Câmara aprova projeto que suspende diretrizes sobre aborto legal em crianças e adolescentes vítimas de estupro. Senado ainda votará tema
A Resolução 258/24 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que garantia direitos a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual foi cancelada em votação na Câmara dos Deputados, em dia 5 de novembro de 2025. Os parlamentares aprovaram o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/2025, que susta a resolução que estabelecia diretrizes para o atendimento humanizado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, garantindo acesso ao aborto legal sem a necessidade de boletim de ocorrência ou autorização dos responsáveis em casos de suspeita de violência intrafamiliar.
De autoria da deputada católica Chris Tonietto (PL-RJ) e relatado pelo também católico Luiz Gastão (PSD-CE), o PDL foi aprovado com 317 votos favoráveis contra 111, e agora segue para o Senado. Parlamentares das bancadas católica e evangélica argumentam que o Conanda extrapolou suas competências ao “legislar sobre aborto”. Porém, este argumento ignora um dado brutal: no Brasil, 20 mil meninas com menos de 15 anos engravidam todos os anos, mas apenas 200 conseguem acessar o aborto legal previsto em lei.
O discurso construído no plenário da Câmara para aprovação do projeto foi de “defesa da vida” e de “proteção da família”, mas os números revelam outra história. Entre 2014 e 2023, mais de 204 mil meninas de 10 a 14 anos deram à luz no país — uma média de 57 partos por dia, ou uma menina que se torna mãe a cada 30 minutos. Em 2023, quase 14 mil meninas nesta faixa etária tiveram filhos, mas apenas 154 acessaram o aborto legal, o que representa 1,1% do total. Para cada criança que consegue interromper uma gestação fruto de estupro, 31 são forçadas a parir. Esses dados não são abstratos: são corpos de meninas violentadas, em sua maioria por familiares, que têm cinco vezes mais chances de morrer durante a gestação, o parto ou o puerpério.
Durante o debate em plenário, a deputada Chris Tonietto afirmou que “a violência sexual não pode ser combatida com o aborto, que é outra violência”. O deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) declarou que o objetivo era “frear a indústria do aborto, a cultura da morte”. A deputada Bia Kicis (PL-DF) defendeu a exigência de boletim de ocorrência para “identificar e punir o estuprador”, ignorando ou se opondo à Lei da Escuta Protegida (13.431/17) e à Lei do Minuto Seguinte (12.845/13) que dispensam o B.O. justamente para evitar a revitimização. A retórica da “defesa da vida” se concentra no feto, mas silencia sobre as vidas das meninas.
O aborto legal frente à violência sexual
Como Bereia já publicou, a legislação atual sobre o aborto no Brasil tem raízes no Código Penal de 1940, aprovado durante o Estado Novo (1937-1945), presidido por Getúlio Vargas. O Código Penal passou a permitir a interrupção da gravidez quando há risco de vida para a gestante ou em casos de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou ação que autorizou a interrupção da gravidez também em casos de anencefalia (má formação do cérebro) do feto.
Fora dessas exceções, o aborto no Brasil é considerado um crime sujeito a penas de detenção tanto para a gestante quanto para quem realiza o procedimento. Em 2016, no julgamento de um recurso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a de autorização do aborto nos casos de anencefalia se aplicava também a outras malformações incompatíveis com a vida.
Nos casos de estupro ou risco à vida da gestante, não há um limite de tempo específico de gestação estabelecido pela lei para que o aborto legal possa ser realizado.
Para o que estiver fora destas situações e representar aborto por vontade própria ou sem consentimento da gestante, o Código Penal, prevê punições de detenção.
A falsa unanimidade religiosa
O que parlamentares como Chris Tonietto, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e Otoni de Paula alegam como “posição cristã” não representa a totalidade do campo religioso. Embora grupos conservadores católicos e evangélicos dominem o debate público e legislativo, há vozes dissonantes dentro das próprias tradições cristãs que questionam essa instrumentalização da fé para negar direitos a meninas e mulheres.
A articuladora nacional da ONG Católicas pelo Direito de Decidir Keli de Oliveira, ouvida pelo Bereia, , avalia o debate com preocupação. “Mesmo diante do aumento do número de estupros que atinge principalmente meninas de até 13 anos e da grave realidade de gestações resultantes dessa violência, não nos parece que a maioria dos parlamentares brasileiros se importe ou se sensibilize com essa situação. Pelo contrário, as últimas movimentações do Congresso Nacional, especialmente de parlamentares e bancadas que se dizem ‘defensoras da vida’, têm se voltado a atacar os poucos direitos de meninas e mulheres”, afirma.
Keli de Oliveira destaca que a Resolução 258 do Conandanão cria novos direitos, apenas estabelece fluxos para que crianças e adolescentes vítimas de estupro fossem acolhidas de forma humanizada e tivessem acesso a todas as opções legais, entre elas o aborto seguro. “Atuam não para amparar, mas para dificultar o acesso dessas meninas a direitos garantidos por lei”, critica.
A percepção de que o campo religioso é unânime na condenação ao aborto não corresponde à realidade. “Apesar de haver uma crescente mobilização de grupos religiosos antidireitos, principalmente evangélicos e católicos, que impõem seu conservadorismo religioso na agenda pública e política do país, há também grupos e pessoas religiosas que combatem a desinformação e defendem o direito de decidir e de escolher em relação ao aborto”, explica a articuladora católica.
Ela se apoia na própria doutrina católica, que nunca teve uma posição única sobre o aborto. “Doutrinas de ordem moral, como o probabilismo, formulada no século XVII, afirmam que ‘uma obrigação moral sobre a qual há dúvidas não pode ser imposta como se fosse única e certa’. Assim como outras reflexões presentes na tradição teológica da Igreja, essa perspectiva reafirma o direito à decisão e à livre consciência diante dos dilemas individuais”, explica Keli de Oliveira.
Diferentemente das posições religiosas conservadoras, as Católicas pelo Direito de Decidir defendem o Estado laico, livre de interferências religiosas na formulação e condução das políticas públicas. “Nós nos apoiamos na teologia feminista e em um pensamento ético-religioso que reconhece nossa autoridade moral para tomar decisões”, afirma Keli de Oliveira.
Interpretações bíblicas e o direito à vida
Bereia também ouviu a pastora e teóloga batista Odja Barros. Ela explica que o direito à vida em diferentes tradições religiosas cristãs está muito relacionado às interpretações. “A interpretação da Bíblia e da teologia historicamente foi feita por homens que desconsideraram o direito à vida das mulheres”, pontua. Segundo ela, o discurso cristão fundamentalista deixa de lado os corpos femininos com uma visão antropocêntrica e patriarcal.
Para a pastora, o discurso de católicos e evangélicos que defenderam o retrocesso do aborto legal em crianças e adolescentes demonstra uma total desconsideração pelo número de meninas que gestam com menos de 14 anos, e que na maioria das vezes são violentadas pelos próprios membros da família. Ela reforça que a tradição judaico-cristã alerta biblicamente para o direito à vida de três grupos vulnerabilizados: os pobres (vítimas de um sistema que favorece os que têm poder), as viúvas (as mulheres mais vulnerabilizadas à época bíblica, que necessitavam de um amparo masculino) e os estrangeiros (por serem tratados nessa cultura como ameaça).
Odja Barros questiona políticos e lideranças religiosas: “para aplicarmos de forma literal a bandeira do direito à vida, teríamos que garantir amplamente o direito desses grupos mais desprotegidos que sofrem mais violência no contexto social, político e religioso. E justamente hoje são os corpos das meninas e mulheres que ao longo do tempo não foram validados por uma estrutura que nega direitos”.
O papel das lideranças religiosas conservadoras
Keli de Oliveira aponta que o conservadorismo religioso tem se imposto com uma agenda política poderosa, que se intensificou nos últimos anos. “É preocupante como esses grupos vêm se articulando e construindo alianças com a extrema direita, territorializando suas ações por meio da apresentação de projetos de lei em câmaras municipais, que atacam principalmente os direitos de meninas, mulheres, pessoas LGBTQIAPN+ e a laicidade do Estado”,diz.
Apesar do impacto que causam, especialmente na vida dessas meninas, essas lideranças não são uma voz única. Embora possam influenciar a opinião pública, há também reação do campo progressista e apoio da sociedade quando o tema é garantir o direito ao aborto para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Um exemplo foram os massivos protestos e a ampla desaprovação social ao PL 1904/24, que previa punir severamente vítimas de estupro, inclusive crianças, como Bereia informou.
Keli de Oliveira cita ainda a pesquisa de opinião realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o Instituto Locomotiva, sobre percepções a respeito dos direitos de meninas e mulheres grávidas após estupro. O estudo revelou que a maioria dos brasileiros é solidária às vítimas: 96% acreditam que meninas de até 13 anos não estão preparadas para ser mães, e seis em cada dez pessoas conhecem alguma mulher que foi vítima de estupro nessa faixa etária.
“Portanto, apesar da falsa narrativa propagada por grupos religiosos neoconservadores sob o argumento de ‘defesa da vida desde a concepção’ e da condenação ao direito ao aborto em qualquer circunstância, a insígnia ‘Criança Não é Mãe’ tem desmascarado esses discursos e conquistado cada vez mais apoio popular. Eles não detêm a última palavra”, afirma a articuladora católica.
Referências:
Câmara Federal
https://www.camara.leg.br/noticias/1219967-camara-aprova-projeto-que-cancela-diretrizes-sobre-aborto-em-criancas-e-adolescentes-vitimas-de-estupro – Acesso em 17 nov 2025
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2025/08/7226474-uma-menina-brasileira-vira-mae-a-cada-30-minutos-mostra-levantamento.html – Acesso em 17 nov 2025
Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-05/meninas-maes-passam-de-14-mil-e-so-11-tiveram-acesso-aborto-legal – Acesso em 17 nov 2025
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-08/pais-registra-164-mil-estupros-de-criancas-e-adolescentes-em-3-anos – Acesso em 17 nov 2025
Notícias UOL
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/11/06/entidades-criticam-aprovacao-de-pdl-que-dificulta-aborto-legal-em-crianca-vitima-de-estupro.htm – Acesso em 17 nov 2025
Presidência da República
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm – Acesso em 17 nov 2025
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm – Acesso em 17 nov 2025



