. O marido de Margarida, Severino Alves e seu filho, na ocasião da tragédia com oito anos de idade, José de Arimatéia Alves viram tudo.

O soldado da Polícia Militar  Betâneo Carneiro dos Santos, os irmãos pistoleiros Amauri José do Rego e Amaro José do Rego e Biu Genésio foram acusados do crime.

O assassinato de Margarida Alves teve repercussão internacional, com denúncia encaminhada à Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH) e várias outras entidades. “Criada, pela Arquidiocese da Paraíba, a Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves, em 2002, recebeu a Medalha Chico Mendes de Resistência, oferecida pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. O dia de seu assassinato, 12 de agosto, é conhecido como o Dia Nacional de Luta contra a Violência no Campo e pela Reforma Agrária”.

Museu Casa Margarida Maria Alves.
Imagem: reprodução do TripAdvisor

Quem fez a reparação histórica?

De fato a reparação histórica do assassinato da mãe do atual candidato a deputado estadual pelo PRTB ocorreu, mas ao contrário do que ele e o governista Sérgio Queiroz afirmam, essa reparação não foi uma iniciativa do governo Bolsonaro, mas um esforço sistemático durante décadas da parte de pessoas, movimentos e instituições, que foi concluído durante o atual governo.

Em 5 de novembro de 2019, a indenização ao filho de Margarida Alves, José Arimatéia Alves foi assim decidida pela Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da Quinta Região (TRF5), direito a : uma  a título de reparação econômica, no valor de R$ 181.720,00, e outra por danos morais, fixada em R$ 250 mil com um total de R$ 431.729,00. O reconhecimento de Margarida Maria Alves como anistiada política do regime militar no Brasil ocorreu em 6 de julho de 2016 e foi baseado “em longo processo administrativo”, segundo a sentença do TRF5.

No entanto, apesar da ação em favor desse reconhecimento, “o direito à devida reparação pecuniária pelos danos causados em decorrência da perseguição política” foi negado pela União em 24 de janeiro de 2017. Posteriormente, quando da decisão pelo TRF5 pelo pagamento da indenização ao filho de Margarida Alves, o relator do processo, desembargador federal Cid Marconi Gurgel de Souza registrou nos autos  que “a União é a responsável direta nas ações em que se postula o pagamento da aposentadoria ou pensão excepcional de anistiados”. O desembargador decretou ainda que “cabe ao Tesouro Nacional arcar com o pagamento de indenizações decorrentes de anistia política Estas decisões explicitam que,  no Brasil, a luta por indenização a anistiados perseguidos pela ditadura, obteve resultado na forma de lei a ser cumprida pela União. Portanto, a reparação e a indenização à família de Margarida Alves foi uma decisão judicial , não uma ação  do governo Bolsonaro. Ela foi um desdobramento do caso desde a decisão de anistia em 2016 e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que também recebeu petição sobre o caso de Margarida Alves, em 2000.

A cerimônia simbólica de reparação realizada pelo governo brasileiro e a participação de lideranças governistas em reunião sobre o caso na CIDH, em 2019,  não foram iniciativas do governo, mas o cumprimento de um protocolo resultante de um processo que se desenrolou desde o final da ditadura militar e que o atual governo teve que cumprir, por recomendação da CIDH registrada em 31 de março de 2008.

Ao contrário do que diz o filho de Margarida Alves, o governo Bolsonaro tem atuado, desde 2019, para obstaculizar o trabalho da Comissão de Anistia das vítimas da ditadura e tem agido para impedir novas decisões por anistia e indenizações.

Os encaminhamentos históricos pela justiça a Margarida Alves

O “Relatório do Mérito Margarida Maria Alves e Familiares”, n. 31/20, foi publicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 26 de abril de 2020,  especifica que a CIDH “recebeu petição do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, da Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves, de outras instituições ligadas à defesa dos direitos humanos e a pastoral da terra, por violações de direitos humanos cometidas em prejuízo de Margarida Maria Alves e seus familiares”.

O relatório registra que a petição foi recebida em 17 de outubro de 2000, com aprovação do relatório de admissibilidade (n. 9/08) em 5 de março de 2002. Em 31 de março de 2008, a Comissão notificou esse relatório às partes e se colocou à sua disposição para mediar o alcance de uma solução amistosa. Todas as informações foram devidamente transmitidas entre as partes, que tiveram prazo para apresentarem considerações sobre o mérito.

O documento oferece provas suficientes de que a luta pelos direitos de reparação e de indenização de Margarida Alves e seus familiares faz parte de um processo longo de luta de organizações de defesa de direitos humanos, instituições católicas e assessorias jurídicas às organizações populares no Brasil, que no ano de 2000 buscaram a ajuda da CIDH para que justiça fosse feita nesse caso. Ou seja, a luta das instituições com o apoio da CIDH, foi que levou o governo brasileiro, presidido por Fernando Henrique Cardoso, em 2002, a criar a Lei n. 10.559 que rege a “indenização a anistiados políticos”.

O processo também levou a Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça do governo Dilma Rousseff, a aprovar em sua 12a Sessão de Julgamento realizada em 6 de julho de 2016, a condição de anistiada política post-mortem a Margarida Maria Alves. Finalmente, em 25 de outubro de 2019, foi concluído o longo processo, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, quando houve a cerimônia de Reparação Simbólica à Memória de Margarida Maria Alves pelo Estado brasileiro, no auditório da Justiça Federal, em João Pessoa. O evento marcou, publicamente, o encerramento do Caso 12.332, como ficou conhecido internacionalmente o assassinato da sindicalista paraibana na CIDH. A reparação ocorreu 36 anos após a sua morte, depois de 20 anos de tramitação na corte internacional. Estiveram presentes na cerimônia, além do filho de Margarida Alves, José Arimateia Alves, a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos Damares Alves e seu secretário nacional de Proteção Global Sérgio Queiroz.

Antropóloga que conheceu a agricultora relata a sua luta

Bereia ouviu a antropóloga e pesquisadora das religiões Dra. Regina Novaes, que foi professora durante dez anos da Universidade Federal da Paraíba. Ela  relatou sua experiência e conhecimento da história de Margarida Alves: “Fiz minha tese de doutorado sobre movimentos sociais rurais e fiz parte de um Grupo de Assessoria Sindical através do qual conheci e tive bastante contato com Margarida Maria Alves. Ela integrava um grupo de sindicalistas apoiado pelas pastorais católicas, sobretudo pelo Centro de Educação Popular, que  era coordenado pela irmã Valéria Rezende em Guarabira. O bispo na cidade era D. Marcelo Carvalheira, que junto com D. José Maria Pires, fundou  a ‘igreja da libertação’ na Paraíba.  Com esses apoios, Margarida Alves se destacou na luta pelos direitos dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande, sindicato da qual era Presidente (concorreu depois que seu marido Casemiro adoeceu e não pode participar da disputa)”, relata a antropóloga. 

Novaes conta que a atuação de Margarida Alves “incomodou  usineiros e senhores de engenho e seu assassinato ocorreu no dia 12 de agosto de 1983. Seu filho único tinha oito anos de idade. O assassinato teve grande repercussão na sociedade civil e nos movimentos sociais”. No Brasil surgiram movimentos importantes como a “Marcha das Margaridas”, que se tornou um símbolo nacional. 

Primeira Marcha das Margaridas, em Brasília, no ano 2000.
Imagem: Claudia Ferreira/Acervo Memória e Movimentos Sociais

A  apropriação do caso para campanha

A profa. Regina Novaes esclarece ainda: “Depois de muito trabalho pelo reconhecimento do assassinato como crime político, no âmbito da Comissão da Anistia, em 6 de julho de 2016 o resultado foi alcançado. Ou seja, o que foi ‘conseguido’ por Sergio Queiroz, no governo Bolsonaro, foi finalizar (e se apropriar de) um processo que por décadas contou com o empenho de organizações da sociedade civil e – em decorrência disso – com o reconhecimento do poder público”.

Em relação a José de Arimatéia Alves, ela afirma que “pelas informações que circulam publicamente, não foi uma vida fácil. Assistiu ao assassinato da mãe, perdeu o pai, saiu da Paraíba, foi viver no Rio de Janeiro,  teve problemas com alcoolismo.  Como acontece com parte significativa dos filhos das classes trabalhadoras no Brasil de hoje, o filho de Margarida Alves parece ter encontrado em igrejas evangélicas uma rede de apoio espiritual e material para se reerguer. Tornou-se  pastor. Até aí, vemos repetida uma história conhecida”.  A antropóloga ainda explica: “A novidade vem em 2019,  quando a imprensa anuncia  o recebimento da indenização com o empenho governista de Sérgio Queiroz.  Começava-se assim a construção de uma narrativa de apropriação da história de Margarida Alves. Em 2021, a ministra  da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves e a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos da Paraíba também se fazem presentes quando  o pastor Arimatéia diz trocar ‘desejo de vingança e alcoolismo’ pela defesa do legado da mãe’”. 

Regina  Novaes relata que “finalmente, em 2022, já pastor e candidato, Arimatéia Alves insiste em lembrar o ‘feito’ de Sérgio Queiroz (agora pré-candidato ao Senado) e agradece ao presidente Jair Bolsonaro pela indenização recebida”.  Sobre a questão que surge – se há mentiras nessa narrativa – a antropóloga responde: “Certamente há manipulação da verdade por meio de esquecimento de tudo que foi feito antes pelos movimentos sociais e pelas instâncias governamentais do governo Dilma Rousseff para que o Sérgio Queiroz pudesse fazer algo que concluísse na indenização da família de Margarida Alves; e exagero no peso das ‘cortes internacionais’ na resolução do caso com o objetivo de valorizar a trajetória pessoal de Sérgio Queiroz, que tinha uma ligação com alguma agência internacional; e a introdução do protagonismo de Damares Alves e Bolsonaro de maneira a justificar as candidaturas políticas”, explica Novaes.

A pesquisadora ouvida pelo Bereia acrescenta: “Ao meu ver, não se trata de pegar esse caso como exemplar das consequências nefastas do crescimento das ‘igrejas neo-pentecostais’ em uma região onde as pastorais progressistas católicas tiveram um papel importante na época de Margarida. Isso é pouco e faz economizar reflexão. Acho  que se trata de um caso exemplar de: a) conjugação de fatores do pertencimento religioso e de reprodução da cultura política local e, b) de como são construídas fake news: produzindo parciais esquecimentos de fatos e de pessoas e  maximizando eventos e personagens que se tornam centrais na narrativa”.

A antropóloga conclui: “Por isso vale voltar ao caso e se contrapor ao agradecimento de Arimatéia para Bolsonaro (interessante esse agradecimento a alguém que  tantas vezes se colocou contra medidas de Justiça e Reparação).  A aposta é que o eleitor nem vá observar essa contradição pois:  a) já estaria  predisposto a apoiar quem apoia Bolsonaro ou b) já tem relações prévias com Arimatéia e sua redenção”.  A profa. Regina Novaes avalia que essa estratégia dos candidatos pelo PRTB até pode gerar vantagem, mas tem dúvidas.

 Leis da Anistia e de Indenização

A Lei da Anistia é como ficou conhecida a Lei n° 6.683 sancionada pelo presidente João Batista Figueiredo em 28 de agosto de 1979, após grande mobilização social, ainda durante a ditadura militar.

Manifestantes erguem cartazes de desaparecidos políticos pela ditadura nas galerias da Câmara dos Deputados, durante a votação da Lei da Anistia.
Imagem: Sonja Rego/CPDoc JB

O lema da campanha pela anistia no final da década de 70 era: “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” e mobilizou o Congresso e a nação, levando o último presidente da Ditadura Militar, general João Batista Figueiredo a escrever texto da lei que foi avaliada pelo Congresso e recebeu alterações feitas pelos parlamentares naquela ocasião para a aprovação do presidente. A anistia, da forma como foi acordada no Brasil, deu perdão a perseguidos, a exilados e a presos políticos, mas impediu a punição aos agentes perpetradores das violações de direitos, entre elas a tortura e os assassinatos.

Em 2002, ao fim do governo de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a Lei no. 10.559, que passa a determinar as indenizações. Elas são uma forma de reparação a pessoas atingidas pelos atos do Estado brasileiro nas ditaduras, entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988.

A Comissão Nacional da Verdade, instaurada por lei em 2012, durante a presidência de Dilma Rousseff, investigou e relatou as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado nesse período. O relatório final está disponível para acesso livre

Cerimônia de entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
Imagem: Portal Brasil

A postura do atual governo federal Ao contrário do que propaga o filho de Margarida Alves, o governo Bolsonaro tem criado obstáculos para o trabalho da Comissão de Anistia das vítimas da ditadura e tem atuado para impedir novos processos e anistia e indenizações.

O técnico em eletrônica Edson Benigno, hoje com 72 anos, ouvido pelo jornal O Globo, “foi detido {e torturado} aos 26 anos pela ação política do pai, antigo militante do Partido Comunista Brasileiro. Mas mesmo com o histórico de perseguição, prisão e tortura, não conseguiu ser anistiado. Seu processo chegou a ser aprovado na Comissão de Anistia, no governo de Michel Temer, mas não teve a portaria publicada até hoje. Ao longo do governo de Jair Bolsonaro, o caso segue parado na comissão, sem previsão de aprovação da anistia e reparação econômica”. Edson Benigno diz não ter “qualquer expectativa de que esse governo, que elogia a ditadura, irá reconhecer que fui vítima daquele período”.

Imagem: reprodução do Twitter

De acordo com a reportagem, “o governo revisa e reconta a história para negar a ditadura militar. Nas duas comissões instituídas durante o governo Bolsonaro, em curso há mais de vinte anos para tratar e julgar as violações cometidas naquele período — de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos — os conselheiros, escolhidos a dedo (incluindo militares), ignoram os fatos, negam a perseguição política, ‘desanistiam’ militantes já anistiados e abandonam a busca por desaparecidos”.

Em abril de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu para realizar uma missão no Brasil e investigar como estava a gestão do governo federal em relação aos mecanismos de reparação de vítimas da ditadura militar.  Segundo a matéria do jornalista que cobre a pauta internacional de direitos humanos, Jamil Chade, a ONU estaria preocupada com o desmonte promovido pelo governo e, por isso, pediu para investigar a situação no Brasil. A requisição foi feita pelo Grupo de Trabalho de Desaparecimentos Forçados da organização”. Já naquele momento, eram objeto de preocupação do GT da ONU as muitas falas públicas de membros do governo federal que estavam “negando a existência de uma ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985, ou avaliando positivamente os eventos ocorridos durante este período. Além disso, há um alerta sobre interferências no trabalho dos mecanismos de já existem para recompensar as vítimas do período”.

***

Bereia classifica o conteúdo disseminado pelo filho de Margarida Alves, pastor Arimatéia Alves, que atribui ao governo de Jair Bolsonaro a responsabilidade pela reparação da memória de sua mãe como anistiada política e a indenização alcançada por ele como vítima do processo, como enganoso. A reparação simbólica e a indenização foram alcançadas no primeiro ano do governo Bolsonaro, de fato, mas foram a culminância de ações de organizações de direitos humanos, juntamente com a Pastoral da Terra da Igreja Católica, que duraram mais de 20 anos. As comissões de anistia e de indenizações em ação durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva, de Dilma Rousseff e de Michel Temer e a mediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tornaram possível este ato de justiça, cumprido em protocolo pelo governo Bolsonaro. 

Ao contrário do que o filho da agricultora morta durante a ditadura militar propaga, o governo Bolsonaro tem agido para impedir novos processos de reparação e atua para negar os efeitos nefastos produzidos pelos governos militares na vida de centenas de pessoas, diretamente atingidas, e de todo o país.

Referências:

Clickpb. https://www.clickpb.com.br/politica/filho-da-lider-sindical-margarida-maria-alves-se-filia-ao-prtb-e-vai-concorrer-ao-cargo-de-deputado-estadual-325664.html . Acesso em: 09 abril 2022.

PBAgora. https://www.pbagora.com.br/noticia/politica/filho-de-margarida-maria-alves-reconhece-atuacao-de-paraibano-para-encerrar-caso/ Acesso em: 09 abril 2022.

G1.  https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2021/08/12/morte-de-margarida-maria-alves-38-anos-depois-filho-abandona-desejo-de-vinganca-e-busca-manter-vivo-o-legado-da-mae.ghtml Acesso em: 09 abril 2022.

JusBrasil. https://trf-5.jusbrasil.com.br/noticias/776652157/filho-da-agricultora-e-lider-sindical-margarida-maria-alves-recebera-indenizacao Acesso em: 09 abril 2022.

Fundação Margarida Alves. http://www.fundacaomargaridaalves.org.br/2019/10/24/estado-brasileiro-realiza-evento-de-reparacao-simbolica-do-caso-margarida-maria-alves-em-joao-pessoa/  Acesso: em 12 abril 2022.

DW.COM. https://www.dw.com/pt-br/gest%C3%A3o-bolsonaro-celebra-golpe-de-64-pelo-quarto-ano-seguido/a-61322242 . Acesso em: 12 abril 2022.

O Globo. https://oglobo.globo.com/brasil/governo-bolsonaro-defensor-da-ditadura-anula-anistias-suspende-busca-por-desaparecidos-politicos-25221977. Acesso em: 12 abril 2022.

Organization of American States. https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/2020/BR_12.332_PT.PDF Acesso em: 12 abril 2022.

Fundação Margarida Alves. https://www.fundacaomargaridaalves.org.br/homenagens/ Acesso em: 14 abril 2022.

Portal Correio. https://portalcorreio.com.br/ministra-damares-alves-participa-de-cerimonia-em-jp-nesta-sexta/ Acesso em: 14 abril 2022.

El Pais. https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-10/governo-quer-fim-da-comissao-de-anistia-em-2022-e-nega-90-dos-pedidos-de-reconhecimento-de-anistiados.html Acesso em: 14 abril 2022.

UOL. https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/09/03/onu-pede-missao-ao-brasil-para-examinar-resposta-de-bolsonaro-a-ditadura.htm Acesso em: 14 abril 2022.

Memorial da Democracia. http://memorialdademocracia.com.br/card/margaridas-saem-em-marcha-por-justica Acesso em: 14 abril 2022.

Foto de capa: reprodução do YouTube

Em vídeo que volta a circular, ministra propaga pânico sobre erotização em desenhos animados e universidades

Um vídeo publicado no YouTube e amplamente disseminado nas redes sociais digitais e em sites e blogs evangélicos em 2018, voltou a circular em espaços digitais religiosos no início deste ano, conforme indicação que Bereia recebeu de leitores. 

O vídeo é parte de uma palestra da atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, promovida pelo Centro de Formação da Comunidade Católica Missão Maria de Nazaré (MMN), em Divinópolis (MG), em abril de 2018.  A publicação no YouTube, intitulada “Dra. Damares Alves – A ideologia de gênero faz mal para a criança”, tem mais de 54 minutos, por meio da qual a ministra cita diversos exemplos do que seria, segundo ela, a ideologia de gênero ensinada para as crianças. 

Antes de assumir o ministério no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), em janeiro de 2019, Damares Alves,  pastora da Igreja Batista da Lagoinha, e advogada ligada à Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), foi assessora do ex-senador Magno Malta e assessora jurídica da Frente Parlamentar Evangélica e da Frente Parlamentar da Família e Apoio a Vida, tendo atuado também como secretária nacional do Movimento Brasil Sem Aborto. Ficou conhecida nacionalmente, nos últimos anos, por palestras que ofereceu em diferentes comunidades cristãs, relacionadas à pauta da moralidade sexual defendida por grupos conservadores.

Depois de assumir o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro, Damares Alves se afirmou “terrivelmente cristã” apesar do Estado ser laico. Ela já esteve envolvida em uma série de polêmicas por pronunciamentos públicos que enfatizam a compreensão restritiva de gênero, simbolicamente traduzida em cores azul para meninos e rosa para meninas, e a pauta de controle da sexualidade de mulheres, de adolescentes, recentemente relacionada ao “combate à ideologia de gênero”. 

O vídeo de 2018, que voltou a circular, aborda o que a líder religiosa chama de  “subversão” dos desenhos animados clássicos e mostra supostos eventos em universidades federais pelo país, que segundo ela, seriam “antros de depravação da juventude”. 

Desenhos para corromper crianças?

No início da transmissão, a pastora mostra algumas imagens de desenhos animados clássicos da Disney e faz um alerta em tom de pânico: “olha o que eles fizeram com os desenhos animados!”. Em seguida apresenta imagens baseadas em obras da empresa de entretenimento Disney, que são “FanArts”, produções gráficas independentes baseadas em personagens, fantasias ou obras clássicas,  produzidas por um fã ou um grupo de fãs. 

“FanArts” geralmente são produzidas por artistas amadores e são facilmente encontradas na internet. Essas imagens não são de responsabilidade dos criadores originais dos desenhos e não têm qualquer relação com os estúdios, produtoras e editoras responsáveis pelas obras originais. A pastora usou exemplos de FanArts em forma de paródia (recriação de uma obra já existente, a partir de um ponto de vista predominantemente cômico) que reconstroém histórias de animações Disney dando-lhes caráter erótico e homossexual. 

Uma das imagens utilizadas por Damares Alves na palestra registrada em vídeo, cria uma cena da animação “A Bela Adormecida”, em que o príncipe que deveria salvar a princesa em sono induzido, aparece segurando no colo um homem que diz: “Bem, não se preocupe, ela dorme”. Esta FanArt pode ser encontrada em espaços na internet como aminoapps ou behance

Imagem: reprodução do YouTube

Damares Alves refere-se de forma genérica a pessoas ou grupos que estariam agindo para perverter “nossas crianças” por meio destas produções: “Acreditem: eles estão armados, articulados. O cão está muito bem articulado e nós estamos alienados”, diz a pastora na gravação. A projeção das imagens é rápida e as referências genéricas. A religiosa também não apresenta nomes (quem seriam “eles”) para que a audiência tome providências concretas, o que é característico de discursos que buscam propagar um clima de pânico permanente.

A pastora também fez críticas às produções das próprias animações que são base das FanArts. Em trecho que popularizou na cobertura noticiosa da época em que o vídeo foi primeiramente divulgado, no início de 2019, quando Damares Alves já era ministra, ela afirma que assistiu à animação Frozen, a qual avaliou como “muito bonito”, e entoou a música “Livre estou, livre estou…”. Depois declarou que a personagem Elsa ‘vai acordar a Bela Adormecida com um beijo gay’ e perguntou: “Por que que ela termina sozinha no castelo de areia, de gelo?” E  engatou a resposta: “Porque ela é lésbica. Nada é por um acaso”. 

De fato, houve uma campanha em mídias sociais nos Estados Unidos para que a personagem Elsa fosse identificada como LGBTI+, para fortalecer o movimento por direitos desta população, uma vez que nunca houve uma “princesa Disney” com esta identidade. A roteirista da animação Jennifer Lee deu entrevista ao jornal The Huffpost, em 2018, ano da palestra de Damares Alves, e admitiu a possibilidade de atender aos fãs na sequência da história, Frozen 2. A pastora, então, usou a informação da campanha e da possibilidade futura assentida pela roteirista como verdade em relação ao primeiro filme e denotou sua avaliação sobre o destino de uma mulher lésbica: o castigo de viver sozinha.


Foram muitas as críticas a Damares Alves em mídias sociais, da parte de políticos, celebridades da TV e da internet e pessoas comuns. O tuíte do deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), de maio de 2019, foi um dos mais acessados e utilizados na cobertura noticiosa:

Imagem: reprodução do Twitter

A ministra se pronunciou pelo Facebook, à época (maio de 2019), em relação às críticas: “Fui surpreendida com mais esta polêmica que tem como base, novamente, uma pequena parte recortada de um vídeo que foi gravado durante uma de minhas palestras na igreja. Minha crítica é conhecida de todos. Eu critico é a tentativa de interferência dos ideólogos de gênero na identidade de nossas crianças. Vai um recado: Criança não namora! Criança brinca e estuda. Minha posição é contrária principalmente contra a erotização e “adultização” de crianças. Deixem nossas crianças serem crianças! Que estudem e brinquem sem que ninguém as incentivem a pular fases”, declarou.

Imagem: reprodução do Facebook

Lançada em 2020, a animação Frozen 2 frustrou as expectativas, tanto da campanha por afirmação LGBTI+ por meio da marca Disney quanto de quem usou as intrigas da internet para espalhar pânico em quem quer proteger famílias dos perigos das pautas de direitos sexuais e reprodutivos. Na segunda edição da produção, Elsa não tem uma namorada ou sequer busca um relacionamento sexual de qualquer natureza. Segundo matéria do Observatório do Cinema, fãs avaliaram que a intriga em torno de Elza ser lésbica acabou servindo mesmo como “caça cliques” em mídias sociais, isca para promoção do filme e chamariz para as pautas conservadoras por meio de pânico, caso da palestra de Damares Alves em 2018. 

Eventos corruptores em universidades federais

Ainda no vídeo da palestra em Divinópolis, em 2018, Damares Alves abordou sobre eventos e festas ocorridas em universidades federais pelo Brasil, que estariam corrompendo os jovens e promovendo badernas. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) é a primeira mencionada na palestra. A pastora refere-se, inicialmente, à filósofa e estudiosa em teoria de gênero, dos Estados Unidos, Judith Butler, a quem chama de “maluca” e aponta como principal responsável pela ideia de “subversão da identidade”.  

Entretanto, a imagem apresentada ao fundo destas referências é a do I Seminário Queer, realizado  no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, no ano de 2015. A data e o local do evento está no material apresentado por Damares Alves para embasar a palestra, mas mesmo assim, ela afirma que aconteceu na UFBA.

Imagem: reprodução do YouTube

O vídeo com a palestra da pastora menciona o II Seminário Internacional Desfazendo o Gênero, realizado na UFBA, em 2015, com a presença de Judith Butler. Em seguida, Damares Alves mostra uma foto que traz estudantes de costas e nus, sentados em círculo, associando a imagem ao seminário de Judith Butler. A atual ministra afirma ainda que para participar do evento os alunos tiveram que ficar “pelados no campus, para vencer as barreiras do sexo”, o que a levou a seguinte conclusão: “Não existe mais homem, não existem mais mulheres”.

A estadunidense Judith Butler é uma das principais referências mundiais de estudos de gênero, especificamente da teoria queer. Ela, de fato, esteve na UFBA, quando visitou o Brasil pela primeira vez, para a abertura do II Seminário Internacional Desfazendo o Gênero, de 5 a 7 de setembro de 2015. “Queer: cultura e subversão da identidade” foi o tema da Conferência Magna apresentada pela filósofa. 

De acordo com o material informativo do seminário, a “teoria Queer articula uma crítica à hegemonia heterossexual. A heterossexualidade, portanto, é vista e analisada como uma imposição cultural com graves consequências políticas para aqueles que não a incorporam. Originada a partir da confluência de vertentes radicais do feminismo e dos estudos gays e lésbicos, os estudos queer passaram a desenvolver análises críticas sobre como a hegemonia heterossexual tem passado a moldar até mesmo as homossexualidades contemporâneas por meio da heteronormatividade.” 

Contrariamente ao que diz Damares Alves na palestra gravada em vídeo, Judith Butler não é idealizadora da teoria Queer. Este ramo de estudos de gênero surgiu na década de 80, com diferentes de pesquisadores e ativistas. Butler ganhou alto reconhecimento por sua produção na temática.

Bereia verificou que a foto dos estudantes sem roupa foi tirada durante uma das oficinas que constavam na programação do evento, e não durante a palestra de Butler, como afirma Damares Alves no vídeo. A oficina, que ocorreu num dos pavilhões de aula (PAVIII), de acordo com veículos de notícias regionais, era parte do bloco temático do seminário no contexto “Cultura e Sociedade”. A foto foi publicada por um aluno participante, em grupo da UFBA no Facebook. 

Já a palestra de Judith Butler ocorreu no primeiro dia dos trabalhos, no Teatro Castro Alves, em ambiente fechado. Não é verdade ainda que para participar do evento os estudantes tinham que ficar nus. Foram mais de 1.500 participantes inscritos, sem qualquer exigência desta natureza. A experiência com nudez ocorreu na oficina, restrita a participantes, e em performance independente realizada por estudantes em frente ao PAVIII.

O Seminário Desfazendo o Gênero contou com 25 minicursos e 25 oficinas, entre elas performance, música e teatro.  O evento é organizado pelo Grupo de Pesquisa Cultura e Sexualidade, para reunir pesquisadores da área e ativistas do Brasil e do mundo. De acordo com organizadores, participam os que possuem interesse na área. 

Meme usado como exemplo de atividade universitária

Damares Alves também mostrou, durante a palestra gravada em vídeo, uma imagem referente  à Universidade Federal de Brasília (UNB):

Reprodução do YouTube

A imagem é a reprodução de uma publicação em perfil pessoal em mídia social, que convida pessoas a comerem alimentos preparados com plantas regadas com sangue menstrual e a conhecerem mais sobre o assunto. A pessoa que publicou, cujo nome na postagem está escondido, oferece a localização da exposição dos alimentos, o “ceubinho”, nome pelo qual é conhecido o Instituto Central de Ciências (ICC) da UNB.

Ao mostrar a imagem, a pastora afirma: “na Universidade Federal de Brasília, convidaram os alunos para comer no diretório, comidinha feita de plantas regadas a sangue menstrual! Isso mesmo. Não tem mais homens, não tem mais mulheres. A menstruação é para homens e para mulher, então vamos comer comidinha regada a sangue menstrual”.

Bereia não conseguiu localizar a publicação original e identificar a autoria, uma vez que, como nas demais imagens expostas na palestra, Damares Alves não indicou fonte ou referência. Porém, foi possível verificar que a postagem foi reproduzida em vários sites de “memes” e exposta como algo “bizarro”, tais como leninja.com.br, br.ifunny.co, me.me, entre outros, e é facilmente localizada no espaço digital, e são possíveis fontes da palestrante. 

A pastora ofereceu o conteúdo como uma prática da universidade. No entanto, é evidente que o material foi postado por um indivíduo que organizou a exposição dos alimentos fazendo uso de um espaço da universidade. 

Bereia verificou ainda que existem, sim, práticas de cultivo de alimentos que utilizam sangue menstrual como adubo. Um trabalho de conclusão do curso de Terapia Ocupacional da própria UNB refere-se a isso, com base em teoria e pesquisa de campo, bem como matéria jornalística da BBC Brasil. No entanto, não foi identificado qualquer processo de educação para estas práticas no currículo universitário. Damares Alves expôs aos presentes na palestra suas conclusões relacionadas a “ideologia de gênero” sem oferecer explicações sobre a origem da situação e os levou a compreender que tal prática foi um evento organizado pela universidade.

Foto colhida na internet atribuída a atividade curricular

O vídeo da palestra da pastora também expôs o que foi apresentado como  um “ritual” na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde “as pessoas riam da Bíblia e fumam muita maconha. E que era uma demonstração artística pra ganhar nota”, segundo Damares Alves. 

Ao apresentar uma imagem, com pessoas nuas ao redor de um crânio, a ministra insinuou se tratar de um ritual macabro, que ocorreu durante um evento intitulado “Xereca satânica”. Segundo ela, essa programação teria sido organizada por feministas da UFRJ, com o propósito de ir “contra os homens e a favor da ideologia de gênero”.  E passou a descrever sua interpretação de como ocorreu o suposto ritual que teria envolvido uma “vagina costurada” e seria uma aula de arte, para “ganhar nota no final”,  que envolveu uso de maconha.

O evento de fato ocorreu, no ano de 2014, mas na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Campus de Rio das Ostras, e não na UFRJ, como informou Damares Alves. O caso chegou a ser alvo de inquérito da Polícia Federal, com indiciamento das pessoas envolvidas por atos obscenos em local público e investigação da UFF. Após quatro anos de investigações, o Ministério Público Federal reconheceu que não houve crime por parte de nenhum dos acusados, e arquivou o processo.

Damares Alves não falou a verdade quando afirmou que o evento era  uma aula de artes que valia nota para os estudantes. O caso ocorreu no contexto de uma confraternização de estudantes que encerrou o seminário Corpo e Resistência, organizado em 2014, pelo Curso de Produção Cultural da UFF. Esse evento também é parte das atividades do Grupo de Pesquisas “Cultura e Cidade Contemporânea: arte, política cultural e resistência.”  É fato que durante a festa houve performances pelo Coletivo Coiote, convidado pela organização do evento, mas eram manifestações autônomas e não um conteúdo curricular condicionado à atribuição de notas a estudantes, como afirma a atual ministra.

O chefe do Departamento de Produção Cultural da UFF, Daniel Caetano, na ocasião, declarou que “esse tipo de apresentação tem o propósito de chocar a sensibilidade das pessoas e fazê-las pensar sobre seus próprios limites, sendo uma realidade a costura da parte genital na arte contemporânea”.  As investigações não comprovaram, portanto, a realização de ritual satânico. Não há referências ao Cristianismo ou a qualquer outra religião e seus símbolos, e não há registro de que os envolvidos fizessem uso de drogas, que aparecem na interpretação da ministra.

Outro exemplo exposto por Damares Alves na palestra foi a “Oficina de Siririca”, apresentada pela pastora ao público presente como um evento de recepção aos calouros na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Foi projetada a seguinte imagem:

Reprodução do YouTube

O evento de fato ocorreu em 2014 e teve repercussão em mídias sociais. No entanto, foi publicada em espaços noticiosos, na época, a afirmação da Assessoria de Imprensa da UFOP de que a oficina não era um evento de recepção aos calouros como repetiu a ministra, mas uma ação específica do Centro Acadêmico (CA) de estudantes do Curso de Serviço Social para os novos integrantes da universidade, aberto para quem desejasse participar, sem obrigatoriedade. À época, a universidade informou, em nota, que “respeita a diversidade do pensamento e o debate democrático sobre quaisquer assuntos relacionados à sexualidade, gênero e comportamento no âmbito de seus institutos”. 

Logo depois da “Oficina de Sirica, surgiu nas redes sociais digitais dos alunos da UFOP um novo evento.  Dessa vez,  uma “Oficina de Punheta”, apenas uma paródia feita por alunos e não uma programação oficial Universidade ou Centro Acadêmico, como indicado na imagem veiculada no vídeo da palestra da pastora. 

Reprodução do Youtube

Damares Alves expôs ainda imagem sobre a “Oficina de Empoderamento de Buceta”, sobre a qual disse: “eu que pago”, numa referência ao que havia dito no início da sua apresentação: “nós é que pagamos por isso (os eventos nas universidades), é ou não uma palhaçada?”.

Reprodução do Youtube

O evento foi  organizado pelo Diretório Central de Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e não era parte da agenda oficial e do currículo da universidade, como Damares Alves faz parecer em seu discurso. A divulgação causou grande repercussão nas redes sociais digitais. Andréa Rufino, médica, sexóloga e pesquisadora em saúde, gênero, sexualidade e direitos humanos, convidada para participar do evento, foi vítima de ofensas e ameaças de perfis anônimos.

O DCE publicou uma “Nota de Esclarecimento” no Facebook com a justificativa da atividade, além de se defender e condenar os ataques. 

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Com base na pesquisa desenvolvida a partir do vídeo enviado por leitores, Bereia classifica o conteúdo da palestra proferido pela pastora Damares Alves, atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo federal do Brasil, como enganoso. A religiosa tem por objetivo criar pânico moral em torno do tema “ideologia de gênero”, conteúdo inventado para desenvolver oposição a temas referentes a direitos das mulheres e da população LGBTI+, como Bereia já publicou em várias matérias.

Seguindo uma prática que já vinha de outros eventos em que participou, Damares Alves faz um discurso exaltado, emotivo,  com o uso de imagens de eventos e situações  retiradas do seu contexto para oferecer sua interpretação de fatos e chamar a atenção dos participantes para a sua pauta. 

Neste vídeo que voltou a circular, há um esforço de fazer crer que há uma ação conspiratória para erotizar crianças e jovens (exemplos das animações Disney), que tomou também as  universidades públicas reduzindo-as em espaços de baderna e de perversão, e não instituições educacionais, formadoras de profissionais em várias áreas e produtora de ciência É fato que episódios controversos e ilegítimos ocorrem e, por vezes, acabam sendo alvo de investigação administrativa e judicial, como foi verificado, mas são promovidos por pessoas ou grupos de forma autônoma, não sendo parte da programação oficial da instituição ou do currículo acadêmico, como a atual ministra quer levar seu público a acreditar.

Bereia registra preocupação com o papel que a empresa Google, proprietária do Youtube, tem desempenhado na propagação de desinformação, como é o caso deste vídeo com conteúdo enganoso, que permanece na plataforma há quatro anos e segue sendo usado para desinformar. A campanha Fake News Mata (pessoas e democracias) tem denunciado esta situação e pressionado a Google para agir contra esta negação do direito à informação e não  lucrar com veiculação de conteúdo que desinforma.

Referências de checagem: 

Pavablog. https://www.pavablog.com/2013/05/11/magali-cunha-analisa-discurso-de-damares-alves-apresenta-elementos-criticos-genericos-e-imprecisos-inverdades-e-manipulacao-explicita-de-dados/ Acesso em: [20 fev 2022]

I Seminário Queer. https://www.pagu.unicamp.br/pt-br/i-seminario-queer Acesso em: [20 fev 2022]

UOL.https://educacao.uol.com.br/noticias/2014/09/16/recepcao-de-calouros-tem-oficina-de-siririca-na-ufop.htm Acesso em: [20 fev 2022]

Portal Justificando https://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/591267689/saude-sexual-empoderamento-feminino-e-o-panico-moral Acesso em: [20 fev 2022] 

Ministério da Educação. https://www.gov.br/pt-br/noticias/educacao-e-pesquisa/2020/10/censo-da-educacao-superior-mostra-aumento-de-matriculas-no-ensino-a-distancia#:~:text=A%20pesquisa%20tamb%C3%A9m%20aponta%20que,Centros%20Federais%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Tecnol%C3%B3gica

Jornal Folha de São Paulo https://ruf.folha.uol.com.br/2019/ranking-de-universidades/principal/ Acesso em: [20 fev 2022]

BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57812736 Acesso em: [20 fev 2022]

Poder 360. https://www.poder360.com.br/governo/estado-e-laico-mas-sou-profundamente-crista-diz-damares-ao-assumir-ministerio/ Acesso em: [20 fev 2022]

EXAME. https://exame.com/brasil/menino-veste-azul-e-menina-veste-rosa-diz-damares-em-video/   Acesso em: [20 fev 2022]

Aos Fatos. https://www.aosfatos.org/noticias/desvendamos-noticias-falsas-de-damares-alves-contra-ideologia-de-genero/ Acesso em: [20 fev 2022]

Aminoapps. https://aminoapps.com/c/gay-pt-br/page/blog/e-se-as-princesas-da-disney-fossem-principes/kjP4_dLFGu7jlZeBpBqbl3NxlVJVYK0Wr7 Acesso em: [20 fev 2022]

Behance. https://www.behance.net/search/projects?search=DISNEY+FANART&tracking_source=typeahead_search_direct Acesso em: [20 fev 2022]

Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/05/13/interna_politica,1053417/damares-diz-que-princesa-elsa-do-filme-frozen-e-lesbica.shtml Acesso em: [20 fev 2022]

Huffpost. https://www.huffpost.com/entry/frozen-director-elsa-girlfriend_n_5a9388c5e4b01e9e56bd1ead Acesso em: [20 fev 2022]

Observatório de Cinema https://observatoriodocinema.uol.com.br/artigos/2020/01/e-lesbica-frozen-2-enfim-responde-duvida-sobre-sexualidade-de-elsa#:~:text=Isso%2C%20no%20entanto%2C%20n%C3%A3o%20aconteceu,seja%20l%C3%A9sbica%2C%20mas%20sim%20assexual. Acesso em: [20 fev 2022]

Justificando http://www.justificando.com/2018/07/17/caso-xereca-satanica-juiz-decide-que-manifestacao-artistica-nao-e-crime/ Acesso em: [20 fev 2022]

O Globo. https://oglobo.globo.com/brasil/performance-ou-crime-12698298 Acesso em: [20 fev 2022]

Bereia. https://coletivobereia.com.br/?s=ideologia+de+g%C3%AAnero Acesso em: [20 fev 2022]

Campanha Fake News Mata. https://www.fakenewsmata.org/ Acesso em: [20 fev 2022]

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Imagem de capa: reprodução YouTube

A sabatina de André Mendonça pelo Senado – Parte 1: violência de gênero

* Matéria atualizada em 08/12/21 às 13:56

Como parte do rito oficial para assumir uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal, o ex-Advogado Geral da União e ex-Ministro da Justiça André Mendonça passou por sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal. Durante sua exposição inicial e nas respostas aos senadores, Mendonça fez diversas afirmações, que foram checadas pelo Bereia. Nesta parte da cobertura é apresentado o primeiro dos temas mais destacados.

Violência de gênero

André Mendonça respondeu perguntas da relatora do processo de indicação na CCJ Eliziane Gama (Cidadania/MA), sobre o enfrentamento da violência contra mulheres no Brasil. O sabatinado ressaltou o trabalho dele no governo de Jair Bolsonaro, à frente do Ministério da Justiça e citou operações da Polícia Federal e políticas de aglutinação que incluíram a proteção de crianças e de idosos.

“Como ministro da Justiça, fizemos as maiores operações da história no combate da violência contra a mulher, atuando na vida e na integridade física das mulheres. Agrego a isso grandes operações para proteção de idosos e crianças vítimas de pedofilia. Ressalto, também nesse contexto, que como Ministro da Justiça e Segurança Pública, aprovei um protocolo inovador de investigação de crime de feminicídio, consensuado por todos os órgãos de segurança pública do país e depois submetido à bancada feminina do Congresso Nacional.”

Na conclusão deste bloco de respostas, Mendonça destacou: “Feminicídio (morte por conta do gênero feminino) é um ato covarde. O destrato em relação às mulheres é um ato covarde. Nesse sentido meu compromisso é, diante de situações como essas, aplicar a Lei de forma plena e rigorosa.”

 Operação Resguardo

Ao citar ter realizado as maiores operações no combate à violência contra a mulher, quando esteve à frente do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, André Mendonça referiu-se à Operação Resguardo, da Secretaria de Operações Integradas, iniciada em 1 de janeiro de 2021 e concluída, simbolicamente, no Dia Internacional da Mulher do mesmo ano. A operação integrou o MJSP com as Unidades da Federação e o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, no combate à violência contra a mulher. Foram investigadas mais de 46 mil denúncias apuradas nos diversos canais municipais, estaduais e federais. 

Como resultado, foram registrados mais de 9,1 mil presos, decorrentes de flagrantes e mandados de prisão expedidos pela Justiça; cumpridos cerca de 56 mil medidas protetivas, com mais de 168 mil vítimas atendidas, 1.226 armas apreendidas e realizadas cerca de 70 mil visitas e diligências realizadas pelas polícias civis. Ao todo, mais de 16 mil policiais civis atuaram, de forma conjunta, na busca de suspeitos de ameaças, tentativas de feminicídio, lesão corporal, descumprimentos de medidas protetivas, estupro, importunação, entre outros crimes.

A importância desta operação, de fato uma das maiores já realizadas pelo governo federal no combate à violência física contra mulheres, foi reconhecida por lideranças políticas de oposição. A deputada estadual de Goiás Delegada Adriana Accorsi (PT), que foi candidata à Prefeitura de Goiânia, por exemplo, afirmou que a ação “mostra a possibilidade das Forças de Segurança combaterem, com rigor, a violência cometida contra meninas e mulheres”. Ela acrescentou que “Operações desse tipo, que acontecem de maneira simbólica no dia 8 de março, são muito importantes. Esperamos esse rigor todos os anos, pois a impunidade é um mal que estimula o cometimento desses crimes”.

Protocolo nacional de investigação

É verdade também que André Mendonça atuou na aprovação do Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, em parceria com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, publicado no Diário Oficial, em 22 junho de 2020. O protocolo prevê a uniformização dos procedimentos das polícias civis e de órgãos de perícia oficial de natureza criminal nos estados e no Distrito Federal (DF). Esta atuação conjunta tem por objetivo contribuir para a prevenção e a repressão aos crimes com o fortalecimento de ações que envolvam morte de mulheres decorrente de discriminação e de violência doméstica e familiar.

O protocolo determina a instauração imediata de inquérito policial nos casos de mortes violentas, com vítimas mulheres. Além disso, o texto estabelece que os atendimentos relacionados às ocorrências de feminicídio devem ter prioridade na realização de perícias.

Aglutinação de demandas, menos eficácia

Com relação à inclusão de idosos e de crianças vítimas de pedofilia nos programas governamentais de combate à violência citados positivamente por André Mendonça, dados divulgados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) dizem que a aglutinação destas demandas causou perda na execução de políticas para mulheres. No estudo “O Brasil com baixa imunidade”, o INESC mostra que o governo federal dispõe de R$425 milhões alocados no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Porém, até meados de maio de 2020, o ministério havia executado somente R$11,3 milhões, o equivalente a 2,6% do que estava disponível.

Uma nota técnica da consultoria da Câmara confirmou a baixa execução orçamentária para políticas públicas destinadas exclusivamente às mulheres: mostra que apenas R$ 5,6 milhões de um total de R$ 126,4 milhões previstos na Lei Orçamentária de 2020 foram efetivamente gastos com políticas públicas específicas para mulheres, sem contar os “restos a pagar” de anos anteriores.

O Plano Plurianual (PPA) 2020-2023 do governo de Jair Bolsonaro, excluiu o “Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência”, que era destinado somente às mulheres, e criou o “Programa 5034: Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos”, a que André Mendonça se referiu, que é um guarda-chuva para execução de políticas do ministério destinadas às mulheres, aos idosos e a pessoas com deficiência. “Ocorreu a fusão dos programas, o que pode dificultar o acompanhamento dessas políticas públicas e levar a uma redução da transparência”, diz a nota técnica da consultoria da Câmara. A palavra “mulher” aparece em apenas um objetivo da aglutinação, que coloca ênfase clara no conceito de família.

“O desenho que vinha sendo construído desde 2004 mudou radicalmente e agora adquire um viés mais conservador”, critica o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em  relatório lançado no início deste ano que faz um balanço do orçamento do governo federal. 

Um levantamento de 2021, exclusivo da revista AzMina, mostra que entre janeiro de 2019 e julho de 2021, o governo federal  não gastou R$ 376,4 milhões dos R$ 1,1 bilhão disponíveis para dez rubricas que têm as mulheres como público-alvo no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e no Ministério da Saúde. É um terço do total de recursos previstos no orçamento da União, carimbados especificamente para este conjunto de políticas públicas e com emprego autorizado pelo Congresso Nacional. 

Entre os valores que não foram utilizados, está a maior parte dos recursos que deveriam construir e equipar Casas da Mulher Brasileira pelo país – estrutura que agrega uma série de serviços especializados para atendimento da mulher em situação de violência, como delegacia, juizado, promotoria e abrigamento de curta duração. Desde 2019, dos quase R$ 115 milhões disponíveis para essa política pública, apenas R$ 1 milhão foi efetivamente gasto. Para a Rede Cegonha, a estratégia de planejamento reprodutivo e atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério do Ministério da Saúde, dos R$ 270 milhões autorizados, apenas R$ 182 milhões foram desembolsados e R$ 89 milhões ficaram pelo caminho. 

Dados fornecidos pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública à revista Azmina, via Lei de Acesso à Informação, revelam outra face do descaso com a garantia de direitos das mulheres: recursos deste ministério destinados a dois importantes projetos estão caindo drasticamente desde 2019. Chamou a atenção das jornalistas o programa chamado Protejo, que paga bolsas a jovens em situação de violência doméstica como incentivo para frequentarem cursos de capacitação em diferentes áreas gastou, ao todo, R$ 3,3 milhões no primeiro semestre de 2021. Em 2019, essa política pública recebeu investimentos de R$ 64,7 milhões.

Já o Projeto Mulheres da Paz que também concede bolsas, mas neste caso para mulheres líderes de comunidade que atuam como mediadoras de conflitos em suas regiões, teve gastos sete vezes menores em 2021 do que no primeiro ano de mandato de Bolsonaro: R$ 184,7 milhões (em 2019) contra R$ 25.460,00 (até julho deste ano).

Respostas imprecisas

André Mendonça discorreu sobre seu trabalho como Ministro da Justiça e Segurança Pública, e incorreu em imprecisão.

Primeiramente, as ações descritas – a Operação Resguardo e o Protocolo de Investigações – esbarram em uma política do governo federal que é a ampliação do acesso a armas de fogo pela população. Já em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, que tem como projeto o armamentismo, uma audiência da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados abordou o tema.  A Comissão ouviu especialistas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, do Núcleo Especializado em Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público do Estado de São Paulo. Todas as representações afirmaram que a ampliação do porte e posse de armas de fogo poderia aumentar os riscos para as mulheres e impactar os índices de feminicídio. 

As especialistas na audiência mostraram como a presença de uma arma de fogo aumenta em cinco vezes a chance de ocorrência de homicídio ou suicídio. Foi afirmado que as políticas públicas do governo para a área não são baseadas nos dados e estatísticas disponíveis. Na audiência a representante do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, então liderado por Sérgio Moro, foi a única a discordar da avaliação. “O simples desarmar não é a solução dos nossos problemas”, avaliou a servidora do ministério Thaylize Rodrigues.

Em 2021 esta indicação se comprovou com os resultados da mais recente edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em julho de 2021, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com dados colhidos em 2020, um ano depois da audiência da Câmara Federal. O relatório mostra que o Brasil praticamente dobrou em um ano o número de armas registradas em posse de cidadãos, ao mesmo tempo em que as mortes violentas cresceram, a despeito do maior isolamento social durante a pandemia. Dados do Sinarm, sistema da Polícia Federal que cadastra posse, transferência e comercialização de armas de fogo, em 2020 houve 186.071 novos registros, um aumento de 97,1% em um ano. A maioria desses registros é de cidadãos privados.

Enquanto especialistas em segurança pública apontam que a facilitação no acesso a armas favorece a violência, o governo federal justifica que as políticas armamentistas visam a desburocratização, a clareza das normas e “adequar o número de armas, munições e recargas ao quantitativo necessário ao exercício dos direitos individuais”.

Segundo o Anuário, o Brasil teve um aumento de 4% no número de mortes violentas intencionais em 2020, em comparação com 2019. Neste grupo, 1.350 mulheres foram mortas em episódios classificados como feminicídio, com uma alta de 0,7% em relação a 2019.

Em segundo lugar está o descaso do governo federal, que inclui o Ministério da Justiça e da Segurança Pública sob a liderança de André Mendonça, com os gastos com políticas de enfrentamento da violência contra a mulher. O Plano Plurianual (PPA) é uma lei elaborada a cada quatro anos e, de acordo com a Constituição Federal de 1988, estabelece, de forma regionalizada, diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas relativas aos programas de duração continuada.​ Caso o governo não aplique os recursos de forma adequada, o STF tem que atuar para que cumpra o que lhe cabe, o que deverá ser uma demanda sobre o novo ministro da corte André Mendonça.

*   *   *

O então candidato à vaga no STF André Mendonça apresentou como respostas à inquirição da senadora Eliziane Gama realizações do trabalho dele como ministro da Justiça e da Segurança Pública em duas frentes. No entanto, Bereia classifica estas respostas como imprecisas pois a questão do enfrentamento da violência contra mulheres exige abordagem mais ampla da parte de um ministro da Corte que deve garantir o cumprimento das bases constitucionais do país, como a verificação acima mostra. 

Referências de checagem:

Ministério da Justiça e Segurança Pública. https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/operacao-resguardo-mira-combate-a-crimes-de-violencia-contra-a-mulher-no-brasil Acesso em: 08 dez 2021.

Assembleia Legislativa do Estado de Goiás. https://portal.al.go.leg.br/noticias/115795/adriana-accorsi-aplaude-operacao-policial-que-prendeu-em-goias-quase-100-homens-por-violencia-domestica Acesso em: 08 dez 2021.

Imprensa Nacional. http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-340-de-22-de-junho-de-2020-262969693 Acesso em: 08 dez 2021.

Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/junho/protocolo-padroniza-investigacao-de-crimes-de-feminicidio Acesso em: 08 dez 2021.

Inesc. https://www.inesc.org.br/obrasilcombaixaimunidade/ Acesso em: 08 dez 2021.

Câmara dos Deputados. https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2020/ET16_Violncia_MUlher.pdf Acesso em: 08 dez 2021.

Azmina. https://azmina.com.br/reportagens/bolsonaro-nao-usou-um-terco-dos-recursos-aprovados-para-politicas-para-mulheres-desde-2019/%20  Acesso em: 08 dez 2021.

Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/noticias/560955-projeto-permite-concessao-de-porte-de-arma-de-fogo-por-decreto-presidencial Acesso em: 08 dez 2021.

https://www.camara.leg.br/noticias/599507-para-especialistas-ampliacao-do-porte-de-armas-de-fogo-pode-aumentar-riscos-para-mulheres/ Acesso em: 08 dez 2021.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/ Acesso em: 08 dez 2021.

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Foto de capa: Marcos Oliveira / Agência Senado

Reverendo envolvido no escândalo da compra de vacinas pelo Ministério da Saúde tem perfil controverso – Parte 1

* Com colaboração de Alexandre Brasil Fonseca, André Mello, Bruno Cidadão, Magali Cunha e Raquel Rocha

Matéria atualizada em 04/08/2021 às 21:28

Em 1º de julho, a Agência Pública publicou a matéria “Grupo Evangélico fez oferta paralela de vacinas ao Ministério da Saúde e prefeituras”. A reportagem apresenta uma organização não governamental (ONG) chamada Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (SENAH), que atuou como intermediária junto ao Ministério da Saúde para a venda de doses das vacinas dos laboratórios da Oxford/Astrazeneca e Johnson & Johnson/Janssen. Ela teria facilitado a venda para uma terceira empresa, a multinacional Davati Medical Supply.

O presidente da SENAH é Amilton Gomes de Paula, que recebeu aval do ex-diretor de Imunizações do Ministério da Saúde, o médico veterinário Laurício Monteiro Cruz. Ele foi citado na CPI da Covid como intermediador das negociações com a SENAH. Cruz presidiu o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Distrito Federal, antes de assumir o cargo como diretor de imunizações do qual foi exonerado em 08 de julho de 2021. A exoneração, publicada no Diário Oficial da União, foi assinada pelo ministro-chefe da Casa-Civil, Luiz Eduardo Ramos. Estas denúncias levaram à convocação do reverendo Amilton Gomes de Paula pela CPI da Covid como testemunha.

Imagem: Reprodução DOU de 08/07/2021

Diante da participação de um personagem religioso na oferta de vacinas feita pela Davati ao Ministério da Saúde, da menção à Embaixada Mundial pela Paz no caso e a uma alegada parceria com a Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz (cujos membros têm como base a Frente Parlamentar Evangélica), Bereia buscou construir o perfil do Reverendo Amilton Gomes de Paula para verificar o lugar que ocupa nesta trama. 

“Reverendo”: por que não “pastor”?

No levantamento inicial, observa-se que a imprensa está apenas repetindo o currículo de Amilton Gomes que consta na página oficial da SENAH. Nela, ele é apresentado como membro da Convenção Batista Nacional do Brasil, e reitor da Faculdade Batista do Brasil, doutor em Ciências da Educação. O currículo exposto no site da SENAH também indica que Amilton Gomes é bacharel em Filosofia, mestre em Teologia Sistemática, com quatro especializações na área de Psicologia e Saúde Mental, diretor e membro de diferentes associações e sociedades nessas duas áreas.

Amilton Gomes de Paula foi graduado em Teologia, em 2010, pela Faculdade de Ciências, Educação e Teologia do Norte do Brasil (FACETEN), com sede em Boa Vista-RR e envolvida em escândalos que envolvem a emissão de diplomas falsos a policiais militares. A faculdade conta com oito cursos de graduação, cinco em EAD e três presenciais, além de 37 cursos de pós-graduação lato sensu (especializações). O curso de Bacharel em Teologia está na origem da faculdade, criada em 2000.

A reportagem da Agência Pública relaciona Amilton Gomes como “Reverendo Dr.”, forma com a qual se apresenta publicamente, o pastor da Igreja Batista Ministério da Nova Vista. Outras reportagens apenas citam o tratamento religioso “reverendo” (como a do Jornal Nacional, da Rede Globo, de 3 de julho) ou a filiação à Igreja Batista (é o caso da CNN Brasil, de 5 de julho). 

No entanto, no site da SENAH e no perfil de Amilton Gomes no LinkedIn não há menção específica à igreja à qual ele está vinculado. No site da SENAH há apenas o registro “Membro da Convenção Batista Nacional do Brasil”.

O nome correto da igreja com a qual o pastor Amilton Gomes tem vínculo é a Igreja Batista Ministério Vida Nova, cujo website está desativado mas que tem dados registrados no localizador Findglocal (o telefone que consta não atende) que confirmam o endereço e o nome do pastor.

Foto: Reprodução/FindGlocal

No cadastro de Igrejas, da Convenção Batista Nacional, a Igreja Batista Ministério Vida Nova não está entre as igrejas arroladas. A Convenção Batista Nacional  representa um grupo de aproximadamente 2.700 igrejas com mais de 400 mil membros articulados, desde 1967, em comunhão e cooperação com uma doutrina comum e uma visão e estrutura organizacional compartilhada.

De acordo com o Presidente da Convenção Batista Nacional do Distrito Federal, Pastor José Carlos da Silva, da Primeira Igreja Batista de Brasília (DF), não há informações sobre o pastor Amilton Gomes ou sobre a Igreja Batista Ministério Nova Vida registradas na organização. “A informação que tive, do secretário da Ordem de Ministros Batistas Nacionais é que ele (Amilton Gomes de Paula) não consta no rol de filiados. Realmente, não faz parte de nossa denominação. Sou o presidente da CBN-DF e desconheço a igreja e o Pr. Amilton”, afirma o pastor que foi por duas vezes presidente da Convenção Batista Nacional.

Foram analisados também conteúdos de divulgação da SENAH com vídeos no Youtube e registros de eventos. É utilizado um conjunto de logomarcas nestes conteúdos vinculados ao Reverendo Amilton Gomes de Paula, e não há qualquer marca relacionada à Convenção Batista Nacional ou referente aos batistas no Brasil.

Bereia também não conseguiu identificar referências da ordenação de Amilton Gomes (ou investidura, termo utilizado na consagração e inserção de pastores em quadros clericais em igrejas evangélicas) por alguma ordem de ministros batistas. O título de “Reverendo” não é comum entre batistas no Brasil, como se pode observar no registro de pastores da diretoria da CBN. 

Lideranças de diferentes igrejas, ouvidas pelo Bereia, esclareceram que, no vocabulário religioso, “reverendo” é uma forma de tratamento dirigida a clérigos, padres católicos e pastores de algumas igrejas evangélicas tradicionais, como a Metodista e a Presbiteriana. Portanto, “reverendo” não é uma função, mas uma forma de se dirigir a estas lideranças religiosas. A Igreja Episcopal Anglicana é que se diferencia, uma vez que “Reverendo”, “Reverenda” é uma categoria eclesiástica estabelecida a clérigos ordenados. Nas demais igrejas evangélicas, Luteranas, Batistas, Congregacionais, Pentecostais, é corrente a utilização do tratamento e da titulação “pastor”,”pastora”, “missionário”, “bispo” ou, mais recentemente, “apóstolos” para suas lideranças. 

O título “Reverendo” foi concedido pela “Ordem dos Cavaleiros de Sião”, informação incluída por Amilton Gomes no seu Currículo Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPq

Imagem: Reprodução Currículo Lattes de Amilton Gomes de Paula

Igreja Batista Ministério Vida Nova

A Igreja Batista Ministério Vida Nova se destacou no cenário evangélico do Centro-Oeste nos anos 2016 e 17 com a realização do evento Fest Vida, envolvendo diferentes igrejas e voluntários ligados a ela, uma ação sociocultural que mesclava shows gospel com assistência social. Um pastor que atuava em Brasília à época, apoiou o Fest Vida, e que preferiu não ser identificado, declarou ao Bereia: “o evento ‘prometeu’ muita coisa e foi bem fraco. Na época, houve notícias na imprensa local sobre superfaturamento daquele evento e outros junto a Secretaria de Cultura do DF. Muita lábia. Chegou a abrir uma ONG meio estranha. E, agora, o SENAH”. O Fest Vida teve patrocínio do governo do Distrito Federal, tendo sido citado, em 2017, na lista de contratos sob suspeita no DF. Hoje, no entanto, não há muitos vestígios da Igreja Batista Ministério Vida Nova. O website principal da igreja está inativado, estando ativo apenas um outro site aparentemente desatualizado sobre a igreja do religioso e no endereço que consta em seus registros de CNPJ, funciona outra igreja, a Igreja Adventista Renovada do Sétimo Dia. 

Imagem: Reprodução do cadastro do CNPJ
Imagem: Google Maps – Igreja que ocupa o endereço registrado para a Igreja Batista Ministério Nova Vida.

Sobre a reitoria de faculdade e o título de doutorado

O website da SENAH apresenta extenso currículo de Amilton Gomes de Paula no campo da educação, indicando-o como reitor da Faculdade Batista do Brasil, doutor em Ciências da Educação. A verificação realizada pelo Bereia mostra que esta faculdade não se encontra cadastrada no Ministério da Educação, cujo website está inativo. Apenas com o recurso do site de pesquisa Wayback Machine, foi possível acessar a página oficial da instituição inativa. O Wayback é um arquivo digital que mantém uma biblioteca com o histórico de inúmeras páginas na web.

Segundo o doutor em Ciências da Religião, Alonso Gonçalves, pastor da Igreja Batista Central em Pariquera-Açu (SP), a Faculdade Batista do Brasil não existe entre os batistas no Brasil. “Em conversas com vários colegas aqui pastores da Convenção Batista Brasileira (CBB), ninguém conhece essa Faculdade Batista do Brasil. Parece que a tal “faculdade” é fake. Existe a Faculdade Batista Brasileira em Salvador/BA. Quanto a essa faculdade da qual ele diz ser o reitor ninguém nunca ouviu falar”, diz Gonçalves que também é professor de Teologia.

Imagem: Site da SENAH/Reprodução
Imagem: Site da Faculdade Batista do Brasil encontrado via Wayback

Sobre o Doutorado em Educação, não há inclusão da titulação no Currículo Lattes de Amilton Gomes, nem registro da instituição onde concluiu o doutorado. O que se verifica é que o uso do título se deve à conquista, pelo pastor, de quatro títulos de Doutor Honoris Causa em Psicologia e Psicanálise. Isto seria um grande feito, não fossem os títulos concedidos por instituições de educação sem reconhecimento acadêmico e sem publicações referidas ou congressos científicos. O registro no Currículo Lattes do termo também está feito erroneamente como “Doutor em Honoris Causa”.

As publicações e congressos científicos são duas das formas mais comuns de promoção e renome entre as universidades que oferecem titulação de doutorado. Duas das instituições que conferiram títulos indicados no Currículo Lattes de Amilton Gomes não têm destaque ou referências na área de educação – como a Sociedade de Psicologia do Centro Oeste (presidida pelo próprio religioso) e a Federação Nacional dos Teólogos e Filósofos do Brasil. Nesse currículo, há quatro graduações e três especializações, todas cursadas entre 2004 e 2013. Amilton Gomes também é identificado pela SENAH como graduado em Psicologia, mas no seu Currículo Lattes constam apenas duas especializações na área.

As inconsistências curriculares podem, de fato, ser fruto de algumas dificuldades na regulação acadêmica, porém há outras titulações e referências que extrapolam o campo dos cursos e instituições já citados. O religioso afirma ter o título de Diplomata Humanitário concedido pela American Diplomatic Mission of International Relations Intergovernmental Organization (ADMIR). Textualmente a organização apresenta-se da seguinte forma:

A Missão Diplomática Americana de Relações Internacionais (ADMIR) é a organização intergovernamental humanitária mundial, sediada nos Estados Unidos da América. Nessa reunião, foi aprovado o estabelecimento do Departamento de Estado na Flórida e foi montado o cenário para a tecitura de uma teia de dispositivos e instituições que veio a ser conhecida como Sistema Interamericano, o mais antigo sistema institucional internacional.

(Tradução livre)

A instituição, portanto, não pertence ao governo estadunidense, apesar das inúmeras logos associadas ao governo americano em sua página oficial na internet

Imagem: Site da ADMIR

O que é a SENAH?

De acordo com o site oficial da instituição, a ONG surgiu em 1999 por iniciativa de Amilton Gomes de Paula em decorrência de ações socioculturais. O nome original da organização era Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos (SENAR) e em 2020 foi alterado para SENAH. “Hoje nosso DNA está na cultura pela paz mundial, na fomentação de apoio ao meio ambiente, sempre buscando meios sustentáveis para o desenvolvimento da sociedade harmonizando Homem e Meio Ambiente”, descreve a página oficial da ONG. A alteração estatutária dos objetivos e do nome da instituição facilita, inclusive, a celebração de parcerias e contratos com o Poder Público.

Como relata a reportagem da Agência Pública, Amilton Gomes de Paula tem fácil circulação entre políticos evangélicos em Brasília desde 2019. Nesse ano, ele participou de forma institucional, representando a SENAR, da criação da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz) 

Imagem: Reprodução do site da Câmara dos Deputados

Fotos publicadas nas mídias sociais do religioso dão conta dessa proximidade com políticos. Uma delas mostra o pastor com a ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos Damares Alves em agosto de 2019. Em outras, ele segura uma moção de louvor no Congresso e aparece ao lado do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).

Amilton Gomes aparece em foto com a Ministra Damares Alves (Foto: Amilton Gomes/Reprodução)
Amilton Gomes recebe Moção de Louvor (Foto: Amilton Gomes/Reprodução)
Amilton Gomes em foto com Flávio Bolsonaro (Foto: Amilton Gomes/Reprodução)

Em vídeo de reunião com líderes religiosos e empresários da cidade de Monte Mor/SP, em 20 de janeiro de 2020, Amilton Gomes faz referência ao apoio do governo federal para projetos da SENAH. Ele se refere tanto à recepção em Israel pelo embaixador do Brasil naquele país, Paulo César Meira de Vasconcelos, quanto pela presença do ministro da Advocacia-Geral da União André Mendonça, no lançamento do projeto de casas populares da entidade Morada Brasil. 

Imagem: TV Senar Br Global News, reunião em Monte Mor/SP 20/01/2021

Entre as logomarcas que se apresentam nas divulgações da SENAH, inclusive é a capa do canal da entidade no YouTube, chama a atenção a da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP. No entanto, conforme contato feito pela equipe Bereia com o presidente da Comissão Dr. Samuel Gomes de Lima não há parcerias entre a SENAH e a OAB de São Paulo. “O Sr. Amilton Gomes de Paula não é membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP e nem a mesma tem qualquer relação de parceria com a SENAH, sendo indevido o uso do logotipo da Comissão, passível até de ação judicial”, ressaltou.  

Fonte: TV SENAR/SENAH – Canal/Youtube

SENAH e a negociação de vacinas contra a covid-19

Conforme reportagem da Agência Pública, fotos postadas pelo presidente da SENAH, o pastor Amilton Gomes, em mídias sociais, em quatro de março de 2021, registram sua participação em uma negociação pela aquisição de vacinas contra a covid-19. As imagens mostram a presença de Amilton Gomes, Luiz Paulo Dominguetti (policial militar de Minas Gerais que depôs à CPI da Pandemia, depois de declarar à imprensa um suposto pedido de propina pelo servidor da Saúde Roberto Dias), o diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis Lauricio Monteiro Cruz e o major da Força Aérea Hardaleson Araújo de Oliveira. À Pública, Amilton Gomes confirmou a oferta e a visita ao Ministério da Saúde.

Hardaleson tem proximidades religiosas com Amilton Gomes. Há menções de que ele seja missionário evangélico e há vídeos no YouTube dele cantando músicas evangélicas em igrejas. Hardaleson ambém aparece cantando o hino nacional brasileiro em reuniões com Amilton Gomes e em atos de grupos em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, como no caso da Marcha da Família Cristã pela Liberdade de maio de 2021. Desde maio de 2020, ele consta como militar da reserva, sem ter exercido funções no governo federal.

Imagem: Major Adelson Araújo de Oliveira
Imagem: Reprodução/Agência Pública

Em 3 de julho, o Jornal Nacional, da TV Globo, veiculou uma reportagem que detalha a troca de e-mails entre Laurício Cruz, Amilton Gomes e Herman Cardenas, presidente da Davati nos Estados Unidos. De acordo com o jornal, em 9 de março, Cruz enviou e-mail para Cárdenas informando sobre a reunião de cinco dias antes e o aval que a SENAH tinha para negociar vacinas com o Governo Federal. Um dia depois, o pastor Gomes enviou um e-mail a Cardenas agradecendo a confiança e pedindo detalhes para preenchimento do contrato. Nessa proposta, o valor por dose era de US$ 17,50. A quantia é mais de cinco vezes maior do que o gasto pelo Governo Federal para vacina da AstraZeneca com a FioCruz (US$ 3,16) e pouco mais que o triplo do valor dos imunizantes via Instituto Sérum (US$ 5,25).

Outro e-mail, no dia seguinte, enviado de Amilton Gomes a Cardenas dá conta de que em 12 de março haveria uma reunião com o então Secretário Executivo da Saúde Coronel Élcio Franco para tratar de aquisição de vacinas. O representante da Davati Cristiano Carvalho confirmou ao Jornal Nacional que participou da reunião com Franco (na agenda oficial consta uma reunião com o Instituto Força Brasil), mas o negócio não foi concretizado. O valor de 17,50 dólares difere da proposta que Dominguetti afirma ter feito ao Ministério da Saúde em fevereiro de 2021, de US$ 3,50. Os e-mails mencionados pelo Jornal Nacional também aparecem na reportagem de Renata Agostini para a CNN Brasil.

Em entrevista ao jornal O Globo do dia 7 de julho, Amilton Gomes admitiu que a SENAH receberia uma doação da empresa Davati Medical Supply, sem valor estipulado. Em troca, o religioso se comprometeria a ajudá-los com a venda das 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca para o Ministério da Saúde. “Quando eles vieram a mim, eles já tinham ido ao governo e não tinham conseguido nada. Isso tudo está documentado. Eles foram primeiro no governo. Depois que não conseguiram vender a vacina, vieram a mim. Com outro nome, com outra proposta”, disse o pastor à reportagem. 

Imagem: Reprodução da reportagem do Jornal O Globo

Durante o fechamento desta matéria foi divulgado pela imprensa que em uma das mensagens do cabo da PM Luiz Dominguetti, que intermediava vacinas com a ajuda de Amilton Gomes, aparece menção à esposa de Jair Bolsonaro, Michelle Bolsonaro, o que estenderia o alcance do religioso ao Palácio do Planalto.

Nas novas mensagens, Dominguetti comenta assustado sobre os avanços do reverendo. “Michele (sic) está no circuito agora. Junto ao reverendo. Misericórdia”, escreve. O interlocutor se mostra incrédulo diante do nome da primeira-dama. “Quem é? Michele Bolsonaro?” E Dominguetti retorna: “Esposa sim”.

Deputado da Bancada Evangélica deu apoio a negociações via SENAH

Em quatro de julho, tanto a Agência Pública quanto o jornal Folha de S. Paulo publicaram reportagens sobre o apoio do deputado federal da Bancada Evangélica Roberto de Lucena (Podemos-SP) às negociações de vacinas envolvendo a SENAH.

No documento obtido pelas reportagens, consta que o parlamentar parabenizou a SENAH e Amilton Gomes “na interlocução entre laboratórios e governo”. Roberto de Lucena é pastor da Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo, faz parte da Frente Parlamentar Evangélica e da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz), instituída em 2019 na Câmara Federal, tendo a SENAH (então SENAR) como membro cooperadora.

À Folha de S. Paulo, o parlamentar disse que não viu nada de suspeito no pedido de apoio. “Não se tratava de nenhuma iniciativa comercial, era uma iniciativa humanitária. Naquele momento, a nossa crise era pela aquisição de vacinas, e o propósito deles [SENAH] era poder conversar com organismos internacionais falando sobre a necessidade de vacinas para o Brasil. Eles me pediram para assinar um apoiamento a eles e disseram que estavam pegando apoiamento de vários parlamentares”, afirmou Lucena ao jornal.

Lucena é autor do Projeto de Lei (PL) 1066/2021, que autoriza a aquisição e comercialização de vacinas contra covid-19 pela iniciativa privada e desobriga as empresas a repassar as vacinas ao SUS. O PL foi apresentado depois de sancionada a lei que permite a compra privada de vacinas aprovadas pela Anvisa desde que as doses sejam doadas ao SUS enquanto a vacinação de grupos prioritários não tenha sido finalizada.

Oferta da SENAH a municípios

Além das reuniões com o Ministério da Saúde, a SENAH também enviou proposta de venda das vacinas a Governadores, Prefeitos e Secretários de Saúde. O valor dessa oferta era de US$ 11 por dose de imunizantes da Astrazeneca e da Jonhson & Jonhson.

Na matéria de 4 de julho, a Agência Pública reporta que Amilton Gomes nega ter feito proposta de imunizantes a prefeituras, apesar de a carta obtida pelo veículo ter a assinatura dele. O religioso diz que a iniciativa partiu de um dos diretores da SENAH e que este foi repreendido por isso. Também procurado pela reportagem da Pública, o diretor mencionado, Renato Gabbi, afirma que a organização não faz negociações ou vendas, apenas informa sobre assuntos de grande necessidade nos países em que a SENAH atua.

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Bereia conclui que Amilton Gomes de Paula é, de fato, ligado ao cenário evangélico do Distrito Federal e confirma que as referências às conexões religiosas e políticas existem. Todavia, há lacunas e imprecisões na formação do líder religioso, entre as quais destacamos a ausência de sua vinculação à comunidade dos Ministros Batistas Nacionais – e do registro de sua igreja na Convenção Batista Nacional (CBN), diferentemente de como declara o website da SENAH. Também, é digno de nota que Amilton Gomes use a designação “reverendo”, mais comum entre pastores presbiterianos, metodistas e anglicanos, e que a tenha recebido como título da “Ordem dos Cavaleiros de Sião”. 

O Coletivo Bereia também conclui que as referências institucionais utilizadas pela SENAR/SENAH são imprecisas e que sua profusão pode induzir a erro, pois não é uma instituição governamental, não tem status diplomático, não possui relacionamentos institucionais de subordinação ou coordenação, nem tem autorização oficial para falar em nome da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FREMHPAZ) cujo coordenador é o deputado federal e pastor Fausto Pinato (PP-SP), advogado integrante da bancada evangélica.

A reportagem do Bereia entrou em contato no dia 08/07 com o religioso, que respondeu positivamente ao contato. Amilton Gomes alegou que somente poderia responder à entrevista com anuência de seus advogados. As perguntas sobre as inconsistências do perfil religioso e sobre a suposta intermediação de Gomes na compra de vacinas pelo governo federal foram enviadas no início da noite do mesmo dia, mas até o fechamento desta matéria, não houve resposta. No site oficial da SENAH, há um comunicado que chama as denúncias de envolvimento no esquema fraudulento de compra de vacinas de “fatos totalmente inverídicos e distorcidos da realidade”. A íntegra da nota está reproduzida abaixo:

Íntegra da Nota publicada pela SENAH (Foto: Reprodução/Portal Senah)

A CPI da Covid agendou a oitiva do reverendo Amilton Gomes de Paula para a quarta-feira, 14 de Julho de 2021. O requerimento de convocação o arrolou como testemunha (nº 1065/2021). Porém, em 12 de julho, Gomes apresentou atestado médico para não depor à Comissão no dia agendado.

O Coletivo Bereia segue em busca de informações que elucidem as inconsistências do perfil do líder religioso. Veja aqui a parte 2 desta reportagem.

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Foto de Capa: Youtube/Reprodução

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Referências

Agência Pública, https://apublica.org/2021/07/grupo-evangelico-fez-oferta-paralela-de-vacinas-ao-ministerio-da-saude-e-prefeituras/. Acesso em 1º de julho de 2021.

Diário Oficial da União, https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=08/07/2021&jornal=529&pagina=1. Acesso em 9 de julho de 2021.

Senado Federal, https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/277be4ef-5ae4-487f-ad57-62586efbcd65. Acesso em 10 de julho de 2021.

SENAH, https://www.portalsenah.org/quem-somos/. Acesso em 9 de julho de 2021.

G1, http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2012/10/investigacoes-sobre-irregularidades-em-diplomas-militares-continuam.html. Acesso em 12 de julho de 2021.

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Wayback Machine, https://web.archive.org. Acesso em 9 de julho de 2021.

Wayback Machine, https://web.archive.org/web/20161122022114/http://portalfaculdadebatista.com.br/. Acesso em 9 de julho de 2021.

Lattes, http://lattes.cnpq.br/2732952000040059. Acesso em 9 de julho de 2021.

ADMIR, https://www.usadiplomatic-gov.org/. Acesso em 4 de agosto de 2021.

Wayback Machine, https://web.archive.org/web/20201205114553/https://www.usadiplomatic-gov.org/single-post/2014/09/14/His-Excellency-Honorary-Consul-Dr-Amilton-Gomes-De-Paula-Brazil. Acesso em 9 de julho de 2021.

Câmara dos Deputados, https://www.camara.leg.br/internet/deputado/Frente_Parlamentar/54176-integra.pdf. Acesso em 9 de julho de 2021.

Jornal Nacional (G1), https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/03/diretor-do-ministerio-da-saude-deu-aval-para-reverendo-negociar-compra-bilionaria-da-vacina-astrazeneca.ghtml?utm_source=push&utm_medium=app&utm_campaign=pushg1&__twitter_impression=true. Acesso em 5 de julho de 2021.

CNN Brasil, https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/07/05/diretor-de-imunizacoes-da-saude-diz-que-reverendo-levou-proposta-da-davati. Acesso em 5 de julho de 2021.

O Globo, https://oglobo.globo.com/brasil/pm-ofereceu-doacao-em-troca-de-apoio-negociacao-de-vacina-na-saude-diz-reverendo-25094559. Acesso em 9 de julho de 2021.

Agência Pública, https://apublica.org/2021/07/deputado-federal-apoiou-grupo-religioso-em-oferta-de-vacinas-ao-ministerio-da-saude/. Acesso em 10 de julho de 2021.

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Câmara dos Deputados, https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2275448. Acesso em 10 de julho de 2021.

Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14125.htm. Acesso em 10 de julho de 2021.

UNIGREJAS, https://www.unigrejas.com/noticia/510/inauguracao-da-embaixada-mundial-pela-paz-no-distrito-federal.html. Acesso em 10 de julho de 2021.

SENAH (Youtube), https://www.youtube.com/channel/UCFfDToO6QiIag8BsAib7hUQ. Acesso em 10 de julho de 2021.

Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FREMHPAZ), https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=54176. Acesso em 10 de julho de 2021.

UOL, https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/07/12/reverendo-amilton-apresenta-atestado-medico-para-nao-ir-a-cpi-na-quarta.htm. Acesso em 12 de julho de 2021.

Convenção Batista Nacional, https://cbn.org.br/2021/institucional/diretoria/. Acesso em 12 jul 2021

Retorno ao Conselho de Segurança da ONU não significa reconhecimento positivo da política externa brasileira

Na sexta-feira,11 de junho, o Brasil voltou a participar como membro não-permanente do Conselho de Segurança das Organizações das Nações Unidas (ONU).  A ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, do atual governo, Damares Alves, se pronunciou no Twitter comentando matéria do jornal O Globo sobre o tema:

Imagem: reprodução de Twitter

A ministra escreveu de forma positiva, dando a entender que a eleição do Brasil para o Conselho foi um reconhecimento de uma atuação do governo atual, em vista dos outros países e da ONU. É a 11ª vez que o Brasil participa do Conselho de Segurança, e a segunda que conquista uma vaga de forma rotativa. A última foi entre 2004 e 2005, durante o governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. 

O embaixador do Brasil na ONU Ronaldo Costa Filho  se pronunciou pelo perfil da ONU News Português no Twitter sobre a vitória do país com 181 votos na eleição. “Será o seu 11° mandato representando demonstração inequívoca no Brasil da confiança que a comunidade internacional deposita no Brasil para contribuir de maneira ativa e construtiva ao objetivo da paz e da segurança internacional”, diz Costa Filho.

O que é o Conselho de Segurança da ONU?

Conforme consta no site oficial da ONU, “O Conselho de Segurança é o principal responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais. Tem 15 membros, e cada membro tem um voto. De acordo com a Carta das Nações Unidas, todos os Estados Membros são obrigados a cumprir as decisões do Conselho.”

Quanto às suas funções, “o Conselho de Segurança assume a liderança na determinação da existência de uma ameaça à paz ou ato de agressão. Convida as partes em uma controvérsia a resolvê-la por meios pacíficos e recomenda métodos de ajuste ou termos de solução. Em alguns casos, o Conselho de Segurança pode recorrer à imposição de sanções ou mesmo autorizar o uso da força para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais”.

Os cinco países com assentos permanentes são: EUA, Rússia, França, Grã-Bretanha e China. Os dez membros restantes são classificados como não-permanentes (ou rotativos), e sua composição atende os seguintes critérios: cinco vagas para África e Ásia; uma para o Leste Europeu; duas para a América Latina e Caribe; e duas para Europa Ocidental e outros Estados. Ou seja, os membros não-permanentes são alterados permitindo a participação, em algum momento, de todos os países-membros da ONU no Conselho.

O que significa o Brasil fazer parte do Conselho?

Bereia entrou em contato com a Dra. em Ciência Política e professora no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro   (IESP-UERJ) Maria Regina Soares de Lima,  que explicou que “estas votações se baseiam em negociações prévias entre países, grupo latino-americano ou grupo africano, etc, que votam em países e não em governos”. Na avaliação da Dra. Maria Regina Lima, “o governo brasileiro está se aproveitando destes resultados  que não refletem de modo algum, uma avaliação da ONU sobre ele”.

Postura dúbia do governo com a ONU e instituições como a OMS

Apesar da ministra Damares Alves e do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) saudarem de forma positiva a eleição para o Conselho de Segurança, o governo atual do Brasil tem uma relação dúbia com a ONU e suas instituições temáticas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O presidente já acusou a ONU de ter interesses na internacionalização da Amazônia desde a sua fundação. Também insinuou que a OMS teria viés ideológico e cogitou a saída do Brasil do órgão, além de contestar diversas orientações no combate à pandemia. A mais recente quanto ao uso de máscaras, reafirmada pela OMS em seguida

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que acompanhava missões do Itamaraty e foi presidente da Comissão de Relações Externas da Câmara, já comparou de forma pejorativa a ONU à Ordem dos Advogados do Brasil, afirmando que ambas defendem terroristas. O deputado também afirmou que a instituição tem sido usada por grupos minoritários para forçar legislações contrariando a soberania dos países.

Não fica claro por que lideranças do governo apresentam a participação no Conselho de Segurança da ONU como positiva se em diversos momentos o mesmo governo desqualifica a instituição.

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Bereia, portanto, classifica o tuíte da ministra Damares Alves como enganoso. A declaração oferece conteúdos de substância verdadeira, mas a apresentação deles é desenvolvida para confundir, de forma descontextualizada, sem o detalhamento do protocolo que envolve a escolha, fazendo parecer que houve movimento preferencial pelo Brasil, em concorrência com outros países, por conta de avaliação positiva de seu governo. A propaganda se reforça enganosa quando se avalia a postura dúbia do governo brasileiro em relação à ONU. Representa desinformação e necessita de correções, substância e contextualização.

Referências de checagem:

Jovem Pan,

https://jovempan.com.br/noticias/mundo/brasil-volta-a-fazer-parte-do-conselho-de-seguranca-da-onu-apos-10-anos.html – Acesso em: 14 jun 2021.

Twitter ONU News Português,

https://twitter.com/ONUNews/status/1403396820827611143?s=20 – Acesso em: 14 jun 2021.

O Globo,

https://oglobo.globo.com/mundo/brasil-volta-ao-conselho-de-seguranca-da-onu-apos-10-anos-1-25056948 – Acesso em: 14 jun 2021. 

Organização das Nações Unidas,

https://unric.org/pt/quais-sao-os-membros-do-conselho-de-seguranca-da-onu-e-como-sao-eleitos/– Acesso em 16 jun 2021.

Organização das Nações Unidas (em Inglês),  

https://www.un.org/securitycouncil/– Acesso em: 16 jun 2021.

Terra,

https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/bolsonaro-comemora-vaga-em-conselho-de-seguranca-da-onu,af43cfaa73aabbcd07d8911d8e9a57d60e73cug5.html – Acesso em: 16 jun 2021

Twitter Jair Bolsonaro,

https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1178295663030886400 – Acesso em: 16 jun 2021.

Agência Brasil,

https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-06/bolsonaro-diz-que-brasil-pode-sair-da-oms – Acesso em: 16 jun 2021

Reuters,

https://www.reuters.com/article/politica-bolsonaro-mascaras-liberar-idLTAKCN2DM2OS – Acesso em: 16 jun 2021

UOL,

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/06/11/contradizendo-bolsonaro-oms-pede-que-vacinados-continuem-a-usar-mascara.htm – Acesso em: 16 jun 2021

Twitter Eduardo Bolsonaro,

https://twitter.com/BolsonaroSP/status/1215176415059988480?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1215176415059988480%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_c10&ref_url=https%3A%2F%2Fnoticias.r7.com%2Fprisma%2Fr7-planalto%2Fno-twitter-eduardo-bolsonaro-compara-onu-a-oab-09012020 – Acesso em: 16 jun 2021

Estado de Minas,

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/10/11/interna_politica,1092181/com-presenca-de-eduardo-bolsonaro-evento-conservador-tem-criticas-a-o.shtml – Acesso em: 16 jun 2021

Câmara dos Deputados,

https://www.camara.leg.br/noticias/553393-EDUARDO-BOLSONARO-E-ELEITO-PRESIDENTE-DA-COMISSAO-DE-RELACOES-EXTERIORES – Acesso em: 16 jun 2021

Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/em-israel-ernesto-araujo-e-eduardo-bolsonaro-condenam-comparacao-entre-brasil-e-camara-de-gas.shtml – Acesso em: 16 jun 2021

Ecumenismo (neo)conservador: pacto programático-religioso na defesa da agenda anti-gênero

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Tabata Pastore Tesser

Essa crônica tem como objetivo suscitar reflexões pessoais acerca do pacto programático-religioso exercido por setores religiosos em torno da agenda anti-gênero. A reflexão é fruto das palestras ministradas no Seminário Internacional “Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina”, promovido pelo Grupo de Estudos em Gênero, Religião e Política da PUC/SP (GREPO) em 2021.

No Seminário Internacional, pesquisadoras e pesquisadores abordaram como a agenda anti-gênero atua como um dispositivo retórico de cunho internacional com objetivo de mobilizar setores da sociedade rumo à uma “cidadania anti-política”. Essa “cidadania anti-política”, abordada pelo pesquisador argentino Juan Marco Vaggione, tem como foco executar uma politização reativa nas democracias e, em especial, nas democracias latinoamericanas por atores neoconservadores confessionalmente religiosos ou não.

A unidade programática de setores neoconservadores religiosos se espraia para as direitas políticas não confessionais a fim de propagar uma “cidadania anti-política” que tem como objetivo comum estabelecer uma “politização da moral sexual conservadora”. A agenda anti-gênero enraizada na América Latina por esses setores distintos entre si mas unitários no programa pela “politização da moral sexual conservadora” é, pra Juan Marco Vaggione, uma resposta ao impacto dos movimentos feministas e pró-diversidade sexual na política contemporânea.

Um dos “dispositivos retóricos” para ascensão dessa moral sexual conservadora é a propagação da compreensão familista desempenhada, apesar das diferenças teológicas históricas, por setores (neo)conservadores católicos, pentecostais e neopentecostais. Um dos pilares para a politização dessa “moral sexual conservadora” é a unidade programática em torno da compreensão heteronormativa e patriarcal da família, oriunda do familismo.

Marcha da família Cristã pela Liberdade. Foto: Reprodução

A articulação transnacional em torno da farsesca retórica da “ideologia de gênero” é um exemplo de articulação comum entre setores religiosos diversos que proporcionou – como mencionou a pesquisadora colombiana Sandra Mazo – um “ecumenismo (neo)conservador” na defesa irrestrita da agenda anti-gênero.

Como apontado pela pesquisadora Sandra Mazo, o ecumenismo (neo)conservador obtém um “aporte teórico-narrativo” com foco em quatro aspectos para balizar o discurso sacrossanto da agenda anti-gênero. Um: a defesa da vida, contrastando com os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR), em específico o direito ao aborto. Dois: a promoção irrestrita do matrimônio e da família heternormativa (familismo). Três: o uso do conceito de liberdade religiosa (cristofobia) a fim de confessionaliza as políticas públicas para igualar os privilégios públicos aos interesses religiosos. Quatro: a imersão na educação como meta estratégica voltada à doutrinação cristã conservadora na comunidade escolar.

Seguindo os aportes teóricos mencionados acima, arrisco que devemos partir de perguntas-pistas para compreender como funciona esse pacto programático-religioso. É possível afirmarmos que o ecumenismo (neo)conservador contemporiza um alinhamento programático em torno da agenda anti-gênero mas há divergências nas estratégias executadas por esses atores? Os diferentes atores usam os mesmos meios e formas para propagação dessa modernização retórica? O que eles têm em comum – na última década – como estratégia para propagação dessa politização da moral sexual conservadora?

Uma das pistas é compreender o uso recorrente das comunicações midiáticas como forma de intensificação dessa “modernização retórica”. A agenda desempenhada por esse ecumenismo (neo)conservador a fim de exercer uma “politização da moral sexual conservadora” indica que, apesar dos agentes terem o mesmo objetivo comum, o fazem de maneiras diferentes e operam seus dispositivos retóricos reacionários de diferentes formas no campo político, jurídico, social e religioso.

Em se tratando da Igreja Católica, setores neoconservadores como o Centro Dom Bosco, liderado pelo Padre Paulo Ricardo, por exemplo, desempenham o dispositivo retórico mais doutrinal e confessional pela “politização da moral sexual conservadora” por meio de intensas agendas de formações onlines (cursos e lives no YouTube). A associação privada de fiéis Comunidade Católica Shalom, fundada pelo Arcebispo Moysés Louro de Azevedo Filho, cultua seu dispositivo retórico reacionário no aspecto mais emotivo, articulando ritos nem tantos doutrinais com uso frequente das redes sociais, além da publicação de artigos contrários à “ideologia de gênero” em seus sites.

No âmbito internacional clerical católico, como apresentado pela pesquisadora brasileira Maria José Rosado Nunes,  temos o papado de Francisco, não analisado usualmente como parte do que tem sido chamado de “neoconservadorismo” uma vez que promove algumas agendas que não se encontram neste campo, como a Teologia o Povo. No entanto, no que se refere aos debates de gênero, o Papa é alinhado discursivamente, e logo politicamente, ao conservadorismo. A intensificação das campanhas anti-gênero entre 2013 e 2019 contou com auxílio do papado de Francisco por meio de documentos pontifícios, pronunciamentos papais, em voga nos termos de “colonização ideológica” e “ideologia de gênero”, ambas citadas no papado a partir de 2013. Termos esses propagados também pelas redes sociais oficiais de Francisco.

Reprodução de tela de vídeo do youtube

Uma das características dessa intensificação das campanhas anti-gênero é justamente como ela vem sendo apropriada por setores protestantes, gerando um ecumenismo neoconservador em torno da agenda anti-gênero.

Observando o campo evangélico, multifacetado e diverso como o catolicismo, temos o exemplo da Ministra Damares Alves, agente política histórica das campanhas internacionais “pró-vida e pró-família” no Brasil. Suas declarações no Twitter sobre “defesa da vida e da família” são constantes, o que proporciona uma reflexão de que o uso das redes sociais por atores religiosos conservadores e neoconservadores são uma arena midiática em disputa na agenda anti-gênero. Ambos atores religiosos conservadores executam estratégias discursivas semelhantes (“ideologia de gênero”, propagação da família, defesa da vida, liberdade religiosa) mas o fazem de diferentes maneiras na arena pública.

Partindo das perguntas-pistas, reflito que a noção de “ideologia de gênero” foi apropriada nos canais midiáticos e nas redes sociais pela direita religiosa como uma forma comum de referir-se a gênero pela direita política até tornar-se uma pauta de Estado, como na interferência nos planos de educação, por exemplo. O sintagma inicial da “ideologia de gênero” inicia-se no campo católico, se espraia para os setores evangélicos e afunila sua agenda nos grupos anti-direitos como um todo, sendo religiosos ou não.

A “ideologia de gênero” não ficou restrita à sua origem católica, ela foi, ao longo do tempo, sendo ressignificada e retrabalhada pela direita política junto a outros setores religiosos não-católicos. Há desalinhamentos teológicos no modo de promoção da “cidadania anti-política” mas há um pacto programático de setores religiosos, portanto ecumênicos, na hora de executar a mesma agenda político-discursiva contra o gênero.

O ecumenismo (neo)conservador compartilha um pacto programático de caráter global que tem como foco a propagação de uma aliança transnacional pró-família (familismo) e que se desdobra no questionamento político dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR). Setores religiosos atuam com campanhas transnacionais em torno de um programa com dois eixos principais: a defesa da vida desde a concepção (pró-vida) e a defesa da família (nos moldes do familismo).

Dessa forma, conclui-se que a agenda anti-gênero executada pelo ecumenismo (neo)conservador tem como objetivo a propagação de um neoconservadorismo cristão pela retomada da “moral familista unitária” (Vaggione, Biroli, Campos Machado, 2020) no que refere-se a moral sexual cristã. São as agendas anti-gêneros “novas formas de totalitarismo”[1] (Bracke, Paternotte, 2018) no século XXI baseadas em dogmas religiosos cristãos conservadores que visam a defesa da “lei natural” e provocam um retorno da Igreja Católica aliada a setores pentecostais a um regime de diferença sexual. Regime este desempenhado pelo ecumenismo (neo)conservador na utilização estratégica das redes sociais com objetivo de modernizar a retórica dos discursos reacionários.

[1] Ver Sara Bracke e David Paternotte, “Desentrañando el pecado del género”. Habemus Género! La Iglesia Católica y la Ideología de Género. Gênero & Política América Latina e Sexuality Policy Watch, 2018, pp. 08-25.

Referências

BIROLI, Flávia, MACHADO, Maria das Dores Campos e VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: disputas e retrocessos na América Latina. 1. ed – São Paulo. Boitempo, 2020.

BRACKE, Sara e PATERNOTTE, David. “Desentrañando el pecado del género”. Em: Sara Bracke e David Paternotte (eds.), Habemus Género! La Iglesia Católica y la Ideologia de Género. Gênero & Política América Latina e Sexuality Policy Watch, 2018, pp. 08-25.

GREPO, Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seminário Internacional: catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. 31 de março de 2021 e 01 de maio de 2021. Youtube. Disponível em 10/04/2021 <https://www.youtube.com/watch?v= m0fG3Wbh1Dk & t=3092s>.

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Tabata Pastore Tesser é mestranda em Ciência da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e integrante do Grupo de Estudos em Gênero, Religião e Política da PUC/SP (GREPO).

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03/21 e 01/04/21, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a primeira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LAR-UNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO/PUC-SP e LAR/Unicamp, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de capa: Marcha da Família Cristã pela Liberdade (Reprodução).

Voz em áudio convocando fiéis a pedir ajuda na frente de quartéis militares não é da ministra Damares Alves

Um áudio de doze minutos contendo uma orientação ostensiva para que os cristãos evangélicos fossem à frente dos quartéis para pedir intervenção militar circulou nas mídias sociais na última semana. Apesar da pessoa não se identificar em nenhum momento, a seguinte mensagem foi encaminhada junto com o áudio:

“Desabafo desesperado da Ministra Damares. Ouça!!! E muito sério estamos correndo risco é urgente este desabafo da Ministra Damares. Pra Ministra Damares fazer este apelo é porque a coisa tá feia misericórdia Jesus”.

Mensagem encaminhada com o suposto áudio da ministra

O áudio ainda cita desinformações já verificadas e desmentidas: a acusação de prefeitos e governadores receberem 19 mil reais por cada morte de COVID-19, desinformando sobre a portaria do Ministério de Saúde relativa ao valor diário repassado por cada leito de UTI dedicado à COVID-19; a existência de um vídeo de uma idosa com COVID-19 sendo enterrada viva, quando na verdade tratava-se de uma paciente aguardando atendimento em um hospital do Pará; decretos de autoridades públicas mandando fechar igrejas, desinformação baseada em vídeos antigos e sem considerar que o decreto federal definiu igrejas como serviços essenciais.

Damares e Ministério negaram

Bereia entrou em contato por e-mail com o gabinete do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que respondeu enviando nota da assessoria de comunicação (também publicada no site do Ministério) desmentindo que a voz é da ministra Damares Alves: 

Um áudio atribuído à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que circula desde o final de semana em grupos de aplicativos de trocas de mensagens, não foi gravado ou divulgado pela gestora.

Nota da ASCOM/MMFDH

Sobre o conteúdo da mensagem, a nota afirma:

Ao contrário do que é defendido na mensagem, a ministra é defensora do Estado Democrático de Direito e do respeito às instituições. O Ministério trabalha em diálogo com os demais entes federados e órgãos públicos pelo respeito aos direitos humanos e para que estes não sejam violados em nome de combate à pandemia.

Nota da ASCOM/MMFDH

No dia 29 de março a própria ministra publicou um vídeo negando que seja ela falando no áudio compartilhado.  

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Bereia classifica, portanto, o áudio como falso. A voz do áudio não é da ministra Damares Alves e traz desinformações já verificadas como igualmente falsas. Bereia também recomenda atenção para todo e qualquer áudio em que a pessoa que fala não se identifica, pois tais condições são comuns a conteúdo falso ou conteúdo criado para causar desinformação.

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Referências de checagem

Site do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/marco/audio-que-circula-em-grupos-de-aplicativos-de-mensagens-nao-e-da-ministra-damares-alves Acesso em: 29 mar 2021.

Perfil de Damares Alves em rede social digital – https://www.instagram.com/tv/CNBIOYpD099/?igshid=kypml4ubzbup Acesso em: 29 mar 2021

Aos Fatos, https://www.aosfatos.org/noticias/prefeituras-nao-recebem-r-19-mil-do-governo-federal-cada-morte-por-covid-19/ Acesso em: 01 abr 2021

Último Segundo, https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-05-15/idosa-com-covid-19-enterrada-viva-entenda-o-video-fake.html Acesso em: 01 abr 2021

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/video-de-marisa-lobo-desinforma-sobre-perseguicao-religiosa/. Acesso em 01 abr 2021

Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/governo-define-lotericas-e-igrejas-como-atividades-essenciais Acesso em 01 abr 2021.

Governo Federal não tem tido olhar diferenciado para a proteção da mulher

Durante uma coletiva de imprensa sobre a Operação Resguardo, para enfrentamento da violência contra a mulher, coordenada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a Ministra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves afirmou:

“Eu quero registrar também agradecimento ao mais incrível presidente da República que o país já teve, o presidente mais mulher que já vi e quando ele deu ordem a todos nós que o tema tinha que ser transversal, é exatamente isso que estamos mostrando isso aqui hoje. É um governo que tem tido um olhar diferente para a proteção da mulher”.

Damares Alves

Governo investiu pouco nos direitos das mulheres

Esta não é a primeira declaração da ministra para exaltar as políticas do Governo Bolsonaro para os direitos das mulheres. Em fevereiro de 2021, Damares Alves fez um pronunciamento no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), no qual afirmou que o orçamento de 2020 para os direitos das mulheres foi o maior dos últimos cinco anos. O discurso foi verificado pelo Bereia que concluiu que a afirmação é enganosa.

Apesar do Governo Federal divulgar essa marca de investimento, levantamento da agência Gênero e Número, a partir dos dados do próprio ministério, aponta que apenas 2,7% da verba empenhada para os Direitos das Mulheres foram gastos pela pasta de Damares Alves.

Um destaque negativo neste levantamento está no baixo investimento para a Casa da Mulher Brasileira. Apenas 66 mil de 61 milhões (cerca de 0,1%) foram gastos na instituição durante 2020. Em junho de 2020, um pronunciamento do Governo Federal explicou que a execução de verba só tinha sido autorizada em maio daquele ano por conta da pandemia.

Além disso, um estudo da consultoria da Câmara dos Deputados, divulgado em junho, apontou que o Governo tinha gastado, até aquele momento, apenas R$ 5,6 milhões dos R$ 126,4 milhões previstos para políticas direcionadas aos direitos das mulheres, menos de 5%.

Violência contra a mulher no Brasil

Produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Atlas da Violência de 2020 trata de dados imediatamente anteriores à posse de Bolsonaro, até o ano de 2018. Naquele ano, a taxa de mulheres assassinadas era de 4,3 por 100 mil habitantes no país. O índice é uma queda de 9,3% em relação ao ano anterior, mas a tendência entre 2008 e 2018 é de aumento de 4,2%. O Ipea assinala que 68% das mulheres assassinadas eram negras. 

O relatório informa que o índice mais que dobrou entre 2008 e 2018 no Ceará, Roraima e Acre, com aumentos de 278,6%, 186,6% e 126,6%.  Já o Espírito Santo reduziu em 52,2%, São Paulo o fez em 36,3% e no Paraná o índice caiu em 35,1%. 

Além disso, o texto assinala que o feminicídio pode ser considerado o resultado final de um ciclo de violência praticado, muitas vezes, por conhecidos ou íntimos da vítima. Por isso, o relatório usa os dados de homicídios dentro de casa como correspondentes ao crime que virou lei em 2015. A conclusão é que “30,4% dos homicídios de mulheres ocorridos em 2018 no Brasil teriam sido feminicídios – crescimento de 6,6% em relação a 2017 –, indicando crescimento da participação da mortalidade na residência em relação ao total de mulheres vítimas de homicídio” (p. 39).

Já em 2019, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos informou que a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 67.438 denúncias, o número significa aumento de 7,95% em relação ao ano anterior. Quase oito em cada 10 chamadas ao Ligue 180 tratavam de violência doméstica e familiar.

Violência contra a mulher na pandemia

A violência contra a mulher se agravou durante a pandemia em vários países. Relatório da ONU Mulheres apontou crescimento dos casos em países como Argentina, Espanha, EUA e Reino Unido.

A pandemia também agravou a situação no Brasil. Elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 compara dados do primeiro semestre de 2019 com o primeiro semestre do ano seguinte. Enquanto os registros de lesão corporal dolosa, ameaças, estupros (de mulheres e de vulneráveis) caíram entre 9% e 22%, feminicídios e homicídios dolosos de mulheres subiram em 2%, bem como as ligações ao 190 por violência doméstica (3,8%).

O Anuário também compara as medidas tomadas por governos do Brasil, Argentina, Uruguai, Espanha, Itália e França em relação às recomendações da ONU para combate à violência de gênero na pandemia (p. 40). O Brasil investiu em atendimento online,mas não adotou outras políticas como: abrigos temporários para vítimas; estabelecimento de serviço de alerta de emergência em supermercados e farmácias; investimento em organizações da sociedade civil; declaração de abrigos e serviços de atendimento à mulher como essencial. A França é o melhor exemplo, adotou quatro das cinco medidas (não fez declaração desse serviço como essencial).

Em julho, no entanto, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei 14.022/2020, que torna essencial o serviço de atendimento à mulher vítima de violência doméstica ou familiar (bem como idosos, pessoas com deficiências, crianças e adolescentes). Além disso, o número de denúncias de violência contra mulher chegou a 105.821. O dado não pode ser comparado aos anos anteriores devido a mudança de metodologia. A alteração permite que uma denúncia contemple mais de um crime ou que mais de uma denúncia seja colocada em um mesmo protocolo.

Governo Federal se recusou a assinar declaração pela igualdade de gênero 

Em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o governo brasileiro se recusou a assinar uma declaração conjunta da ONU por avanço em ações pela igualdade de gênero, assinado por 53 países, entre eles Estados Unidos, Israel e Argentina. A declaração ressalta o papel das mulheres durante a pandemia, em especial as profissionais de saúde: “As mulheres representam 70% da força de trabalho do setor social e de saúde em todo o mundo. Embora elas tenham recebido principalmente reconhecimento simbólico, este reconhecimento também deve se refletir na redução da diferença salarial entre os sexos”, defendem os países. 

O documento também toca na questão da violência sexual e da saúde sexual e reprodutiva. “Em meio à crise, os serviços de saúde sexual e reprodutiva continuam sendo essenciais e devem fazer parte dos planos nacionais que lidam com a pandemia”, afirma. 

Em nota, o Ministério das Relações Exteriores explicou o motivo para não assinar o documento. “O governo brasileiro salienta a importância do reconhecimento, na declaração, de pautas salutares em defesa da mulher, em especial por ocasião da referida data, como o reconhecimento do trabalho não remunerado e a necessidade de se combater a violência contra a mulher, em especial no período pandêmico. Entretanto, não apoia referências a termos e expressões ambíguas, tais como direitos sexuais e reprodutivos”, declarou. 

Reconhecimento de retrocessos

O discurso de Damares Alves foi proferido durante coletiva de imprensa sobre a Operação Resguardo, de combate a crimes de violência contra a mulher, comandada pelo Ministério da Justiça. Segundo o Governo Federal, nove mil pessoas foram presas entre 1º de janeiro e 8 de março, 1.500 em8 de março, quando a Polícia Civil realizou uma ação chamada de “Dia D”.  Foram apreendidas 1.226 armas nas casas dos agressores. O secretário de operações integradas do Ministério da Justiça Jefferson Lisbôa participou da coletiva e afirmou que as ações terão continuidade. “Isso vai se tornar uma operação de rotina. Hoje é uma data comemorativa, mas vamos transformar ações de defesa à mulher em rotina”.

A defensora pública estadual de Mato Grosso e coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) Rosana de Barros conversou com o Coletivo Bereia a respeito do cenário de combate à violência contra a mulher. De acordo com ela, políticas públicas implementadas em governos anteriores, como a Casa da Mulher Brasileira, se perderam nesta gestão.

“Como Defensora Pública, sei que a maioria dos boletins de ocorrência lavrados na atualidade se constituem em delitos contra as mulheres. Há necessidade de um olhar diferenciado para as mulheres, tendo em vista as estatísticas apontarem grande índice de crimes praticados contra elas, e, ainda, o número crescente dos feminicídios, que são delitos anunciados, podendo ser evitados. Sabemos que os direitos humanos não podem retroceder”.

Rosana de Barros, defensora pública de Mato Grosso

Em março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro relacionou a violência doméstica com a falta de comida em casa, para criticar as medidas de isolamento social. “Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?”, questionou o presidente.

No entanto, o estudo do Ipea publicado em 2019 vai contra o senso comum de que mulheres fora do mercado de trabalho sofrem mais violência. As estatísticas revelam que as ocorrências entre as mulheres que fazem parte da população economicamente ativa são o dobro em comparação àquelas que não trabalham (p. 17).

Rosana de Barros destaca que no começo da pandemia observou que a procura pelo Núcleo de Defesa da Mulher diminuiu devido às medidas de combate ao coronavírus. “Todavia, sabíamos que a violência doméstica e familiar havia aumentado, pois as mulheres estavam em isolamento social com os seus agressores. Enquanto os homens são assassinados fora de casa, as mulheres estão sendo assassinadas dentro de casa. Logo, são delitos anunciados e que podem ser evitados”.

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Bereia conclui que a declaração da ministra Damares Alves a respeito da atuação do presidente Jair Bolsonaro em relação à proteção das mulheres é enganosa. Apesar de o Governo Federal realizar ações contra a violência doméstica, como a Operação Resguardo e o registro online de ocorrências, outras iniciativas recomendadas pela ONU, aos países para combate à violência de gênero na pandemia, não foram tomadas. 

A respeito da declaração de igualdade de gênero na ONU, o Itamaraty justifica a ambiguidade dos termos referentes à saúde reprodutiva o que atribui a uma consonância com o direito ao aborto. Ainda assim, as declarações da ministra ocultam a falta de investimento nos direitos das mulheres em 2020, mesmo que haja orçamento liberado para tal, contradizem afirmações do presidente que simplificam e banalizam a grave questão da violência contra a mulher.

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Foto de capa: Pixabay/reprodução

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Referências

Último Segundo iG. https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2021-03-08/bolsonaro-e-o-presidente-mais-mulher-que-ja-vi-diz-ministra-damares-alves.html. Acesso em: 08 de março de 2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/discurso-de-damares-a-onu-engana-a-respeito-de-acoes-do-governo-na-pandemia/. Acesso em: 09 de março de 2021.

Agência Gênero e Número, http://www.generonumero.media/orcamento-damares-2020-mulheres-lgbt/. Acesso em: 09 de março de 2021.

Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira, https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2020/ET16_Violncia_MUlher.pdf. Acesso em: 09 de março de 2021.

Câmara dos Deputados, https://www.camara.leg.br/noticias/668512-governo-gastou-apenas-r-56-milhoes-de-um-total-de-r-1264-milhoes-previstos-com-politicas-para-mulheres/. Acesso em: 09 de março de 2021.

Ipea, https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020. Acesso em: 09 de março de 2021.

Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em: 09 de março de 2021.

Governo Federal, https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2020/05/central-de-atendimento-a-mulher-registrou-1-3-milhao-de-chamadas-em-2019. Acesso em: 09 de março de 2021.

ONU Mulheres, https://www.onumulheres.org.br/noticias/violencia-contra-as-mulheres-e-meninas-e-pandemia-invisivel-afirma-diretora-executiva-da-onu-mulheres/. Acesso em: 09 de março de 2021.

Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14022.htm. Acesso em: 09 de março de 2021.

G1, https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/07/brasil-teve-105-mil-denuncias-de-violencia-contra-mulher-em-2020-pandemia-e-fator-diz-damares.ghtml. Acesso em: 09 de março de 2021.

G1, https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/03/08/brasil-fica-de-fora-de-declaracao-conjunta-com-mais-de-50-paises-pelo-dia-internacional-da-mulher-na-onu.ghtml. Acesso em: 10 de março de 2021.

UOL, https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/03/08/brasil-nao-adere-a-ato-de-60-democracias-na-onu-pela-defesa-das-mulheres.htm. Acesso em: 10 de março de 2021.

Governo Federal, https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/operacao-resguardo-mira-combate-a-crimes-de-violencia-contra-a-mulher-no-brasil. Acesso em: 10 de março de 2021.

G1, https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/03/08/dez-sao-presos-em-operacao-de-combate-a-violencia-contra-mulher-no-pais.ghtml. Acesso em: 10 de março de 2021.

UOL, https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/03/30/por-que-bolsonaro-erra-ao-usar-violencia-domestica-para-criticar-isolamento.htm. Acesso em: 11 de março de 2021.Ipea, https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2501.pdf. Acesso em: 11 de março de 2021.

Discurso de Damares à ONU engana a respeito de ações do Governo na pandemia

Por meio de um pronunciamento gravado, a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves participou da reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) em 22 de fevereiro. O portal gospel Pleno News noticiou o evento e destacou a afirmação da ministra em defesa da família. No entanto, a matéria não aponta a desinformação contida no discurso de Damares Alves, que abordou desde o combate à pandemia até o orçamento para os direitos das mulheres.

O governo não apresentou planos estruturados contra da covid-19

Logo na abertura de seu discurso, a ministra afirmou: “A Covid-19 impôs ao mundo inteiro grandes desafios na área dos direitos humanos, especialmente entre os grupos mais vulneráveis. Para enfrentar essa realidade, o governo brasileiro apresentou planos de contingência estruturados nos eixos saúde, proteção social e proteção econômica.”

De fato, a pandemia atinge com maior gravidade grupos mais vulneráveis. Uma nota técnica publicada em maio de 2020 pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), que reúne acadêmicos da PUC-Rio, FioCruz, USP e IDOR,  concluiu que a taxa de letalidade da covid-19 é maior entre pretos e pardos em relação aos brancos. O estudo levou em conta cerca de 30 mil casos encerrados, ou seja, que já tiveram desfecho: óbito ou recuperação (alta). Destes, 37,9% dos brancos faleceram. Essa taxa sobe para 54,7% entre pretos e pardos. Essa taxa também é maior conforme o grau de escolaridade das pessoas diminui. Cerca de sete em cada dez dos casos daqueles sem escolaridade terminaram em óbitos. Entre aqueles com Ensino Superior, o índice cai para 22,5%. .

No entanto, apesar do Governo Federal ter custeado até dezembro de 2020 o Auxílio Emergencial, promovido o Programa de Manutenção do Emprego e Renda, não houve um plano estruturado para o combate à pandemia. Pelo contrário, o presidente Jair Bolsonaro minimizou diversas vezes a gravidade da doença em prol da prioridade às  atividades econômicas. Além disso, o presidente também agiu contra a vacinação no país.. 

Bereia já havia verificado como falsa a afirmação – repetida pelo próprio presidente – de que o Supremo Tribunal Federal teria impedido o Governo Federal de agir contra a pandemia. O STF determinou que União, Estados e Municípios têm responsabilidade concorrente diante da crise sanitária.

Cestas básicas citadas pela ministra são cumprimento de obrigação (e não iniciativa) do Governo

No pronunciamento à reunião da ONU, Damares Alves citou que mais de 700 mil cestas básicas foram distribuídas para indígenas e quilombolas. Entretanto, em setembro de 2020, a Justiça Federal exigiu do Governo a distribuição de cestas básicas e kits de higene para indígenas do médio do Xingu, no Pará, por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai) e Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) enquanto durar a pandemia. 

À reportagem da Rádio Agência, a Funai esclareceu que cumpriria a decisão depois da apresentação de alguns critérios de identificação pelo juiz federal. A Fundação afirmou que já faz ações do tipo. De fato, entregas de cestas básicas e kits de higiene fazem parte do Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19. O plano revisado foi entregue em setembro ao STF por determinação do ministro Luís Roberto Barroso. A versão, no entanto, não foi homologada por Barroso, que demandou um novo plano. Entre os argumentos da negativa está a consideração, por parte do ministro, que a redação foi genérica e vaga. 

Apenas 2,7% do valor empenhado às políticas para mulheres foi gasto

Damares Alves também disse à ONU que o orçamento de 2020 para os direitos das mulheres foi o maior dos últimos cinco anos. É o que divulga o site do Governo Federal sobre o trabalho da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM). No entanto, um levantamento da agência Gênero e Número aponta que apenas 2,7% do valor empenhado para o Direitos das Mulheres foram gastos pelo governo.

Nesse sentido, destaca-se o baixo investimento na Casa da Mulher Brasileira. O levantamento da Gênero e Número mostra que de R$ 61 milhões de reais empenhados foram gastos apenas R$ 66 mil, pouco mais de 0,1% Em junho de 2020, um pronunciamento do Governo Federal explicou que a execução de verba só tinha sido autorizada em maio daquele ano por conta da pandemia.

Um estudo da consultoria da Câmara dos Deputados, divulgado em junho, apontou que o Governo tinha gastado, até aquele momento, apenas R$ 5,6 milhões dos R$ 126,4 milhões previstos para políticas direcionadas aos direitos das mulheres, menos de 5%. A situação estava no contexto de um aumento de denúncias de violência contra mulher. Abril de 2020 apresentou um aumento de 35% dessas denúncias em relação ao mesmo mês do ano anterior.

Defesa dos idosos e vacinação

A matéria do site gospel Pleno News ainda relata que a ministra destacou ações pelos idosos, como combate à violência e prioridade na vacinação no contra covid-19. É verdade que os números de denúncias de violência a idosos aumentaram. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação demonstram que foram feitas 25.533 denúncias ao Disque 100 entre março e junho de 2020. Esse número representa um aumento de 59% em relação ao mesmo período do ano passado. 

Além disso, é também verdadeiro que o Governo Federal agiu para investigar e punir a violência contra idosos. A fala da ministra se refere à Operação Vetus, uma cooperação do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos e do Ministério da Justiça e Segurança Pública. A ação aconteceu no DF e nos 26 estados e desde o início, em 1 de outubro, até 4 de dezembro, 567 pessoas foram detidas.

Já sobre a prioridade na vacinação contra a covid-19, idosos, de fato, fazem parte dos grupos prioritários, como divulgou o Ministério da Saúde, seguindo as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS). A ordem pela qual os diferentes perfis de idosos (por idade, por exemplo) serão imunizados fica a cargo de estados e municípios. 

A prioridade aos idosos tem sido padrão em outros países que já iniciaram a vacinação. No Reino Unido, profissionais de casas de cuidados com este grupo de pessoas são a primeira prioridade, seguidos daqueles com 80 anos ou mais e os profissionais de saúde e assistência social. Os próximos da fila são outros grupos de idosos. Israel também priorizou idosos, como mostram os dados coletados pelo Our World In Data.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos recomenda que profissionais de saúde e de asilos sejam a primeira prioridade, seguidos de profissionais de atividades essenciais e pessoas com 75 anos ou mais. Nos EUA, cada estados define seu próprio plano de vacinação. Fica não-dito no pronunciamento da ministra, a não priorização da compra de vacinas por parte do governo do Brasil, que centralizou o processo e não tem um plano efetivo, diferentemente de outros países

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Bereia conclui que a matéria do site Pleno News é enganosa ao tratar do discurso da ministra Damares Alves. O texto apenas reproduz o que disse a ministra sem verificar se o pronunciamento condiz com as ações do governo federal. É verdadeiro que tem havido combate à violência contra idosos e que há prioridade a essa parcela da população na campanha de vacinação, o que significa seguir as orientações da Organização Mundial de Saúde, o que tem já sido feito por muitos países.

Por outro lado, é impreciso afirmar que o governo federal foi responsável pela distribuição de kits de higiene e cestas básicas para indígenas, sem considerar que uma parcela dessas ações estiveram negligenciadas e, por isso, foram determinadas pela Justiça. Além disso, o plano da Funai para combate à covid foi mal elaborado e não foi homologado pelo STF.

De igual forma, as afirmações de Damares Alves quanto ao investimento pelos direitos das mulheres e sobre a iniciativa estruturada do Governo Federal contra a pandemia não se sustentam – a primeira pode ser confrontada com dados oficiais do próprio Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos  e a segunda, pela postura do presidente Jair Bolsonaro, que minimiza permanentemente a gravidade da situação e tem agido contra a vacinação.

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Foto de Capa: Print do vídeo/Reprodução

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Referências

Carla Zambelli (Youtube), https://www.youtube.com/watch?v=DQAeheOMDFA&feature=emb_logo. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), https://drive.google.com/file/d/1tSU7mV4OPnLRFMMY47JIXZgzkklvkydO/view. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Caixa Econômica Federal, https://www.caixa.gov.br/auxilio/PAGINAS/DEFAULT2.ASPX. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Ministério da Economia, https://servicos.mte.gov.br/bem/. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

O Estado de São Paulo, https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,maricas-histeria-nao-sou-coveiro-relembre-frases-de-bolsonaro-sobre-a-covid-19,70003509925. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Revista Piauí, https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-sabotador/. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Bereia, https://coletivobereia.com.br/site-gospel-desinforma-ao-noticiar-que-cidades-ignoram-decreto-presidencial-sobre-abertura-de-igrejas/. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2020-09/justica-determina-distribuicao-de-cestas-basicas-indigenas-no-para. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Governo Federal, https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/setembro/PlanoREVISADO1.pdf. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

STF, http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=453860. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Governo Federal, https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2021/01/atual-gestao-investe-em-politicas-para-as-mulheres-mais-do-que-os-cinco-anos-anteriores. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Gênero e Número, http://www.generonumero.media/orcamento-damares-2020-mulheres-lgbt/. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

Governo Federal, https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/junho/orcamento-destinado-a-casa-da-mulher-brasileira-cresce-mais-de-200-em-2020. Acesso em 25 de fevereiro de 2021.

Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira, https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2020/ET16_Violncia_MUlher.pdf. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

G1, https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/10/29/cresce-59percent-o-numero-de-denuncias-de-violencia-contra-o-idoso-no-brasil-durante-a-pandemia-da-covid-19.ghtml. Acesso em: 01 de março de 2021.

G1, https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/12/04/operacao-combate-crimes-de-violencia-contra-idosos-em-todo-pais.ghtml. Acesso em: 01 de março de 2021.

Governo Federal, https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/entenda-a-ordem-de-vacinacao-contra-a-covid-19-entre-os-grupos-prioritarios. Acesso em: 01 de março de 2021.

Nações Unidas, https://news.un.org/pt/story/2020/12/1735372. Aceso em: 02 de março de 2021.

Gov. UK, https://www.gov.uk/government/publications/covid-19-vaccination-care-home-and-healthcare-settings-posters/covid-19-vaccination-first-phase-priority-groups. Acesso em: 01 de março de 2021.

Our World In Data, https://ourworldindata.org/vaccination-israel-impact. Acesso em: 01 de março de 2021.

CDC, https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/vaccines/recommendations.html. 01 de março de 2021.

Movimento The Send Brasil é criticado por doutrinar politicamente jovens evangélicos

No dia 18 de agosto, o site evangélico de notícias Portal do Trono publicou uma notícia com a seguinte manchete: The Send Brasil é acusado de doutrinar jovens evangélicos politicamente. O texto se refere ao vídeo “The Send: o que está por trás do plano de evangelização em massa no Brasil”, de Jackson Augusto, no canal do The Intercept Brasil no Youtube, e também reproduz o vídeo resposta publicado por Henrique Krigner, um dos representantes do evento no Brasil.

De acordo com a notícia, Jackson Augusto teria dito que o The Send pretende catequizar o Brasil e não tem motivação religiosa, mas meramente política.

O que é The Send

“The Send” é um projeto do “The Call Ministries” Ministério O Chamado, criado em 2001, pelo evangelista Lou Eagle, fundador da International House of Prayer [Casa Internacional de Oração]. O The Call foi uma série de eventos religiosos evangélicos, realizados para jovens em estádios, com shows musicais, orações e pregações religiosas com foco em questões morais. Os eventos de Eagle reuniam centenas de milhares de pessoas com participantes de vários países. Permeado por discursos políticos classificados como conservadores, o The Call alcançou simpatia da Direita Cristã. Matéria do jornal Daily Kos, de 2010, identificou o pregador como “líder de oração não oficial do Partido Republicano. Lou Eagle tornou-se até personagem de três produções religiosas em filme.

Algumas das casas de oração que Lou Eagle espalhou pelos Estados Unidos estão alocadas em locais estratégicos para a pregação contra o direito ao aborto, de onde organiza protestos públicos. Um dos eventos do The Call foi realizado na África, em Uganda, em 2010, onde o pregador exaltou a lei local anti-homossexualidade, em estudo à época, que previa prisão perpétua ou pena de morte para gays e lésbicas com AIDS que têm relações sexuais, pelo qual recebeu muitas críticas.

O The Call agregou grupos evangélicos de diversos países, em 2019, com o objetivo expandir sua atuação para “reevangelizar a América”, cumprindo a missão dada por Jesus Cristo, com a exportação da experiência estadunidense. O projeto foi, então, extinto para a criação do “Lou Engle Ministries”, que criou nova iniciativa, The Send, cujo público-alvo continuam sendo jovens, com foco em alunos de universidades e escolas, considerados dois campos missionários, somados a outros dois: famílias e nações.

O projeto conta com o apoio das organizações dos Estados Unidos Youth With a Mission (YWAM) Jovens com Uma Missão – JOCUM, fundada em 1960, presente no Brasil há vários anos; da Lifestyle Christianity, organização criada em 2014 pelo evangelista Todd White; e Christ for All Nations, organização evangelística criada em 1974 para atuar inicialmente na África e depois passou a realizar o que denomina “cruzadas” (eventos de massa) pelo mundo.

Em 2020, foi realizado o The Send Brasil, em 8 de fevereiro, em três estádios de futebol lotados (dois em São Paulo e um em Brasília), com venda de ingressos com baixo custo e inscrições on line. Os eventos, com 12 horas de duração, foram organizados com o apoio do Dunamis Movement, um movimento brasileiro paraeclesiástico originado da JOCUM, cujo alvo é a juventude.

Caracterizado por rica infraestrutura, o The Send Brasil teve mescla de apresentações musicais dos Estados Unidos e das mais destacadas do gospel do Brasil, com pregações religiosas de personagens estadunidenses e de evangélicos conservadores brasileiros. O evento de Brasília contou com as presenças do Presidente Jair Bolsonaro e da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a Pastora Damares Alves, o que afirmou o caráter e a linha política do projeto.

Havia um The Send programado para a Argentina, em 25 de abril de 2020, no Estádio José Amalfitani, em Buenos Aires. Com as medidas preventivas contra a Covid-19, o evento foi adiado para 2021, mas o The Send Brasil realizou um evento online na data, com 12 horas de duração, com o mesmo tipo de programação realizada nos estádios com cantores e pregadores dos Estados Unidos e do Brasil. Até a data de conclusão deste trabalho, o vídeo havia sido assistido por três milhões de pessoas.

Todas as organizações que apoiam o The Send têm escolas de formação cristã e para missionários jovens e oferecem conteúdo online. O The Send também está organizando suas próprias escolas para os jovens sul-americanos. Por meio das inscrições para os eventos, foi criada uma mala-direta de milhares de contatos.

A Questão política no The Send

O autor do vídeo crítico ao The Send é Jackson Augusto, jovem produtor de conteúdo do Afrocrente, podcaster no afrocrentescast e ativista da teologia negra no Brasil. Integra a coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico e é membro do colegiado nacional do Miqueias, rede global de evangélicos comprometidos com a justiça social.

Jackson afirmou, no vídeo que faz parte de uma série sobre os evangélicos, para o The Intercept, que a intenção do The Send seria meramente política. A crítica feita pelo ativista se refere ao que ele denomina uma “espiritualidade individualista e meritocrática”, que ignora questões como opressão, racismo e perseguição aos direitos humanos.

Em depoimento ao Portal Roma News, a cantora gospel Gabi Sampaio, que esteve presente no evento, afirmou que as palestras realizadas trataram assuntos como evangelização em escolas, universidades e comunidades carentes e conscientização sobre adoção e seus impactos.

No vídeo que produziu em resposta à publicação do Intercept, o representante do The Send Henrique Krigner, argumentou que o evento tratou de assuntos como adoção de crianças e adolescentes, tráfico humano e violência doméstica.

A respeito da adoção falaram Todd White (Lifestyle Christianity), Mike Gallagher (Chosen and Dearly Loved), Damares Alves (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) e Heidi Baker (Iris Global). White falou de sua experiência.

Christine Caine, da The A21 Campaign, tratou de tráfico humano. Ela falou das ações tomadas por sua organização e relatou as situações por quais passam as mulheres vítimas desse crime (o exemplo dado foi de um caso na Grécia). Além disso, ela orou para que pessoas no estádio se comprometessem a lutar por causas como pobreza, tráfico humano e escravidão.

Todas essas participações aconteceram entre o fim da quinta e começo da sexta hora de evento no Morumbi.

A juventude e a política

No entanto, Jackson afirmou que as igrejas miram os jovens “porque a lógica neoliberal dessas igrejas precisa de uma juventude que seja massa de manobra política mesmo, porque ainda não tem muita formação crítica”.
Em entrevista cedida ao Portal PB Agora, o professor doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e cientista político Lúcio Flávio, afirma que “é um erro achar que os jovens não gostam de política. Na verdade, o que eles não querem é participar das formas tradicionais da política”.

O especialista destaca que não basta ficar esperando que a sociedade se preocupe da noite para o dia, com os anseios e demandas da juventude. Os próprios jovens precisam desde a escola, interessar-se por política e atuar diretamente, cobrando responsabilidades de governantes, propondo ações e participando de fóruns, conselhos e processos eleitorais.

Em 2018, ano em que foram realizadas as últimas eleições no Brasil, houve aumento na porcentagem de jovens de 16 e 17 anos que tiraram título de eleitor. Segundo dados analisados pelo jornal Folha de S. Paulo a partir de números divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), 29,5% desta faixa etária se encontrava apta para votar. O que corresponde a 250 mil novos eleitores. Houve um aumento em comparação a 2014, eleição que elegeu Dilma Rousseff, quando foi registrada a porcentagem de 23,9%.

O interesse de jovens, de acordo com especialistas ouvidos pela Folha, tem relação com a forte presença deste público em redes sociais, ambiente em que políticos divulgam suas propostas, repercutem notícias e fazem pronunciamentos em tempo real (as chamadas lives).

Outra questão é a identificação dos jovens com temas de cunho social. Entrevistado pela Folha, o professor e pesquisador do Departamento de Gestão Pública da FGV Marco Teixeira, afirma que, “para o senso comum vivemos um período de descrença política, mas vemos engajamento dos jovens em coletivos, não em partidos, identificados com temas como feminismo, questões LGBT e ambiental, por exemplo”.
Também entrevistado pela Folha, o consultor político e advogado da Hold Assessoria Legislativa, Álvaro Maimoni, defende que a intensificação do debate político, principalmente após o impeachment de Dilma em 2016, também influencia os jovens.

Segundo Maimoni, os jovens que se encontram na faixa etária de 16 anos cresceram acompanhando notícias sobre corrupção em órgãos públicos. “Sempre escutaram coisas como ‘nós temos que acabar com a corrupção’ e compraram essa ideia”, conclui.

Participação da ministra Damares Alves

Jackson exemplifica a dimensão política do evento com as presenças do Presidente Jair Bolsonaro e da ministra da Mulher, Família e Direitos Humano Damares Alves, como, de fato, ocorreu. Foram os únicos políticos que falaram no evento.

Em resposta, Henrique Krigner afirmou que a ministra foi convidada não só por ser ministra, mas também pelo fato de o evento ter tratado de temas ligados à sua pasta, como adoção e tráfico humano.
Antes da fala da ministra, Todd White deu um relato pessoal de sua experiência como pai adotivo e Mike Gallagher discorreu sobre adoção, convivência familiar e projetos que estimulam a prática. Em sequência a Damares, Heidi Baker relatou uma experiência pessoal vivida na infância para demonstrar a ligação entre amor familiar e amor divino.

Durante o evento no estádio do Morumbi, a ministra fez um apelo para a igreja evangélica a respeito da adoção e convocou os jovens a exercerem o papel de agentes de mudança na sociedade e na Igreja.

Como era um evento voltado para jovens, Bereia verificou quais são os temas que mais preocupam em relação à realidade deste grupo social. Pesquisas indicam que adoção e tráfico humano não são questões-chave, mas educação, emprego e violência.

Segundo o relatório “Competências e Empregos: Uma Agenda para a Juventude”, divulgado pelo Banco Mundial em março de 2018, um em cada dois jovens brasileiros corre o risco de ser vulnerável à pobreza. Nesse dado entram 25 milhões de pessoas desengajadas da produtividade, seja elas “nem-nem” (não trabalham, nem estudam), estudantes (mas com atraso em sua formação) ou trabalhadoras (mas na informalidade).

Já o Atlas Brasileiro da Violência 2019 mostra que mais da metade das vítimas de homicídio no Brasil são jovens entre 15 e 29 anos (35,7 mil de 65,6 mil). O estudo é feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base em dados do Ministério da Saúde com base nos dados do Ministério da Saúde.

Esta verificação dos temas-chave para a juventude no Brasil corrobora a crítica de Jackson Antunes sobre o The Send destacar temas e dar voz a políticos com ênfases que não correspondem ao que são as necessidades mais prementes de jovens brasileiros e acabam denotando campanha política.

Bolsonaro no The Send

Já o presidente Jair Bolsonaro, de acordo o vídeo-defesa de Krigner, não foi convidado pelo evento, mas participou espontaneamente. Questionado nos comentários do vídeo publicado no IGTV a respeito do porquê o presidente discursou, Krigner respondeu:

“Bolsonaro desceu as escadas com lágrimas nos olhos dizendo “estou sendo muito tocado. Posso dar uma palavra?”. Foram essas as palavras que ele usou e, diante disso, cedemos o espaço. Escrevo isso com frio na barriga, pq são detalhes de backstage que ninguém conhece. E te garanto com toda sinceridade: se fosse Dilma, Lula, FHC ou qualquer outro que com olho marejado nos fizesse esse pedido nós daríamos o mesmo espaço. É o momento que sai a “figura pública” e entra o ser humano por detrás do título. Foi lindo e agradeço a Deus por ter sido parte desse episódio que pra mim marca uma nova forma de impacto e influência na relação de crentes com líderes públicos.”

Em Brasília, Bolsonaro discursou para o público do The Send por cerca de quatro minutos. O Presidente afirmou que o público do evento [se referindo aos evangélicos] foi o ponto de inflexão em 2018 para mudar o Brasil. Além disso, ele afirmou que “o Estado até pode ser laico, mas Jair Bolsonaro é cristão” e que seu governo é temente a Deus. Por volta da oitava hora do evento no Morumbi, o preletor Todd White anunciou que Bolsonaro tinha confessado a Cristo, fez uma oração para que o presidente fosse batizado no Espírito Santo e ainda disse que essa decisão muda todo o país.

É verdade que o voto evangélico foi fundamental para a vitória de Bolsonaro em 2018. No entanto, o The Send não foi a primeira ocasião em que o Presidente teria “confessado a Cristo” ou “aceitado a Jesus”. O Bereia já realizou verificação a respeito da imprecisão dessa afirmação, uma vez que o presidente mantém uma postura ambígua em relação a sua religiosidade.

Posicionamentos de lideranças

Em entrevista concedida à cantora e compositora gospel Zoe Lilly, em 08 de outubro de 2019, Henrique Krigner afirma que política é um assunto que sempre o interessou e traz seu posicionamento em relação à política e religião, trazendo por base as eleições presidenciais de 2018.

Para Krigner, as eleições de 2018 exigiram um posicionamento mais enfático por conta da Igreja. “Pela primeira vez a Igreja se reuniu em torno de um candidato em termo de presidência para votar”. Esse posicionamento, “é uma reação à máquina que foi implantada no país. A sociedade está atenta a este processo”, afirma.

No seu canal do Youtube, Krigner pauta temas ligados à política e religião, como a oposição ao Movimento Lula Livre, a pautas do STF, apoio à campanha eleitoral de Bolsonaro em 2018 e como o cristão deve escolher seus representantes. Em vídeo postado em 08 de novembro de 2019, Krigner deixa clara sua posição crítica ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao refletir sobre prisão e votação em segunda instância, utilizando por exemplo o caso do ex-presidente Lula.

Henrique fez críticas ao Supremo em outros momentos em suas mídias sociais. Em sua página no Facebook, ele publicou em 24 de julho de 2020 o seguinte texto acompanhado por foto:

“Faz sentido uma instituição em que o mesmo juiz acusa e investiga um processo do qual ele se entende como vítima? Por quê uma decisão como essa não é tomada por um colegiado? #stf #alexandredemoraes”.

Em vídeo postado em 15 de novembro de 2019, Krigner responde os comentários referentes a um vídeo anterior sobre o Movimento Lula Livre. Neste último vídeo postado em novembro de 2019, em aplicativo vinculado ao Instagram, Henrique argumenta que é contraditório um jovem cristão defender o Movimento, pois choca com princípios básicos da ética cristã, como honestidade e respeito ao próximo.

O líder alerta para o retrocesso que o Movimento simboliza, no sentido de representar o desrespeito a Constituição e perda de confiança no trabalho desenvolvido por órgãos do Poder Judiciário brasileiro.
No contexto das últimas eleições foram produzidos vídeos com o objetivo de esclarecer o público acerca de temas desde funcionamento da urna eletrônica, candidatos que concorreram ao pleito daquele ano e até direitos como cidadão brasileiro, desenvolvendo a conscientização de indivíduos participantes da construção do próprio país, cientes dessa missão.

O último vídeo publicado no canal foi uma resposta ao vídeo divulgado pelo The Intercept Brasil sobre o The Send.

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Bereia conclui que a notícia do Portal do Trono é verdadeira, pois o The Send é, de fato, criticado na análise crítica publicada em vídeo por Jackson Antunes no Intercept. O Portal do Trono deu voz à defesa do promotor do evento Henrique Krigner, em sua notícia, mas não ouviu Jackson Antunes ou levantou dados referentes às críticas que o site noticioso classifica como “acusações”.

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Referências

Portal do Trono, https://www.portaldotrono.com/the-send-brasil-doutrinar-jovens-evangelicos-politica/. Acesso em 27 de Agosto de 2020.

The Intercept Brasil, https://youtu.be/AKE1tHfY_d4. Acesso em: 27 de Agosto de 2020.

Canal do Krigner, https://youtu.be/9uHfSjkxKGs. Acesso em: 27 de Agosto de 2020.

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Roma News, https://www.romanews.com.br/colunistas/conexao-crista/the-send-relato-do-dia-em-que-o-brasil-parou-para-adorar/1131/. Acesso em: 29 de agosto 2020

Cientista político ressalta que juventude quer ser inserida na política e não só tratada como massa de manobra. PB Agora: https://www.pbagora.com.br/noticia/politica/cientista-politico-ressalta-que-juventude-quer-ser-inserida-na-politica-e-nao-so-ser-tratada-como-massa-de-manobra/. Acesso em: 29 de agosto 2020

Proporção de adolescentes eleitores aumenta pela primeira vez desde 2006. Jornal Folha de S. Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/proporcao-de-adolescentes-eleitores-aumenta-pela-primeira-vez-desde-2006.shtml. Acesso em: 29 de agosto 2020

Daily Kos. “”It’s Scary” – GOP’s Lou Engle Problem Getting Bigger”. https://www.dailykos.com/stories/2010/5/17/867144/-Its-ScaryGOPs-Lou-Engle-Problem-Getting-Bigger Acesso em 1 set 2020

The New York Times, In Uganda, Push to Curb Gays Draws U.S. Guest. https://www.nytimes.com/2010/05/03/world/africa/03uganda.html Acesso em 1 set 2020

São falsos vídeos sobre suposta Operação Storm no Brasil

Circula em grupos católicos e evangélicos nas mídias sociais um vídeo sobre a suposta Operação Storm, que investigaria uma rede de pedofilia internacional. Uma das versões do vídeo foi publicada originalmente no canal de Cristina Daflon no YouTube. O vídeo gera alerta e começa com a seguinte introdução:

“A Operação Storm entrou com João de Deus. Foi descoberta a rede de pedofilia internacional americana que vem de Hollywood, esse pessoal todinho lá. A ministra Damares tem feito muitas investigações e agora parece que as coisas estão fluindo, tem havido muito mais debate sobre isso. Cuidem de seus filhos, não confiem em ninguém.” 

A suposta Operação Storm é uma fake news que tem se propagado em diversas versões nos últimos dias, principalmente em correntes no WhatsApp. Segundo o site Boatos.org, alguns conteúdos dizem que a Operação Storm está prendendo opositores de Jair Bolsonaro e  do presidente americano Donald Trump.Já outra corrente afirma que foram presos 24 ministros, senadores, deputados e governadores, incluindo o presidente da Câmara dos Deputados  Rodrigo Maia (DEM/RJ) e o presidente do Senado Federal Davi Alcolumbre (DEM/AP). Há ainda outra versão que, como a do vídeo, afirma que a Operação Storm está investigando uma rede de pedofilia internacional. Entretanto, todas as versões são falsas. 

Bereia não encontrou menção sobre a Operação Storm em nenhum veículo oficial ou agência de notícias nacional ou internacional, somente notícias enganosas, produzidas com objetivo de desinformar. Também não é verdade que Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre ou os opositores a Bolsonaro e Trump foram presos. 

O vídeo da ministra Damares Alves

No vídeo analisado, depois da introdução sobre a falsa Operação Storm, a YouTuber retoma um vídeo da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves sobre pedofilia. No entanto a fala da ministra não se refere à Operação Storm.

Damares Alves estava, na ocasião, em um evento do BNDES, onde foi chamada a comentar sobre projetos de saneamento básico. Em meio a sua fala pediu que os governadores envolvidos ajudassem o projeto Abrace o Marajó. O projeto, que teve início em 12 de julho de 2019, visa à promoção de direitos humanos entre as populações marajoaras, uma etnia ribeirinha amazônica. Em nenhum momento da apresentação da ministra é citado o projeto, cita a Operação Storm ou o apoio de forças dos EUA. 

Damares ainda afirma, no vídeo, estar sendo perseguida por uma rede de crime organizado, e que os ataques a sua pasta se dariam por estar indo contra o comércio de imagens de estupro infantil. Sobre o projeto, no entanto, não apresentou nos resultados qualquer investigação contra rede de pedofilia. No âmbito jurídico, à época, foram realizados 277 processos (um procedente, 52 improcedentes, 212 acordos e 12 extintivas). Em resumo, o vídeo utilizado pela youtuber Cristina Daflon é retirado de contexto para dar credibilidade ao conteúdo que ela divulga, estratégia comum em fake news. 

Operação Storm: um esquema de desinformação 

A mentira da “Operação Storm” faz parte de um conhecido esquema de desinformação: se definir como oposto de um inimigo imaginário. O pesquisador João Cezar de Castro Rocha aponta como teorias da conspiração e inimigos invisíveis têm sido usados como retórica política para inflamar discursos de extrema direita, no caso do Brasil, os bolsonaristas. Em entrevista para o canal O Meio (11 de agosto) o professor explica que, para a narrativa bolsonarista, é necessário haver um inimigo a ser combatido, e a imagem de pedófilos têm um apelo forte nesse sentido.  

Ainda há muitas semelhanças entre as notícias sobre a suposta Operação e o raciocínio dos Q-Anon americanos. O grupo de conspiracionistas já teve suas contas excluídas do Twitter e foram noticiados amplamente na mídia. Em resumo, os “Q’s” – gíria para usuários anônimos das redes – acreditam que o presidente Donald Trump estaria atuando contra o deep state (“Estado Profundo”), uma seita satânica que consome fetos humanos abortados. O movimento tem preocupado o serviço de inteligência dos EUA, o FBI como um movimento radical e, no Brasil, foi satirizado em uma edição do programa Greg News, lançado no dia 14 de agosto, 

As semelhanças entre os discursos são notáveis, sobretudo diante dos mais recentes escândalos que vêm a tona no país, como o recente caso da jovem de 10 anos estuprada pelo tio e as reações de grupos como os de Sara Geromini que repercutiram na mídia e nas redes sociais digitais sendo trending topics nas últimas semanas.

Pânico moral e “defesa da família”

Segundo o pesquisador Richard Miskolci no artigo “Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay”, a construção de bases políticas conservadoras e de extrema direita, e a adesão a elas, têm sido conquistadas por meio do pânico moral, da retórica do medo, para gerar insegurança e promover afetos. 

Pânicos morais são fenômenos que emergem em situações nas quais sociedades reagem a determinadas circunstâncias e a identidades sociais que presumem representarem alguma forma de perigo. São a forma como a mídia, a opinião pública e os agentes de controle social reagem a determinados rompimentos de padrões normativos e, ao se sentirem ameaçados, tendem a concordar que “algo deveria ser feito” a respeito dessas circunstâncias e dessas identidades sociais ameaçadoras. O pânico moral fica plenamente caracterizado quando a preocupação aumenta em desproporção ao perigo real e geral (Miskolci, 2007).

Pesquisas científicas, como a de Richard Miskolci, indicam a circulação de intensa quantidade de material desinformativo, baseado em pânico moral e medo para disseminação de conteúdos que se revertem em apoio a grupos políticos de extrema direita, o que se pode identificar no vídeo verificado nesta matéria. 

Bereia conclui que a Operação Storm não existe, trata-se de uma notícia falsa produzida com objetivo de enganar e causar desinformação. Além disso, a narrativa sobre pedofilia que circula pelas mídias sociais, produzida por grupos de extrema-direita, evoca uma abordagem de pânico moral, tratando um problema sério de forma irresponsável e baseado em mentiras. 

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Referências de checagem

YouTube – Cristina Daflon. https://youtu.be/cqsZu8afJWM. Acesso em 28 jul. 

Boatos.Org. https://www.boatos.org/politica/operacao-storm-deflagrada-brasil-24-governadores-ministros-stf-presos.html. Acesso em 28 jul. 

O Globo. https://oglobo.globo.com/sociedade/estamos-diante-de-uma-serie-de-estupros-de-bebes-diz-damares-em-evento-sobre-saneamento-1-24122246. Acesso em 27 ago. 

Governo Federal. https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/julho/ministerio-apresenta-resultados-do-programa-abrace-o-marajo. Acesso em 27 ago.

YouTube – O Meio. https://youtu.be/mKkbsFNUDXY. Acesso em 27 ago.

G1. https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/07/22/qanon-twitter-elimina-contas-de-grupo-que-propaga-teoria-de-conspiracao-nos-eua.ghtml. Acesso em 27 ago. 

YouTube – Greg News. https://youtu.be/zVhn9WT-Xqg. Acesso em 27 ago. 

UOL. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/08/26/o-que-e-qanon-o-movimento-conspiracionista-a-favor-de-trump-que-e-visto-pelo-fbi-como-ameaca.htm. Acesso em 27 ago. 

Richard Miskolci.  “Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay”. Acesso em 28 ago. 

Grupos evangélicos e olavistas ajudaram a espalhar fake news de Bolsonaro sobre esquerda e pedofilia

Publicado originalmente pela Agência Pública. Reportagem de Ethel Rudnitzki e Mariama Correia.

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Maior portal de notícias evangélicas do país, o Gospel Prime publicou, ainda em maio, texto onde afirmava haver um crescimento de “grupos pela legalização da pedofilia nas redes sociais”. Embora amparado em argumentos falsos e vagos como “muitos usuários das redes sociais relataram a criação de grupos para esse fim”, a publicação do site – listado pela CPMI das Fake News – circulou em grupos de WhatsApp cristãos e foi amplamente compartilhada por evangélicos nas redes sociais no começo de julho.

Reprodução/Facebook
Fake news que associa pedofilia à esquerda circulou em grupos evangélicos

O mesmo argumento do Gospel Prime apareceu no Twitter do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), na terça-feira (14). Bolsonaro aproveitou a apresentação de um Projeto de Lei que aumenta a pena para pedófilos para afirmar, sem provas, que “a esquerda busca meios de descriminalizar a pedofilia, transformando-a em uma mera doença ou opção sexual”. O presidente mentiu, como mostraram várias checagens, incluindo esta do UOL e do Projeto Comprova, mas conseguiu atiçar ainda mais grupos religiosos radicais e discípulos do autodeclarado filósofo Olavo de Carvalho, que representam grande parte da sua base aliada.

Personalidades cristãs conservadoras também fizeram coro com Bolsonaro, como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), que é católica. Ela afirmou ser “muito comum esquerdistas relativizarem o sexo com menores de 14 anos”. O post de Janaína tinha quase seis mil curtidas e 900 compartilhamentos até a quinta-feira (16). O lutador de MMA evangélico Vitor Belfort, também postou no Twitter uma mensagem parabenizando Bolsonaro e Damares Alves pelo projeto e repetiu a fala de que a esquerda “busca meios de descriminalizar a pedofilia”.

Outros religiosos envolvidos na política, como o pastor e deputado estadual Léo Portela (PSL-MG), com mais de 20 mil seguidores no Twitter, também ajudaram a disseminar a fake news, assim como políticos bolsonaristas, a exemplo do Deputado Federal Daniel Silveira (PSL-RJ), e seguidores de Olavo de Carvalho, como o youtuber Bernado Kuster, ambos investigados no inquérito do STF que apura a disseminação de fake news. O boato também foi repercutido por outros portais de direita e circulou por grupos bolsonaristas no WhatsApp.

Reprodução/WhatsApp
Correntes que associam pedofilia à esquerda circulam em grupos bolsonaristas no Whatsapp
Reprodução/WhatsApp
Fake que associa pedofilia à esquerda repercutiu em portais e grupos de direita

Mentiras e moralismo

Bolsonaro usa fake news sobre pedofilia para ganhar apoio de lideranças religiosas conservadoras porque sabe que esse tema dialoga com o “moralismo cristão”, na visão do pastor progressista e crítico do atual governo, Ricardo Gondim. “As fake news fazem parte do arcabouço desse moralismo, que tem na ministra Damares, evangélica, um elemento muito representativo no governo federal”, considera.

Herbert Rodrigues, sociólogo e autor do livro “Pedofilia e suas narrativas”, diz que o tema da pedofilia foi capturado politicamente pela direita e pelas bancadas religiosas há alguns anos. “Desde a CPI da pedofilia no Senado(2008 -2010). Todos os membros da CPI eram homens. Muitos ligados à chamada bancada evangélica e tinham perfil conservador e punitivista. O presidente da CPI era o ex-senador Magno Malta, que é pastor evangélico”, lembra.

Entretanto, pelo menos a partir das eleições de 2018, Rodrigues observa que a extrema direita passou a associar a pedofilia com a esquerda mais sistematicamente. “Na minha opinião trata-se de uma estratégia fascista”, diz. Para a pesquisadora da USP Isabela Kalil, que estuda bolsonarismo e política antigênero desde 2013 este “é um tema recorrentemente usado como cortina de fumaça”. Ela acredita que não à toa o tuíte do presidente Bolsonaro foi publicado em um momento de crise do governo, na semana seguinte à soltura de Fabrício Queiroz, investigado por esquema de ‘rachadinhas’ quando era assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos).

Isabela observa ainda que a questão da pedofilia sempre consegue chamar atenção de lideranças cristãs e abastecer correntes de fake news. “Embora seja um assunto muito específico e grave, faz parte de um pacote de desinformação antigênero, que inclui outras fake news, como a ‘mamadeira erótica’ e o ‘kit gay’. Há, na visão de certos grupos, uma conspiração pela sexualização precoce das crianças, e isso é associado ao movimento LGBT e às feministas. Nessa perspectiva, a pedofilia seria a ponta de um iceberg nesses discursos enviesados”, considera.

Propagação de fake news acontece de forma estratégica

Em 2016, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e colunista do site Gospel Mais, gravou um vídeo falando sobre mudança de sexo em crianças e ideologia de gênero. Nele, Malafaia afirma que pedofilia é ideologia de gênero, e que “é um jogo dos esquerdopatas”. Com mais de 70 mil visualizações, o vídeo continua disponível no Youtube.

Reprodução/Youtube
Pastor Silas Malafaia espalha boato que associa pedofilia à esquerda em vídeo de 2016

Dois anos depois, uma imagem que afirmava que Fernando Haddad, na época candidato à presidência da República pelo PT, era autor de um projeto pró-pedofilia, viralizou nas redes sociais. A montagem falsa fazia referência ao Projeto de Lei (PL) 236/10, que nem era de autoria de Haddad, nem tratava de legalização da pedofilia, como mostrou o Estadão.

Apesar disso, no começo deste ano, a ministra Damares fez referência ao mesmo PL em entrevista onde afirmou haver risco de legalização da pedofilia no Brasil.

O ex-deputado Federal Jean Willys (PSOL) também foi caluniosamente acusado de defender a pedofilia em 2018, pelo ainda deputado Federal Alexandre Frota (PSDB), condenado por disseminar fake news, na época aliado de Bolsonaro.

Recentemente, um tuíte falso, defendendo um pedófilo, também foi atribuído ao youtuber Felipe Neto, que tem feito críticas ao atual governo.

Acusar alguém de pedofilia ou de apoio à pedofilia é quase infalível enquanto tática para enfraquecer inimigos políticos e despertar apoio de grupos conservadores, avalia a pesquisadora Isabela Kalil. “Não tem como ser a favor da pedofilia. É um tema que perpassa a educação, mobiliza as famílias, é repercutido pela opinião pública. Desperta um pânico moral nas pessoas, mas por vezes carrega um pacote, como um Cavalo de Tróia que, quando aberto, está cheio de ideias antigênero, antiLGBT e de posições transfóbicas, também bandeiras de grupos católicos e evangélicos conservadores”.

Para Isabela, a falsa associação entre esquerda e pedofilia voltou à tona em um momento particularmente estratégico para o governo federal, que lançou em abril, no meio da pandemia, o Observatório da Família, dentro do ministério de Damares Alves. O Observatório teria a finalidade de “produzir conhecimento científico sobre a família e servir de referência para a criação de políticas públicas”. “O projeto foi lançado como se não fosse nada. Em um olhar mais atento se vê que é uma ameaça de grave retrocesso de direitos públicos, de desmonte do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) – que envolve Comissão da Verdade, cotas raciais, políticas LGBTQI+. É bom lembrar que o PNDH tem sido um empecilho para o avanço de pautas conservadoras, muitas delas cristãs”, considera.

Embora a mentira pareça só uma afirmação descontextualizada, a desinformação obedece a um processo bem articulado e em cadeia: “Você cria um medo ou um problema e depois se apresenta a solução. No exemplo mais recente de Bolsonaro, para o medo da pedofilia, a solução é o PL e ainda outras ações do governo, como o Observatório da Família”, analisa Isabela Kalil.

Fake news importada

A pesquisadora também observa que as fake news circulam em movimentos encadeados. No caso do boato que associa a defesa da pedofilia à esquerda, a origem é estrangeira e é resgatada em momentos oportunos.

A reportagem do Gospel Prime cita um suposto movimento de legalização da pedofilia chamado MAP, sigla em inglês para pessoa sexualmente atraída por menores de idade. O texto afirma que “circulam rumores na internet de que uma das pautas dessa militância é inserir P (de pedófilo) à sigla LGBTI”. A notícia é falsa. O portal evangélico brasileiro traduz o texto do site latinoamericano “Notícias Cristianas”, que por sua vez importou uma notícia falsa dos Estados Unidos, verificada ainda em 2018 pela organização de fact-checking Snopes. Na verdade, MAP é um termo criado por uma organização norte-americana que auxilia pedófilos em busca de tratamento, diz a checagem.

Mas a associação de pedofilia com a esquerda é ainda mais antiga que isso. No Brasil, ela foi propagada pela figura de Olavo de Carvalho. Em um texto de 2002, intitulado “Cem anos de pedofilia”, o autoproclamado filósofo e atual guru de Bolsonaro elenca uma série de elementos que estariam por trás do que ele chama de “movimento de indução à pedofilia”. Entre eles estão as teorias de Sigmund Freud, o movimento feminista, e até o advento da pílula anticoncepcional e da camisinha. Para Carvalho, que é bastante religioso, “por toda parte onde a prática da pedofilia recuou, foi a influência do cristianismo — e praticamente ela só — que libertou as crianças desse jugo temível”.

Depois do texto, o guru continuou propagando essa falsa teoria para seus seguidores e a resgatando em momentos oportunos. Uma das aulas de seu curso online de filosofia (COF) de título “Poder e Pedofilia – um breve resumo” foi relembrada por seu aluno e youtuber, Bernardo Küster na ocasião da polêmica a respeito da mostra “Queer Museu” no MASP. Em vídeo, olavista argumenta que a exposição faz parte do grande projeto da esquerda de legalizar a pedofilia, como já dizia seu guru.

Reprodução/ Facebook
Youtuber olavista Bernardo Küster, repercutiu boato ainda em 2017

Sistematicamente portais de desinformação liderados por seguidores de Olavo de Carvalho também ressuscitaram essa teoria. No último dia 15, o site Estudos Nacionais, do aluno de Olavo Cristian Derosa, publicou um texto que buscava legitimar a afirmação de Bolsonaro. “Esquerda quer descriminalizar a pedofilia? Entenda a declaração de Bolsonaro e sua repercussão” dizia.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Presidente Bolsonaro mente ao dizer que “esquerda” quer descriminalizar pedofilia

Publicado originalmente no UOL Notícias, com adaptações do Coletivo Bereia

Postagem do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Twitter, em 14 de junho de 2020, foi intensamente compartilhada em mídias digitais de pessoas e grupos cristãos. Ele acusou “a esquerda” de buscar “meios de descriminalizar a pedofilia“, ao falar sobre um PL (Projeto de Lei) apresentado pela Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, na segunda-feira, 13 de julho, que sugere aumento na pena de crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes. 

Inicialmente, a fake news surgiu em 2015, tendo como alvo a deputada Maria do Rosário (PT-RS) e o ex-deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Voltando a circular em 2017, quando foi desmentida pelo então deputado em suas redes sociais.

Os criadores da mentira chegaram a adulterar fotos dos dois deputados para forjar cartazes e folders dizendo que a pedofilia não seria crime, e sim doença. Tais fotos não existem, bem como nunca foi apresentado nenhum projeto de lei com esse conteúdo, como a imprensa alertou na época.

Durante as eleições de 2018, o candidato do PT à Presidência da República, Fernando Haddad, foi alvo de uma notícia falsa que afirmava que ele defendia a legalização da pedofilia. O projeto Comprova verificou , na ocasião, que o PL 236/2012 tramita no Senado desde 2012, não propõe a legalização da pedofilia e não tinha relação com o PT e com Haddad.

A proposta foi apresentada pelo ex-presidente e ex-senador José Sarney (MDB-AP) e estava sob a relatoria do senador Antonio Anastasia (PSDB). O projeto de lei em questão trata de uma proposta de novo Código Penal.

No artigo 186, o projeto propôs a redução de 14 anos para 12 anos o limite de idade da vítima na qualificação do crime de “estupro de vulnerável”, um agravante do crime de estupro. Acima do limite de idade, a violência sexual não deixaria de ser considerada crime de estupro

Formulada por juristas e debatida por cerca de sete meses, a proposta de mudança se baseia no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que considera crianças aquelas pessoas que têm até 12 anos de idade incompletos.

Pedofilia é transtorno mental, diz OMS 

Pedofilia não é um crime, mas um transtorno mental reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) desde os anos 1960. 

Pelas leis brasileiras, qualquer ato que atente contra a dignidade sexual da criança é tipificado como crime, como o estupro de incapaz (artigo 217-A do Código Penal) e a pornografia infantil (prevista nos artigos 240 e 241 do ECA). Não é só no Brasil, mas também no resto do mundo, não existe qualquer dispositivo legal que criminalize a pedofilia. 

Segundo reportagem publicada pelo TAB/UOL, não existe cura para a pedofilia. Por isso, é preciso acompanhamento médico constante — terapia e, em alguns casos, medicação hormonal para inibir o desejo sexual — para tratar os impulsos. O tratamento não é só importante para o pedófilo como também o impede de fazer vítimas. Quando um pedófilo comete abuso sexual, aí sim ele passa a ser um abusador e deve responder pelos seus atos perante a Justiça. 

No entanto, nem todos os abusadores de crianças são pessoas portadoras do transtorno.

O principal problema é que o uso indiscriminado do termo obscurece a verdadeira questão: a pedofilia é classificada no conjunto de uma desordem mental; ao passo que o abuso sexual infantil (a pornografia infantil) se refere ao perpetrador de abuso sexual e não implica, necessariamente, doença mental, mas crime“, explicou  Herbert Rodrigues, sociólogo, professor da Missouri State University (EUA) e autor do livro “A pedofilia e suas narrativas” (Editora Multifoco). Portanto, a pedofilia seria uma doença mental que poderia ser classificada sob o termo de molestador infantil. 

Mesmo que pedófilos sejam classificados como molestadores infantis, nem todos os molestadores podem ser considerados — ou diagnosticados — como pedófilos.

Na mesma linha, psiquiatras especializados entendem que a banalização do termo “pedofilia” é uma das causas que impedem pessoas com essa doença de procurar ajuda e evitar algum tipo de abuso contra crianças. Além disso, nem sempre os casos de abusos sexuais contra menores são cometidos por pedófilos, mas muitas vezes por pessoas que se aproveitam de uma situação de vulnerabilidade da vítima para agir. O psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC), avalia que cerca de 30% a 40% dos agressores sexuais de crianças são, de fato, pedófilos.

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Referências de checagem

BR Política Bolsonaro mente no Twitter que esquerda quer descriminalizar pedofilia

Comprova – Projeto não torna a pedofilia um ato legal nem tem participação de Haddad.

Senado Federal- 236/2012

Twitter – Bolsonaro

UOL – Bolsonaro distorce ao postar que esquerda quer descriminalizar pedofilia

UOL – PEDÓFILO PROCURA AJUDA

UOL – Por que a discussão sobre abuso sexual infantil precisa evoluir no Brasil.

Ministra Damares Alves faz acusações sem provas sobre contaminação de indígenas por Covid-19

Durante a reunião ministerial do governo federal, cujo vídeo foi tornado público em 22 de maio pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, relatou que pessoas estariam contaminando povos indígenas propositalmente com o novo coronavírus a fim de dizimá-los e atingir o presidente Jair Bolsonaro.

Eu fui lá para a Amazônia e para Roraima para acompanhar o primeiro óbito [pela covid-19]. E por que que nós fomos lá, presidente? Porque nós recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiros pra colocar nas costas do presidente Bolsonaro. (…) Eu tive que ir pra lá com o presidente da Funai e me reuni com generais da região e o superintendente da Polícia Federal, pra gente fazer uma ação ali meio que sigilosa, porque eles precisavam matar mais índio pra dizer que a nossa política não tava dando certo.”

A íntegra da fala da ministra e de toda a reunião pode ser assistida em vídeo e a gravação dos conteúdos pode ser lida aqui.

A acusação feita pela ministra é muito grave e é muito sério também  que ela não tenha apresentado dados que corroborassem sua afirmação, referindo-se à necessidade de fazer uma ação “meio que sigilosa” com a Polícia Federal, porque, segundo ela, “eles” [e não fica claro quem são “eles”] precisavam matar “mais índio” para fazer crer que a política bolsonarista não estaria dando certo.

O Coletivo Bereia checou a veracidade desta informação dada pela ministra Damares Alves na reunião ministerial de 22 de abril.

A reunião ministerial

O vídeo foi solicitado pela defesa do ex-ministro da justiça Sérgio Moro, para ser apresentado como prova no inquérito da Polícia Federal que investiga a denúncia do ex-ministro sobre possível intervenção indevida de Jair Bolsonaro neste mesmo órgão, para atender objetivos pessoais.

O acesso livre ao vídeo da reunião foi liberado pelo Supremo Tribunal Federal em 22 de maio, inclusive a degravação das falas (com exceção de trechos que mencionam a China e o Paraguai, por questões de segurança nacional), por se tratar de assunto de interesse público.

O conteúdo da reunião chamou a atenção, além dos trechos que podem ser ou não interpretados como prova na investigação em curso, pelo baixo nível do que foi dito pelos líderes nacionais. Houve excesso de expressões de baixo calão, pedidos de prisão de ministros do STF, classificados como “vagabundos”, também de governadores e prefeitos que atuam em medidas de isolamento social contra a Covid-19, além de outras intervenções de ética questionável.

Quando lhe foi dada a palavra, a ministra Damares Alves questionou o STF sobre a possibilidade de liberar o aborto a “todos que tiveram coronavírus” no Brasil, falou sobre a  informação de que indígenas haviam sido contaminados de propósito para se colocar a culpa em Jair Bolsonaro e que “nunca houve tanta violação de direitos no Brasil como neste período“, indicando que pediria a prisão de governadores e prefeitos.

Indígenas no Brasil e o descaso governamental

Segundo o Instituto Socioambiental, uma organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, com atuação em torno de questões sociais e ambientais com foco central na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos.

Em pleno século XXI a grande maioria dos brasileiros ignora a imensa diversidade de povos indígenas que vivem no país. Estima-se que, na época da chegada dos europeus, fossem mais de 1.000 povos, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente encontramos no território brasileiro 256 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes.

Os povos indígenas somam, segundo o Censo IBGE 2010, 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país.

A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 724 Terras Indígenas, de norte a sul do território nacional. 

Entre as principais etnias indígenas brasileiras na atualidade estão a Ticuna (35.000), Guarani (30.000), Caiagangue ou Caigangue (25.000), Macuxi (20.000), Terena (16.000), Guajajara (14.000), Xavante (12.000), Ianomâmi (12.000), Pataxó (9.700) e Potiguara (7.700).

A defesa dos direitos dos povos indígenas, os habitantes originários das terras brasileiras, tem sido árdua. A maior conquista foi o direito à demarcação de terras alcançado com a Constituição de 1988. Os direitos constitucionais dos índios estão expressos em capítulo específico da Constituição (título VIII, “Da Ordem Social”, capítulo VIII, “Dos Índios”), além de outros dispositivos dispersos ao longo do texto e de um artigo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

São, pelo menos, duas inovações importantes em relação a Constituições anteriores e ao chamado Estatuto do Índio. A primeira é o abandono de uma perspectiva assimilacionista, que entendia os índios como categoria social transitória, fadada ao desaparecimento. A segunda é que os direitos dos índios sobre suas terras são definidos como direitos originários, isto é, direitos anteriores à criação do próprio Estado. Isto decorre do reconhecimento do fato histórico de que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil. A Constituição de 1988 estabelece, desta forma, novos marcos para as relações entre o Estado, a sociedade brasileira e os povos indígenas.

Em relação ao atual governo, são cinco principais pontos de conflito que envolvem os povos indígenas: demarcações paralisadas (cumprimento de promessa de campanha), defesa de que haja mineração em terras indígenas, indicação de expansão do agronegócio em áreas indígenas, repetição do discurso da ditadura militar de que indígenas devem se integrar à sociedade, agrado à bancada ruralista com transferência da FUNAI do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura (o que foi impedido pelo STF, declarado inconstitucional).

Esta tensão entre o governo Jair Bolsonaro e povos indígenas brasileiros fez com que membros de 45 etnias se reunissem em uma aldeia em Mato Grosso em protesto, em janeiro passado. O encontro foi convocado pelo cacique kayapó Raoni Metuktire e, nele, os indígenas afirmaram em um manifesto “que está em curso um projeto político do governo brasileiro de genocídio, etnocídio e ecocídio“. “As ameaças e falas de ódio do atual governo estão promovendo a violência contra povos indígenas, o assassinato de nossas lideranças e a invasão das nossas terras“, diz o texto, redigido ao fim da reunião, na aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto Jarina.

Em uma de suas transmissões ao vivo pelo Youtube às quintas-feiras, o presidente Jair Bolsonaro disse em 24 de janeiro, referindo-se à criação do Conselho da Amazônia e a ações previstas para a proteção de terras indígenas, que “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”. Ele afirmou pretender fazer com que os povos nativos da Amazônia sejam integrados à sociedade, e que sejam donos das terras indígenas. O conselho foi criado após o governo brasileiro, e o próprio Presidente da República, sofrerem críticas, inclusive em âmbito internacional, pela atuação destrutiva na área ambiental.  A coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) Sônia Guajajara, reagiu à época afirmando que os indígenas exigem respeito.

Bolsonaro mais uma vez rasga a Constituição ao negar nossa existência enquanto seres humanos. É preciso dar um basta a esse perverso!

De acordo com o coordenador do Conselho Indigenista Missionário – CIMI Sul, Roberto Liebgott, em entrevista ao IHU On-Line,

Nos últimos anos intensificaram-se os ataques aos direitos indígenas tendo como foco a desconstituição do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que assegura aos povos originários a demarcação das terras que tradicionalmente ocupam. Os ataques visam abrir caminho para a exploração agrária e agrícola; a expropriação e o esbulho da terra; a expansão minerária, madeireira e hidráulica; e a cobiça pelos recursos ambientais. O governo eleito não admite que na Constituição Federal (que ele [Bolsonaro] jurou defender) estejam expressos os direitos à diferença étnica, à terra demarcada e respeitada e o fato destas populações serem sujeitos de direitos.”

Neste 2020 o governo Bolsonaro foi denunciado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas por diversas violações ao meio ambiente, a mulheres e a indígenas. O país vive pressão inédita desde o fim da ditadura com relatores da ONU, ONGs e ativistas do Brasil e de outros países referente ao desmonte dos mecanismos de proteção a direitos fundamentais.

Contaminação por Covid-19 entre povos indígenas

Se o coronavírus entrar nas aldeias, é possível que o aumento de casos seja explosivo”, alertou o pesquisador Andrey Moreira Cardoso, da Fiocruz, em entrevista ao site do Instituto Socioambiental, organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, para propor soluções de forma integrada a questões sociais e ambientais com foco central na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. 

Na entrevista, publicada em 26 de março, o especialista sinalizou estudos em várias partes do mundo e também no Brasil  que atestam que os índios são mais vulneráveis a epidemias em função de condições sociais, econômicas e de saúde piores do que as dos não índios, o que amplifica o potencial de disseminação de agentes causadores de doenças.

A questão está estreitamente associada às possibilidades de acesso aos territórios tradicionais e aos recursos lá disponíveis. Também se vincula à proximidade dos centros urbanos, ao grau de dependência em relação ao mercado regional e à disponibilidade de políticas públicas. A possibilidade de contato com populações onde ocorre transmissão comunitária da doença, a depender da localização onde residem e do grau de contato, pode facilitar com que uma pessoa se infecte e volte para a aldeia. Então, um dos grandes desafios é evitar esse contato e que ocorra a transmissão para alguém que vai retornar à aldeia. No momento em que essa pessoa retorna à aldeia, é muito difícil conter a disseminação do vírus.”

Andrey Moreira Cardoso

O apontamento se materializou em uma triste estatística.  Em 1º de abril foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 em uma jovem indígena da etnia Kokama, no município de Santo Antônio do Içá, no interior do Amazonas. Ela atua no SUS e é agente indígena de saúde no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Solimões. A vítima se recuperou integralmente. Entretanto, dez dias depois, o número de casos confirmados em indígenas subiu para nove, incluindo cinco prováveis contatos da jovem kokama, um caso no DSEI Manaus, um no DSEI Parintins e um adolescente de 15 anos da etnia yanomami, no estado de Roraima, de acordo com o boletim epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde.

Em 9 de abril de 2020 houve o registro da primeira morte de indígena pelo coronavírus no país. O adolescente yanomami Alvaney Xiriana Pereira, de 15 anos, ficou internado na UTI do Hospital Geral de Roraima (HGR) por sete dias. No dia seguinte à morte, a FUNAI lançou uma nota, lamentando o ocorrido.

Depois da morte do adolescente yanomanmi e da nota da FUNAI, a Associação Yanomami fez um apelo em carta aberta, para que o próprio órgão, a PF e o Exército retirem imediatamente os garimpeiros das terras indígenas a fim de evitar novas contaminações dos povos locais.

Entidades de defesa da causa indígena, como o Instituto Socioambiental e o CIMI denunciaram a subnotificação de casos da Covid-19 entre esta população, gerando preocupação quanto ao que isso pode representar de risco para as comunidades.

As duas entidades também denunciaram que outros dois indígenas contaminados pelo novo coronavírus já tinham ido a óbito e que o governo federal não registrou as ocorrências no balanço. Os indígenas eram uma mulher idosa da etnia Borari, de 87 anos, que morreu em Alter do Chão, no município de Santarém (PA), no dia 19 de março,  e o outro era um homem de 55 anos, do povo Mura, morto em Manaus, no dia 5 de abril. Em consequência da morte da idosa, o Ministério Público Federal (MPF) abriu inquérito, no dia 2 de abril, pedindo medidas para evitar a disseminação da Covi-19 em Santarém. Além disso, uma das denúncias investigadas é de que não houve notificação da suspeita de Covid-19. No dia 20 de março, centenas de pessoas compareceram ao funeral da mulher borari, muito querida em toda a vila. 

A Secretaria de Saúde Pública do Pará (Sespa) publicou o exame da idosa indígena no Twitter porque um parente teria negado que se tratava de uma vítima do coronavírus.

Em 12 de abril de 2020, a ministra Damares Alves chegou a Boa Vista. Visitou o projeto Operação Acolhida, responsável pela imigração dos venezuelanos naquele estado e participou de reuniões com a FUNAI, para articular ações de combate ao coronavírus.

Em toda a cobertura sobre a visita da ministra Damares Alves à Amazônia em abril, tanto no âmbito oficial, quanto pela imprensa de um modo geral, não foi encontrada qualquer menção dela, de representantes da FUNAI ou de qualquer outra autoridade sobre uma possível contaminação criminosa de indígenas.

Pelo contrário, as declarações foram todas positivas em relação a ações do governo. Na ocasião, o presidente da FUNAI Marcelo Augusto Xavier destacou que o governo federal estaria adotando todas as medidas para conter a transmissão da Covid-19 entre os povos indígenas. “É importante assegurar que o governo federal está presente em Roraima e Boa Vista e ninguém ficará para trás”, ressaltou.

Estamos aqui para encontrar respostas neste momento de enfrentamento ao coronavírus, completou Damares.

Antes da viagem Damares Alves,  os órgãos ligados à proteção indígena já vinham sendo questionados sobre uma possível omissão em meio à pandemia. No começo de abril, foram destinados R$ 10,8 milhões para a Funai no combate à pandemia entre as comunidades indígenas. Duas semanas depois, nada havia sido feito. Isto resultou cobrança do subprocurador-geral da República Antonio Carlos Alpino Bigonha questionando a FUNAI e o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, em 16 de abril, sobre o motivo das verbas reservadas para o combate ao coronavírus em comunidades tradicionais e indígenas não terem sido empenhadas. Dos quase R$ 11 milhões da verba emergencial para o combate à Covid-19, Damares Alves teria usado apenas R$ 1 milhão para comprar caminhonetes. Um parecer técnico interno da Procuradoria ainda dizia que a falta do investimento não é “questão financeira”. O subprocurador-geral ressaltou que “a necessidade é urgente em cada comunidade indígena, seja por alimentos, seja por proteção e segurança”.

No entanto, a pandemia seguiu avançando em terras indígenas. Assim, até 3 de maio, cerca de cem índios foram contaminados, sendo que o maior número de casos entre indígenas no Brasil está concentrado no Amazonas, epicentro da doença. Os dados foram apontados em matéria do G1 do referido dia, intitulada: “Índios temem ‘catástrofe’ e tentam fugir da Covid-19”.

Segundo a reportagem, cuja versão em vídeo foi exibida no programa Globo Rural, da emissora Globo, em 20 de março, a associação que representa os povos, no norte do Mato Grosso,  pediu que os caciques interrompessem o deslocamento dos índios para as cidades, e reivindicou o fechamento das estradas que levam para fora do parque. Mediante a dificuldade de deslocamento para a cidade, os grupos que compõem as 16 etnias presentes na região estariam sofrendo com a falta de produtos básicos, como sabão e creme dental. O confinamento também estaria comprometendo o trabalho e a renda dos índios.

A estatística evidencia uma preocupação desvelada em maio, de acordo o boletim da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do dia 25, que apresenta são 40 mortos indígenas, 824 casos de contaminação confirmados e 218 casos suspeitos. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) apresentava em 11 de maio números já maiores, com  77 mortos com teste positivo para a doença e 308 indígenas de contaminados. Vale registrar que a Sesai não está contabilizando casos de indígenas que vivem em cidades.

Uma rede de colaboradores foi criada para levantar casos e mortes suspeitos, tendo à frente a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coaib). A APIB ainda mantém uma lista de vítimas disponível no site quarentenaindigena.info (http://quarentenaindigena.info/casos-indigenas/), a qual, até o dia 22 de maio, às 16h30, contabilizava 125 indígenas mortos, 987 contaminados e 61 povos atingidos.

Em matéria publicada no site do Instituto Socioambiental, em 8 de maio, a coordenadora da APIB, Sonia Guajajara, aponta a divergência entre os números.

“Os números apurados pelo movimento indígena, quando comparados aos da Sesai, revelam uma discrepância absurda. Além da negligência do Estado brasileiro, há um racismo institucionalizado (…) O movimento indígena está preocupado em registrar minuciosamente os dados e exigir sua oficialização, para que daqui a 30 anos não tenham que ser revelados os ‘desaparecidos pela covid-19’.”

Contaminação de Covid proposital?

Sobre as afirmações da ministra Damares Alves, de que toda esta contaminação de indígenas teria sido realizada de forma proposital para atingir o presidente Jair Bolsonaro, Bereia não localizou registros de investigações ou quaisquer indicações comprobatórias de tal situação entre os organismos oficiais FUNAI, SESAI ou de proteção a indígenas como APIB ou Instituto Socioambiental. Para as organizações que atuam em apoio a essas populações, as causas da contaminação são de conhecimento notório dos órgãos governamentais e são criminosas, sim, relacionadas às invasões das terras indígenas.

O Presidente do CIMI, Bispo D. Roque Paloschi explica:

“A principal preocupação e ameaças com relação aos povos indígenas é que garimpeiros, grileiros, madeireiros e invasores em geral, não fazem a quarentena. Ao contrário, aproveitam a falta de fiscalização e de gestão política e administrativa no país para continuar com as ações ilícitas nas terras indígenas, com um agravante maior, os contínuos discursos do governo do Brasil em incentivar as invasões, com sua retórica desenvolvimentista. Outra grande preocupação são os projetos de emenda constitucional e projetos de lei, como o PL 191/20, que regulamentam a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas.”

Sobre isto Bereia ouviu o Pastor Sandro Luckmann, educador do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil:

“A fala da ministra é extremamente grave. É uma fala cujo objetivo principal é omitir, é esconder a situação de ausência e de trabalho articulado e com melhor resposta do próprio governo. Os dados que temos levantados a partir da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (SESAI) e o que as próprias organizações indígenas têm levantado mostram isto. Há uma disparidade bastante grande neste sentido. A SESAI no seu último boletim reconhece que em nível nacional houve somente 35 mortes de pessoas indígenas enquanto as próprias organizações de indígenas falam que este número já está em 125 indígenas falecidos, atingindo em torno de 61 povos. E na Amazônia a situação é extremamente grave por conta da geografia. Para acessar os recursos emergenciais, os benefícios, as comunidades precisam descer de barco até as cidades e não há infraestrutura, local adequado para ficar. O sistema de comunicação é difícil, complexo, não é ágil. Estive no início de março, antes do isolamento social, visitando uma comunidade lá. Para chegar eu levei seis horas num barco veloz da cidade mais próxima. Mas os barcos que os indígenas geralmente usam levam um ou dois dias. Já houve manifestações de lideranças indígenas que dizem que caso aconteça de indígenas pegarem a COVID-19, não vão buscar ajuda porque sabem que chegando até lá não terão atendimento. Há uma denúncia de falta de hospitais de campanha que possam ser interiorizados, com equipamento. Outra denúncia é que quando há necessidade de hospital as comunidades indígenas são as últimas a ocuparem o espaço porque viajam do interior da Amazônia para Manaus e o sistema já está caótico. Há um problema muito sério nesse sentido. Avaliamos então esta tentativa do governo de esconder a real situação e a falta de infraestrutura, a falta de capacidade deste governo em atender esta demanda das comunidades indígenas. O Estado do Amazonas é o estado que tem a maior população indígena e há uma invasão deliberada das terras indígenas. Há denúncias em Roraima mesmo, um dos estados que a Ministra cita, denúncias da invasão de garimpeiros, madeireiros, grileiros, e isto tem feito avançar a doença sobre as comunidades indígenas. Nesse sentido a FUNAI não tem sido uma agente protetora dos territórios indígenas então há uma situação bem complexa neste sentido.”

O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), da Igreja Católica, Região Sul Roberto Antônio Liebgott, também ouvido por Bereia, afirma que a declaração de Damares Alves é mentirosa e explica que isto acontece porque a ministra não menciona que:

por omissão e falta de fiscalização, por parte do governo que ela integra, ocorrem invasões nas terras indígenas por milhares de garimpeiros, madeireiros, grileiros, posseiros e tantos outros que saqueiam o patrimônio público. Também não foi por um acaso o discurso do Presidente ao propor, como medida de segurança, o armamento em massa – em suas palavras, todos devem estar armados. Quem são ‘todos’? Os indígenas e os quilombolas poderão se armar para se defender da invasão de seus territórios? Os pais de família, das periferias, poderão se armar para se defender da ação de milicianos? As pessoas que sofrem violências poderão se armar para se defender de ataques fascistas? 

Bereia conclui que a ministra Damares Alves fez uso de desinformação na reunião ministerial de 22 de abril, no que diz respeito à suposta à contaminação criminosa de coronavírus entre indígenas para atingir negativamente o presidente Jair Bolsonaro. O Coletivo classifica a fala como imprecisa pois não apresenta as fontes que corroborem tais afirmações nem dados coerentes com a grave situação descrita nesta matéria, desconsiderando as ações historica e comprovadamente criminosas de invasão de terras indígenas da parte de garimpeiros e grileiros, que são fonte de doenças para estas populações. O uso de desinformação, em caso como este, é irresponsável pois levanta acusações sem apresentar autoria e dados, levando quem ouve as afirmações a atitudes de desconfiança e condenação precoce, que são frequentemente direcionadas a pessoas opostas no campo político.

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Referências de Checagem:

Portal do STF (1) https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443959&ori=1 Acesso em 26 mai 2020

Portal do STF (2) https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=418183 Acesso em 26 mai 2020

Instituto Socioambiental. Povos Indígenas no Brasil https://pib.socioambiental.org/pt/Quem_s%C3%A3o Acesso em 26 mai 2020

Instituto Socioambiental. Direitos constitucionais dos índios https://pib.socioambiental.org/pt/Constitui%C3%A7%C3%A3o Acesso em 26 mai 2020

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IHU On Line http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/586730-a-ameaca-institucional-juridica-e-fisica-a-existencia-dos-povos-indigenas-entrevista-especial-com-roberto-liebgott  Acesso em 26 mai 2020

El País https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-10/50-anos-depois-brasil-volta-a-ser-alvo-sistematico-de-denuncias-internacionais-por-violacoes-de-direitos-humanos.html Acesso em 26 mai 2020

Instituto Sociambiental Notícias (1) https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/se-coronavirus-entrar-nas-aldeias-e-possivel-que-aumento-de-casos-seja-explosivo-alerta-especialista Acesso em 26 mai 2020

Instituto Socioambiental Notícias (2)  https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/em-alter-do-chao-pa-teste-de-indigena-falecida-da-positivo-para-covid-19 Acesso em 26 mai 2020

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Instituto Socioambiental Notícias (4) https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/indigenas-mortos-por-covid-19-chegam-a-55-segundo-APIB-numero-salta-45-em-dois-dias Acesso em 26 mai 2020

Boletim Epidemiológico da SESAI http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/mapaEp.php Acesso em 26 mai 2020

G1https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/04/12/ministra-damares-alves-faz-visita-surpresa-a-boa-vista-neste-domingo-12.ghtml Acesso em 26 mai 2020

Nota: Funai lamenta morte de indígena com COVID-19 http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/6006-nota-funai-lamenta-morte-de-indigena-com-covid-19 Acesso em 26 mai 2020

Notícias UOL https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/11/apos-morte-indigenas-apelam-que-pf-funai-e-exercito-expulsem-garimpeiros.htm Acesso em 26 mai 2020

Agência Brasil https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/morre-indio-yanomami-com-coronavirus Acesso em 26 mai 2020

MPF http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-cobra-medidas-para-evitar-disseminacao-da-covid-19-em-santarem-pa/view Acesso em 26 mai 2020

Publicação na página da Sespa (PA) no Twitter https://twitter.com/SespaPara/status/1245461415005167617?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1245461415005167617%7Ctwgr%5E&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.socioambiental.org%2Fpt-br%2Fnoticias-socioambientais%2Fem-alter-do-chao-pa-teste-de-indigena-falecida-da-positivo-para-covid-19 Acesso em 26 mai 2020

Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/abril/em-roraima-ministra-damares-visita-a-sede-da-operacao-acolhida  Acesso em 26 mai 2020

Ecoamazônia https://www.ecoamazonia.org.br/2020/04/ministra-mulher-familia-direitos-humanos-damares-alves-visita-roraima/ Acesso em 26 mai 2020

FUNAI  http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/6009-comitiva-do-governo-federal-articula-acoes-de-combate-a-covid-19-no-norte-do-pais Acesso em 26 mai 2020

O Estado de São Paulo https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,funai-recebe-r-11-milhoes-para-proteger-indigenas-do-coronavirus-mas-nao-gastou-nenhum-centavo,70003269873 Acesso em 26 mai 2020

G1https://g1.globo.com/economia/agronegocios/globo-rural/noticia/2020/05/03/indios-temem-catastrofe-e-tentam-fugir-da-covid-19.ghtml Acesso em 26 mai 2020

Boletim Covid-19 Ministério da Saúde https://saudeindigena.saude.gov.br/

APIB http://APIB.info/2020/05/14/1-vidas-indigenas-e-covid-19/ Acesso em 26 mai 2020

Atualização de casos indígenas http://quarentenaindigena.info/casos-indigenas Acesso em 26 mai 2020

“Detox digital”: a proposta desconectada da ministra Damares

A ministra Damares Alves propôs em suas redes sociais, no último sábado, 30, um “detox digital” como desafio para o Dia Nacional da Família, que será celebrado no próximo domingo, 8. O objetivo da proposta, segundo a ministra, é alertar a população para os riscos do uso excessivo da tecnologia e “reconectar” as famílias do Brasil.

A iniciativa faz parte do Programa Reconecta, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, lançado oficialmente no início de julho, e que tem como pauta principal “fornecer acesso mais amplo ao conhecimento cientifico às famílias e à população em geral, a respeito do uso de recursos tecnológicos de maneira inteligente, abordando aspectos sociais, educacionais, e de saúde física e psíquica, visando assim a aquisição de uma maior consciência sobre consequências do uso tecnológico”.

A ministra Damares convocou, por meio de vídeo postado em seu twitter, o presidente Jair Bolsonaro, a primeira dama, Michelle, e os ministros a não usarem o celular durante as 24 horas do dia 8. Ela também estendeu o desafio aos pastores.

Apesar da boa intenção do Programa Reconecte, o real desafio que o/a brasileiro/a precisa não é um “detox digital”, mas aprender a desenvolver uma consciência digital no novo contexto social que vive.

Antonio Spadaro, padre, escritor, teólogo e diretor da revista jesuíta Civiltà Cattolica afirmam que “as recentes tecnologias digitais não são mais simples instrumentos completamente externos ao nosso corpo e à nossa mente, mas um “ambiente” no qual nós vivemos. A rede é um espaço de experiência que sempre mais está se tornando parte integral, em maneira fluida, da vida cotidiana: é um novo contexto existencial. Portanto, a rede não é, um simples ‘instrumento’ de comunicação que se pode usar, mas se evoluiu em um espaço, um ambiente cultural, que determina um estilo de pensamento e cria novos territórios e novas formas de educação, contribuindo para definir também um modo novo de estimular as inteligências e a estreitar as relações, um modo de habitar o mundo e organizá-lo. Não é, portanto, um ambiente separado da vida ordinária, mas ao contrário, sempre mais integrado, conectado com aquele da vida cotidiana.”

A partir desta reflexão pode-se entender que o desafio a ser proposto seria o inverso – Reconectar-se com o novo contexto social encarando-o como um ambiente de vida. O estímulo deveria ser para dentro da Rede e não para fora dela. A internet já está imersa na vida de todos, e o nosso real desafio “não é mais apenas “utilizar” bem a internet, como frequentemente se acredita, mas “viver” bem nos tempos da internet.”