Lançamento do Foro do Brasil é marcado por ausência de público e desinformação

Na tarde de 29 de junho, dia em que a Igreja Católica celebrava São Pedro, o esvaziado auditório Nereu Ramos, da Câmara Federal, foi palco para o político Padre Kelmon (PTB) lançar o Foro do Brasil, junto de outros religiosos e políticos autodenominados conservadores, em tentativa de contrapor o 26º Encontro do Foro de São Paulo, marcado para o mesmo dia, em Brasília.

A defesa de pautas de políticas da extrema-direita se associou ao forte tom religioso do evento, dado pelas declarações recheadas de passagens bíblicas, apresentação de músicas cristãs, orações e depoimentos. O evento trouxe, para testemunhar, inclusive, um jovem político venezuelano que, de acordo com a organização, sofre perseguição política.

Um fato que marcou o lançamento do Foro foi a ausência de seus principais divulgadores. Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, Bia Kicis (PL/DF), Carla Zambelli (PL/SP) e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) convidaram o público por meio de suas mídias sociais, mas faltaram ao lançamento. Kicis e Zambelli enviaram vídeos com declarações de apoio ao evento, a primeira foi a um funeral e a segunda não justificou. Já o parlamentar carioca, segundo o deputado General Girão (PL/RN), não compareceu pois, no dia anterior ao evento, teve o celular roubado no Rio de Janeiro.

Se por um lado o público presente não conseguiu encher o pequeno auditório, a desinformação marcou presença no discurso do senador evangélico Magno Malta (PL-ES), um dos personagens frequentemente checados na seção Torre de Vigia do Bereia. Com duração de cerca de 40 minutos, a preleção mais longa do evento, notoriamente religiosa, foi repleta de afirmações falsas e dados incorretos.

Ataque à esquerda

O senador, logo no começo, utiliza, em seu discurso, estratégias de desinformação checadas pelo Bereia, como a “ameaça comunista” e a “cristofobia”. Na tentativa de incriminar a reunião do Foro de São Paulo  no Brasil, ele afirma que o evento receberia “ditadores inescrupulosos, negadores da fé, negadores de direitos, assassinos da moral alheia, esses que matam, homossexuais que perseguem cristãos, que fecham igrejas, eles verbalizam”. Em seguida, finaliza o trecho afirmando que os participantes do Foro de São Paulo desfrutam da estrutura de governo. Esta é uma informação fasa, pois, ao contrário do Foro do Brasil, que ocorre em um dos auditórios da Câmara Federal, sob o rótulo de “Reunião Técnica“, o Foro de São Paulo ocorre em local privado, no Hotel San Marco, às custas dos participantes.

Imagem: reprodução do site da Câmara dos Deputados

Economia

Magno Malta proferiu também  uma série de afirmações falsas e enganosas sobre a economia do País. Ele citou o fechamento de diversas empresas, aumento do desemprego e de falências para criticar o atual governo. A afirmação falsa fica por conta do desemprego: de acordo com dados do IBGE, o desemprego diminuiu 8,3% e chega à menor taxa do período desde 2015. Já as enganosas são as declarações sobre o fechamento e falência de empresas. O Brasil atingiu a marca de 1,3 milhão de empresas abertas nos primeiros quatro meses de 2023, contra 736,9 mil fechadas, o que deixa um saldo positivo de 594.963 CNPJs abertos em todo o país, segundo dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento. 

Já, quando Malta cita o aumento de pedidos de falência, o senador acerta, mas omite um fator fundamental para a saúde financeira das empresas: a alta taxa de juros definida pelo Banco Central. De acordo com diversos economistas, os juros altos aliados à restrição de crédito são um dos fatores que têm contribuído para o cenário atual. A taxa de 13,75% é defendida pelo presidente do Banco Central, Campos Neto, que, por sua vez, é alvo de elogios no discurso do senador. 

Sobre a pandemia, o senador nega, inclusive, a fome sofrida por cerca de 33 milhões de brasileiros durante o período, em semelhança a declaração dada pelo ex-presidente Bolsonaro, durante debate das eleições presidenciais em 2022, quando afirmou não ver pessoas passando fome no país.

Por fim, afirma que o deputado Lindbergh Faria (PT/RJ) teria dito que o “calabouço(sic) fiscal tem parte com capeta”. Bereia entrou em contato com a assessoria do deputado para confirmar a conversa, mas até o fechamento da matéria não obteve resposta. 

Aula de Geoteologia?

Um fato curioso do evento veio no discurso do deputado federal General Girão. Logo no início, ele pediu que os presentes fechassem os olhos e “imaginem na parede”. Em seguida, pegou o microfone, caminhou até a parede ao fundo e, gesticulando, narrou a posição geográfica dos países sul-americanos e perguntou: “Quem está mais à direita no continente sul-americano?” e depois, “Quem criou o mundo?”. Por fim, conclui com a frase: “Quem quer tirar o Brasil da direita e colocar na esquerda, está querendo contrariar uma criação de Deus. O padre Kelmon falou, é o destino manifesto do Brasil”. 

Imagem: reprodução de site da Câmara dos Deputados

Padre Kelmon, o presidente

O candidato à Presidência da República pelo PTB nas últimas eleições foi apresentado como presidente do Foro do Brasil. Padre Kelmon afirma que a criação do Foro deve-se ao Espírito Santo, que inspirou padres e pastores. Mais tarde, foi apresentado um trailer de um documentário batizado de “Operação Verdade”. Após a exibição, quebrando o protocolo, Kelmon retorna a tribuna e revela os financiadores do trabalho: “Eu preciso dizer isso. Quero agradecer especialmente ao agronegócio […], que nos permitiu passar uma semana em Boavista, em Pacaraima, que nos acolheu, pagou nossas passagens, fez o melhor por nós para que esse documentário pudesse ficar pronto.”

Referências de checagem:

Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/68804 Acesso em 3 Jul 2023

Foro de São Paulo https://forodesaopaulo.org/novas-informacoes-logisticas-para-convidados-no-brasil/ Acesso em 3 Jul 2023

IBGE https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37252-desemprego-recua-a-8-3-no-trimestre-encerrado-em-maio-mesmo-nivel-de-2015 Acesso em 3 Jul 2023

Ministério do Desenvolvimento https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/brasil-teve-1-3-milhao-de-empresas-abertas-no-1o-quadrimestre-de-2023  Acesso em 3 Jul 2023

Agência Brasil https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/economia/audio/2023-04/pedidos-de-falencia-de-empresas-aumentam-mais-de-40-no-trimestre Acesso em 3 Jul 2023

CNN https://www.cnnbrasil.com.br/economia/juros-altos-no-brasil-prejudicam-saude-financeira-de-empresas-dizem-especialistas/ Acesso em 3 Jul 2023

Unisinos https://www.ihu.unisinos.br/noticias/509765-reinventando-a-educacao Acesso em 3 Jul 2023

Estado de Minas https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/06/08/interna_nacional,1371929/fome-no-brasil-quase-dobra-apos-dois-anos-de-pandemia.shtml  Acesso em 3 Jul 2023

Falsa narrativa da ameaça comunista continua circulando nas mídias sociais

Lideranças religiosas e políticos conservadores continuam engrossando o coro nas mídias sociais de uma presente ‘ameaça comunista’ no atual governo. A narrativa segue forte, principalmente em ambientes religiosos. É o que mostra uma pesquisa realizada em março pelo instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) segundo a qual 39% dos católicos e 57% dos evangélicos entrevistados enxergam esta possibilidade para o país em decorrência do atual governo.

Diversas checagens realizadas por Bereia, desde de 2019, dão conta de que há vasto conteúdo desinformativo a respeito do comunismo no Brasil, com extensa disseminação de conteúdos enganosos, principalmente a partir do período eleitoral de 2018. No entanto, não é a primeira vez que a direita brasileira utiliza esta estratégia para alcançar mais adeptos.

Imagem: reprodução Twitter

Pesquisa Ipec

De acordo com a pesquisa realizada pelo Ipec neste março de 2023, sobre a avaliação do atual governo, 44% dos brasileiros acreditam que há alguma possibilidade do Brasil se tornar um país comunista. Destes, 39% dos católicos e 57% dos evangélicos entrevistados para este estudo enxergam o risco de uma “ameaça comunista” ao Brasil por conta do atual governo.

O levantamento trouxe ainda que 45% dos católicos avaliaram o atual governo como ótimo ou bom, 40% estão entre as pessoas sem ou de outra religião, enquanto que entre os evangélicos esse número foi de 31%. Já 33% dos evangélicos consideram a gestão ruim ou péssima, seguido de 21% dos católicos e 21% de outras religiões. Dentro deste âmbito, a avaliação do governo inclui também a nota regular e os índices de pessoas que não responderam ou não souberam responder. Outras perguntas do estudo sobre a gestão do atual presidente contemplam ainda aspectos como, confiança, apoio, posição do país no cenário mundial, defesa dos mais pobres e polarização política.

Imagem: reprodução Ipec

Ameaça comunista – um enredo antigo 

Em artigo intitulado As Formas Discursivas e a Ameaça Comunista, a doutora em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Bethania Mariani, ajuda  a entender que se trata, na verdade, de um fenômeno que remonta à década de 1920, ou seja, pouco tempo depois de iniciada a Revolução Russa, que instituiu o socialismo no que viria a ser a União Soviética.

Desde então, a narrativa da ameaça comunista volta à cena política de tempos em tempos, com mais ou menos força. Na década de 1960, por exemplo, a suposta ameaça foi utilizada pelos militares brasileiros para justificar a derrubada de um governo constitucional. O golpe militar de 1964 mergulhou o Brasil em um período de 21 anos sob regime de exceção e, hoje, há relativo consenso histórico, baseado em relatos e documentação oficial, de que nunca houve uma real ameaça comunista naquele contexto, conforme explicitado em matéria do UOL.

Imagem: reprodução Metrópoles

Conforme Bereia já publicou, o tema da ameaça comunista vem sendo amplamente explorado em contextos de desinformação, permeando todos os cinco temas mais presentes em checagens feitas entre 2021 e 2022: perseguição a cristãos, covid-19, “ideologia de gênero”/moralidade sexual, supostos feitos do presidente Jair Bolsonaro e tópicos específicos referentes às eleições.

Antes mesmo do período eleitoral, foram várias as checagens realizadas por Bereia envolvendo suposta ameaça comunista, desde a afirmação do então ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, de que havia um plano comunista sendo instalado no Brasil, até mensagens anônimas que circulavam em ambientes religiosos espalhando pânico moral associado às ideologias “de esquerda”. Os exemplos são muitos e, em todas as ocasiões, o ambiente religioso foi contaminado com a narrativa da ameaça comunista, que, como prova a História, nunca se concretizou.

Desinformação e conspiração

Em artigo de opinião recentemente publicado na revista Carta Capital, o pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais e PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas Camilo Aggio estabelece uma conexão entre o fenômeno da desinformação e o das teorias conspiratórias. “Não há desinformação sem conspiração”, afirma.

Aggio destaca que “temos um espectro vastíssimo de ofertas conspiracionistas à disposição de quem precisa negar a ciência e o conhecimento especializado para manter suas convicções. Não poderia, portanto, ser diferente quando estamos a falar de uma ampla indústria de produção de desinformação no mercado digital de crenças”.

A constatação do pesquisador parte do monitoramento realizado pela União Pró-Vacina, em 2020, que constatou a presença de teorias da conspiração na maior parte das informações falsas sobre vacinas. A interpretação, porém, estende-se ao fenômeno da desinformação amplamente compreendido, o que se relaciona com os conteúdos falsos e enganosos que circulam nos ambientes religiosos, sejam sobre vacina, gênero ou supostas ameaças comunistas.

Falsa ameaça comunista segue presente nas redes sociais digitais

Conforme a pesquisa realizada pelo Ipec revelou, a narrativa da ameaça comunista continua tendo resultados concretos, principalmente no segmento religioso. O termo comunista é muitas vezes usado por estes grupos para designar comportamentos considerados por eles como imorais. Também por isto, essa narrativa é fortalecida mesmo na ausência de fontes ou indícios confiáveis de que um regime comunista poderia vigorar no Brasil e muitos brasileiros seguem acreditando nessa possibilidade.

Imagens: reprodução do Twitter

Nas mídias sociais é possível enxergar o que a pesquisa levantou com dados, em que diversos perfis políticos,  católicos e evangélicos disseminam a narrativa da ameaça comunista, criando um ambiente em que vigora o pânico justificado apenas no próprio discurso propagado. O uso do termo “ameaça”, por si só, carrega um significado específico, que perpetua a noção de um perigo iminente.

A suposta relação da fé com o anticomunismo faz com que o tema esteja sempre presente nos ambientes religiosos, o que ajuda a compreender os resultados da pesquisa Ipec e acende um alerta para que todos estejam sempre vigilantes quanto aos fundamentos dos conteúdos compartilhados.

Referências de checagem:

UOL. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/10/01/brasil-esteve-a-beira-do-comunismo-nos-anos-1960-historia-nao-mostra-isso.htm?utm_source=twitter&utm_medium=social-media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral Acesso em: 23 mar 2023

O Globo. https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2023/03/pesquisa-ipec-brasil-vive-risco-de-comunismo-com-lula-quase-metade-da-populacao-ve-ameaca-comunista.ghtml Acesso em: 22 mar 2023

Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/nao-ha-desinformacao-sem-conspiracao/ Acesso em: 22 mar 2023

Bereia.

https://coletivobereia.com.br/comunismo-e-ameaca-comunista-vs-patriotismo-e-argumento-que-embasa-temas-com-mais-desinformacao-em-espacos-religiosos-nas-eleicoes/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/mentir-e-pecado-os-cristaos-e-a-propagacao-de-fake-news/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/nao-ha-missionarios-comunistas-na-amazonia-nem-defesa-do-fim-da-conversao-religiosa-para-indigenas-por-catolicos/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/o-partido-comunista-chines-nao-avanca-no-brasil-mercado-chines-sim/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/e-enganosa-a-ideia-de-que-ha-um-plano-comunista-sendo-instalado-no-brasil/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/o-fantasma-do-marxismo-cultural/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/mensagem-anonima-panicomoral/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/os-bichos-papoes-que-assombraram-os-eleitores-religiosos-em-2020/ Acesso em: 22 mar 2023

Pesquisa Ipec (arquivo). https://drive.google.com/file/d/1kE5DrJ9WVrQuSCLouvwnAEDt0G6t7gcj/view?usp=share_link Acesso em: 22 mar 2023

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Foto de capa: Jorge Gobbio/Flickr

Comunismo e “ameaça comunista” vs. patriotismo é argumento que embasa temas com mais desinformação em espaços religiosos nas eleições

Levantamento do Bereia a partir de suas checagens no período eleitoral iniciado em 2021 até o primeiro turno realizado em 2 de outubro passado, mostra que cinco temas  estiveram entre as postagens com mais conteúdo falso e enganoso circulante em espaços digitais religiosos. Os temas apresentados em matérias-coletânea pelo Bereia são: perseguição a cristãos, covid-19, “ideologia de gênero”/moralidade sexual, supostos feitos do presidente Jair Bolsonaro, tópicos específicos referentes às eleições (Tribunal Superior Eleitoral, urnas, pesquisas). 

Na pesquisa sobre o que foi checado no período eleitoral, Bereia identificou que o velho temor do comunismo e do marxismo permeia todos os cinco principais temas citados acima. É utilizado como base para a ideia de perseguição a cristãos, como explicação para a China ter supostamente criado o coronavírus em laboratório para a China ter supostamente criado o coronavírus em laboratório. O seu enfrentamento é colocado como motivação para as ações do governo Bolsonaro e como justificativa para a suposta tentativa de alteração de resultados nas urnas eletrônicas. Comunismo e a noção inventada de “marxismo cultural” são apresentados como fundamento para a constituição da “ideologia de gênero” e da doutrinação de crianças e jovens por professores em escolas.

A “ameaça comunista” é um tema que vigora desde os anos de 1920 nas disputas políticas expressas pela imprensa brasileira, voltou a ganhar força em campanhas eleitorais desde as eleições de 2018 e faz uso de um imaginário de inimigo muito antigo. O uso do termo “comunismo” cresceu em importância durante o regime militar  de 1960, e passou a ter múltiplos significados na sociedade brasileira, acompanha as mudanças  sociais e políticas que se sucederam desde então.  

Jornalistas e especialistas mostram que esta justificativa usada até hoje esconde documentos do próprio Exército que mostram que a “ameaça comunista” no país não era real. 

Pesquisa do UOL Confere diz:

“[Nos anos 1960] O mundo vivia em meio ao contexto da Guerra Fria, cenário de polarização internacional que teve, entre outros elementos, embates sobre capitalismo, socialismo e comunismo. A agenda reformista do então presidente João Goulart levou alas conservadoras a temerem uma proximidade com regimes comunistas implementados em outros países, como Cuba. Mas um informe do SNI (Serviço Nacional de Informações) já citava o desgaste do comunismo na Europa Ocidental. Os militares também analisaram que não havia clima para a instalação do comunismo por conta das contradições “por demais violentas” do Brasil e que o povo não aceitaria “pacificamente as influências externas”.

A ditadura durou 21 anos no Brasil. Em 1968 foi decretado o AI-5 (Ato Institucional nº5), que endureceu a repressão, cassou mandatos, fechou o Congresso, e ampliou perseguições, torturas e mortes de opositores. A Ditadura usou imprensa e ameaças à “ordem” e à “moral” para impor o AI-5.

Historiador e professor da UFRJ, Carlos Fico disse à BBC, em 2019, que tentativas de implantar o comunismo no Brasil partiram de movimento tímidos e sem apoio da maioria da população. Ele também avaliou que mesmo as ações armadas de movimentos de esquerda não foram suficientes para ameaçar os militares.

Em 2018, o “ressurgimento” do tema emergiu como pauta de campanhado então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro. Associado frequentemente a adjetivos pejorativos, ser “comunista”, tornou-se um sinônimo do posicionamento políticode esquerda, da corrupção e de degradação moral.O comunismo tornou-se um assunto frequente em produções midiaticas, sobretudo fake news, que circulam em mídias sociais a partir daquele ano.  

Quando associado à religião, nota-se que a  “ameaça comunista” assume uma interpretação para além da economia e da política, ese torna um ponto de enfrentamento moral/espiritual. A partir detemas como direitos sexuais e reprodutivos, perseguição religiosa, supostos malfeitos presidenciais e outros temas, o combate à “ameaça comunista” é um mote frequentemente mencionado. Esta lógica acompanha a compreensão imaginária mais generalizada construída pela extrema-direita que associa “ser comunista” a qualquer defensor/a da justiça e dos direito.

Na maioria, as fake news produzidas pela junção dos temas comunismo +religião abordam o comunismo como uma ameaça à família, à Igreja, à economia e ao bem-estar individual. Criou-se, com isso, uma oposição do comunismo às religiões cristãs, instrumentalizado pela direita e pela extrema-direita no imaginário popular, especialmente em períodos eleitorais.  

As checagens do Bereia realizadas a partir de desinformação sobre este tema em ambientes digitais religiosos centram-se em dois polos: o patriotismo nacional – sob a imagem de Bolsonaro (um defensor dos valores morais da família cristã); a ameaça comunista – sob a imagem do Partido dos Trabalhadores (PT) e Lula, muito especialmente, mas também toda a esquerda política. Termos como “máfia esquerdista”;  “demônios vermelhos”; “esquerdopata”; “petralhas”;  “esquerda  bandida”, são usados ainda hoje como parte do vocabulário para se referir ao comunismo. 

Seguem as principais matérias dos últimos quatro anos sobre o tema que ganharam relevância nas mídias:

Desinformação sobre comunismo no Brasil

Argumento de ameaça comunista para justificar golpe militar em 1964 é falso
https://coletivobereia.com.br/argumento-de-ameaca-comunista-para-justificar-golpe-militar-em-1964-e-falso/

Os bichos-papões que assombraram os eleitores religiosos em 2020
https://coletivobereia.com.br/os-bichos-papoes-que-assombraram-os-eleitores-religiosos-em-2020/

Possível repressão de Igreja Presbiteriana do Brasil a “esquerdismo” repercute em noticiários: Bereia verificou
https://coletivobereia.com.br/possivel-repressao-de-igreja-presbiteriana-do-brasil-a-esquerdismo-repercute-em-noticiarios-bereia-verificou/

Bolsonaro fala de proibição da Bíblia pelo STF, comunismo no Brasil e fim da corrupção em discurso
https://coletivobereia.com.br/bolsonaro-fala-de-proibicao-da-biblia-pelo-stf-comunismo-no-brasil-e-fim-da-corrupcao-em-discurso/

Reportagem aponta articulação conservadora entre Europa e Américas https://coletivobereia.com.br/reportagem-aponta-articulacao-conservadora-entre-europa-e-americas/

Arcebispo de Aparecida é chamado de comunista em mídias sociais
https://coletivobereia.com.br/arcebispo-de-aparecida-e-chamado-de-comunista-em-midias-sociais/

Deputado da Bancada Evangélica faz postagem falsa para exaltar desfile de tanques militares em Brasília
https://coletivobereia.com.br/deputado-da-bancada-evangelica-faz-postagem-falsa-para-exaltar-desfile-de-tanques-militares-em-brasilia/

Mentes e corações: estratégias das narrativas neoconservadoras no Brasil
https://coletivobereia.com.br/mentes-e-coracoes-estrategias-das-narrativas-neoconservadoras-no-brasil/

O fogo que queima reputações nas Assembleias de Deus
https://coletivobereia.com.br/o-fogo-que-queima-reputacoes-nas-assembleias-de-deus/

O diabo na campanha das eleições municipais no Brasil

https://coletivobereia.com.br/o-diabo-na-campanha-das-eleicoes-municipais-no-brasil/

Mensagem anônima que circula em mídias sociais usa pânico moral contra partidos de esquerda
https://coletivobereia.com.br/mensagem-anonima-panicomoral/

É imprecisa notícia que Governo Chinês ordena morte de recém-nascidos de minorias religiosas
https://coletivobereia.com.br/e-imprecisa-noticia-que-governo-chines-ordena-morte-de-recem-nascidos-de-minorias-religiosas/

O fantasma do Marxismo Cultural
https://coletivobereia.com.br/o-fantasma-do-marxismo-cultural/

É imprecisa a notícia sobre demissão de professores cristãos na China
https://coletivobereia.com.br/e-imprecisa-a-noticia-sobre-demissao-de-professores-cristaos-na-china/

A Covid-19 e a desinformação que mata
https://coletivobereia.com.br/a-covid-19-e-a-desinformacao-que-mata/

É enganosa a ideia de que há um plano comunista sendo instalado no Brasil
https://coletivobereia.com.br/e-enganosa-a-ideia-de-que-ha-um-plano-comunista-sendo-instalado-no-brasil/

O Partido Comunista Chinês não avança no Brasil, mercado chinês, sim
https://coletivobereia.com.br/o-partido-comunista-chines-nao-avanca-no-brasil-mercado-chines-sim/

Não há missionários comunistas na Amazônia nem defesa do fim da conversão religiosa para indígenas por católicos
https://coletivobereia.com.br/nao-ha-missionarios-comunistas-na-amazonia-nem-defesa-do-fim-da-conversao-religiosa-para-indigenas-por-catolicos/

Senador distorce dados sobre títulos de posse de terras para propagar supostos feitos do governo federal
https://coletivobereia.com.br/senador-distorce-dados-sobre-titulos-de-posse-de-terras-para-propagar-supostos-feitos-do-governo-federal/

Mídias religiosas repercutem afirmação de Bolsonaro de que acabou com o Movimento Sem Terra
https://coletivobereia.com.br/midias-religiosas-repercutem-afirmacao-de-bolsonaro-de-que-acabou-com-o-movimento-sem-terra/

Protesto em igreja de Curitiba é classificado em vídeo enganoso como crime religioso
https://coletivobereia.com.br/protesto-em-igreja-de-curitiba-e-classificado-em-video-como-crime-religioso/

Cristofobia, projeto de poder e as resistências da luta cristã
https://coletivobereia.com.br/cristofobia-projeto-de-poder-e-as-resistencias-da-luta-crista/

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Imagem de capa: reprodução da internet

As mentiras que circulam em ambientes religiosos no Brasil

Publicado originalmente na Carta Capital

O título deste artigo é tema da live que será realizada nesta quinta, 28 de outubro, das 19h às 20h30, pelo Canal do Youtube do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. O projeto celebra dois anos de atuação, por isso convida leitores e leitoras e pessoas interessadas no tema das religiões para refletir, com dois especialistas, sobre as principais mentiras identificadas no período. Para verificar o conteúdo em circulação, Bereia, única iniciativa de fact-checking especializada em religiões, monitora sites gospel e mídias sociais de personagens com identidade religiosa consideradas influenciadoras digitais. Recebe também indicação de postagens suspeitas recebidas pelo público, por meio de seus canais de comunicação, incluindo um número de aplicativo de mensagens instantâneas exclusivo para receber as sugestões.

Nos dois anos de atuação do projeto, entre as centenas de conteúdos verificados, nas mais diferentes fontes, cinco temas se destacaram e serão debatidos na live de 28 de outubro. O primeiro deles é a pandemia de Covid-19, que foi alvo de mentiras questionadoras das medidas de isolamento social, disseminadoras de tratamentos preventivos e curativos, acusatórias à China e à Organização Mundial de Saúde e opositoras à campanha de vacinação. A CPI da Covid também foi tema de checagens, uma vez que os senadores Luis Carlos Heinze (PP/RS, evangélico luterano), Marcos Rogério (DEM/RO, evangélico da Assembleia de Deus) e Eduardo Girão (Podemos/CE, espírita) foram expressivos veiculadores de desinformação dentro da própria comissão. A CPI foi também palco de personagem religiosa, o Reverendo Amilton Gomes de Paula, evangélico sem vinculação com uma igreja específica, depoente envolvido nas irregularidades em torno de negociação de vacinas pelo governo federal. Bereia identificou controvérsias no perfil do pastor que passaram despercebidas pela cobertura da imprensa.

O segundo tema destacado na checagem de desinformação em ambientes religiosos foi o da “ideologia de gênero”, esta que pode ser classificada como a mais bem-sucedida concepção falsa criada no âmbito religioso. Surgido no ambiente católico e abraçado por distintos grupos evangélicos, que reagem negativamente aos avanços políticos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações diversas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. A “ideologia de gênero”, nesta lógica, é falsamente apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional”, gerando pânico moral e terrorismo verbal entre grupos religiosos.

A terceira mentira mais veiculada em ambientes religiosos, segundo as checagens do Coletivo Bereia é a da cristofobia, ou da perseguição religiosa a cristãos no Brasil. O termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no País, onde há plena liberdade de prática da fé para o grupo. Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político. Além disso, se configura uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que pedem mais liberdade e usam a palavra para falarem e agirem como quiserem contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e até cristãos progressistas – nem os da mesma família da fé são poupados.

A quarta mentira propaga que há uma ameaça comunista em curso no mundo, liderada pela China. O imaginário do “perigo comunista”, da “ameaça vermelha”, está presente historicamente na cultura brasileira há muitas décadas e foi reavivado nos discursos da extrema-direita desde 2013. Na nova abordagem, comunistas, longe do que, de fato, significa a tendência política, tornam-se sinônimo de todos os que propagam justiça econômica (defesa de programas de distribuição de renda, por exemplo), advogam os direitos humanos, em particular os das minorias, e reivindicam e atuam na superação de violência racial, cultural, de gênero e de classe.

A quinta mentira que tem circulado em ambientes religiosos, como pode ser verificado no site Bereia, é a imagem do presidente Jair Bolsonaro como evangélico convertido e a apresentação do seu governo, por blogueiros, youtubers e políticos apoiadores, como um sucesso. Os registros de discursos e atitudes do presidente nos próprios canais oficiais de mídias, somados ao quadro de crise em diversas áreas de ação governamental, facilitam a tarefa de verificação e de confrontação objetiva dos conteúdos.

A marca de dois anos do Coletivo Bereia ocorre no 31 de outubro, Dia da Reforma Protestante. A data ficou conhecido como aquele em que, há 502 anos, o monge alemão Martin Luther [Martinho Lutero] teria pregado suas 95 teses na porta da igreja do castelo da cidade alemã de Wittenberg. Elas representavam uma tomada de posição contra o que Lutero considerava práticas abusivas da sua própria igreja, a Católica Romana, como a venda de indulgências (uma forma de perdão dos pecados), e posições doutrinárias que desviavam dos valores primeiros da fé cristã.

Na segunda década do século 21, o princípio protestante segue inspirando pessoas, como as voluntárias que atuam pelo Coletivo Bereia, para a busca de novas reformas, não só para evangélicos, mas também para cristãos de um modo geral e até mesmo para quem não professa uma religião. Um dos lemas dos reformadores do século 16 era “Igreja reformada sempre se reformando”. Eis aí um chamado à vocação de protestar, de transformar e atuar pela justiça na forma de comunicar nos espaços digitais religiosos, em compromisso com a verdade.

Líderes religiosos pedem que Bolsonaro acione Forças Armadas contra medidas de combate à pandemia

No último dia 18 de março, o site gospel Pleno News repercutiu um vídeo em que o Pastor Silas Malafaia pede ao Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que convoque as Forças Armadas porque “a lei e a ordem têm que ser estabelecidas.” O pastor inicia o vídeo esclarecendo que seu pedido não trata do fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF), ditadura militar ou de um golpe militar. De acordo com o líder religioso, decretos que estabelecem estado de sítio, toque de recolher ou multas não podem ser editados por prefeitos e governadores porque seriam ações inconstitucionais. 

Além disso, entre outros comentários, o líder religioso crítica desmontes de hospitais de campanha, questiona medidas de isolamento social, propõe que estados e municípios paguem salários de informais, tributos de empresas que fecharem e responsabiliza corrupção de governos petistas por falta de investimento em saúde.

O argumento contra ações de governadores e prefeitos

Para sustentar seu pedido, Malafaia cita trechos da Constituição Federal de 1988. São eles:

Art. 5º: II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Art. 5º: XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Art. 5º: XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

Art. 142 – As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem

Trechos da Constituição de 1988

O pastor diz que governadores e prefeitos não podem impedir o trabalho e também não podem, em tempo de paz, restringir a locomoção. Além disso, o inciso II do Artigo 5º da Constituição permitiria agir contra as restrições porque governadores e prefeitos realizam tais restrições por meio de decretos. Diante desse cenário, alega-se que as Forças Armadas poderiam ser convocadas para garantir a lei e a ordem. Malafaia explica ainda como o Artigo 5° é uma cláusula pétrea.

Comparação de lockdown com estado de defesa e de sítio por Bolsonaro

A argumentação de Silas Malafaia dá suporte das iniciativas de Jair Bolsonaro em comparar as medidas de combate à pandemia por estados e municípios com os estados de defesa e de sítio, medidas atribuídas à Presidência da República, previstas na Constituição. 

Em 4 de março, durante discurso na cerimônia de assinatura para inauguração de um novo trecho da ferrovia Norte-Sul em São Simão (GO), Jair Bolsonaro voltou a atacar o isolamento social: “Temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando? Respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças. Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”.

As definições para aplicação do Estado de Defesa estão dispostas no Artigo 136 da Constituição: “O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.”

A decretação desse estado, que passa por aprovação do Congresso Nacional, implica restrições de direitos como o de reunião, sigilo de correspondências e sigilo de comunicação telegráfica e telefônica.

Já o Estado de Sítio está previsto nos Artigos 137, 138 e 139 da Constituição. O requisitos para que essa situação seja decretada pelo chefe do Executivo Federal estão especificados nos incisos I e II do Artigo 137: “I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.” Assim como Estado de Defesa, o Estado de Sítio passa por aprovação do parlamento, mas contém algumas restrições a mais, por exemplo: obrigação de permanência de localidade determinada (Artigo 139, Inciso I) e até restrições à liberdade de imprensa (Artigo 139, Inciso III).

As leis do Brasil para enfrentamento da pandemia e atividades essenciais

O que o Brasil viveu de março até 31 de dezembro de 2020 foi uma situação de calamidade pública decretada pelo Congresso Nacional. O estado de calamidade pública está relacionado com gastos governamentais e regras fiscais reguladas pelos artigos 167-B, 167-C, 167-D, 167-E, 167-F e 167-G da Constituição.

Além disso, as medidas de combate à pandemia estão reguladas pela Lei 13.979/2020, sancionada pelo Presidente Bolsonaro. A lei prevê a possibilidade da aplicação de isolamento e de quarentena (Artigo 3º, Incisos I e II), e ainda afirma no parágrafo 9º do Artigo 2º: “A adoção das medidas previstas neste artigo deverá resguardar o abastecimento de produtos e o exercício e o funcionamento de serviços públicos e de atividades essenciais, assim definidos em decreto da respectiva autoridade federativa”.

Conforme Bereia já verificou, o Governo Federal propôs concentrar no Presidente a definição de quais atividades seriam consideradas essenciais. Enquanto o Partido Democrático Trabalhista (PDT) movia uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ao STF, o Palácio do Planalto chegou a editar um Decreto-Lei que tornava essenciais as atividades religiosas de qualquer culto, obedecidas as regras do Ministério da Saúde. Foi apenas em 15 de abril de 2020 que o STF julgou a ADI apresentada pelo PDT e reconheceu a competência concorrente de União, estados, Distrito Federal e municípios nas ações de combate ao novo coronavírus, sem eximir o papel do governo federal, por ser o Brasil uma federação de estados

Reações de Bolsonaro à decisão do STF

A mesma verificação feita pelo Bereia mostra como o Presidente adotou o discurso de “mãos atadas”, dizendo que o STF o impediu de tomar medidas de combate ao coronavírus. O próprio Supremo desmentiu Bolsonaro a esse respeito

Em 19 de março de 2021, Bolsonaro seguiu seu novo argumento sobre estado de defesa e de sítio e protocolou uma ADI contra decretos dos Governos do Distrito Federal, Rio Grande do Sul e Bahia que estabeleciam toque de recolher e fechamento de atividades não essenciais. O Presidente argumentou que só a legislação formal poderia impor restrições de locomoção ou exercício de atividades econômicas. Segundo ele, restrições de locomoção estão previstas na Constituição apenas no estado de defesa e estado de sítio, sob a prerrogativa da Presidência mediante aprovação no Congresso. Além disso, Bolsonaro avaliou as medidas que contesta como desproporcionais diante de sua finalidade.

O Ministro Marco Aurélio Mello negou o trâmite da ADI, argumentando que faltou assinatura do Advogado-Geral da União (AGU) à Ação, e reafirmou a necessidade de o Presidente, como representante da União, coordenar e liderar esforços para o bem-estar dos brasileiros. A não assinatura do então Advogado-Geral da União José Levi do Amaral à ADI, por discordância do teor da ação, é apontada como uma das razões que levaram a sua demissão em 29 de abril, o terceiro ministro a deixar o governo naquele dia.

Diferenças entre combate à pandemia e estados de defesa e de sítio

Em entrevista à BBC Brasil, o professor de direito da FGV-Rio Wallace Corbo detalhou as diferenças entre os estados de defesa e de sítio e as ações de combate à pandemia. Corbo explica que as medidas de combate à pandemia como lockdowns têm punições administrativas, como multas. Já o estado de sítio prevê uma série de limitações aos direitos fundamentais, podem ter o uso das forças de segurança para imposição de restrições estabelecidas e suas punições chegam à detenção.

“Mas ninguém vai ser preso por desrespeitar o horário de fechamento do comércio. Isso [uso de forças para impor restrições] não vai acontecer nas medidas de isolamento social. Para o lockdown não existe essa previsão”, afirma o professor.

O Artigo 268º do Código Penal chega a prever detenção e multas em casos nos quais alguém “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. “Mas é algo válido para situações pontuais, em que houve um crime, e que não têm nada a ver com a necessidade de proteger o Estado em si, como no caso do estado de sítio”, explica Corbo.

Ações de outros líderes religiosos

O ex-senador evangélico Magno Malta e o deputado federal Pastor Marco Feliciano (Republicanos-SP) também postaram em suas mídias sociais declarações em apoio ao Presidente Bolsonaro. Ambos se colocam contra aos confinamentos sociais decretados pelos governadores e prefeitos do Brasil, assim como o presidente e o pastor Malafaia fizeram.

Feliciano compara o lockdown com as ações contra cristãos da parte do imperador Nero: “Escutem perseguidores tiranos: em 2000 anos de existência como igreja nós enfrentamos gente muito pior do que vocês, que dirá Nero. Nós fomos crucificados, fomos serrados, esquartejados, queimados vivos, jogados às feras e nas arenas servimos de espetáculo para pessoas tão impiedosas como vocês. Nos mataram no passado e se preciso morremos no tempo presente”.

Foto: Declaração em vídeo do deputado federal Pastor Marco Feliciano em 18 de março de 2021 em sua conta no Twitter.

Sem qualquer referência concreta que justificasse a acusação, Malta afirma que o anseio da implementação das medidas preventivas seria tirar o presidente do poder. “Estão decididos a derrubá-lo, a tirá-lo do Brasil, a quebrá-lo, não importa”. E vai além, dizendo que o STF tirou deles o direito de falar.

Foto: Declaração em vídeo de Magno Malta em 18 de março de 2021, em sua conta no Facebook.

Desgaste de Bolsonaro contra as Forças Armadas

Durante o mandato do Presidente Jair Bolsonaro, em diversos momentos houve algum tipo de embate entre o Governo e as Forças Armadas. Na semana em que o golpe militar de 1964 completou 57 anos, o acúmulo de atritos do chefe do executivo com líderes do Exército levou à demissão do então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo.

Já em dezembro de 2020, o então comandante do Exército, general Edson Pujol afirmou “não queremos fazer parte da política, muito menos deixar ela entrar nos quartéis.” De acordo com o jornal Folha de São Paulo, o alvo dessa fala era o então Ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello.

Outro evento que ajudou no recente desgaste, veio após o então responsável pela área de saúde do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira relatar ao Correio Braziliense que medidas de distanciamento social ajudaram o Exército a combater a covid-19. Bolsonaro se queixou das falas porque poderiam afetar a imagem do governo e pediu a demissão do militar. O Ministro da Defesa se negou a fazê-lo e se demitiu. No anúncio de sua demissão, o ministro afirmou que preservou as Forças Armadas como instituições de Estado – ideia pela qual órgãos não mudam suas finalidades de acordo com o governo corrente.

Depois da demissão de Azevedo, os comandantes das três Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) colocaram seus cargos à disposição. O general Walter Braga Netto que atuava na Casa Civil, assumiu o Ministério da Defesa, confirmou a saída dos três e nomeou os novos comandantes.

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Bereia classifica como verdadeiro que líderes evangélicos tenham pedido que o Presidente Jair Bolsonaro acione as Forças Armadas para impedir medidas de combate à covid-19, como lockdowns. Tal discurso está alinhado e servem de apoio às diversas declarações em que o Presidente compara – erroneamente – medidas restritivas de estados e municípios com os estados de defesa e de sítio. Essas afirmações estão também no contexto do desgaste entre Bolsonaro e comandantes militares, que levou à demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e à troca dos comandantes das Forças Armadas. As postagens dos pastores Silas Malafaia e deputado Marco Feliciano e do ex-senador Magno Malta atuam também na disseminação de pânico moral contra supostos inimigos, elemento que tem atuado na manutenção do apoio de vários segmentos religiosos ao governo federal, como já demonstrado em matérias do Coletivo Bereia.

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Foto de Capa: Sgt Bianca – Força Aérea Brasileira/Reprodução

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Referências

PLANALTO, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 31 de março de 2021.

CNJ Serviço, https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-o-que-sao-as-clausulas-petreas/ Acesso em: 01 de abril de 2021.

BBC, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56464802. Acesso em: 01 de abril de 2021.

BRASIL, Ministério da Defesa (Poder 360), https://static.poder360.com.br/2020/11/nota-defesa-e-forcas-armadas.pdf Acesso em: 03 de abril de 2021.

BRASIL, Ministério da Defesa (Poder 360), https://static.poder360.com.br/2021/03/Nota-oficial_MD.pdf Acesso em: 02 de abril de 2021.

UOL (Youtube), https://www.youtube.com/watch?v=k66-0WIjnYU&t=197s&ab_channel=UOL. Acesso em: 31 de março de 2021.

Diário Oficial da União (Congresso em Foco), https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2020/03/DECRETO-LEGISLATIVO-DECRETO-LEGISLATIVO.pdf. Acesso em: 31 de março de 2021.

Congresso em Foco, https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/senado-aprova-estado-de-calamidade-publica/. Acesso em: 31 de março de 2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/site-gospel-desinforma-ao-noticiar-que-cidades-ignoram-decreto-presidencial-sobre-abertura-de-igrejas/. Acesso em: 31 de março de 2021.

Valor Econômico, https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/05/14/bolsonaro-acusa-stf-de-deixa-lo-de-maos-atadas-veja-empresarios-que-participaram-da-reuniao.ghtml. Acesso em: 31 de março de 2021.

Correio, https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/stf-desmente-que-impediu-governo-federal-de-atuar-na-pandemia/. Acesso em: 31 de março de 2021.

STF, http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462626&ori=1. Acesso em: 31 de março de 2021.

STF, http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6764Decisa771o.pdf. Acesso em: 31 de março de 2021.

STF, http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462819&ori=1. Acesso em: 31 de março de 2021.

Poder 360, https://www.poder360.com.br/governo/jose-levi-deixa-agu-e-e-3o-ministro-a-desembarcar-do-governo-em-1-dia/. Acesso em: 04 de abril de 2021.

Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 02 de abril de 2021.

Magno Malta, https://www.facebook.com/watch/?v=142359967790991. Acesso em: 01 de abr de 2021.

Marco Feliciano, https://twitter.com/marcofeliciano/status/1372530420093452294.  Acesso em: 01 de abr de 2021.

Folha de São Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/11/nao-queremos-fazer-parte-da-politica-nem-deixar-ela-entrar-nos-quarteis-diz-chefe-do-exercito.shtml. Acesso em: 04 de abril de 2021.

Folha de São Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/bolsonaro-demitiu-ministro-da-defesa-porque-quer-mais-apoio-militar.shtml. Acesso em: 04 de abril de 2021.

Correio Braziliense, https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/03/4914583-general-paulo-sergio-diz-que-exercito-ja-espera-3—onda-da-covid.html. Acesso em: 04 de abril de 2021.

G1, https://g1.globo.com/politica/blog/gerson-camarotti/post/2021/03/30/comandantes-das-forcas-armadas-decidem-colocar-cargos-a-disposicao-de-braga-netto.ghtml. Acesso em: 04 de abril de 2021.

Folha de São Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/veja-o-perfil-dos-novos-comandantes-de-exercito-marinha-e-aeronautica.shtml. Acesso em: 04 de abril de 2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/sao-falsos-videos-sobre-suposta-operacao-storm-no-brasil/. Acesso em: 05 de abril de 2021.

Argumento de ameaça comunista para justificar golpe militar em 1964 é falso

Como resposta ao chamado de militares no governo do Brasil para celebração dos 57 anos do golpe militar de 1964, que levou aos 21 anos de ditadura violenta e sangrenta no País, líderes religiosos e fiéis, apoiadores do governo federal, ocuparam espaços digitais religiosos neste 31 de março, exaltando a ação golpista. Um dos argumentos mais utilizados para se defender e exaltar o golpe que derrubou o Estado democrático, é a de que os militares salvaram o Brasil do comunismo que seria implantado. Há ainda outras justificativas como fim da corrupção, ajuste positivo da economia e redução da violência. Foram publicadas diversas mensagens como esta:

Fonte: Facebook/Reprodução

Bereia reproduz aqui conteúdo publicado pelo projeto de verificação de notícias UOL Confere, construído a partir da pergunta: “o golpe militar de 1964 foi dado para evitar que o Brasil escapasse das garras do comunismo?” e o material “10 mentiras sobre a ditadura militar no Brasil” produzido pela Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Nunca existiu ameaça comunista no Brasil

Jornalistas e especialistas mostram que esta justificativa usada até hoje esconde documentos do próprio Exército que mostram que a “ameaça comunista” no país não era real. Diz o texto do UOL Confere:

O mundo vivia em meio ao contexto da Guerra Fria, cenário de polarização internacional que teve, entre outros elementos, embates sobre capitalismo, socialismo e comunismo. A agenda reformista do então presidente João Goulart levou alas conservadoras a temerem uma proximidade com regimes comunistas implementados em outros países, como Cuba. Mas um informe do SNI (Serviço Nacional de Informações) já citava o desgaste do comunismo na Europa Ocidental. Os militares também analisaram que não havia clima para a instalação do comunismo por conta das contradições “por demais violentas” do Brasil e que o povo não aceitaria “pacificamente as influências externas”.

A ditadura durou 21 anos no Brasil. Em 1968 foi decretado o AI-5 (Ato Institucional nº5), que endureceu a repressão, cassou mandatos, fechou o Congresso, e ampliou perseguições, torturas e mortes de opositores. A Ditadura usou imprensa e ameaças à “ordem” e à “moral” para impor o AI-5.

Historiador e professor da UFRJ, Carlos Fico disse à BBC, em 2019, que tentativas de implantar o comunismo no Brasil partiram de movimento tímidos e sem apoio da maioria da população. Ele também avaliou que mesmo as ações armadas de movimentos de esquerda não foram suficientes para ameaçar os militares.

10 mentiras sobre a ditadura

1) Não havia corrupção durante a ditadura

Apesar do combate à corrupção ter sido uma das bandeiras defendidas pelos militares ao darem o golpe de 1964, não faltaram superfaturamento, desvio de verbas, desvio de função, abuso de autoridade, tráfico de influências, entre outras ilicitudes ao longo dos anos de chumbo.

A condição autoritária do regime militar formava as condições ideias para que a corrupção acontecesse. Sem nenhum tipo de conselhos de fiscalização, com o Congresso Nacional dissolvido, as contas públicas não eram sequer analisadas. Além disso, os escândalos de corrupção eram abafados por conta da censura.

Hoje em dia, documentos comprovam que os militares mantinham relações com o contrabando, negociavam por meio de acordos milionários as nomeações de governadores dos estados e ministros, além de receberem propinas milionárias por meio de empreiteiras. Também cometiam irregularidades imobiliárias e outras ilegalidades.

2) Só morreram vagabundos e “terroristas”

Os movimentos sociais tiveram enorme protagonismo no enfrentamento à repressão dos militares durante a ditadura. Estudantes, professores, sindicalistas, indígenas e membros de organizações sociais que se mobilizavam contra as arbitrariedades do regime eram considerados subversivos e consequentemente, eram perseguidos.

Movimentos sociais e de organização da classe trabalhadora se tornaram ilegais e passaram a acontecer na clandestinidade. A União Nacional dos Estudantes teve líderes e membros desaparecidos. Outras formas de resistência, como a luta armada, obrigaram muitos militantes a sobrevivência na clandestinidade.

Mas o mais importante é apontar que os militantes torturados e mortos eram sujeitos, trabalhadores, estudantes, que tinham uma vida profissional, acadêmica e família. Eles acreditavam em uma causa e escolheram atuar na luta social em prol dessa causa e foram assassinados por isso.

Mesmo assim, não foram apenas os membros de grupos oposicionistas que foram atingidos. Familiares, vizinhos, trabalhadores comuns e camponeses também foram perseguidos e assassinados pelos militares. Alguns dos casos mais chocantes envolvem crianças filhas de presos políticos, que foram sequestradas, presas e torturadas junto aos pais por serem consideradas “subversivas” e “perigosas à Segurança Nacional”.

3) A tortura foi excesso de alguns

Quando militantes eram capturados pelos militares, passavam por sessões de tortura com requintes de crueldade para que revelassem informações. Há anos historiadores refutam a tese de que a tortura foi exclusividade de militares “linha dura” e, recentemente, um documento secreto de 1974, liberado pelo Departamento de Estado dos EUA confirma a teoria de que os presidentes não apenas sabiam, como tomavam para si a responsabilidade sobre as execuções e torturas.

No documento, o ex-presidente Ernesto Geisel, visto como moderado por alguns, aprova uma política de “execuções sumárias” de adversários da ditadura militar. O ex-presidente orienta o então chefe do Serviço Nacional de Informações, João Batista Figueiredo, a autorizar pessoalmente os assassinatos.

Principalmente depois do AI-5, em 1968, a tortura foi uma prática sistemática nas instalações do Estado que exigia recursos, equipamentos e pessoal qualificado. Até médicos participavam das sessões de tortura para reduzir os danos físicos perceptíveis e avaliar a resistência dos presos para garantir que pudessem continuar sendo violentados.

Uma apostila do Centro de Informações do Exército intitulada Interrogatório reconhecia a necessidade de “métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”. E para transmitir as técnicas de como promover as sessões de tortura, os militares até organizaram aulas práticas, nas quais presos políticos sofreram as violências enquanto uma plateia de sargentos e oficiais aprendiam as técnicas.

Documento importante sobre o assunto foi o projeto “Brasil: Nunca Mais”, desenvolvido clandestinamente entre os anos de 1979 e 1985. Mais de 30 brasileiros liderados por Dom Evaristo Arns e outros religiosos sistematizaram informações de processos do Supremo Tribunal Militar que revelaram a repressão política no Brasil encoberta até o momento. O relatório completo e o livro publicado pela Editora Vozes denunciam perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas praticadas em delegacias, unidades militares e locais clandestinos mantidos pelo Estado. Os documentos foram fundamentais na identificação e denúncia de torturadores.

4) Naquela época tinha saúde e educação

Para tentar diminuir os índices de analfabetismo da população brasileira, que nas décadas anteriores à ditadura incluía quase metade da população brasileira maior de 15 anos, o regime militar instituiu o Movimento Brasileiro para Alfabetização. A metodologia do Mobral foi uma tentativa de frear o método do educador Paulo Freire, que ganhava notoriedade e era um sucesso reconhecido e aplicado em todo o mundo.

Já para impor a ideologia do regime, foi implementada a Doutrina de Segurança Nacional nas escolas do país que, entre outras coisas, substituía as disciplinas de Filosofia e Sociologia por “Educação, Moral e Cívica”.

No entanto, o regime militar parecia interessado apenas em controlar o conteúdo que era aprendido nas escolas. A Constituição de 1967 retirou a obrigatoriedade constitucional de um valor mínimo em gastos sociais, o que acarretou, entre 1965 e 1975, uma queda de 6,2% do Orçamento Geral da União em educação e uma redução de 3,31% do orçamento em saúde entre 1966 e 1974. A precariedade do sistema educacional de antes do período militar se manteve e foi ampliada.

Em relação à saúde pública, não existiam garantias constitucionais da saúde como um direito social. Não existia o Sistema Único de Saúde (SUS) e também não existiam planos de saúde particulares. Durante os 21 anos de ditadura militar no Brasil, imperou uma política de Estado de incentivo à privatização da área, ou seja, a saúde era tratada pelos militares como um negócio (que por sua vez, era altamente lucrativo). Só tinha acesso à assistência médica quem tinha carteira assinada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que era realizado, em grande parte, por clínicas privadas. Quem não estivesse incluído neste grupo privilegiado, era tratado como indigente.

5) A ditadura foi boa para a economia

Mais um argumento comum dos defensores da ditadura é a conquista do “milagre econômico” ocorrido na época, principalmente entre os anos de 1968 e 1973. De fato, os números apontam um crescimento exponencial do Produto Interno Bruto (PIB). Mas pouco se aponta que esses números beneficiaram os empresários às custas dos salários dos trabalhadores e de um alto endividamento externo.

Para que o “milagre” funcionasse, os militares implementaram medidas que continham o salário dos trabalhadores, mudando a fórmula que previa o reajuste salarial por meio da inflação. “É preciso crescer o bolo para depois distribuí-lo”, é o que afirmavam o ministro da Fazenda dos militares, Antônio Delfim Neto. Para que não houvesse oposição popular às medidas, foram implementadas leis proibindo greves e sindicatos e movimentos sociais eram reprimidos sistematicamente.

Os ganhos reais do crescimento econômico foram distribuídos de forma desigual, aumentando a concentração de renda e a desigualdade social a níveis nunca vistos antes.

6) Não tinha violência urbana

É sempre importante lembrar que não existia liberdade de imprensa durante o período militar, já que a censura estava estabelecida dentro da burocracia do regime. Ou seja, o que não estava de acordo com os interesses do governo militar, simplesmente não era noticiado.

No que tange a violência urbana, o regime criou a imagem pública de que o país vivia um período de paz quando na realidade, uma escalada do aumento da violência assolava os principalmente centros urbanos. Os dados sobre o número de homicídios no período apontam um aumento exponencial. Em São Paulo, por exemplo, em 1968, a cidade registrou 10,4 mortos por 100 mil habitantes, o que é considerado nível epidêmico pela Organização Mundial da Saúde.

Em resposta ao aumento da violência urbana, agrupamentos policiais começaram a formar grupos de extermínio, criados explicitamente com o objetivo de assassinar bandidos comuns. Foram inúmeras as estratégias de ação desses grupos, uma delas era retirar presos comuns das celas e executá-los em estradas vazias.

Esse tipo de prática aumentou a criminalidade nas periferias, já que os homicídios iniciam uma cadeia de vingança e também porque o assassinato se mostrava como um meio possível de resolver disputas simples ou reagir a ameaças.

7) Antes da ditadura, o Brasil estava à beira do comunismo

No Brasil do início da década de 1960, o presidente João Goulart, defendia uma proposta de governo com uma série de reformas estruturais no Brasil: as Reformas de Base. As medidas se estenderiam às áreas educacional, fiscais, agrárias, entre outras.

A elite agrária e o empresariado que apoiaram o golpe, viam as medidas de Jango como ameaças e criaram conspirações sobre a possibilidade de um golpe socialista do presidente e sua suposta associação à URSS. As relações de Jango com as questões trabalhistas e a proximidade que ele havia estabelecido com ideias sobre justiça social fez com que as alas mais conservadoras das Forças Armadas pedissem a cabeça do presidente.

Jango não era comunista, nem socialista. O presidente democraticamente eleito já havia sido ministro de Estado de Juscelino Kubitschek e de Getúlio Vargas, portanto se aproximava de um espectro mais populista do campo político.

Em depoimento a um historiador americano no ano de 1967, quando o ex-presidente se encontrava exilado no Uruguai, Jango relatou acreditar que houve um “envenenamento” de sua imagem para a opinião pública. “Justiça social não é algo marxista ou comunista”, afirmou o ex-presidente, que acreditava ainda que seu maior crime foi tentar combater a ignorância. A entrevista só veio a público 47 anos depois, em 2014, quando foi publicada pelo jornal Folha de São Paulo.

8) A ditadura foi um governo só de militares

Conhecida principalmente pelo governo de militares, a ditadura que vigorou no Brasil passou a ser chamada por inúmeros historiadores de civil-militar, como forma de apontar a participação direta de empresários, imprensa e outros setores da sociedade civil no regime. Especialmente os empresários tiveram um papel decisivo no regime, contribuindo com dinheiro vivo, financiando propagandas, delatando e perseguindo trabalhadores envolvidos com movimentações sindicais, permitindo que militares se infiltrassem nas fábricas e até utilizando as dependências das fábricas como local para torturas.

Lúcio Bellentani era militante do Partido Comunista Brasileiro e trabalhou na Volkswagen entre os anos de 1964 e 1972. Ele contou, na Comissão da Verdade, que começou a ser torturado dentro das dependências da fábrica, no dia 28 de abril de 1972. Com a abertura de importantes arquivos da ditadura, ficou evidente que a relação entre a empresa e o regime não era pontual, mas sim sistemática: foram encontrados mais 400 documentos assinados por responsáveis da empresa.

Um caso muito conhecido de relação direta entre empresários e o regime militar é o de Henning Boilesen, executivo do grupo Ultra. O sádico dinamarquês que chegou a ser presidente da Ultragaz não apenas levantava recursos para as operações de repressão, como participava pessoalmente das sessões de tortura. Ele foi o responsável por trazer, dos Estados Unidos, um aparelho de tortura por eletrochoque que depois se popularizou entre os militares.

9) Todos os militares apoiaram o regime

Apesar da imagem aparentemente coesa, os militares não formavam um grupo homogêneo e bem coordenado. Na verdade, as Forças Armadas estavam divididas. De um lado, haviam oficiais fiéis a Jango nos altos postos do Exército e no também no baixo escalão. Em contrapartida, o lado conservador também era composto por dois grupos: um mais legalista, que apostava em uma intervenção cirúrgica para retirar da política “corruptos” e “subversivos”, e outro mais “linha dura”, mais preocupado com a “revolução” anticomunista.

Com o acirramento das disputas políticas em 1964, vários cenários golpistas se esboçaram, e com o golpe praticado pelo lado conservador, houve resistência em São Paulo, no Rio de Janeiro e também no Rio Grande do Sul. Em consequência, os militares resistentes também foram perseguidos. Estima-se que cerca 7500 membros das Forças Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações por se oporem à ditadura.

No entanto, o entendimento de que também houve perseguição dentro das Forças Armadas não valida a tese de que alguns presidentes militares eram mais brandos do que outros. Durante o governo dos quatro presidentes militares, opositores foram perseguidos, houve censura, direitos políticos foram cassados, dentre outras violações de direitos humanos.

10) A Igreja Católica apoiava o regime

A Igreja Católica teve um papel fundamental de apoio para consolidação do golpe militar no Brasil. A moralidade e a ordem conservadoras defendidas pelos militares se alinhavam à movimentos religiosos como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, organizada e financiada por setores da elite empresarial-militar que acreditavam na “ameaça do comunismo”.

No entanto, apesar de profundamente hierárquica, a Igreja Católica também tem fissuras internas. Durante o período militar, um movimento importante dentro da igreja atuou diretamente contra o regime. Orientados pela Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reivindicavam melhorias nas condições de vida da população. O movimento combatido pela própria Igreja por ser porta de entrada para ideias subversivas.

Além disso, já na década de 1970, clérigos mais progressistas, como D. Hélder Câmara, denunciavam internacionalmente as torturas e violações de direitos humanos cometidas pela Ditadura no Brasil. Quando as repressões da ditadura começaram a atingir a cúpula da Igreja, os clérigos se reuniram e escreveram uma carta ao presidente Médici em protesto. Posteriormente, a Igreja também criou uma Comissão de Justiça e Paz, o projeto Brasil: Nunca Mais, que coletou processos judiciais movidos contra presos políticos.

A busca da verdade

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei federal em 2012, 424 pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura militar. A Lei da Anistia (1985) perdoou crimes políticos cometidos por agentes do Estado no regime e é duramente criticada pela ONU e por outros organismos internacionais. Entre os mortos e desaparecidos citados na CNV estão sete cristãos.

Em relação às violações de direitos sofridas por pessoas cristãs (capítulo 4 do volume II do Relatório Final da CNV), pelo menos 352 cristãs e cristãos foram atingidos.

273 pessoas católicas foram presas, entre bispos, padres, religiosos, agentes de pastoral, pessoas leigas da igreja. Entre católicos, 18 foram assassinados ou se tornaram desaparecidos pelo regime (quatro padres, três religiosos e religiosas); 17 foram banidos, expulsos ou exilados, todos depois de prisão e tortura. Um bispo foi sequestrado e humilhado (deixado nu na rua com o corpo pintado) por agentes do Estado, D. Adriano Hipólito, da Diocese de Nova Iguaçu. A Catedral de Nova Iguaçu teve altar explodido.

22 evangélicos foram presos, dois pastores – 13 eram metodistas, sete presbiterianos, uma luterana e um assembleiano; sete foram assassinados ou desaparecidos (quatro metodistas e três presbiterianos), 14 foram banidos, expulsos ou exilados a maioria depois de prisão e tortura.

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O Coletivo Bereia classifica como falsa toda e qualquer publicação que apresente argumentos de exaltação de uma ditadura. Episódios como este na vida de um país devem ser lembrados como processo educativo para que sejam superados e não mais se repitam.

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Foto de capa: Arquivo Público do Estado de São Paulo/Reprodução