Eleições 2024: Candidatos com identidade confessional, conhecidos por espalharem desinformação, divulgam apoio de lideranças religiosas

Ao longo da campanha para as eleições municipais, lideranças religiosas têm se mobilizado para prestar apoio público a candidaturas que se mostram alinhadas com suas pautas e ideais. Tal prática é uma estratégia comum na política, que se repete a cada pleito.

Nesta matéria, Bereia verifica candidatos com histórico de publicar desinformação que estão entre os que recebem a benção de pastores e outras figuras de destaque no meio cristão. Do monitoramento da equipe Bereia em mídias sociais, são destacados os casos de Guilherme Kilter (Curitiba/PR), Dentinho (Passos/MG), Alana Passos (Rio de Janeiro/RJ), Pastor Dinho Souza (Serra/ES) e Sonaira Fernandes (São Paulo/SP). 

Esses candidatos e candidatas fazem uso de sensacionalismo e desinformação para mobilizar eleitores e se apoiam na retórica religiosa e na proximidade, em algum grau, com lideranças eclesiásticas, para validar sua candidatura. 

Guilherme Kilter

O influenciador digital evangélico e candidato a vereador de Curitiba, pelo Novo, Guilherme Kilter, 22 anos, se apresenta nas mídias como cristão, de direita e a favor da família. 

Imagem: Reprodução/Facebook

Membro da Primeira Igreja Batista de Curitiba, Kilter conta ter sido “convidado a entrar na política” pelo ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Novo-PR, cujo mandato foi cassado em 2023), que também é evangélico batista e mantém relações com lideranças eclesiásticas. Ele também se compara com o destacado político extremista de direita, deputado federal  Nikolas Ferreira (PL-MG), pela pouca idade e semelhança de posicionamentos, por ter iniciado a carreira política como vereador. Kilter declara querer  se tornar “o Nikolas Ferreira do Paraná“.

Entre as lideranças evangélicas, Guilherme Kilter conta com o apoio do pastor Paschoal Piragine Jr., que também é seu tio. Ele é presidente da Convenção Batista Brasileira, pastor emérito da Primeira Igreja Batista de Curitiba, e pastor interino da Primeira Igreja Batista de Niterói. Pirajine Jr. se destacou nas mídias sociais, em 2010, ao empreender ferrenha campanha contra a eleição da candidata do Partido dos Trabalhadores a presidente da República Dilma Rousseff, com uso de discursos de pânico moral e terrorismo verbal. Em outras campanhas eleitorais, o pastor também atuou na mesma direção.

Imagem: Gazeta do Povo, 29/09/2016

Na comunicação em redes digitais, além de frequentemente publicar imagens com essas figuras mais conhecidas de políticos com os quais quer ser relacionado, Guilherme Kilter utiliza também fotos de si mesmo na igreja para se afirmar como cristão e conservador. 

Além disso, também faz publicações sobre as polêmicas atuais, alinhado com os demais perfis e influenciadores ligados à extrema direita. Ele se engajou recentemente, por exemplo,na onda de difamações contra a boxeadora olímpica argelina Imane Khelif, que foi checada por Bereia. Também publicou desinformação sobre a legalização do aborto pelo governo Lula, que foi verificada como falsa pelo G1

Imagem: Reprodução/Instagram

Dentinho

Luis Carlos do Souto Junior, mais conhecido como Dentinho, se apresenta como um vereador com princípios de direita e está no terceiro mandato como parlamentar no município de Passos (MG). Em seu perfil no Instagram, o candidato do Progressistas (PP), à reeleição, ostenta fotos com grandes nomes do seu campo político, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o deputado federal Nikolas Ferreira, que prestou apoio ao candidato por meio de um vídeo para sua campanha. 

Em 2023, Dentinho virou notícia ao ser indiciado, em apenas 15 dias, por xenofobia, racismo e produção de fake news. De acordo com a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), o vereador cometeu o primeiro crime em novembro de 2022, após o fim do segundo turno das eleições, ao afirmar, em uma publicação nas mídias sociais, que “Bolsonaro também é f*da, foi falar na Bahia que ia gerar um milhão de empregos… Assustou o povo!”. A declaração insinua que a população baiana não votou em Bolsonaro por não gostar de trabalhar. O delegado Felipe Capute, que assina o indiciamento, entendeu que a fala de Dentinho é ofensiva ao povo da Bahia e resulta em uma exposição discriminatória.

A segunda denúncia também está relacionada com o último pleito eleitoral: Dentinho teria usado panfletos para divulgar conteúdo falso contra o então candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo a PCMG, o vereador cometeu crime eleitoral previsto no art. 323 de Lei 4737, que dá pena de detenção de dois meses a um ano para quem “Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado”. Em resposta ao G1, o vereador negou que tenha cometido os crimes dos dois casos.

Imagem: Reprodução/Instagram

Alana Passos 

Alana Passos é militar do Exército e foi deputada estadual do Rio de Janeiro de 2018 a 2022. Em sua entrada na política, pelo PSL, recebeu 106.253 votos (1,38% do total) e foi a mulher mais votada do estado, um sucesso que não se repetiu no pleito seguinte: a candidata recebeu apenas 0,45% dos votos e ficou fora da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) porque o seu então novo partido, PTB, não teve quociente eleitoral.

Nas eleições municipais deste ano, Alana Passos é candidata a vereadora na capital fluminense pelo Partido Liberal (PL) e ostenta o apoio do pastor Joel Serra, idealizador do Movimento Cristão Conservador, em fotos e no vídeo de sua campanha. A militar também esteve no gabinete do pastor da Igreja Batista Atitude Josué Valandro Jr e posou ao seu lado em uma publicação no Instagram.

Imagem: Reprodução/Instagram

A primeira vez em que Alana Passos foi associada à propagação de conteúdo falso foi

em julho de 2020, quando o Facebook excluiu, dentre outras contas, os perfis AlanaOpressora, artilhariadobem, tvanticomunismobrasil e Fabio Muniz por “criação de pessoas fictícias fingindo ser repórteres, publicação de conteúdo e gerenciamento de páginas fingindo ser veículos de notícias”.

De acordo com a rede social, as contas seriam ligadas a um ex-assessor de Alana Passos, que afirmou, em nota à BBC News Brasil, que “Quanto a perfis de pessoas que trabalharam no meu gabinete, não posso responder pelo conteúdo publicado. Nenhum funcionário teve a rede bloqueada por qualquer suposta irregularidade. Estou à disposição para prestar qualquer esclarecimento, pois nunca orientei sobre criação de perfil falso e nunca incentivei a disseminação de discursos de ódio”.

Em buscas no perfil da candidata no Facebook, Bereia identificou a propagação de conteúdo falso e enganoso sobre “ideologia de gênero”, um dos termos mais explorados nos materiais de desinformação que circularam em espaços digitais religiosos nas últimas eleições. Em junho de 2018, Alana publicou um vídeo que, retirado de contexto, deixa a entender que a deputada federal Erica Kokay (PT-DF) confessa que defende o incesto e a destruição da famiilia patriarcal. 

Imagem: Reprodução/Facebook

O site Boatos.org já havia checado o vídeo em 2017, e chamou a atenção para o sentido da fala da deputada petista: segundos antes do recorte que viralizou ela diz “Por isso, eles querem romper a laicidade do Estado e implementam uma construção de ideologia de gênero, que ela é uma tentativa de sair do discurso essencialmente religioso e fazer a ponte com o discurso ideológico da extrema direita neste país. Porque aí eles dizem…”. Dessa forma, a candidata divulgou um conteúdo que tem elementos verdadeiros, mas foi apresentado de forma distorcida para produzir no receptor uma percepção da fala que é enganosa.

Já em 2021, a então deputada estadual usou a mesma rede para compartilhar a informação falsa de que um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) sugeriu que a exposição à pornografia poderia ser positiva para crianças. A imagem usada na publicação exibe a logo do R7, portal de notícias do Grupo Record, como forma de gerar credibilidade para a afirmação, que já foi verificada pela coluna Fato ou Fake, do portal G1. Por meio de um comunicado, o UNICEF reafirmou sua posição de que nenhuma criança deve ser exposta a conteúdo nocivo, e explicou que um artigo publicado em abril de 2021 teve interpretações incorretas e diferentes do que a instituição defende.

Imagem: Reprodução/Facebook

Pastor Dinho Souza 

Evandro De Souza Ferreira Braga, conhecido como Dinho Souza, é pastor da igreja evangélica Povo da Cruz, no município de Serra (ES). É filiado ao PL e concorre a vereador nas eleições deste ano. Ganhou destaque na imprensa nacional por um fato polêmico: em abril de 2022, a igreja que pastoreia promoveu a rifa de uma espingarda calibre 12  a fim de reformar a sala das crianças. A “ação entre irmãos”, como dizia o informativo, foi celebrada pelo pastor, que declarou sentir orgulho do ato. 

O fato serviu para projetar Souza para as mídias e noticiários. Ele seguiu a cartilha da desinformação religiosa monitorada pelo Bereia ao propagar ideias de perseguição religiosa contra cristãos no Brasil e de eleger as esquerdas como inimigas da fé cristã.  

Imagem: reprodução/ Instagram

O pastor, que concorre a vereador da Câmara de Serra, alinhou discurso com  a extrema-direita e ficou marcado pela sua posição pró-armas, pelo discurso contra diversidade de gênero e pela defesa contra o aborto, até mesmo em casos de estupro, direito assegurado por lei.

Além disso, Dinho Souza atacou setores do segmento evangélico. No domingo em que se comemorava a Páscoa, o religioso xingou o artista Timóteo Oliveira, membro da igreja Anglicana, e o acusou de ser um “black block gospel”, devido a representação da figura de Jesus negro em uma de suas artes. O caso rendeu uma nota de repúdio assinada pela coordenação do Movimento Negro Evangélico Nacional.

Instituições evangélicas ligadas ao campo conservador também estiveram na mira do pastor. Em 2023, Dinho Souza atacou a Associação de Pastores Evangélicos da Serra (APES) em um dos seus discursos. Apesar de toda polêmica, os episódios não o impediram de ganhar apoiadores do mundo político e religioso como pastor Anderson Silva,  padre Kelmon, o senador Magno Malta (PL-ES), a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e o pastor da Igreja Batista Vale da Benção e desembargador aposentado Sebastião Coelho.

Sonaira Fernandes

Ex-secretária da Mulher do estado de São Paulo, Sonaira Fernandes é evangélica e busca seu segundo mandato como vereadora na capital paulista. Muito próxima do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua família (com quem começou a trabalhar em 2014), a candidata é a principal indicação do ex-presidente nestas eleições. Sonaira também é apoiada pelo governador Tarcísio de Freitas e chegou a ser cotada para vice de Ricardo Nunes na sua busca pela reeleição, mas acabou ficando fora da chapa.

Sonaira Fernandes é muito atuante nas mídias sociais e exibe visitas a igrejas e fotos com pastores de diferentes denominações. Em apuração no perfil da candidata no Instagram, Bereia verificou que a candidata visitou 24 igrejas evangélicas desde o início de agosto, ostentando o apoio de líderes da Igreja Renascer em Cristo e de diferentes Assembleias de Deus, dentre outras igrejas.

A forte influência de Fernandes no meio evangélico a levou ao “palco” da Marcha para Jesus deste ano e uma de suas falas sobre o evento foi checada pelo Bereia. A candidata repercutiu a declaração do líder da Igreja Renascer em Cristo apóstolo Estevam Hernandes, de que exista uma perseguição às igrejas no Brasil. Em seu perfil no X, Sonaira publicou que “Em plena época de Igreja perseguida, a 32ª Marcha para Jesus ficou marcada como uma das maiores da história”.  

Imagem: reprodução/X

A retórica do medo da perseguição religiosa é comum em conteúdo desinformativo, e na referida apuração Bereia concluiu que “que é falsa a afirmação de que haja perseguição aos cristãos no Brasil, e que as alegações de fechamento de igrejas e perseguição são estratégias de desinformação usadas por políticos e líderes religiosos para manipular o medo e influenciar o eleitorado, distorcendo a realidade e criando uma falsa sensação de vitimização.”

No mesmo sentido, dois meses antes das eleições presidenciais de 2022, Sonaria compartilhou um vídeo de imagens editadas do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva em um encontro de lideranças religiosas de matriz africana. Na legenda, a vereadora disse:

“Lula já entregou sua alma para vencer essa eleição. Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje, para não ser proibido de falar de Jesus amanhã.”

O caso foi abordado pelo Bereia na reportagem “Cristofobia e intolerância religiosa: as fake news como estratégia política para enganar cristãos na campanha eleitoral 2022”, que destaca que o conteúdo publicado pela vereadora não se trata apenas de desinformação, mas é também um uso da intolerância religiosa para campanha política. A matéria ressalta, ainda, que a tentativa de associar Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) ao fechamento de igrejas evangélicas e a perseguição religiosa acontece desde 1989, e tais “notícias” nunca apresentam fontes ou informações factíveis.

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Bereia alerta leitores e leitoras a atentarem a candidaturas que mobilizam identidade religiosa e lançam mão de desinformação, conteúdo com base em mentiras e falsidades, como estratégia de campanha.

Referências

Boatos.org

https://www.boatos.org/politica/erika-kokay-defende-incesto.html . Acesso em 11 set 2024

BBC News Brasil

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53354358. Acesso em 11 set 2024

O Globo

https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2024/09/eleicoes-sp-cla-bolsonaro-opera-envios-no-zap-a-favor-de-candidata-favorita-a-vereadora.ghtml . Acesso em 23 set 2024

G1

https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2021/06/10/e-fake-que-unicef-sugira-em-relatorio-que-pornografia-e-positiva-para-criancas.ghtml. Acesso em 11 set 2024

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https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2018/noticia/2018/10/08/deputados-estaduais-sao-eleitos-no-rj-veja-lista.ghtml . Acesso em 12 set 2024

UNICEF

https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/e-fake-noticia-que-circula-no-whatsapp-e-em-sites-sobre-unicef-e-pornografia Acesso em 12 set 2024

Poder 360

https://www.poder360.com.br/governo/facebook-exclui-contas-falsas-ligadas-a-gabinetes-da-familia-bolsonaro/. Acesso em 12 set 2024

Estado de Minas

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/03/02/interna_politica,1463688/vereador-mineiro-e-indiciado-por-produzir-fake-news-contra-lula.shtml. Acesso em 18 set 2024

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/02/18/interna_politica,1459294/policia-civil-indicia-vereador-de-passos-por-racismo-e-xenofobia.shtml. Acesso em 18 set 2024

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Instagram

https://www.instagram.com/dentinhovereador/. Acesso em 18 set 2024

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TSE

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Youtube

https://www.youtube.com/watch?v=gPrpqkJMTyM. Acesso em 11 de set 2024

UOL

https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/apuracao/1turno/votos-por-estado/rio-de-janeiro/deputado-estadual/. Acesso em 12 de set 2024

Bereia

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-e-um-dos-temas-explorados-por-quem-produz-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/ . Acesso em 12 set 2024

https://coletivobereia.com.br/cristofobia-e-intolerancia-religiosa-as-fake-news-como-estrategia-politica-para-enganar-cristaos-na-campanha-eleitoral-2022/ . Acesso em 24 set 2024

https://coletivobereia.com.br/eleicoes-2024-religiosos-e-politicos-usam-falsa-perseguicao-a-igrejas-no-brasil-como-tema-de-campanha-durante-marcha-para-jesus-de-sp/ . Acesso em 24 set 2024

Eleições 2024: Lideranças católicas produzem campanha  eleitoral enganosa em forma de corrente no WhatsApp

*Atualizada em 15/09 para acréscimo de informações

Um vídeo com informações controversas já checadas e desmentidas pelo Bereia circula desde a última semana em grupos de WhatsApp de igrejas e entidades religiosas cristãs brasileiras. Com a legenda: Vamos fazer uma campanha. Cada um que receber esse vídeo, enviar para 10 contatos, no mínimo. Posso contar com você? O material em tom alarmista traz personalidades católicas versando sobre qual seria o candidato ideal para ganhar o voto de um cristão. 

Imagem: Reprodução de grupo no WhatsApp

Campanha eleitoral na Internet

Segundo o TSE, atualmente o Brasil tem mais de 155 milhões de eleitores aptos a votar em 2024, sendo que para 135 milhões o voto é obrigatório. Em contrapartida, o número de brasileiros com acesso a mídias sociais se aproxima do número de eleitores: o Instagram acumula mais de 113,5 milhões de usuários brasileiros, já o Facebook alcançou a marca de 109 milhões brasileiros neste ano.

A presença de brasileiros nas mídias sociais torna esse espaço um alvo para divulgação de campanha pró-candidaturas . De forma a evitar possíveis abusos quanto ao uso dessas plataformas, o TSE realizou alterações na Resolução nº 23.610/2019, para garantir o uso correto da internet na campanha eleitoral. As principais mudanças indicam a obrigatoriedade de repositórios públicos sobre as propagandas impulsionadas por candidatos/as em cada campanha, a proibição de propaganda eleitoral paga além da impulsionada legalmente e a remoção de conteúdos somente sob ordem judicial.

Contudo, a resolução publicada pelo TSE não indica a fiscalização de conteúdos produzidos por eleitores/as, que abordam o tema das eleições ou temáticas importantes para esse debate, tais como citações a projetos de leis. Desta forma, vídeos, textos e outros conteúdos que circulam pelas mídias sociais e em grupos religiosos, propagam desinformação sobre temas importantes para as eleições e apresentam um papel apelativo para reforçar pautas ultraconservadoras como a proibição do aborto legal, a criminalização do consumo de drogas, a falsa perseguição sistemática a cristãos no Brasil e a ameaça da “ideologia de gênero”, temas que aparecem no vídeo checado pelo Bereia.

Perseguição a cristãos e à igreja 

“Não podemos orar pedindo a Deus a expansão do evangelho e depois votar em candidatos que querem fechar as igrejas e que são contra os valores evangélicos!”, disse no vídeo o cantor católico Diácono Júlio Neto. O alerta do cantor, entretanto, é infundado. Bereia já checou várias publicações sobre a mesma temática e verificou que não há qualquer projeto ou movimento de fechamento de igrejas no Brasil, porque a liberdade de culto é garantida na Constituição Brasileira

Além do alarde sobre o falso projeto de fechamento de igrejas, logo na abertura do vídeo, o fundador da Associação do Senhor Jesus e idealizador do canal de TV Rede Século 21 Pe. Eduardo Dougherty chama a atenção para a perseguição a cristãos por governos comunistas. “O sofrimento da perseguição religiosa por governos comunistas, não pode deixar de despertar nossa consciência nesta hora tão dramática das eleições!”, frisou o padre. 

O uso do tema da perseguição a cristãos pelas esquerdas e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), em campanha eleitoral não é novo, remonta às eleições de 1989, quando o PT lançou Lula candidato pela primeira vez, usado por apoiadores de Fernando Collor de Mello. Usava-se o imaginário da ameaça comunista relacionada ao PT e o discurso de que fecharia as igrejas para apoiar Collor, que as protegeria. Este é um trecho de matéria do Bereia, publicada em 7 de setembro de 2022, na ocasião da última eleição presidencial. 

Imagem: Site do Bereia

Bereia tem verificado que o discurso em torno de uma suposta perseguição aos fiéis evangélicos no país tem sido muito repetido e reafirmado por lideranças cristãs, especialmente em períodos eleitorais. Bereia publicou este trecho em matéria, em 7 de junho de 2024.

Imagem: Site do Bereia

Liberação do aborto

Um dos pontos abordados pelas personalidades católicas foi a questão do aborto, tema muito sensível para a comunidade cristã e muitas vezes checado pelo Bereia, por conta da enxurrada de desinformação que circunda o assunto. Um homem, cantor, pregador, missionário e apresentador Dunga foi quem falou sobre o tema. “Aborto não é uma questão de saúde pública. Aborto é crime”, apontou. 

Apesar de ser classificado de fato como crime no Brasil, o aborto é sim uma questão de saúde pública, por isso, as exceções para a prática no país estão ligadas à condição de saúde física e mental da mulher.  Trata-se do aborto legal, previsto em lei, desde 1940, nos casos de gravidez por estupro, e em resoluções da Supremo Tribunal Federal para salvar a vida da mãe, quando há gravidez de risco de morte, ou interromper a gestação de fetos anencéfalos, que nascerão sem vida.

Em junho passado foi estabelecida uma tentativa, no Congresso Nacional, de tipificar como criminosa estas exceções previstas no Código Penal Brasileiro. O Projeto de Lei 1.904/2024, de autoria do deputado federal evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e mais 33 parlamentares, equipara a interrupção da gravidez após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio e propõe aumentar a pena máxima para até 20 anos de prisão para os responsáveis pelo procedimento. 

A aceleração da tramitação do Projeto de Lei 1.904/2024 na Câmara dos Deputados desencadeou uma onda de comentários e postagens nas mídias sociais, muitos deles com base em desinformação. (…) A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o aborto um procedimento de saúde seguro e descomplicado quando realizado adequadamente. Segundo a OMS, “as complicações são raras tanto com o aborto farmacológico como no cirúrgico, quando os abortos são seguros – o que significa que são realizados utilizando um método recomendado pela OMS, adequado à idade gestacional, e por alguém com as competências necessárias” Trecho de matéria publicada na página do Bereia, em 28 de junho de 2024.  

Ideologia de gênero

Outro assunto frequentemente disseminado nas mídias digitais cristãs, com viés desinformativo, é a questão dos direitos de gênero e a educação sexual nas escolas. Foi uma mulher a escolhida para tratar o tema no vídeo de lideranças católicas, a cantora Eliana Ribeiro. “Não podemos orar pedindo a Deus pelos filhos e votar em quem quer impor ideologia de gênero e imoralidade sexual para nossas crianças”, afirmou Ribeiro. O tema já foi checado pelo Bereia em várias matérias, mas é em períodos eleitorais que ele surge com mais força. 

Esta associação de pedofilia a movimentos de esquerda e grupos LGBTQIA+ é uma prática comum em conteúdos disseminados pela extrema direita, e explorada em espaços religiosos, como Bereia já checou. De forma semelhante, a noção inventada de “ideologia de gênero” é um dos temas mais usados por quem produz desinformação em espaços religiosos. Estes temas emergem com mais intensidade em períodos eleitorais, como estratégia de campanha. Texto publicado em 3 de junho de 2024, em matéria no site do Bereia

Censura e controle dos meios de comunicação

“Não devemos orar por liberdade e democracia e depois votar em quem deseja a censura e o controle dos meios de comunicação”, é a afirmação da atriz e apresentadora de televisão Myrian Rios. O controle dos meios de comunicação e a censura são também tema de destaque em publicações do extremismo conservador, especialmente após os acontecimentos recentes que envolveram a proibição da rede X no Brasil.

Imagem: Site do Bereia

Outras notícias sobre a suposta censura praticada no País, já foram checadas pelo Bereia anteriormente envolvendo pessoas políticas, veículos e instituições religiosas. Nesses casos, a notícia não se aprofunda nas causas da proibição de divulgação ou atuação de determinadas organizações, como o caso do X. Também, as publicações neste tema se baseiam no direito à liberdade de expressão de forma irrestrita, sem limites éticos ou legais, e negam o lugar das instituições e da sociedade civil na regulação do que se veicula nas mídias, o que classificam como “censura”. 

Preservação da moral e dos bons costumes

Além dos temas de vieses ultraconservadores e extremistas, o vídeo também apresenta, no final, uma palavra do cantor católico Luiz Felipe sobre menção  escatológica do Papa João Paulo II. “O santo papa João Paulo II nos alertou: “Sabemos que estamos na luta final entre igreja e anti-igreja, evangelho e antievangelho, entre cristão e o anticristão”, e ainda, que a última batalha do anticristo será contra a família”.

A fala de Luiz Felipe reforça os temas apresentados pelas personalidades católicas que aparecem antes dele. Ao citar a “anti-igreja”, “anti-evangélio”, “anticristão” e dizer que “a última batalha será contra a família” ele reforça o pânico em torno da perseguição aos cristãos  em torno da “família”, de forma genérica. A “proteção da família” é tema frequentemente usado por extremistas conservadores  em processos eleitorais, diante do apelo emotivo que provoca, como mostram estudos de especialistas, como Fernanda Marina Feitosa Coelho.

Evangélicos

Lideranças evangélicas também não deixaram de lado o hábito das “Correntes de WhatsApp” para fazer política. Assim como no vídeo católico, circula nos grupos gospel uma mensagem que aponta os partidos de esquerda como os “inimigos” do país e dos cristãos, mantendo o terror alegando que o Brasil iria se “transformar em uma Venezuela”, caso os partidos de esquerda permaneçam no poder. 

Vamos tirar os Comunista e Socialista do Brasil ,vote no partido de direita. Quando o justo governa o povo se alegra, quando o ímpio governa o povo chora. Por isso estão criando muitos impostos para cobrir as corrupções e os rombos nos cofres públicos provérbios 29.2. Divulgue, compartilhe para que o Brasil não possa empobrecer como a Venezuela e (outros) países comunistas que tiram a liberdade do povo fazendo deles escravo não livre”, diz o texto acompanhado de uma imagem com o número de urna de cada partido progressista existentes no país. 

Bereia já verificou exaustivas vezes publicações falsas e enganosas ligadas ao aumento de impostos e sobre países com ditaduras em vigor no mundo.

Imagem: Reprodução do WhatsApp

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Bereia verificou e tem verificado as informações do vídeo que circula nas mídias sociais.  O conteúdo da produção é   enganoso, pois distorce informações sensíveis, que apelam ao medo e ao pânico, como a perseguição a cristãos, o aborto e a ideologia de gênero para criar um cenário alarmista que não reflete a realidade.  A corrente divulgada por grupos evangélicos tem o mesmo viés.

O uso de temas religiosos para justificar posições políticas e convencer eleitores a votar em candidatos/as da direita extremista é feito de maneira distorcida, sem respaldo jurídico ou factual, como no caso das alegações de censura. O conteúdo visa influenciar o público com desinformação e apelos sensacionalistas, explorando pautas conservadoras e mobilizando o eleitorado por meio de argumentos exagerados e alarmistas.

Referências

Bereia. https://coletivobereia.com.br/eleicoes-2024-panico-sobre-plano-nacional-de-educacao-e-ideia-de-perseguicao-a-cristaos-preparam-terreno-para-eleicoes/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/eleicoes-2024-religiosos-e-politicos-usam-falsa-perseguicao-a-igrejas-no-brasil-como-tema-de-campanha-durante-marcha-para-jesus-de-sp/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/prefeito-de-sorocaba-produz-videos-enganosos-ao-afirmar-perseguicao-aos-cristaos/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/mais-falsidades-espalhadas-por-deputados-e-midias-gospel-sobre-pl-que-retira-direitos-sobre-aborto/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/deputados-e-midias-gospel-espalham-falsidades-sobre-projeto-de-lei-que-retira-direitos-sobre-aborto-no-brasil/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/para-defender-projeto-contra-o-aborto-deputado-evangelico-mente-e-espalha-o-terror/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/apoiadores-da-reeleicao-de-jair-bolsonaro-continuam-a-enganar-sobre-suposta-ameaca-do-pt-as-igrejas/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/site-gospel-desinforma-ao-noticiar-que-cidades-ignoram-decreto-presidencial-sobre-abertura-de-igrejas/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/o-lobby-dos-evangelicos-contra-o-fechamento-das-igrejas/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/panico-moral-sobre-ideologia-de-genero-aborto-erotizacao-de-criancas-e-defesa-da-familia-e-usado-para-disputa-eleitoral-com-base-em-desinformacao/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/deputada-catolica-repercute-afirmacao-do-papa-sobre-ideologia-de-genero-ameacar-a-humanidade/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-e-um-dos-temas-explorados-por-quem-produz-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/sites-e-politicos-religiosos-enganam-sobre-governo-federal-defender-maconha-e-aborto/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/influenciador-cristao-propaga-conteudo-enganoso-no-youtube-sobre-descriminalizacao-de-pedofilia-e-drogas/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/universidades-publicas-nao-produzem-drogas-em-suas-dependencias/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/midias-sociais-viralizam-desinformacao-sobre-censura-da-assembleia-de-deus-do-bras-a-conferencia/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/jornal-desinforma-ao-tratar-censura-conservadora-a-pastor-como-punicao-por-posicionamento-politico/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/alarde-sobre-suposta-saida-da-rede-x-twitter-do-brasil-se-espalha-em-ambientes-digitais-religiosos/. Acesso em: 12 de setembro de 2024. 

https://coletivobereia.com.br/deputados-e-midias-gospel-espalham-falsidades-sobre-projeto-de-lei-que-retira-direitos-sobre-aborto-no-brasil/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/acao-proposta-pelo-psol-nao-exige-que-ideologia-de-genero-seja-obrigatoria-nas-escolas/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/deputado-evangelico-nikolas-ferreira-nao-fez-discurso-nas-nacoes-unidas/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

Instituto de Estudos da Religião. https://religiaoepoder.org.br/artigo/familias/. Acesso em: 13 de setembro de 2024.

Rádio Senado. https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/08/15/conheca-as-regras-para-propaganda-eleitoral-nas-redes-sociais. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

RD Station. https://www.rdstation.com/blog/marketing/redes-sociais-mais-usadas-no-brasil/. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

Serpro. http://intra.serpro.gov.br/tema/noticias-tema/eleicoes-e-redes-sociais-empoderamento-ou-onda-de-internet. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

Tribunal Superior Eleitoral. https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Julho/brasil-tem-mais-de-155-milhoes-de-eleitoras-e-eleitores-aptos-a-votar-em-2024. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Marco/eleicoes-2024-confira-as-novidades-para-a-propaganda-eleitoral-na-internet. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

“Narcopentecostalismo”? Imprensa propaga discurso enganoso ao associar pentecostalismo e tráfico de drogas

Notícias sobre igrejas católicas fechadas, a mando de grupos de traficantes na zona norte do Rio de Janeiro, circularam em veículos de imprensa, entre 6 e 8 de julho passado. Os templos fechados teriam sido os das paróquias de Santa Edwiges e de Santa Cecília, no bairro Brás de Pina, e o de Nossa Senhora da Conceição e Justino, no bairro Parada de Lucas.

De acordo com o que circulou na imprensa, a ordem de fechamento teria partido de Álvaro Malaquias Santa Rosa, narcotraficante conhecido como “Peixão”. Algumas mídias usam termos como “traficantes evangélicos” ou “narcopentecostalismo”, expressões criticadas por especialistas. Bereia checou o uso dos termos. 

Imagem: reprodução DCM

Notícia do fechamento de igrejas católicas 

Conforme divulgado, em 6 de julho, por veículos como o portal G1 e O Dia, três igrejas católicas, em bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro, teriam fechado as portas após ameaças do traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como “Peixão”. Segundo as notícias, denúncias dos moradores indicam que homens armados foram até os templos para forçar o fechamento, e que atividades religiosas foram, de fato, canceladas. 

Além disso, os jornais divulgaram que publicações, que avisavam sobre o fechamento e a suspensão de algumas atividades, foram feitas pela Paróquia Nossa Senhora da Conceição e São Justino, em Parada de Lucas, pela Paróquia Santa Edwiges e pela Paróquia Santa Cecília, ambas em Brás de Pina, e excluídas posteriormente. Após consulta nos perfis de redes digitais das paróquias, Bereia não encontrou as imagens divulgadas. Alguns sites, porém, dizem que as postagens foram tiradas do ar. 

A Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, em nota, informou que as igrejas estavam abertas e com a segurança reforçada pela Polícia Militar. Já a Arquidiocese Católica do Rio afirmou que os templos permaneciam abertos, conforme publicado pelos portais de notícia. O jornal O Globo também noticiou que a Polícia Civil investiga se o fechamento das igrejas foi decorrente de uma ordem do chefe do tráfico.

Imagem: reprodução O Globo

Propagação de discurso enganoso

O jornal DCM, publicou, ainda, em 6 de julho, uma notícia sobre o caso com o título: “Traficante evangélico força fechamento de igrejas católicas no RJ, diz irmandade”. O texto afirma que a denúncia partiu da irmandade das paróquias afetadas, e que a Arquidiocese do Rio informou que as igrejas se mantiveram abertas, apesar das restrições impostas. A matéria registrou também que a facção criminosa comandada por Peixão “opera sob fundamentos evangélicos”.    

Já o portal Metrópoles, apresentou Peixão como chefão do tráfico e evangélico, em texto publicado em 7 de julho. O site de notícias também publicou a nota enviada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro sobre o caso, e destacou que o órgão ressaltou que a “informação surgiu de boatos em redes sociais”. 

Imagem: reprodução Metrópoles

Com o destaque “Traficantes Evangélicos”, a Revista Fórum usou o título “‘Narcopentecostalismo’: Católicos são ameaçados no Complexo de Israel” para propagar o caso, afirmou que “bandidos são adeptos de uma seita pentecostal”, e se referiu a “Peixão” como “narco-pastor”. O texto publicado, em 8 de julho, também traz a opinião de pesquisadores da religião e destaca, entre outros aspectos, o alerta para o uso sensacionalista e incorreto do termo “narcopentecostalismo”, escolhido pelo veículo para o título.  

Imagem: reprodução Fórum

Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão” 

De acordo com a cientista da religião Viviane Costa, autora do livro “Traficantes Evangélicos: quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus” (Ed. Thomas Nelson, 2023), o apelido do chefe do tráfico em questão, “Peixão”, refere-se ao símbolo do Cristianismo do primeiro século, um peixe. Ela explica que o que se sabe sobre Álvaro Malaquias Santa Rosa é o que se vê na mídia, com base em denúncias divulgadas pela polícia e o que circula na própria comunidade onde Santa Rosa cresceu e lidera o tráfico de drogas. Para Costa, “Peixão” é um homem inteligente e estrategista.

Em entrevista à Ponte Jornalismo, em 2023, a pesquisadora afirmou que Álvaro Malaquias “é um homem devoto, que tem uma prática constante de recorrer a Deus pedindo direcionamento para estratégias de guerra, proteção em casos de confronto, que recebe profecias de vitória e as torna pública, que faz orações para que haja segurança nos espaços e que recebe de Deus direcionamentos para avançar, para recuar e para a administração da própria comunidade”.

Imagem: g1

Viviane Costa esclareceu que, segundo informações da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Álvaro Malaquias é um pastor ordenado numa igreja pentecostal em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e à época fazia parte de uma igreja pentecostal em Parada de Lucas, uma das favelas do Complexo de Israel.

Sobre o Complexo de Israel, Costa explica que Álvaro Malaquias “se identifica como evangélico e estrutura as práticas, as dinâmicas, as estratégias, a ética, a estética, a partir dessa experiência religiosa com características de novos movimentos pentecostais”. A pesquisadora  aponta que “Peixão” acredita que Deus o direcionou para livrar a Cidade Alta do Comando Vermelho, facção rival a sua. 

O Complexo de Israel e a Tropa de Arão

O conjunto de cinco comunidades na Zona Norte do Rio de Janeiro, dominado pela facção criminosa Terceiro Comando Puro (TCP), a partir de 2020, durante a pandemia de covid-19, foi denominado Complexo de Israel pelo próprio “Peixão”. A última expansão territorial da facção havia sido em 2016, para incluir a comunidade Cidade Alta. As cinco comunidades que compõem o complexo atualmente são, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas. 

Imagem: g1

Conforme apresentado pela BBC News Brasil, em 2023, a estrela de Davi pode ser encontrada em muros ou bandeiras, nas entradas das comunidades. Na Cidade Alta, o símbolo judaico fica iluminado sobre uma caixa d’água. Outra associação a passagens bíblicas do Antigo Testamento, é a nomenclatura dada ao grupo liderado por Santa Rosa, Tropa de Arão. Arão foi o primeiro líder dos sacerdotes hebreus e irmão de Moisés. 

Imagem: g1

A reportagem da BBC News Brasil aborda, no entanto, que se baseia em estudos da pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Christina Vital para dizer que as “ligações entre o tráfico e o pentecostalismo” existem há quase três décadas. O texto ressalta que a influência de outras religiões sobre organizações criminosas já existiu em outros períodos, portanto, não é exclusividade de evangélicos. Já em relação ao tráfico de drogas com as favelas do Rio de Janeiro, é fato antigo. 

Visão de especialistas sobre os termos adotados pela imprensa

A doutora em Ciências Sociais e pioneira no estudo sobre a relação entre lideranças do tráfico de drogas e igrejas evangélicas nas periferias do Rio de Janeiro Christina Vital afirmou, em entrevista ao Bereia, que não existem dados que comprovem a existência de narcopentecostalismo ou narcorreligião no Brasil hoje. “Vemos pessoas que estão no crime e se aproximam de religiões, não só evangélicas, mas com isso não podemos dizer que há uma teologia criminal específica, que haja uma igreja de traficantes, para traficantes, propagando valores criminosos, violentos e o uso de drogas  à luz da Bíblia ou de qualquer livro sagrado”, explica.

Quanto ao uso dos termos, Vital foi enfática ao alertar para a desinformação carregada por eles. “Estes termos atendem mais a um anseio sensacionalista de uma mídia e de pesquisadores mal-intencionados ou não tão bem informados”, pontua. 

Da mesma forma, em artigo intitulado “Há de fato um ‘narcopentecostalismo’ e ‘traficantes evangélicos’?”, o doutor em sociologia Diogo Corrêa aponta que com o surgimento do Complexo de Israel, a relação entre crime e religião evangélica-pentecostal alcançou uma “nova ‘onda’ de visibilidade”, e com isso os termos têm sido usados pela imprensa para definir o fenômeno. 

No entanto, Corrêa apresenta elementos baseados em sua pesquisa etnográfica na Cidade de Deus (zona oeste do Rio), que resultou no livro “Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus”, que o fazem discordar do uso dos termos “narcopentecostalismo” e “traficantes evangélicos”.

Corrêa explica que se trata de um fenômeno de transformação mútua, no pentecostalismo e no tráfico de drogas, que não significou uma fusão entre ambos, e que tal fenômeno teria produzido uma complexa relação entre coabitação e alternância.  Segundo o autor, moradores, traficantes e crentes são capazes de diferenciar o que é um traficante e o que é um crente.

“Categorias como “traficante evangélico”, “narcopentecostalismo” ou “narcoreligião” não são somente incorretas, como caem no problema ético de sugerir que tráfico e religião ou pentecostalismo se fundiram, tornando-se uma coisa só. “[Estes termos] não descrevem de forma adequada a experiência dos próprios evangélicos – e nem dos traficantes aderentes à cultura pentecostal -, além de incorrerem no risco de sugerir, de forma equivocada, a existência de uma espécie de religião do e para o crime”, indica.  

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Bereia  classifica o uso dos termos “narcopentecostalismo”, “narcopastor” e “traficantes evangélicos”, por veículos de imprensa, como ENGANOSO.  Pesquisadores, com diferentes abordagens sobre a dinâmica das comunidades com a presença de igrejas evangélicas e tráfico de drogas, indicam que há uma coabitação entre estes dois grupos, e que ambos os universos, do pentecostalismo e do tráfico de drogas, sofreram alterações culturais em decorrência do contexto em que coexistem. 

Não há dados empíricos que comprovem a existência de uma religião fundamentada na ação criminosa ou de ações criminosas fundamentadas em ensinamentos religiosos, de maneira a conceber uma nova crença ou doutrina que consolide ambos os universos em um. 

O que é possível comprovar, é a existência de líderes do tráfico de drogas que se identificam como evangélicos, assim como de igrejas nas favelas que se adaptam para existir por conta da dinâmica do tráfico. Portanto, o uso da expressão “narcopentecostalismo”, e outros termos derivados, é incorreto, carregado de sensacionalismo e produz desinformação, pelo teor distorcido que instiga julgamentos negativos sobre um grupo religioso. Neste caso, é o segmento cristão evangélico, em frequente protagonismo na cena pública, que se torna alvo de desinformação, elaborada sob tratamento generalizado (“pentecostais”, “evangélicos”), elementos que alimentam intolerância. 

Referências da checagem:

O Dia https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/07/6877579-trafico-ordena-fechamento-de-igrejas-catolicas-no-complexo-de-israel-aponta-denuncia.html Acesso em: 11 jul 2024

g1

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/07/06/igrejas-catolicas-fecham-as-portas-no-complexo-de-israel.ghtml Acesso em: 11 jul 2024

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/08/14/policia-investiga-acao-do-bonde-de-jesus-contra-terreiros-de-religioes-de-matriz-africana-no-rj.ghtml Acesso em: 11 jul 2024

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/24/traficantes-usam-pandemia-para-criar-novo-complexo-de-favelas-no-rio-deixam-rastro-de-desaparecidos-e-tentam-impor-religiao.ghtml Acesso em: 12 jul 2024

O Globo

https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/07/06/policia-civil-investiga-se-traficante-ordenou-fechamento-de-igrejas-catolicas-em-bras-de-pina-na-zona-norte.ghtml Acesso em: 11 jul 2024

https://oglobo.globo.com/rio/policiais-civis-sao-presos-acusados-de-extorsao-7063003 Acesso em: 15 jul 2024

RBA

https://www.33rba.abant.org.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=1597#:~:text=De%20acordo%20com%20a%20narrativa,em%20parceria%20com%20grupos%20milicianos Acesso em: 12 jul 2024

Instagram

https://www.instagram.com/conceicaodelucas/ Acesso em: 13 jul 2024

https://www.instagram.com/p/C50nPcUuTDL/?img_index=1 Acesso em: 13 jul 2024

EXTRA https://extra.globo.com/casos-de-policia/policia-civil-publica-mudancas-no-comando-de-delegacias-em-todo-rio-23345258.html Acesso em: 14 jul 2024

O São Gonçalo https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/139820/mais-uma-danca-das-cadeiras-na-policia-civil Acesso em: 14 jul 2024

UOL https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/07/10/quem-e-peixao.htm#:~:text=%C3%81lvaro%20Malaquias%20Santa%20Rosa%2C%20conhecido%20como%20Peix%C3%A3o%20ou%20Alvinho%2C%20%C3%A9,Vig%C3%A1rio%20Geral%20e%20Cidade%20Alta Acesso em: 14 jul 2024

Ponte Jornalismo https://ponte.org/religiao-nunca-esteve-ausente-do-mundo-do-crime-diz-autora-de-traficantes-evangelicos/ Acesso em 14 jul 2024

BBC News Brasil https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66097127 Acesso em: 14 jul 2024

Congresso em Foco https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/ha-de-fato-um-narcopentecostalismo-e-traficantes-evangelicos/amp/ Acesso em: 14 jul 2024

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Foto de capa: Divulgação

Conteúdo busca enganar católicos sobre evento na Catedral de Brasília para criticar governo federal

Bereia recebeu de leitor um vídeo com alto nível de circulação em grupos católicos no WhatsApp, que alardeia que o altar da Catedral Católica de Brasília “virou terreiro de Umbanda”, em evento promovido “pela ‘1ª´(sic) dama Janja”. O texto afirma ser uma grave profanação de um templo católico e atribui o caso à “situação geral do país” que “piora a cada dia”. A publicação ainda pede que quem recebe o conteúdo envie “para amigos católicos que fizeram o L ou foram isentões”.

Tela de celular com publicação numa rede social
Descrição gerada automaticamente com confiança média

O radar do Bereia identificou nesse conteúdo elementos comuns a falsidades que circulam pelas mídias sociais: 1) não tem identificação do autor ou autora da postagem nem data; 2) não tem fonte (de onde veio o vídeo); 3) é um recorte de 23 segundos de um vídeo sem  o contexto do ocorrido; 4) há o pedido de compartilhamento para mais pessoas (estratégia para que a desinformação viralize de forma espontânea e orgânica).

Bereia verificou que o mesmo recorte de vídeo foi divulgado na conta do X/Twitter do ex-presidente da Fundação Palmares (nomeado durante o governo de Jair Bolsonaro) Sérgio Camargo, e teve centenas de milhares de visualizações, com milhares de curtidas e compartilhamentos. Na publicação Camargo atribui a cerimônia na Catedral a o “governo petista” e cobra que católicos exijam “posicionamento da CNBB, caso a entidade seja contrária ao que se viu”.

Imagem: X/Twitter

Outros perfis de mídias sociais divulgaram protestos com o uso do mesmo recorte de vídeo, alguns com centenas de milhares de visualizações.


Interface gráfica do usuário, Site
Descrição gerada automaticamente

Imagem: x/Twitter

Imagem: Youtube

A noite na Catedral 

Bereia checou que o evento, acolhido na Catedral Católica de Brasília, foi realizado em 9 de novembro de 2023, como parte da programação do III Congresso Internacional de Direito do Seguro e IX Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS). O congresso foi sediado no Superior Tribunal de Justiça, sob a coordenação do ministro Paulo Dias Moura Ribeiro.

A noite cultural do evento do IBDS/STJ, na Catedral Católica de Brasília, foi a apresentação da Orquestra Mundana Refugi. O grupo é formado por 22 músicos brasileiros e imigrantes refugiados vindos do Irã, Guiné, Congo, Turquia, Cuba, China, Síria, Venezuela, França e Palestina. A orquestra apresenta repertório com composições próprias, músicas tradicionais e homenagens a compositores brasileiros, lançando mão de instrumentos entre os tradicionais piano, saxofone, flauta e bateria até os mais diferentes como bouzouki, kanun árabe, alaúde e rebab. 

Tela de celular com publicação numa rede social
Descrição gerada automaticamente com confiança média

Imagem: cartaz eletrônico de divulgação da apresentação da Orquestra Mundana Refugi na Catedral de Brasília.

O evento, com entrada franca, lotou a Catedral e foi noticiado pela revista eletrônica Metrópoles, pelo Correio Brasiliense, pelo Jornal de Brasília, pelo Portal Terra e pela Agência Brasil. Segundo a matéria do Metrópoles “os brasilienses ficaram encantados com o talento do grupo e conheceram um pouco dos ritmos e estilos de diferentes países. Duas obras do fotógrafo Sebastião Salgado foram expostas ao lado do palco e chamaram atenção por representar a luta pela proteção dos povos originários”.

O programa teve participação do cantor Renato Braz e do acordeonista Toninho Ferragutti, indicado três vezes ao Grammy Latino. Entre os presentes estiveram autoridades como o ministro do STJ Moura Ribeiro e o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar Paulo Teixeira. 

Com dois integrantes da orquestra originários da Palestina, o show em Brasília foi oportunidade de expressão de um pedido pela paz no Oriente Médio, para que cessem os ataques e que sejam devolvidos os reféns judeus, o que constou dos discursos proferidos. 

Bereia verificou, portanto, que a programação na Catedral não tem qualquer relação com o governo federal ou com a esposa do presidente da República Rosângela da Silva (Janja).

Altar profanado?

Na programação, de fato, ocorreu um momento, ao final, com uma dança relacionada à cultura africana. Porém, tanto a Arquidiocese quanto o maestro da Orquestra Mundana Refugi Carlos Antunes, explicaram, respectivamente, em nota oficial e carta, que ela ocorreu de forma imprevista, fora da programação, espontaneamente, da parte de duas pessoas africanas que estavam na audiência, como forma de agradecimento. 

A Arquidiocese também corrigiu as postagens críticas à Igreja e nega que haja “elementos concretos que caracterizem, moralmente e canonicamente, profanação do templo”.

Diz a nota da Arquidiocese de Brasília:

1- Nosso objetivo, ao aceitar o evento na Catedral, foi sensibilizar a comunidade de Brasília a respeito dos refugiados e migrantes, uma vez que a orquestra Mundana Refugi é um grupo musical composto por músicos brasileiros e por imigrantes e refugiados. Seu nome faz referência ao fato de acolher instrumentistas e vocalistas de todas as partes do mundo (“mundana”), refugiados no Brasil (“refugi”);

2- O acordo do evento em questão, previa somente a apresentação de coro e orquestra, algo comumente presente em nossas igrejas, com temas tradicionais de diversos países. No entanto, mesmo no fato ocorrido inesperadamente, não há elementos concretos que caracterizem, moralmente e canonicamente, profanação do templo;

3- Ao final da apresentação, ocorreu uma manifestação espontânea por parte de uma pessoa presente na plateia, surpreendendo não só a nós, mas, também, aos organizadores e ao maestro responsáveis pelo evento, gerando o episódio divulgado (cf. nota em anexo);

4- Reafirmamos que, em todo momento, a Catedral de Brasília conduziu com a devida prudência o que foi previamente acordado.

A carta do maestro Carlos Antunes, entre outros pontos, detalha o ocorrido:

Não havíamos programado realizar qualquer ato de dança como parte da apresentação musical, pois todos sabíamos que essa regra fora estabelecida como condição fundamental pela Catedral. Assim, com relação à dança espontânea que ocorreu ao final da última música, por parte de dois expectadores (sic) africanos, somente podemos imaginar, e isso foi dito por ambos ao se despedirem, que o fizeram em agradecimento ao espetáculo pois para eles ouvir música de seu país naquele templo espetacular foi muito emocionante, alegre e inesquecível. 

Suas manifestações foram feitas sem o nosso conhecimento. Isso faz parte da sua cultura e não demonstra, de forma alguma, desrespeito para com a religião católica. Tenho inúmeros amigos dançarinos africanos da religião católica e eles mencionaram-me suas boas emoções com o ocorrido. Acho importante reiterar que não havíamos combinado a dança, embora ela ocorra ocasionalmente nas nossas apresentações, como outras intervenções espontâneas do público.

(…)

Quando fomos surpreendidos pela dança dos expectadores (sic), ao final da música, fiz um sinal para a Mariama, nossa integrante, cantora africana, para que fosse lá, educadamente, e ocupasse o lugar deles, para que não continuassem ocupando o espaço e voltasse para cantar.

Ela de forma respeitosa fez exatamente isso. Chegou, fez alguns movimentos e ele se retirou. Ela em seguida voltou para cantar e terminamos a canção. Foi exatamente isso que ocorreu. O primeiro senhor que entrou para dançar, de forma muito cordial, me abordou e disse, ao final, que estava muito feliz por estarmos ali naquele momento”.

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Bereia classifica a publicação que circula em grupos católicos de WhatsApp e em mídias sociais sobre o evento cultural, ocorrido na Catedral de Brasília, em 9 de novembro como ENGANOSO. Anonimamente, como, propagadores de desinformação agem frequentemente, e sem dados que permitam às pessoas verificarem o ocorrido de forma honesta, foi utilizado um vídeo do final da apresentação da Orquestra Mundana Refugi, para criticar a Arquidiocese de Brasília, a esposa do presidente da República Rosângela da Silva (Janja) e o governo federal. 

Como checado pelo Bereia: 

1) a apresentação musical não tem qualquer relação com o governo federal ou com a esposa do presidente da República. Foi parte da programação de um evento realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), sediado no Supremo Tribunal de Justiça; 

2) o recorte do vídeo, divulgado sem explicação do que trata, refere-se ao final da apresentação musical da Orquestra Mundana Refugi, momento em que pessoas da plateia, de origem africana, espontaneamente se digiram à frente para dançar em agradecimento ao que presenciaram; 

3) a palavra oficial da Igreja Católica em Brasília é que, ancorada na moral e nos Cânones da Igreja, não houve profanação do templo com a manifestação espontânea das duas pessoas africanas.

Bereia alerta para o uso da fé cristã e do cuidado que fiéis têm com suas igrejas para se fazer política e atacar instituições religiosas, outras instituições e governos. Alerta também para a intolerância religiosa estimulada com a propagação do vídeo, sem a devida explicação do que foi uma dança da cultura africana, porém com as observações maldosas, por escrito e em vídeos, de que o altar da Catedral foi “transformado em terreiro de Umbanda” e “profanado”. Há outro aspecto em curso com a publicação, que é o racismo, uma vez que a dança foi realizada por pessoas negras, africanas, e as acusações que foram proferidas têm relação com este perfil.

Referências

Supremo Tribunal de Justiça https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Institucional/Educacao-e-cultura/Eventos/III-Congresso-Internacional-de-Direito-do-Seguro.aspx Acesso em 20 nov 2023

Youtube https://www.youtube.com/watch?v=IwZDDe1hlFA&pp=ygURZGlyZWl0byBkbyBzZWd1cm8%3D Acesso em 20 nov 2023 

IBDS https://www.ibds.com.br/18719-2/ Acesso em 20 nov 2023

Instagram https://www.instagram.com/omrefugi/ Acesso em 20 novv 2023

Metrópoles https://www.metropoles.com/colunas/claudia-meireles/orquestra-mundana-refugi-se-apresenta-em-show-emocionante-na-catedral Acesso em 20 nov 2023

Correio Brasiliense  https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2023/11/6653001-catedral-recebe-orquestra-mundana-refugi-nesta-quinta-9-11.html Acesso 20 nov 2023

Jornal de Brasília https://jornaldebrasilia.com.br/entretenimento/eventos/orquestra-mundana-refugi-se-apresenta-na-catedral/ Acesso em 20 nov 2023

Portal Terra https://www.terra.com.br/esportes/orquestra-que-reune-brasileiros-e-refugiados-se-apresenta-em-brasilia,0ffcbbaf88502674cbab95f8f6195cbdll9vnvw7.html Acesso em 20 nov 2023

Agência Brasil https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-11/orquestra-que-reune-brasileiros-e-refugiados-se-apresenta-em-brasilia Acesso em 20 nov 2023 

Arquidiocese de Brasília https://arqbrasilia.com.br/nota-de-esclarecimento-2/ Acesso em 20 nov 2023Carta do Maestro Carlos Antunes https://arqbrasilia.com.br/wp-content/uploads/2023/11/Nota-de-Esclarecimento-Apresentac%CC%A7a%CC%83o-Mundana-Refugi.pdf  Acesso em 20 nov 2023

Foto de Capa: reprodução do Youtube

Católicos ofereceram missa por Israel em Nova York

Um vídeo que registra uma procissão pelas ruas da cidade de Nova York (EUA) foi compartilhado pela deputada federal católica Bia Kicis (PL-DF) em seu perfil no Instagram. Na legenda, ela fez a seguinte afirmação: “5.000 católicos acabaram de oferecer missa por Israel e depois lideraram uma enorme procissão eucarística que se estendeu por blocos no coração da cidade de Nova York. Deixando os espectadores em prantos no meio da Times Square. Deus está agindo”.

A deputada federal Bia Kicis é conhecida pela defesa das pautas da extrema-direita no Congresso Nacional e é muito ativa nas redes sociais digitais. Seu perfil no Instagram tem 1,7 milhões de seguidores.

Bereia checou o vídeo da procissão e as informações publicadas pela deputada.

Missa e procissão em Nova York

No último 10 de outubro, o Instituto Napa, uma organização que prepara líderes católicos para promover e defender a fé católica na sociedade, sediada nos Estados Unidos, promoveu a “Conferência de Empreendedorismo de Princípios”, que reuniu padres, freiras e leigos na cidade de Nova York.

O evento foi aberto com uma missa e uma procissão eucarísticas, que reuniram cerca de cinco mil católicos. A missa foi celebrada pelo diretor dos Ministérios de Jovens e Jovens Adultos do Instituto Napa, padre Mike Schmitz, lotado na Diocese de Duluth, (Minnesota), um orador renomado.

Mídias católicas nos EUA reportaram a conferência, e relataram que o padre Schmitz declarou oferecer a missa “pela paz em Israel após o ataque do Hamas, que custou a vida a pelo menos 1.200 pessoas”. “Ore por Israel agora mesmo”, disse ele durante o evento. “Esta missa está sendo oferecida pela paz em Israel”.

A partir da verificação dos fatos em torno do vídeo compartilhado pela deputada federal Bia Kicis, Bereia avalia que a publicação da parlamentar é verdadeira.

 Conteúdos publicados e compartilhados por líderes e políticos evangélicos em defesa do Estado de Israel têm circulando por diversos grupos de mensagens desde o início do conflito bélico após ataque do braço armado do partido palestino Hamas ao território  israelense, com vítimas fatais, em 7 de outubro passado.  Os registros da missa e da procissão realizadas durante evento do Instituto (Católico) Napa, nos EUA, em 10 de outubro passado, tornaram-se fontes de suporte.

Referências de checagem:

Napa Institute. https://napa-institute.org/eucharistic-revival-resources/ Acesso em 16 OUT 23

X. https://twitter.com/NapaInstitute/status/1712458477518356874 Acesso em 16 OUT 23

Plataforma de notícias digitais da Arquidiocese de Nova York. https://thegoodnewsroom.org/four-thousand-take-part-in-nyc-eucharistic-procession/ Acesso em 16 OUT 23

Mashable. https://mashable.com/article/instagram-shadowbanning-censor-israel-palestine?utm_source=email&utm_campaign=breakingnews&cmp=1&utm_medium=newsletter Acesso em 16 OUT 23

Boatos.org. https://www.boatos.org/religiao/procissao-catolicos-times-square-nova-york-apoio-israel-guerra.html Acesso em 16 OUT 23

UOL. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2023/10/10/manifestacao-em-nova-york-reune-milhares-de-pessoas-em-apoio-a-israel.htm Acesso em 16 OUT 23

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-10/milhares-de-pessoas-se-manifestam-pela-causa-palestina-em-nova-york Acesso em 16 OUT 23

Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2023/10/13/em-nova-york-times-square-e-tomada-por-milhares-de-manifestantes-pro-palestina Acesso em 16 OUT 23

Comunidade Católica Shalom. https://comshalom.org/procissao-eucaristica-passara-pelas-ruas-de-nova-york-no-proximo-mes/ Acesso em 16 OUT 23

Church Pop.

https://www.churchpop.com/father-mike-schmitz-offers-mass-for-israel-in-nyc-before-eucharistic-procession/ Acesso em 17 OUT 2023

https://pt.churchpop.com/jesus-eucaristico-atrai-milhares-de-fieis-na-times-square-nova-iorque/ Acesso em 17 OUT 2023

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/articles/clkjxpvjxjgo.amp Acesso em 17 OUT 2023

Deputados federais católicos publicam conteúdo enganoso para acusar o presidente Lula de mentir sobre a Amazônia em discurso na ONU

Os deputados federais católicos Marcos Pollon (PL/MS) e Bia Kicis (PL/DF) usaram seus espaços em mídias sociais, mais uma vez, para disseminar desinformação. Bia Kicis “repostou” o vídeo editado por Marcos Pollon e publicado no canal do deputado no Telegram, com um pequeno trecho do discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na 78ª Assembleia Geral da ONU, em 19 de setembro passado.

Imagem: Reprodução do Instagram 

No trecho do vídeo, o presidente brasileiro afirma que houve uma diminuição de 48% no desmatamento da Amazônia nos últimos oito meses, comparado com o mesmo período do ano passado. A publicação questiona os dados usados pelo líder brasileiro, com o uso de matérias do site de notícias G1 e UOL, além de imagens gravadas, supostamente, na BR-319, rodovia federal que liga Manaus, capital do Amazonas, à Porto Velho, capital de Rondônia, e atravessa a floresta amazônica. 

Bereia verificou que as matérias utilizadas no vídeo foram publicadas nos veículos referidos, no entanto, não retratam o período de oito meses citado pelo presidente brasileiro no discurso. Além disso, tanto as matérias quanto as imagens são relacionadas a queimadas na Amazônia, porém, os trechos selecionados  não explicam que há uma diferença entre o sistema de medição das queimadas e do desmatamento. 

A matéria do G1 fala sobre as queimadas nos primeiros 10 dias de setembro, mas exalta os bons números relacionados ao desmatamento em agosto: “dado divulgado pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), demonstra que houve uma redução de 77,02%% no número de alertas de desmatamento no estado, (…) em relação ao mesmo período de 2022”, cita a matéria. Já a reportagem do Uol, refere-se apenas às queimadas do mês de junho de 2023, que foram as piores em 16 anos. 

Imagem: matéria do G1, citada no trecho de vídeo checado

Imagem: matéria do UOL citada no trecho checado

De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), as queimadas têm diferentes causas na Amazônia:fogo de manejo agropecuário – empregado por produtores rurais para limpar o terreno de pragas e renovar o solo, principalmente em áreas de pastagem; fogo de desmatamento recente – esse intrinsecamente ligado à derrubada da floresta, pois é a forma mais barata de eliminar a vegetação recém retirada, além das cinzas ajudar a nutrir o solo para o plantio de pasto; e os Incêndios florestais – onde o fogo pega a floresta viva, espalhando-se rapidamente pelas folhas secas depositadas no solo. 

Já o desmatamento é a remoção de florestas do solo, ou conversão de floresta, ou seja, mudança do ambiente florestal para outro uso da terra, como pastagens e agricultura. Portanto, nem todo foco de incêndio na Amazônia está ligado ao desmatamento. Ressalta-se que há áreas onde agricultores têm autorização para utilizar as queimadas como técnica de plantio. 

Imagem: página do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPMAM)

Bereia apurou e constatou a veracidade da informação citada pelo presidente brasileiro no discurso na ONU, em duas fontes distintas. A primeira é oficial do próprio governo. Em 5 de setembro de 2023, o Ministério do Meio Ambiente, com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), atestou a redução de 48% do desmatamento da Amazônia, entre janeiro e agosto deste ano, em comparação com o mesmo período de 2022. 

Já a segunda fonte é do terceiro setor. O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), uma instituição científica brasileira e amazônida, sem fins lucrativos, que realiza pesquisas e projetos para promover o desenvolvimento socioambiental e a justiça climática da região. De acordo com a organização, o primeiro semestre de 2023 fechou com uma redução de 60% no desmatamento da Amazônia, a menor área desmatada em seis anos, desde 2018. Os dados são do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do próprio instituto, que monitora a Amazônia Legal por imagens de satélite.

Imagem: Reprodução do site Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima

Imagem: reprodução do site do Imazon

Na checagem do Bereia, em apenas dois dias de publicação, o vídeo enganoso do deputado Marcos Pollon, republicado por Bia Kicis, com o conteúdo manipulado sobre a Amazônia, havia sido assistido por quase 500 mil pessoas e teve quase dez mil comentários, com grande aumento de potencial de disseminação de desinformação. 

Além das fontes originais, não é preciso fazer pesquisas profundas na rede digital para constatar que o número divulgado no discurso na ONU é verdadeiro. Boa parte das agências de checagens publicaram matérias que constataram a veracidade da informação divulgada pelo presidente da República, como a Agência Lupa e o Fato ou Fake, do G1. 

Bereia insta leitores e leitoras a não se integrarem ao grupo de milhares de pessoas, mais uma vez, enganadas, com desinformação de deputados de oposição ao governo federal. Bereia também alerta para o uso de material noticioso manipulado com a intenção de desinformar e confundir para promover campanha política contrária a governos ou a qualquer instituição do Estado. O papel da oposição é importante em uma democracia, com pressões e críticas, mas estas devem ser fundamentadas em informações precisas e dignas.

Referências de checagem: 

G1 – https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2023/09/11/am-registra-39-mil-queimadas-nos-primeiros-dez-dias-de-setembro-aponta-inpe.ghtml – Acesso em 21 de setembro de 2023

UOL – https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/07/04/amazonia-tem-junho-com-mais-queimadas-em-16-anos.htm – Acesso em 21 de setembro de 2023

IPAM – https://ipam.org.br/cartilhas-ipam/tudo-o-que-voce-queria-saber-sobre-fogo-na-amazonia-mas-nao-sabia-para-quem-perguntar/ – Acesso em 21 de setembro de 2023

Ministério do Meio Ambiente  – https://www.gov.br/mma/pt-br/area-sob-alertas-de-desmatamento-na-amazonia-cai-48-nos-primeiros-oito-meses-de-2023 – Acesso em 21 de setembro de 2023

IMAZON – https://imazon.org.br/imprensa/desmatamento-da-amazonia-tem-queda-de-60-no-primeiro-semestre/ – Acesso em 21 de setembro de 2023

Lupa – https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2023/09/19/lula-na-onu-acompanhe-a-checagem-do-discurso-do-presidente-em-nova-york – Acesso em 21 de setembro de 2023

Fato ou Fake – https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2023/09/19/veja-a-checagem-do-discurso-de-lula-na-onu.ghtml – Acesso em 21 de setembro de 2023

Falsa narrativa da ameaça comunista continua circulando nas mídias sociais

Lideranças religiosas e políticos conservadores continuam engrossando o coro nas mídias sociais de uma presente ‘ameaça comunista’ no atual governo. A narrativa segue forte, principalmente em ambientes religiosos. É o que mostra uma pesquisa realizada em março pelo instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) segundo a qual 39% dos católicos e 57% dos evangélicos entrevistados enxergam esta possibilidade para o país em decorrência do atual governo.

Diversas checagens realizadas por Bereia, desde de 2019, dão conta de que há vasto conteúdo desinformativo a respeito do comunismo no Brasil, com extensa disseminação de conteúdos enganosos, principalmente a partir do período eleitoral de 2018. No entanto, não é a primeira vez que a direita brasileira utiliza esta estratégia para alcançar mais adeptos.

Imagem: reprodução Twitter

Pesquisa Ipec

De acordo com a pesquisa realizada pelo Ipec neste março de 2023, sobre a avaliação do atual governo, 44% dos brasileiros acreditam que há alguma possibilidade do Brasil se tornar um país comunista. Destes, 39% dos católicos e 57% dos evangélicos entrevistados para este estudo enxergam o risco de uma “ameaça comunista” ao Brasil por conta do atual governo.

O levantamento trouxe ainda que 45% dos católicos avaliaram o atual governo como ótimo ou bom, 40% estão entre as pessoas sem ou de outra religião, enquanto que entre os evangélicos esse número foi de 31%. Já 33% dos evangélicos consideram a gestão ruim ou péssima, seguido de 21% dos católicos e 21% de outras religiões. Dentro deste âmbito, a avaliação do governo inclui também a nota regular e os índices de pessoas que não responderam ou não souberam responder. Outras perguntas do estudo sobre a gestão do atual presidente contemplam ainda aspectos como, confiança, apoio, posição do país no cenário mundial, defesa dos mais pobres e polarização política.

Imagem: reprodução Ipec

Ameaça comunista – um enredo antigo 

Em artigo intitulado As Formas Discursivas e a Ameaça Comunista, a doutora em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Bethania Mariani, ajuda  a entender que se trata, na verdade, de um fenômeno que remonta à década de 1920, ou seja, pouco tempo depois de iniciada a Revolução Russa, que instituiu o socialismo no que viria a ser a União Soviética.

Desde então, a narrativa da ameaça comunista volta à cena política de tempos em tempos, com mais ou menos força. Na década de 1960, por exemplo, a suposta ameaça foi utilizada pelos militares brasileiros para justificar a derrubada de um governo constitucional. O golpe militar de 1964 mergulhou o Brasil em um período de 21 anos sob regime de exceção e, hoje, há relativo consenso histórico, baseado em relatos e documentação oficial, de que nunca houve uma real ameaça comunista naquele contexto, conforme explicitado em matéria do UOL.

Imagem: reprodução Metrópoles

Conforme Bereia já publicou, o tema da ameaça comunista vem sendo amplamente explorado em contextos de desinformação, permeando todos os cinco temas mais presentes em checagens feitas entre 2021 e 2022: perseguição a cristãos, covid-19, “ideologia de gênero”/moralidade sexual, supostos feitos do presidente Jair Bolsonaro e tópicos específicos referentes às eleições.

Antes mesmo do período eleitoral, foram várias as checagens realizadas por Bereia envolvendo suposta ameaça comunista, desde a afirmação do então ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, de que havia um plano comunista sendo instalado no Brasil, até mensagens anônimas que circulavam em ambientes religiosos espalhando pânico moral associado às ideologias “de esquerda”. Os exemplos são muitos e, em todas as ocasiões, o ambiente religioso foi contaminado com a narrativa da ameaça comunista, que, como prova a História, nunca se concretizou.

Desinformação e conspiração

Em artigo de opinião recentemente publicado na revista Carta Capital, o pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais e PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas Camilo Aggio estabelece uma conexão entre o fenômeno da desinformação e o das teorias conspiratórias. “Não há desinformação sem conspiração”, afirma.

Aggio destaca que “temos um espectro vastíssimo de ofertas conspiracionistas à disposição de quem precisa negar a ciência e o conhecimento especializado para manter suas convicções. Não poderia, portanto, ser diferente quando estamos a falar de uma ampla indústria de produção de desinformação no mercado digital de crenças”.

A constatação do pesquisador parte do monitoramento realizado pela União Pró-Vacina, em 2020, que constatou a presença de teorias da conspiração na maior parte das informações falsas sobre vacinas. A interpretação, porém, estende-se ao fenômeno da desinformação amplamente compreendido, o que se relaciona com os conteúdos falsos e enganosos que circulam nos ambientes religiosos, sejam sobre vacina, gênero ou supostas ameaças comunistas.

Falsa ameaça comunista segue presente nas redes sociais digitais

Conforme a pesquisa realizada pelo Ipec revelou, a narrativa da ameaça comunista continua tendo resultados concretos, principalmente no segmento religioso. O termo comunista é muitas vezes usado por estes grupos para designar comportamentos considerados por eles como imorais. Também por isto, essa narrativa é fortalecida mesmo na ausência de fontes ou indícios confiáveis de que um regime comunista poderia vigorar no Brasil e muitos brasileiros seguem acreditando nessa possibilidade.

Imagens: reprodução do Twitter

Nas mídias sociais é possível enxergar o que a pesquisa levantou com dados, em que diversos perfis políticos,  católicos e evangélicos disseminam a narrativa da ameaça comunista, criando um ambiente em que vigora o pânico justificado apenas no próprio discurso propagado. O uso do termo “ameaça”, por si só, carrega um significado específico, que perpetua a noção de um perigo iminente.

A suposta relação da fé com o anticomunismo faz com que o tema esteja sempre presente nos ambientes religiosos, o que ajuda a compreender os resultados da pesquisa Ipec e acende um alerta para que todos estejam sempre vigilantes quanto aos fundamentos dos conteúdos compartilhados.

Referências de checagem:

UOL. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/10/01/brasil-esteve-a-beira-do-comunismo-nos-anos-1960-historia-nao-mostra-isso.htm?utm_source=twitter&utm_medium=social-media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral Acesso em: 23 mar 2023

O Globo. https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2023/03/pesquisa-ipec-brasil-vive-risco-de-comunismo-com-lula-quase-metade-da-populacao-ve-ameaca-comunista.ghtml Acesso em: 22 mar 2023

Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/nao-ha-desinformacao-sem-conspiracao/ Acesso em: 22 mar 2023

Bereia.

https://coletivobereia.com.br/comunismo-e-ameaca-comunista-vs-patriotismo-e-argumento-que-embasa-temas-com-mais-desinformacao-em-espacos-religiosos-nas-eleicoes/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/mentir-e-pecado-os-cristaos-e-a-propagacao-de-fake-news/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/nao-ha-missionarios-comunistas-na-amazonia-nem-defesa-do-fim-da-conversao-religiosa-para-indigenas-por-catolicos/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/o-partido-comunista-chines-nao-avanca-no-brasil-mercado-chines-sim/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/e-enganosa-a-ideia-de-que-ha-um-plano-comunista-sendo-instalado-no-brasil/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/o-fantasma-do-marxismo-cultural/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/mensagem-anonima-panicomoral/ Acesso em: 22 mar 2023

https://coletivobereia.com.br/os-bichos-papoes-que-assombraram-os-eleitores-religiosos-em-2020/ Acesso em: 22 mar 2023

Pesquisa Ipec (arquivo). https://drive.google.com/file/d/1kE5DrJ9WVrQuSCLouvwnAEDt0G6t7gcj/view?usp=share_link Acesso em: 22 mar 2023

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Foto de capa: Jorge Gobbio/Flickr

Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões é lançado

O lançamento do Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões aconteceu durante live realizada pelo Grupo de Pesquisa Comunicação e Religiões da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Estiveram presentes os organizadores do dicionário, professora Magali do Nascimento Cunha (coordenadora do GT e editora-geral do Bereia) e o professor Allan Novaes, que apresentaram a obra, seus objetivos e contaram um pouco sobre o processo de preparação do novo dicionário que teve início em agosto de 2018. Participou da live toda a equipe de pesquisadores e professores que fizeram parte da organização da obra que também será apresentada durante o Congresso Nacional da Intercom, a ser realizado nos dias 5 a 19 de setembro deste ano.

O Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões é composto por mais de 60 verbetes analíticos introdutórios sobre diversos elementos das religiões no Brasil, panoramas comunicacionais do país e suas interfaces. Em sua fala durante a live, o mediador afirmou que o novo dicionário “é o coroamento de toda uma trajetória, de um trabalho árduo de várias mãos que trabalharam juntas na produção deste dicionário. Como é importante a gente poder oferecer para a comunidade científica e para a sociedade em geral, um produto de tanta qualidade. Um material que torna-se referência para todos em diversos níveis”.

“Temos um trabalho primoroso de produção de um dicionário que traz não só uma produção escrita, mas também uma curadoria científica dos termos de tudo que foi elaborado”, concluiu o vice-coordenador do GT, prof. Ricardo Alvarenga, informando também que houve uma revisão de consultores do material produzido, o que também garante que o dicionário oferece um conteúdo bastante importante e significativo, e “esta visibilidade é de fato uma oportunidade de fazer chegar a tantos outros que estão pesquisando este tema em nosso país”, disse o professor.

Construção coletiva

Magali Cunha saudou os espectadores da live lembrando que muitos presentes no evento colaboraram com a preparação do dicionário, que “ foi construído coletivamente junto com pessoas de todas as regiões do país”. A professora afirmou ainda que o novo dicionário “é um retrato do que é hoje a pesquisa em comunicação. Não trouxemos apenas uma coleção de verbetes juntando palavras que achamos importantes, mas as palavras nasceram de um processo de muita reflexão  e só apareceram depois de dois anos de diálogo”.

O Grupo de Trabalho realizou três seminários temáticos para discutir os eixos focais de comunicação e religiões no Brasil. Magali Cunha disse que depois destes seminários o GT foi “afunilando as questões, trazendo para eixos e daí decidimos quais seriam os temas que apareceriam em cada eixo, a partir de muita reflexão”.

Outra decisão importante, de acordo com a coordenadora do GT, foi a de não trabalhar com estudos de mídias, como era a proposta original de um dicionário de mídias e religião. “Muito mais do que mídias, nós tempos processos de comunicação. Então tivemos este ato corajoso de ampliar e tratar a temática da comunicação”, disse Magali.  E o GT tomou outras decisões consideradas importantes também. Decidiu trabalhar com religião no plural, religiões, pela própria diversidade/pluralidade que está incutido neste conceito. “Por isso colocamos religião no plural, religiões, não só religiões, mas religiosidades, espiritualidades, experiências múltiplas em torno do que a gente chama de religião e discussões riquíssimas que apareceram”, informou.

O Grupo também buscou olhar o que se pesquisa desta interface de Comunicação e religiões no Brasil, e segundo Magali, o também autor do dicionário, prof. Jorge Miklos aceitou o desafio de “nos liderar em olhar o ponto de teses e dissertações da Capes para identificarmos junto também com o que tem sido discutido na Intercom e nos grupos de trabalho da Associação dos Programas de Pós graduação em Comunicação para fazer um levantamento das temáticas”. O GT observou então, na área de Comunicação um crescimento significativo de pesquisas e uma dispersão muito grande de temas, que chamou de atomização de pesquisas e um número significativo de pesquisadores, e entenderam que teriam que se deter em alguns elementos para se concentrarem, conforme explicou a professora Magali.

Desafios

O GT Comunicação e Religiões constatou que o fenômeno das religiões na comunicação acaba meio subordinado a um dicionário que tende a ser uma publicação baseada não em temas da moda, mas numa permanência de temas. “Então este foi um desafio que esse olhar sobre as pesquisas já colocou para o nosso dicionário: não ficarmos com temas de moda, mas com temas permanentes”, disse a coordenadora.

Outro desafio para o GT foi uma prevalência de estudos do catolicismo romano seguido em temáticas referentes aos evangélicos e especificamente do pentecostalismo. “Um desafio que a gente sempre vinha colocando no grupo de ampliarmos para as religiões e não ficar focando somente em um grupo religioso. Tudo isso colocou pra gente esse desafio de trazermos um dicionário que tratasse com responsabilidade essas dimensões críticas da pesquisa de Comunicação e Religiões que os colegas trouxeram; explicitar a afinidade epistemológica destes dois termos: Comunicação e Religiões, que fosse explicitado de maneira muito responsável neste dicionário; é Comunicação ‘e’… Daí a perspectiva interdisplinar que foi trazida. Temos autores dessas múltiplas áreas: comunicação, ciências da religião, teologia, história, letras, ‘e’ – tratados de forma muito responsável e com profundidade e substância”, explicou a coordenadora do GT.

Os eixos temáticos

Depois de debruçar sobre essa temática e desafios, o GT decidiu trabalhar com quatro eixos temáticos a partir dos eixos do dicionário: Instituições, movimentos religiosos e poder; Linguagens e práticas religiosas; Processos e produtos midiáticos; e Teorias da comunicação e religiões. De acordo com a professora Magali, o GT também construiu 15 conceitos chaves, que não viraram verbetes porque entendeu que eles referenciam várias discussões dos verbetes que estão representados no dicionário.

“Nós acreditamos que é uma obra inédita no Brasil, que vai se tornar referência não só para pesquisadores, mas para profissionais da Comunicação, pessoas que trabalham nas mais diversas frentes da Comunicação e que podem ter este material, esta obra como uma referência para orientar e iluminar as suas reflexões, seus estudos”, concluiu a coordenadora do GT responsável pela elaboração do Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões.

“Quando as pessoas recebem desinformação, o direito à informação é negado”. Entrevista com Magali Cunha

Publicado originalmente na Agência Signis de Notícias

Chega a parecer incoerente que cristãos sejam propagadores de notícias falsas, visto que o próprio Jesus aponta a “verdade” como um dos caminhos para segui-lo. Na teoria esse argumento bastaria. No entanto, vemos crescer o número de pessoas de religiões cristãs que não apenas recebem informações sem fundamento, como também se tornam promotoras desses conteúdos.

Incomodado com essa realidade, um grupo de jornalistas e pesquisadores, “com a cara e a coragem”, entendeu que era hora de agir. E, em 2019, surge o Coletivo Bereia e seu trabalho de fact cheking, especializado em conteúdos de caráter religioso.  

Quem está à frente dessa iniciativa é Magali Cunha, com sua larga experiência no jornalismo e pesquisa em comunicação. Além de editora-geral do Bereia, é doutora em Ciências da Comunicação, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM), membro da Associação Internacional em Mídia, Religião e Cultura e da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC).

Nesta entrevista, Magali conta um pouco da sua caminhada na profissão, a proposta e desafios do Coletivo, num momento em que a própria religião é instrumentalizada de forma estratégica para alcançar objetivos políticos e econômicos.      

Como foi sua trajetória no jornalismo e sua experiência com checagem de notícias?

Minha trajetória é longa, eu me formei nos anos 1980, pela Universidade Federal Fluminense. O sonho do meu pai era que eu fizesse Direito porque, segundo ele, eu tinha que lutar pela verdade. Era o período da Ditadura Militar e meu pai era um sindicalista muito preocupado com a justiça, com a verdade. Eu disse a ele: “pai, eu vou lutar pela verdade e pela justiça mas por outros caminhos. Eu gosto muito de escrever e eu me vejo como jornalista”. Eu fui atrás dessa minha vocação, fiz o curso de jornalismo e depois fui convidada para trabalhar numa organização ecumênica de nome “Koinonia”, que naquela época se chamava Centro Ecumênico de Documentação e Formação. Eu tinha a tarefa de coordenar um pequeno jornal que se chamava “Aconteceu”, que reunia notícias relacionadas ao mundo religioso no Brasil, principalmente de católicos e evangélicos naquele momento. E a nossa tarefa era muito interessante: reescrever notícias que saíam nos jornais e que a gente identificava lacunas ou equívocos da cobertura sobre religião. Então, a gente reescrevia. Isso pra mim já foi uma escola saindo da universidade… Depois, eu fui fazer o mestrado e entrei no mundo acadêmico, me tornei professora, mas nunca deixei o jornalismo, sempre escrevendo, sempre atuando nesse campo.  

Como surgiu a ideia do Coletivo Bereia e qual a proposta? Essa iniciativa nasceu de uma pesquisa na universidade. Quem criou o Coletivo Bereia foram jornalistas e pesquisadores que, na época, trabalhávamos em pesquisa na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) sobre disseminação de fake news entre grupos religiosos. Aconteceu que vendo o resultado dessa pesquisa, que foi muito significativo, uma parte desse grupo se questionou sobre uma tomada de atitude para enfrentar o problema da desinformação. Então, resolvemos criar um projeto com a cara e a coragem, sem dinheiro, sem nenhum recurso, só a nossa vontade e o expertise, aquilo que podíamos fazer como jornalistas e pesquisadores em religião, voltado para o grupo religioso. E tivemos o apoio de uma organização cristã chamada “Paz e Esperança Brasil” que nos ajudou com recursos para colocar o projeto no ar, através de um site com os conteúdos que a gente estava criando. Assim começou.  

Poderia nos explicar o significado do nome do Coletivo?

O nome “Bereia” foi escolhido por ser um nome que está na Bíblia, é de uma cidade grega. A história, segundo o texto bíblico, é que as pessoas que receberam a pregação dos primeiros apóstolos do cristianismo nessa cidade foram conferir nas escrituras se o que estavam ouvindo era verdade. Então, a gente já procurou um nome relacionado à religião já pensando que poderia causar uma identidade com o público-alvo, especialmente os cristãos, como é identificada a maioria da população brasileira.

 

Como se dá a metodologia de checagem das informações?

Hoje, nós temos uma equipe formada por 23 pessoas. Desse grupo 22 são voluntárias, inclusive eu. Nós temos uma pessoa que recebe uma bolsa e, entre outras atividades, nos ajuda a colocar os conteúdos online. Para os voluntários, nós pedimos uma dedicação de 4 horas por semana e nós nos organizamos em equipes, de segunda à sexta-feira. Essas equipes fazem o trabalho de monitoramento de sites e perfis de mídias sociais e, além disso, estão atentas a discursos de personalidades de destaque político e a eventos sociais que envolvem a temática religiosa, como foi o caso do discurso do Presidente Jair Bolsonaro, durante a reunião da ONU, em setembro deste ano, e dos atos do dia 7 de setembro, no Brasil. O nosso prazo é muito curto para tamanha demanda. Por exemplo, a pesquisa de WhatsApp da UFRJ mostrou que desinformação das mídias digitais circulam por 48 horas. Então, se a gente quer concorrer com a desinformação, se a gente quer mostrar o outro lado, a gente tem um prazo muito curto que é de 24 a 52 horas para produzir uma matéria e, mesmo considerando a questão do voluntariado nessas equipes, a gente tem procurado cumprir esses prazos. Fundamentalmente é feita uma pesquisa do tema que é a contextualização. Todo trabalho de verificação precisa ser contextualizado. Que tema é esse, do que ele trata, como ele surgiu e, a partir daí, explicar esse tema nas suas nuances todas. Nesse processo, a gente recorre à entrevista com especialistas, pesquisas e fontes das mais diversas. Feito isso, é dado um parecer a este conteúdo: verdadeiro, falso, enganoso, impreciso ou inconclusivo.

 

Que fatores contribuem para a propagação de notícias falsas?

A propagação de conteúdo falso não é uma novidade. Isso é coisa humana. Desde que mundo é mundo as pessoas usam de falsidades, de engano para poder conseguir algum benefício próprio ou para poder interferir em alguma causa, algum objetivo. Então, isso é coisa antiga. E nas mídias, principalmente no jornalismo, a gente vai identificar vários exemplos, vários momentos em que o jornalismo se rendeu aos conteúdos falsos por questões políticas ou interesses econômicos de donos das mídias – porque a gente sabe que as mídias tem donos, tem perspectivas políticas e econômicas que muitas vezes comprometem o jornalismo. Mas a gente vai ver essa explosão do tema mais recentemente. Em 2016, a palavra do ano do dicionário Oxford foi “pós-verdade” e que está relacionada a este tema da desinformação justamente por conta dessa explosão das mídias digitais, das possibilidades que as pessoas têm hoje de serem produtoras de conteúdo, muito mais do que receptoras. Então, o público hoje, as pessoas que têm acesso às mídias digitais – e, é um acesso muito amplo, de diferentes camadas sociais, diferentes formações humanas – tornaram possível essa proliferação e essa participação intensa, tanto na produção quanto no recebimento também.  

Que característica torna esses conteúdos atrativos e aceitáveis? Quais são os principais assuntos abordados pelo Bereia?

A temática é a principal característica. Por exemplo, “política” é um tema chave. A religião na política hoje tem uma relação muito estreita. As pessoas querem saber o que os políticos estão fazendo relacionado à religião. Seja no Executivo, seja no Legislativo e também no Judiciário onde, recentemente, o tema da religião tem avançado. Temas relativos à moralidade também são muito compartilhados. Temas que tenham a ver com a sexualidade humana, idem. Por exemplo, uma das maiores fake news dos últimos tempos é a chamada “ideologia de gênero”. Esse termo é falso e enganoso também e sempre estamos trabalhando com ele. Outro assunto é a perseguição religiosa. Hoje se fala muito de cristãos que são perseguidos fora do Brasil, especialmente no Oriente Médio e nos países denominados “comunistas”. E, de 2020 para cá, conteúdo relacionado à Covid-19 foi campeão de verificações, inclusive, causando contaminação e morte. Desinformação mata, fake news mata e a gente observou isso com o uso da religião muito forte nessa temática.

 

Você citou a política como uma das temáticas mais presentes para a construção desses conteúdos desinformativos. A partir de que momento ela passa a ser usada de forma estratégica por grupos e pessoas?

A partir de 2016, o tema da desinformação ganhou novos contornos. E por quê? Porque 2016 é o ano do Brexit, da campanha pela saída da Grã Bretanha da União Europeia e houve muita desinformação para criar medo, fazer um terrorismo verbal e as pessoas votarem pela saída. Isso gerou, inclusive, uma série de processos na justiça. Também foi o ano da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, que usou a mesma metodologia do Brexit para fazer a campanha eleitoral. Então, 2016 foi o ano em que esses temas começaram a ser discutidos porque, pela primeira vez na história, as mídias sociais apareceram com muita força para promover desinformação com interesse político. Diversos estudos passaram a ser desenvolvidos e a União Europeia tem um próprio sobre essa questão. E, partindo dessa pesquisa, foi criado um conceito de desinformação que a gente tem usado no Bereia. Ele define que desinformação é toda e qualquer informação deliberadamente produzida para interferir em interesses públicos ou para ganhos econômicos. Então, por exemplo, no caso da Covid a gente vai ver pessoas e empresas que ganharam muito dinheiro com cloroquina, com ivermectina, com tratamento precoce, empresas farmacêuticas, planos de saúde etc. Aqui no Brasil, a gente tem uma CPI das fake news nas eleições de 2018. Existem grupos que ganharam com isso.  

Nesse sentido, o que dizer dos órgãos reguladores? Acredito que é uma das grandes pautas de quem trabalha pela democratização da comunicação e da dignidade no trato com a informação. É preciso regulação, é preciso legislação porque as empresas de mídias sociais, as plataformas, as empresas jornalísticas se autorregulam e a gente precisa da sociedade civil participando desses processos. Mas o mais importante nisso é a legislação que garanta o direito à informação. Quando as pessoas recebem desinformação, é o direito à informação que está sendo negado. Então, é preciso acompanhar muito bem essas iniciativas, especialmente o andamento desse tema no Congresso.  

Se existem conteúdos desinformativos que partem justamente de veículos que são ditos “confiáveis”, um dos problemas não estaria na formação do profissional dessas instituições?

O Coletivo Bereia é um projeto que faz jornalismo especializado. E, há muito tempo nas escolas de jornalismo não há disciplinas que tratem da cobertura de religião. É uma certa defasagem. A gente encontra muitos erros de cobertura. Não é só a desinformação liberada, existem erros na reportagem porque não há muita formação. Se a pessoa não tem a iniciativa de buscar uma formação mais específica em religião, ela não vai conseguir cobrir adequadamente o tema. Agora, quando a gente fala dos espaços digitais, precisa muito pensar uma formação para compreender como as mídias operam. Não adianta só produzir para as mídias, não adianta só pesquisar. A gente precisa saber como elas operam. A velha história dos algoritmos, entender o que é isso, da monetização… Tudo isso implica em elementos que estão na forma de operar do universo digital. A gente tem a composição desses elementos todos nas mídias sociais… tudo isso a gente precisa entender. Não adianta saber fazer, saber ler, saber pesquisar se a gente não sabe como é que opera, o que está por trás. Isso é uma coisa muito importante. Outro ponto está na apuração. Muita coisa que sai em grandes mídias é por falta de apuração. O jornalista se conforma com o material, não procura especialista, não fez leituras para além do que acompanhou em sites, esquece dos livros, esquece dos artigos… É preciso ir fundo na apuração, conhecer as fontes, não dá para ficar só com o superficial  

O trabalho que o Bereia realiza é, em certa medida, de reparo dentro de uma cadeia de desinformação. É separar o joio do trigo, como diz o lema do Coletivo. Mas o que pode ser feito para essa erva daninha nem chegar a aparecer?

A gente tem um desafio. A gente entende que não adianta só publicar uma matéria dizendo que um conteúdo é falso ou enganoso e apresentar uma contextualização. É preciso fazer educação para a informação. Então, um trabalho que vai junto com a verificação que a gente faz é o trabalho educativo, formativo. Nosso projeto também oferece palestras, minicursos, apoia grupos religiosos que estão preocupados com esse tema, e a gente tem no nosso site uma seção chamada “Areópago”, que é um espaço de discussão ampla, em que a gente publica também artigos sobre o tema, pequenas instruções sobre como cada pessoa pode por si mesma fazer uma verificação de informação. Não é só o trabalho de fact cheking. O trabalho não se esgota numa matéria de verificação, na publicação jornalística de um conteúdo. O nosso trabalho também é o de educadores e educadoras, formadores para a informação digna e coerente.

É urgente enfrentar o tráfico de mentiras entre cristãos!

Publicado originalmente na Carta Capital

As últimas pesquisas de opinião pública de diferentes institutos têm registrado um derretimento do apoio do segmento cristão, em especial o evangélico, ao governo Bolsonaro. Quem vive o cotidiano e a carestia que o aflige (compra comida, remédios, paga contas, usa transporte público, entre os muitos gastos) se sente traído pelo não cumprimento das promessas de um “Brasil acima de tudo”. E, entre cristãos e cristãs, não são poucos os que avaliam que Deus não está “acima de todos” nesta situação. 

O grupo cristão ainda segue como base forte e privilegiada de apoio do governo, afinal, os 29% do segmento evangélico que atribuem “bom e ótimo” ao governo não são desprezíveis. Tornou-se imprescindível, portanto, como estratégia de superação das baixas de apoio, manter esta base. Com isto, a disseminação de conteúdo falso e enganoso com vistas à manutenção e à ampliação do apoio de cristãos ao governo segue com força.

Esta preocupação levou a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), uma organização que atua na promoção, na defesa e na garantia de direitos no Brasil, a dedicar atenção ao enfrentamento das popularmente denominadas “fake news”. Ou seja, as mentiras. Estas mensagens com conteúdo falso e enganoso que circulam amplamente entre cristãos, por sites gospel e por mídias sociais, são agora tema da campanha anual da CESE, a Primavera pela Vida. 

Criada por igrejas cristãs há 48 anos, a CESE realiza esta campanha na primavera, desde os anos 2000, pela qual oferece estudos e reflexões inspirados em demandas sociais prementes. “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” é o tema da campanha Primavera pela Vida de 2021. 

Tive a honra de participar do evento de lançamento como pesquisadora do tema e editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias (em ambientes digitais religiosos), quando apresentei um estudo sobre o tema (a gravação pode ser acessada aqui). Na ocasião foi lançada a publicação “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” (que pode ser baixada aqui). 

Pesquisas mostram como o pânico em torno da moralidade sexual, somado à antiga falácia da “ameaça comunista”, foram importantes para garantir o apoio de cristãos à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Durante o primeiro ano do governo do ex-capitão estas pautas ainda foram fortes, em especial na sustentação dos chamados ministérios ideológicos da Educação e o da Mulher, Família e Direitos Humanos. Estas pautas foram também aplicadas na campanha eleitoral para os municípios em 2020, mas com menor incidência. A não-reeleição de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, que fez farto uso destes conteúdos na campanha, mostra que o efeito destes conteúdos falsos e enganosos já não é mais o mesmo. Pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER) a ser publicada em breve mostra bem isso.

Quais são, então, os temas fortes que têm alimentado a busca de apoio ao governo Bolsonaro entre cristãos neste momento em que ele completa mil dias e se encontra com baixíssima aprovação? De acordo com as checagens realizadas pelo Bereia, durante o último ano, mensagens sobre a covid-19 alimentaram o pânico e a ideia da “ameaça comunista” por conta de ênfases em relação à China (origem do vírus e de vacinas). Outra temática muito disseminada tem sido a da liberdade religiosa, que estaria em risco por conta do que passou a ser denominado “cristofobia”. O discurso de Jair Bolsonaro na ONU em 21 de setembro, com acenos sobre concessão de vistos a ‘cristãos afegãos’ e defesa da liberdade e da família tradicional expressa bem isso.

Este tema foi base para os atos de apoio ao governo em 7 de setembro passado, quando se reclamava o direito à liberdade que estaria sendo negada por conta de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) às quais governo e manifestantes se opõem. Há um ano eu já escrevia neste espaço sobre a liberdade religiosa. Afirmei naquele setembro de 2020, que no Brasil, se seguirmos a lógica dos fatos, o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no país.

Casos de perseguição religiosa que atingem este grupo religioso são pontuais e são reflexos de vários aspectos. Um deles é a ignorância e do preconceito contra evangélicos. Outro é a repressão a ações por justiça (como o que ocorre com o padre Júlio Lancelloti em São Paulo). E ainda os atentados a símbolos e templos católico-romanos por extremistas evangélicos.

É sempre bom lembrar que perseguição religiosa recorrente no Brasil quem sofre mesmo são as religiões de matriz africana. Relatórios do governo federal até 2015 mostram isto, como fruto de histórica demonização destas religiões por conta da hegemonia cristã exclusivista, e também do racismo estrutural, por serem expressões de fé da cultura negra.

Cristãos têm plena liberdade no Brasil. Os conservadores extremistas que pedem mais liberdade usam a palavra para falarem e agirem como quiserem contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e até mesmo cristãos progressistas. 

Daí o conteúdo falso postado por supostas mídias de notícias e em mídias sociais, que afirma que o STF está freando a liberdade de cristãos e promovendo perseguição religiosa. Referem-se a quando a Corte decide pelo direito à união estável homoafetiva, que homofobia seja tipificada como crime de racismo, que terceiros (incluindo missões religiosas) sejam proibidos de entrar em aldeias indígenas isoladas durante a pandemia de covid-19. Vale lembrar que o STF atua para que a Constituição Brasileira seja cumprida, garantindo direitos a todos independentemente de vinculação religiosa, pois esta não rege as leis do país, que é laico.

A iniciativa da CESE na Primavera para Vida é muito relevante. Ela se une a projetos como o Coletivo Bereia, a Plataforma Religião e Poder do ISER e outros que tomam grupos religiosos como componentes importantes na arena pública. Eles colaboram para o enfrentamento do tráfico de mensagens que mantém cristãos presos em uma rede de mentiras. Eles devem ser amplamente apoiados e divulgados.

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Foto de capa: Pixabay

Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina: uma questão de ascensão ou de tolerância?

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Manuela Ribeiro Cirigliano

Para iniciar esta crônica, é preciso destacar que todas as participações do seminário foram norteadas por três perguntas previamente informadas pela organização do evento: 1.Que fatores, em geral, considera relevantes que expliquem a ascensão das direitas religiosas e cristãs na América Latina?; 2.Como se articulam e/ou são desarticuladas essas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social? 3.Qual é o lugar da ideologia de gênero no cenário (neo) conservador?

Um seminário como este, orientado por questões-chave, tem o poder de recalibrar a bússola que utilizamos na busca por compreender o contexto analisado. Geralmente, perguntas de pesquisa não se satisfazem com as respostas que recebem. Atravessadas pelas ponderações de cada participante, as perguntas respondidas se reformulam e mostram novos caminhos. Em outras palavras, em um seminário como este, recebemos algumas respostas que, em pouco tempo, ganham a forma de novas perguntas. 

Minha proposta nesta crônica é apresentar algumas das perguntas que levei comigo após o primeiro dia do seminário. Mais especificamente, aquelas que foram mediadas pelo pensamento da feminista espanhola Maria-Milagros Garretas sobre democracia e tolerância. Suas palavras me acompanharam até o final do evento a partir do momento em que uma fala de Juan Marco Vaggione me levou ao seu resgate. 

A fala de Juan Marco que me levou de volta às palavras de María-Milagros Rivera Garretas foi sobre a ideia de que a direita religiosa estaria em ascensão. Esta afirmação foi questionada ao longo do seminário, não no sentido de negar a ocupação de importantes espaços de poder por esse ecumenismo neoconservador no momento atual, mas de destacar como “la derecha política siempre ha tenido impacto, sacando la palabra ascenso, sobre las formas del Estado y la forma de gobierno”, como afirmou Vaggione em relação ao contexto argentino.

Essa reflexão de Vaggione me remeteu à seguinte formulação de Garretas: 

La tolerancia es una idea que se asocia con justicia, con progreso y, paradójicamente, con democracia. Asociar tolerancia con democracia es una paradoja porque, si se forma parte de la mayoría, es superflua la tolerancia; y, si se forma parte de las minorías, tambíen, ya que las dos son imprescindibles para que exista ese sistema político. Pero es que, en realidad, la tolerancia se aplica a quienes no deberían participar nunca en el juego democrático de fuerzas; se aplica a quienes, por marcar los límites de esse juego, resultan uma excrecencia que inquieta y estorba: uma prueba a superar con dignidade, como se suele decir (GARRETAS, 2002, p. 99). 

Pois bem, a ascensão é colocada em xeque pela constatação de que a ocupação desses espaços de poder pelas direitas é mais regra que exceção. Vaggione nos recorda que os movimentos feminista e LGBTQI+ tiveram um grande impacto na sociedade, alçando sua influência o âmbito da formulação das políticas públicas. Sob esse prisma, observa-se que, se há uma ascensão recente, é a das vozes dissidentes oriundas desses movimentos sociais. Uma ascensão geradora de transformações, uma ascensão que aparentemente ultrapassou os limites do que era tolerável e que agora precisa ser contida, relembrada de que “no deberían participar nunca en el juego democrático de forzas” (GARRETAS, 2002, p. 99).

Sendo este o caso, pode-se dizer que alguns grupos da sociedade conseguiram atuar em um espaço público pouco aberto à sua participação e obtiverem importantes avanços para suas pautas. A tolerância, inclusive por parte dessa direita religiosa (que não ascendeu porque sempre esteve ligada ao poder), pode ter sido decisiva para que esses grupos tenham tido a possibilidade de movimentar-se nesta arena? 

 Parto do princípio que sim e por isso, inverto o eixo da primeira pergunta norteadora do seminário (Que fatores, em geral, considera relevantes que expliquem a ascensão das direitas religiosas e cristãs na América Latina?). Se houve uma ascensão, mas ela é de movimentos sociais como o feminista e o LGBTQI+, questiono qual o papel de quem “marca os limites do jogo” (como define Garretas) nessa ascensão.  Em outras palavras, a ascensão das pautas dos movimentos feminista e LGBTQI+ faz parte do jogo de força e aconteceu até onde quem marca os limites do jogo pretendia permitir? Suplantou a capacidade de controle e extrapolou os limites previamente pretendidos? Ou reposicionou os limites que definiam o que era a “excrecência, que inquieta e estorba” (GARRETAS, 2002, p. 99)?

Os questionamentos acima apresentados, no entanto, têm limitações explicitadas pela segunda pergunta norteadora do seminário e pelas reflexões trazidas por cada participante em relação a ela (Como se articulam e/ou são desarticuladas essas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social?). Afinal, as fronteiras da tolerância não são uma unanimidade e tampouco aqueles que marcam os limites do jogo possuem esse título de forma oficial. O denominado campo conservador religioso é heterogêneo – como apontado por Sandra Mazo durante sua fala no evento – e é apenas uma parte de seus atores que se alinha em torno do combate à “ideologia de gênero”. Além disso, cada qual o faz com propósitos próprios que guardam tensões entre si.

Essas tensões foram recorrentemente trazidas ao longo do seminário como um importante elemento de análise e revelam que não há homogeneidade no campo alinhado pelo combate à “ideologia de gênero”. Tampouco esse conjunto representa plenamente as comunidades religiosas ou a direita política, por exemplo, pois como nos lembra Garretas, deter o poder de decidir o que é tolerável é particularmente relevante na disputa de forças:

La tolerancia indica quién puede más, es propia de uma ideologia, de uma manera de ver y estar en el mundo, fundada en la fuerza, fundadas en las correlaciones de fuerzas que se vigilan entre sí (GARRETAS, 2002, p. 99). 

Assim, é possível presumir que este grupo – que assume a “ideologia de gênero” como um inimigo comum – vem travando algumas lutas concomitantes: 1. contra a “ideologia de gênero” em si; 2. para estar em uma posição dominante em relação a seus atuais aliados quando o inimigo comum for derrotado; 3. pela liderança dos seus setores de origem, contra aqueles que não aderem à ideia de que a “ideologia de gênero” é um inimigo comum.

Cabe observar, ainda, que importantes atores podem estar localizados no campo religioso, mas não se restringem a ele. A natureza conflitante das relações desse segmento organizado em torno da luta contra a “ideologia de gênero” com o capitalismo e o neoliberalismo, por exemplo, foi recorrentemente apontada ao longo do seminário. Essa contradição não é de todo surpreendente se notarmos que o ambiente de medo promovido pelas campanhas anti-gênero alimenta o neoliberalismo, como destacado por Sandra Mazo durante o seminário. 

Por outro lado, a apropriação das pautas feministas pela lógica de mercado também não é um fenômeno recente. Para Nancy Fraser (2019), por exemplo, as pautas  articuladas pelo movimento feminista durante a segunda onda em torno da crítica ao capitalismo sofreram uma forte desarticulação que culminou na transformação das demandas e anseios das mulheres em fomentadores do próprio capitalismo: 

[…] o entrelaçamento, na crítica ao capitalismo  androcêntrico  organizado  pelo  Estado,  de  três  dimensões  analiticamente distintas  de  injustiça  de  gênero:  a  econômica,  a  cultural  e  a  política.  […] Separadas umas das outras, assim como da crítica social que as tinha  integrado, as  expectativas da  segunda  foram recrutadas a serviço de um projeto que estava profundamente em conflito com  a  nossa  ampla  visão holística de uma sociedade justa. Em um bom exemplo da astúcia da história, desejos utópicos encontraram segunda vida como correntes de sentimento que legitimaram a transição para uma nova forma de capitalismo: pós-fordista, transnacional e neoliberal (FRASER, 2019, p. 27-28).

O neoliberalismo, portanto, parece obter vantagens tanto das pautas feministas e LGBTQI+ como de seu combate pelos grupos anti-gênero. As respostas à segunda questão do seminário (Como se articulam e/ou são desarticuladas essas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social?) demonstraram ser relevante questionar: como diferentes atores envolvidos nessas batalhas concomitantes influenciam a articulação/desarticulação dessas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social?  Existem segmentos que têm interesse na permanência das pautas dos movimentos feministas e LGBTQI+ dentro dos limites do tolerável, apesar de não terem particular interesse nas pautas em si? Se sim, há particular ganho desses segmentos com as pautas dos movimentos feministas e LGBTQI+ ou seu real ganho advém da disputa e do engajamento em torno delas?

Nessa mesma linha de raciocínio, também a terceira pergunta produz novos questionamentos, pois, se a disputa entre as campanhas anti-gênero e os movimentos feminista e LGBTQI+ traz benefícios a alguns segmentos da sociedade, a conservação da existência de ambos os lados se revela necessária. Em outras palavras, pouco importa as pautas defendidas por quaisquer dos lados, elas precisam ser toleradas, o que nos leva de volta ao significado de poder tolerar. Nesse sentido, Garretas nos lembra que a tolerância tem relação estreita com a sociedade moderna capitalista:

Historicamente, em Europa, la tolerancia como medida última de convivência es propia de un modelo de relaciones sociales próprio de la edad moderna y, por tanto, de las formaciones capitalistas. […] El pensamento europeo, el pensamento racionalista de la Ilustración, fraguó entonces, passo a passo, um derecho pensado precisamente para enfrentarse com grandes diferencias. Este derecho fue perfilando em su centro um sujeto supuestamente neutro al que se le atribuyeron derechos individuales de todo tipo, derechos com los que poder defenderse de uma sociedade imaginada como peligrosa y hostil. Este sujeto necessitará tolerar a quien no sea igual que él, él que daba la medida de lo que habia que ser (GARRETAS, 2002, p. 102-103).

Se há interesse na conservação dessas pautas dentro dos limites do jogo por alguns de seus jogadores, o que está em disputa é o próprio poder de definir quem é o sujeito neutro e quem é o tolerado. Nesse caso, a terceira pergunta norteadora do seminário – Qual é o lugar da ideologia de gênero no cenário (neo) conservador?- ganha nova redação: qual o lugar da “ideologia de gênero” na disputa pelo poder de definir os limites do jogo democrático?

No breve relato acima, procurei demonstrar como as respostas oferecidas por cada participante do seminário Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina produziram, para mim, novos questionamentos ao serem relacionados ao pensamento da feminista María-Milagros Rivera Garretas. O poder simbólico atribuído pela tolerância pode estar desempenhando um importante papel nas disputas em torno das pautas feministas e LGBTQI+ na sociedade. Mais ainda, a legitimação das causas desses movimentos sociais pode estar no centro de uma queda de braço por esse poder simbólico da tolerância entre forças distintas, sem que haja um comprometimento direto de seus atores com o lado que tomam nessa causa.

Contra quem realmente lutam aqueles que combatem a ideologia de gênero? Penso ser indubitável que, para muitos, a luta contra a “ideologia de gênero” tem fins em si mesma, uma cruzada anti-gênero motivada pela percepção de que a expressão de diferentes subjetividades e sexualidades constitui, de fato, uma ameaça. Por outro lado, sua construção como um inimigo comum serve como uma estratégia de fomento de adesão à causa e também como uma ferramenta de mobilização de forças para outras disputas, inclusive pelo próprio poder de definir quem detém alguma força para ditar regras no jogo. 

Para além das tantas perguntas reformuladas, terminei o primeiro dia do seminário “Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina”, com uma pergunta que parece resumir as reflexões que realizei neste primeiro dia de seminário: é possível analisar as cruzadas anti-gênero na América Latina como um fenômeno único?

Referências

FRASER, Nancy. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. IN: Hollanda, Heloísa B (org). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. 

GARRETAS, María-Milagros Rivera. El fraude de la igualdad. 2 ed. Buenos Aires: Librería de Mujeres, 2002. 

GREPO, Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seminário Internacional: catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. 31 de março de 2021 e 01 de maio de 2021. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m0fG3Wbh1Dk&t=2670s >.

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Manuela Ribeiro Cirigliano é mestra em Ciência da Religião pela PUC-SP e integrante do GREPO.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a quinta de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LAR-UNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO/PUC-SP e LAR/Unicamp, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de capa: Vaidape.com.br

Deputados governistas de bancadas evangélica e católica enganam nas mídias sociais sobre votos pelo “Fundo Eleitoral”

Divulgaram que eram contra, mas votaram a favor e continuaram dizendo ser “contra”. Esta foi a atitude de deputados federais da base governista que, na quinta-feira (15/7), votaram pela aprovação do bilionário Fundo Eleitoral que é parte Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2022.

A Câmara aprovou a matéria por 278 votos a 145, com uma abstenção, e o Senado aprovou em seguida por 40 a 33. Por conta da covid-19, as votações ocorreram separadamente, no formato semipresencial. A inserção do substitutivo do relator no orçamento para financiar campanhas nas eleições de 2022, deputado Juscelino Filho (DEM-MA), aumenta o Fundo Eleitoral de R$ 1,8 bilhão para R$ 5,7 bilhões.

Uma parcela dos deputados e senadores de partidos de diferentes correntes ideológicas manifestaram discordância à proposta que destina tantos recursos em plena crise econômica e sanitária, para campanhas eleitorais. Quem era contra o Fundão votou “não” ao texto da LDO como estava. Seguindo o protocolo, o partido Novo apresentou um destaque, votado de forma simbólica após aprovação do texto-base,que tentava retirar o Fundão da LDO. A tentativa de retirar o Fundão da Lei foi rejeitada. O projeto agora segue para sanção do presidente Jair Bolsonaro.

O Fundo [Público] de Financiamento de Campanha foi criado após a proibição do financiamento privado, em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal, após avaliação de que as doações de grandes empresas privilegiam certas candidaturas e desequilibram o pleito eleitoral. Por isso, nas eleições de 2018, foi criado o fundo de R$ 2 bilhões com recursos públicos, distribuídos proporcionalmente aos partidos.

A base governista religiosa na votação

Chamou a atenção nas mídias sociais que deputados da base governista que haviam declarado que seriam contra o popularmente denominado “Fundão”, votaram a favor do texto final da LDO que o incluía. No caso do destaque, a votação foi feita de forma simbólica, que se dá pela maioria dos deputados presentes em Plenário no momento da votação. Não é exigida a manifestação individual de todos os presentes. O presidente convida a se manifestar apenas aqueles que forem contrários à proposição em análise. Os demais devem permanecer sentados para a verificação do contraste visual entre os favoráveis e os contrários à matéria. Se necessário ou solicitado por algum parlamentar, pode ser feita a contagem dos votos. Mas não há registro nominal dos votos.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP), da Bancada Evangélica, votou a favor da aprovação do texto final da LDO que incluía o Fundão. Após ser criticado nas mídias sociais, Eduardo Bolsonaro disse no Twitter que votou a favor do destaque apresentado pelo partido Novo que tentava evitar o aumento das verbas do financiamento eleitoral. “Votei sim à LDO (que engloba vários temas) e contra o fundão eleitoral (sim ao destaque)”, disse, e apresentou uma declaração de voto.

Declaração de voto (Foto: Eduardo Bolsonaro/Twitter)

Também cobrada nas mídias sociais pela incoerência, a deputada Bia Kicis (PSL/DF), da Bancada Católica, disse que apoiou o destaque do partido Novo. “Eu votei contra o aumento do Fundão e a favor da LDO. Tem gente querendo fazer confusão”, disse em vídeo publicado no Twitter. No entanto, ela não esclarece que não havia votação em separado, era um texto único com o Fundão incluído. Quem era contra o fundo bilionário para campanhas eleitorais teria que votar contra o texto da LDO.

Foto: Publicação de Bia Kicis/Twitter

Apenas com o destaque do partido Novo se poderia derrubar a inclusão do fundo bilionário no orçamento, mas Bia Kicis apenas fez referência a uma fala do líder do PSL, ao microfone do plenário, no momento dos destaques, de que o partido “orientou a votar contra o Fundão”. No entanto, o PSL votou a favor do texto integral com o Fundo Eleitoral incluído, e não atuou na votação simbólica do destaque, depois que o texto-base já havia sido aprovado. A postagem de Bia Kicis foi retuitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro.

O deputado da Bancada Católica Carlos Jordy (PSL-RJ) usou o mesmo discurso de Bia Kicis para refutar críticas de seguidores:

Foto: Publicação de Carlos Jordy/Twitter

Bia Kicis e Carlos Jordy ainda usaram o argumento do antipetismo e anti-esquerdas, que capta seguidores governistas, ao postar nas mídias sociais que quem votou contra a aprovação da LDO, como o PT e o PSOL, quer “inviabilizar o governo”.

Fonte: Bia Kicis/Twitter

Apesar de afirmar, no vídeo que produziu, que “tem gente querendo fazer confusão”, na postagem, Bia Kicis confundiu o público ao dizer que PT e PSOL orientaram a votação “Não”, contra a LDO, porque o “PT quer o pior para o governo”.

O seu colega de partido Carlos Jordy também distorceu a informação para usar de acusações aos partidos de oposição de serem contra as políticas do governo e construiu um discurso desprovido de sentido: “Se votar contra a LDO seria votar contra o fundão, por que a OPOSIÇÃO TODA votou CONTRA, sendo que serão os maiores beneficiados com o aumento do fundo eleitoral (PT será o maior)? Porque são contra as POLÍTICAS DO GOVERNO e não contra o fundo eleitoral, q foi inserido pela CMO”.

Nestes casos, os deputados católicos publicaram a imagem com a orientação dos partidos com corte que omite de seus seguidores que outros partidos também orientaram a votação pelo “Não”: PDT, PSB, PV, Rede, PcdoB, e os partidos que não são de oposição,e que dão apoio a várias pautas do governo, Podemos e Novo.Ainda houve o caso do Cidadania que teve orientação para o “Sim”, mas se dividiu na votação. Os números podem ser conferidos no registro de votação organizado abaixo:

O deputado da Bancada Evangélica Filipe Barros (PSL-PR) usou de discurso que foi mescla entre o que Eduardo Bolsonaro postou e retuitou as postagens de Carlos Jordy.

Foto: Filipe Barros/Twitter

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Bereia avalia que os deputados da Bancada Religiosa na Câmara Federal Eduardo Bolsonaro, Bia Kicis, Carlos Jordy e Filipe Barros divulgaram conteúdo enganoso para escaparem das críticas de seguidores por terem apoiado a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2022, com a inclusão de valores triplicados para o Fundo Eleitoral na casa de 6 bilhões de reais. Além de postarem mensagens que não correspondem à votação simbólica do destaque do partido Novo, que poderia ter retirado o Fundão do texto-base da LDO, os deputados emitiram conteúdo confuso sobre o papel dos partidos de oposição no processo, omitindo que não só este grupo votou contra a LDO, mas também partidos de apoio ao governo federal. As justificativas pelo “Não”, registradas oralmente pelos votantes, abordaram a incoerência e a falta de transparência da inserção da triplicação de valores para campanha eleitoral, diminuindo itens orçamentários prioritários como saúde (em meio a pandemia que já matou mais de 540 mil pessoas) e educação, mantendo-se desvalorização do salário-mínimo em R$ 1.147,00.

Sete parlamentares já acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo à Corte que anule as votações. Eles pretendem que qualquer aumento no fundo seja vetado até que a pandemia seja superada.

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Foto de Capa: Jefferson Rudy/Agência Senado

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Referências

Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-07/ldo-de-2022-preve-aumento-do-fundo-eleitoral-para-quase-r-6-bilhoes

Uol Economia, https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/07/15/veja-como-deputados-votaram-lei-de-diretrizes-orcamentarias-2022.htm

Poder 360, https://www.poder360.com.br/congresso/saiba-como-cada-partido-e-congressistas-votou-sobre-ldo-e-fundo-eleitoral/

Câmara Notícias, https://www.camara.leg.br/noticias/786049-comissao-aprova-ldo-2022-com-prioridade-para-vacinas-creches-habitacao-e-oncologia/

Veja, https://veja.abril.com.br/blog/maquiavel/deputados-recorrem-ao-stf-contra-fundo-de-r-57-bi/

A ditadura militar fechou, sim, igrejas, deputado!

Cristãos e cristãs brasileiros têm sido desafiados, dia após dia, a um exercício permanente de compreensão da realidade e interpretação dos sinais de vida e morte que nos cercam. 

Vivemos tempos em que, animados por um governo claramente identificado com ideias e ideais antidemocráticos e que denega mesmo os notáveis avanços da “Constituição Cidadã” de 1988, muitos dos “nossos” irmãos e irmãs cristãos questionam e reprovam a decisão de se dar autonomia a Estados e Municípios para legislar sobre o funcionamento de templos e demais locais de culto. A decisão foi claramente embasada pelas características específicas dos templos, entendidos como locais potencialmente propensos à contaminação em grande escala (por exemplo, uma igreja na Coréia do Sul foi o principal polo dispersor do vírus). Justamente neste contexto, vemos aumentar a disparidade de compreensões entre o que seriam posicionamentos “verdadeiramente cristãos”.  

É dentro desse imenso mostruário de desinformação que se insere a fala do conhecido deputado federal pastor Marco Feliciano (Republicanos/SP). Ele afirmou, em postagem em mídias sociais, que a ditadura não fechou igrejas, indicando nas entrelinhas que atualmente estaria havendo uma perseguição velada às igrejas evangélicas. 

Qualquer compreensão de nosso tempo, no entanto, passa necessariamente pela leitura de nosso passado recente e pela forma como igrejas e cristãos se relacionaram com os governos autoritários. Estes são lembrados mesmo após haverem infligido males terríveis a pessoas e instituições, incluindo aí igrejas e cristãos comprometidos com uma sociedade justa e livre, fiéis seguidores dos ensinamentos de Cristo.

Vejamos o que nos diz uma pesquisa breve no relatório da Comissão Nacional da Verdade

  • Foram identificados 352 cristãs e cristãos que sofreram violência durante a ditadura;
  • Destes, 273 eram católicas ou católicos e foram presos, entre bispos, padres, religiosos, agentes de pastoral e pessoas leigas da igreja;
  • Dentre os católicos, 18 foram assassinados ou foram desaparecidos pelo regime (quatro padres, três religiosos e religiosas), 17 foram banidos, expulsos ou exilados, todos depois de prisão e tortura;
  • O bispo D. Adriano Hipólito (da Diocese de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro) foi sequestrado e humilhado, bem como a Catedral de São Pedro, sob sua jurisdição, foi atacada em um atentado;
  • 27 evangélicos foram presos, quase todos com torturas aplicadas (metodistas, presbiterianos, um assembleiano e uma luterana, sendo alguns pastores e estudantes de teologia);
  • Dentre os evangélicos e evangélicas, sete foram mortos ou permanecem desaparecidos, após quase 50 anos, e 15 foram banidos, expulsos ou exilados, quase todos depois de prisão e tortura;
  • Duas faculdades de Teologia foram fechadas com professores demitidos e alunos expulsos (a Batista do Norte, em Recife, e a Metodista, em São Bernardo do Campo).

Como se vê, houve ataque indiscriminado a religiosos, boa parte deles delatados por lideranças de suas igrejas, em decorrência de sua maneira de professar a fé em Cristo.  

E também ocorreu forte perseguição a igrejas e instituições, pois qualquer manifestação de oposição à situação de censura, perseguição e ausência de democracia instalada no Brasil com o golpe de 1964 e aprofundada com a instauração do AI-5, em dezembro de 1968, passou a justificar perseguições, torturas e assassinatos. Numa alegoria, não seria difícil imaginar o Jesus contestador, que nos inspira e guia, sendo conduzido aos porões da Operação Bandeirantes ou ao DOI-CODI.

Há relatos de membros da Igreja Presbiteriana Unida de Vitória, das Igrejas Presbiterianas do Brasil de Ipanema e de Acari, na Cidade do Rio de Janeiro, que esclarecem que, sim, estas igrejas foram fechadas pela ditadura militar brasileira. 

E tão importantes quanto os ataques desferidos a templos e instituições, locais de formação e comunhão daqueles que, comprometidos com sua fé, acreditavam que a tortura, a censura e as demais formas de opressão não estavam em acordo com os ensinamentos de Jesus, foi a perseguição, morte e tortura destes mesmos cristãos. “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (1 Coríntios 6.19).

Mais do que nunca, somos chamados à reflexão para, à luz dos ensinamentos de Jesus, nos posicionarmos a favor da vida, ainda que isso nos custe o sacrifício de, por determinado tempo, não nos confraternizarmos presencialmente com nossos irmãos e irmãs queridos. Vivemos um momento em que medidas como essa são necessárias para a garantia da saúde e bem-estar de todos. Que o nosso Deus da vida e da saúde nos abençoe e guarde com seu Santo Espírito!

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

As histórias de fé que ouvi em igrejas neopentecostais

Quando o assunto é igreja evangélica brasileira, o que pensam as pessoas que estão fora dela? E de quem elas lembram? Bispo Edir Macedo (Igreja Universal), Apóstolo Valdemiro Santiago (Igreja Mundial) e Pastor Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo) certamente estão entre as pessoas que vêm à mente de muita gente devido ao poder midiático de suas igrejas.

Sou filho de uma família pastoral com raízes na Igreja Batista Independente (de vertente pentecostal) e passagem pela Renascer em Cristo (uma das maiores promotoras da cultura gospel nos anos 1990 e 2000). Hoje frequento uma Igreja Batista. E fora do que via pela TV, eu conhecia pouco sobre outras denominações com grande poder midiático.

Mas por que as pessoas vão a essas igrejas? Em 2019, foi com essa pergunta que decidi fazer uma pesquisa de iniciação científica cujo objetivo era entrevistar fiéis de três igrejas neopentecostais (Mundial, Universal e Plenitude) e uma pentecostal (Assembleia de Deus do Brás). A maioria delas fica no “Corredor da Fé”, na Avenida Celso Garcia, no bairro do Brás, zona leste de São Paulo. Na época da pesquisa, eram 26 igrejas só naquele endereço. Baseado nas entrevistas que fiz naquele ano, produzi o podcast Histórias de Fé.

A compreensiva resistência ao jornalismo

As reações à chegada de um jornalista variaram. Na igreja do Apóstolo Valdemiro, ter me apresentado como jornalista evangélico fez os fiéis se abrirem mais. Numa entrevista até escutei que, se eu não fosse crente, uma pessoa teria tentado me confrontar e evangelizar. Já nas outras, precisei convencer autoridades religiosas de que não procurava prejudicar as igrejas com as entrevistas. 

A resistência é compreensível. As igrejas evangélicas brasileiras saltaram de 5% a 22% da população entre 1970 e 2010, de acordo os dados do Censo Demográfico do IBGE. Essa é uma grande e rápida mudança em um país de histórica hegemonia Católica Romana. Além disso, a representação desse grupo religioso ainda é carregada de estereótipos (ou até mesmo imprecisões) que eram bem mais fortes em décadas passadas.

É verdade que isso tem sido superado. Exemplo disso é que a Folha de S. Paulo dedicou, em 2019, matéria para os resultados de uma pesquisa do DataFolha. O levantamento concluiu que a “cara típica” do evangélico brasileiro é feminina e negra. Nas igrejas neopentecostais, elas representam 69% dos fiéis.

Mesmo assim, visitar essas igrejas – em especial as neopentecostais – foi confrontar-me com meus próprios preconceitos. Entrevistar fiéis enquanto mantinha opinião crítica à teologia da prosperidade e considerar que, às vezes, as chamadas experiências de avivamento com o Espírito Santo eram exageradas, me obrigou a entender as suas crenças em seus próprios termos.

Entender a fé do outro muda perspectivas

Essa chave muda tudo. Se olharmos apenas para o que acontece nos púlpitos sem acreditar nos programas de TV, a imagem que fica é de bispos e apóstolos que exploram a fé de pessoas pobres e com pouca instrução. Mas se o foco são as pessoas sentadas nos bancos – não meros cases de sucesso que dão testemunho – a situação muda.

No primeiro episódio, conto um diálogo que tive com uma fiel da Universal fora da igreja. Ela diz acreditar que pode obrigar Deus a fazer um milagre acontecer e até me citou que declarou que teria um emprego e conseguiu-o de um dia para outro. Essa crença entra em choque com a tradicional doutrina da soberania de Deus. Mas se oração, dízimos e ofertas não resultarem no milagre, para ela, é porque Deus faz o que quer. Então, o debate que importa não é se uma doutrina clássica e cara a outras tradições evangélicas está em jogo ou não, mas se a fé pregada pela igreja dá resultados.

Mas não só de resultados vive a fé desses evangélicos. O maior exemplo que tive foi minha última entrevistada, na Igreja Plenitude. Elissandra contou que retornou ao evangelho pela Plenitude depois de 22 anos “desviada” (gíria crente que designa quem se converteu e posteriormente deixou a igreja). Pouco depois de ter se batizado, sua filha teve uma doença que afetou toda a pele. Os médicos não achavam solução. A cura veio depois que ela comprou frascos com o sangue do cordeiro e azeite e passou no corpo da filha. “Então, eu não tenho motivo pra sair da igreja. Eu tenho motivo pra permanecer. Pra ficar. Pra ser fiel a Ele. Eu não tenho motivo pra sair. Porque ele me provou quem Ele é na minha vida. Ele me provou que Ele está comigo. E que Ele ouviu o meu clamor, a minha oração, porque eu ajoelhei e pedi pra Ele. E Ele me ouviu e Ele me respondeu no mesmo dia”, explicou Elissandra. 

Apesar disso, toda a sua família questiona sua fé e a chama de macumbeira – um termo muito ofensivo, já que essas igrejas entendem os cultos afro-brasileiros como demoníacos. Mas quando o assunto era o que a mantinha na Plenitude, ela atribuiu sua persistência ao avivamento com o Espírito Santo. Mesmo que a cura da filha tenha sido um sinal de Deus, me pareceu que Elissandra quer bem mais respeito da família do que negociar bênçãos materiais com Deus.

Compreender não significa fechar os olhos para os problemas

Ao final de toda a pesquisa, não deixei de ter sérias divergências com as pregações das igrejas as quais visitei. Discordo da Teologia da Prosperidade e da Guerra Espiritual, defendidas pelas igrejas neopentecostais. Às vezes, a admiração aos líderes das denominações me parece exagero.

Além disso, há um alinhamento institucional e quase acrítico ao Presidente da República Bolsonaro, para dizer o mínimo. Não é por acaso que o voto evangélico foi forte fator para a eleição do capitão. É claro que isso não é exclusividade das igrejas que visitei e os efeitos são prejudiciais tanto para quem é da igreja quanto para quem é de fora dela. 

Em poucos meses como repórter verificador no Bereia cheguei à triste conclusão que, não raramente, líderes evangélicos importantes desistem da verdade para espalhar desinformação, seja para criticar opositores do presidente ou defender o governo. Isso se tornou mais dramático com a pandemia de covid-19. O grande problema disso tudo é: se a igreja evangélica se associar tão fortemente ao governo Bolsonaro, como as pessoas de fora da igreja conseguirão distinguir a diferença entre ser evangélico e ser bolsonarista?

Reconheço que essas igrejas não se encerram nos programas de TV e que chegam nas vidas das pessoas. E mesmo quando discordo, eu entendo os pontos de vista desses fiéis. Qualquer diálogo sério com evangélicos depende de tentar compreendê-los.

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Vacina contra Covid-19 não usa células de bebês abortados como afirma site gospel

No dia 16 de novembro, o portal evangélico de notícias Gospel Prime publicou a matéria “Vacina com células de bebês abortados levam crise ética aos cristãos”. Apesar do título sugerir que vacinas são produzidas com células retiradas diretamente de bebês abortados, o texto logo explica que a crise ética diz respeito ao uso de linhagem de células derivadas de fetos abortados.

Para tratar desse tema, a matéria faz referência ao Instituto Charlotte Lozier. A instituição foi fundada em 2011, na Virgínia (EUA), e nomeada em homenagem à Dra. Charlotte Denman Lozier (1844-1870), destacada por sua luta pelos direitos das mulheres e por sua dedicação à medicina. “O Instituto reúne médicos, sociólogos, estatísticos e pesquisadores, para desenvolverem estudos sobre questões relacionadas à vida. Desta forma, o Instituto se empenha em trazer a ciência para a formulação de políticas e para a promoção do debate com o objetivo de promover a cultura e a política da vida”, diz o site institucional.

As linhagens de células utilizadas por vacinas que o CLI (sigla do Instituto Charlotte Lozier, em inglês) vê como antiéticas são duas. A HEK-293 originou-se de tecido renal colhido de um feto abortado legalmente na Holanda, em 1973, como informa o portal UOL. Já a linhagem PER.C6 advém de material da retina de um feto também legalmente abortado em 1985, utilizado por um laboratório da Johnson & Johnson. De acordo com a revista de divulgação científica Science, a vacina contra a covid-19, desenvolvida pela Universidade de Oxford, em parceria com a farmacêutica Astrazeneca, utiliza as células HEK-293 e a Janssen, uma subsidiária da Johnson, faz uso da PER.C6. Ambas fazem parte da iniciativa Warp Speed, do Governo Federal Americano, para produção de vacinas contra a covid-19.

O uso de células derivadas de fetos abortados não provoca novos abortos

A matéria do Gospel Prime direciona um link para uma lista do CLI que indica quais materiais são utilizados tanto no desenvolvimento quanto na produção de vacinas. No entanto, o CLI deixa mais claras suas considerações sobre o uso das linhagens derivadas de fetos abortados em outra publicação.

“O uso de células de fetos abortados eletivamente para a produção de vacinas torna esses cinco programas de vacina COVID-19 [citados na nota] potencialmente controversos e poderia reduzir a disposição de alguns de usar a vacina”. 

CLI

Em defesa de alternativas que façam esse uso de células humanas, a nota escrita pelos doutores James Sherley e David Prentice conclui:

“A adesão aos mais elevados padrões éticos da ciência e da medicina serve a toda a humanidade, porque valoriza a dignidade de cada vida humana e respeita a consciência de todos, sem exploração de nenhum grupo.”

James Sherley e David Prentice

Linhagens celulares desenvolvidas a partir de tecidos humanos são comuns em pesquisas científicas. A HEK-293 é a mais comum, mas a PER. C6 (também de origem fetal) e a HeLa (feita com tecido retirado de mulher adulta) são exemplos de outras linhagens usadas. As culturas servem para que os cientistas compreendam como determinada substância age nas células humanas sem a necessidade de colocar em risco vidas de pacientes.  

No caso das vacinas, as células da linhagem servem como “pequenas fábricas” para que os vírus atenuados possam se multiplicar e não fazem parte da composição do produto final. Em entrevista ao Projeto Comprova, a imunologista, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia Cristina Bonorino esclareceu que “as células (embrionárias) não entram na composição da vacina. Apenas a proteína produzida por elas, ou o vírus replicado nelas, que sai da célula e fica no meio de cultura, é coletado e purificado para a formulação vacinal”. Já que não é mais necessário tecido fetal para que as células se multipliquem, o uso de cultura HEK-293 não provoca novos abortos.

O debate ético entre instituições cristãs

Como o próprio texto do Gospel Prime cita, o tema suscita um debate ético entre cristãos. Ouvido pela revista Science, o pesquisador do CLI David Prentice considera que outras tecnologias alternativas ao uso de HEK-293 estão disponíveis. Por outro lado, a Vatican’s Academy for Life (Academia do Vaticano pela Vida) encoraja a aplicação de vacinas alternativas. A matéria do portal católico Crux Now informa que, em 2005, o Vaticano orientou católicos a pedirem a seus médicos a não utilização de vacinas produzidas com linhagens derivadas de células de fetos abortados, bem como pedirem o desenvolvimento de métodos alternativos às empresas farmacêuticas. 

No entanto, a Igreja Católica afirmou que é moralmente lícito tomar as vacinas para evitar o risco às crianças e à população como um todo. Conforme informa a reportagem do Crux Now, uma atualização da declaração foi feita em 2017, na qual afirma o seguinte: “As características técnicas de produção das vacinas mais comumente utilizadas na infância nos levam a excluir que exista uma cooperação moralmente relevante entre quem usa essas vacinas hoje e a prática do aborto voluntário.” O mesmo documento considera também como obrigação moral garantir uma cobertura vacinal necessária para proteção de outras pessoas. 

Em entrevista à Agência Católica de Informações (ACI), o professor de Biodireito na Universidade Católica Argentina (UCA) Jorge Nicolás Lafferriere dá quatro condições para que um católico possa tomar “vacina de origem remota ilícita” [termo usado pelo site católico]: não haver “alternativa eticamente aceitável”; haver “perigo proporcional e urgente”; expressão de desacordo com a vacina de ‘origem ilícita’; cobrança que o sistema de saúde coloque à disposição outros tipos de vacina.

Apesar de Gospel Prime publicar uma manchete enganosa, a matéria também mostra a posição de cristãos que aceitam o uso de linhagens derivadas de fetos abortados em algum processo de desenvolvimento da vacina. É o caso do médico Craig Delisi em entrevista ao canal americano Christian Broadcasting Network. Ele explica a controvérsia e oferece uma analogia também citada no Gospel Prime: “Se alguém foi assassinado e era doador de órgãos, como cristãos, não devemos hesitar em tomar o coração dessa pessoa para o vovô, ou a córnea ou o rim dessa pessoa. Só porque houve um ato mau que precedeu algo e algo bom veio disso”.

Além disso, de acordo com a revista Science, o governo Trump restringiu o uso de tecidos de fetos de abortos eletivos em pesquisa biomédica. No entanto, a medida de 2019 não impediu a utilização de linhagens de células proveniente de fetos abortados, como a HEK-293 e a PER.C6. 

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Com a verificação dos dados apresentados por Gospel Prime, Bereia conclui que a matéria é enganosa. O site utiliza o tema do aborto, caro aos cristãos, para confundir os leitores e leitoras em prol de aumentar resistências às vacinas. Cabe ressaltar que o título da matéria contradiz seu conteúdo ao mencionar “célula de bebês abortados” porque, na verdade, o debate bioético está centrado no uso de linhagens de células derivadas ao aborto – discussão mencionada na reportagem. Levando-se em conta que muitos leitores/as leem apenas títulos para tirar conclusões sobre conteúdos, esse tipo de desinformação contribui para a confusão sobre as vacinas, um tema essencial para o enfrentamento do novo coronavírus no Brasil.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Referências:

Instituto Charlotte Lozier: https://lozierinstitute.org/about/. Acesso em: 20 nov. 2020.

Portal UOL: https://noticias.uol.com.br/comprova/ultimas-noticias/2020/07/24/tuite-engana-ao-afirmar-que-vacinas-usam-celulas-de-fetos-abortados.htm. Acesso em: 21 nov. 2020.

Revista Science, https://www.sciencemag.org/news/2020/06/abortion-opponents-protest-covid-19-vaccines-use-fetal-cells. Acesso em: 20 nov. 2020.

Instituto Charlotte Lozier: https://lozierinstitute.org/update-covid-19-vaccine-candidates-and-abortion-derived-cell-lines/. Acesso em: 20 nov. 2020.

Instituto Charlotte Lozier: https://lozierinstitute.org/an-ethics-assessment-of-covid-19-vaccine-programs/. Acesso em: 20 nov. 2020.

Projeto Comprova: https://projetocomprova.com.br/publica%C3%A7%C3%B5es/tuite-engana-ao-afirmar-que-vacinas-usam-celulas-de-fetos-abortados/. Acesso em: 21 nov. 2020.

Crux Now: https://cruxnow.com/vatican/2019/03/vaticans-academy-for-life-encourages-parents-to-vaccinate-children/. Acesso em: 20 nov. 2020.

Academy for Life, http://www.academyforlife.va/content/pav/en/the-academy/activity-academy/note-vaccini.pdf. Acesso em: 21 nov. 2020.

Agência Católica de Informações: http://www.acidigital.com/noticias/vacina-para-o-coronavirus-especialista-explica-os-limites-eticos-indicados-pela-igreja-29252. Acesso em: 20 nov. 2020.

Christian Broadcasting Network: https://www1.cbn.com/cbnnews/health/2020/november/should-christians-take-a-vaccine-that-was-developed-using-cells-from-aborted-babies. Acesso em: 21 nov. 2020.

#IgrejaSemFakeNews: cada pessoa é importante

A campanha eleitoral para prefeituras e câmaras de vereadores deste ano já começou e, devido à circunstância da pandemia da COVID-19, as mídias sociais terão maior influência sobre o resultado desta eleição. Essa virtualização da campanha nos traz algumas preocupações, dentre elas a proliferação de diversas fake news, ou em bom português: notícias falsas. Essas mensagens são produzidas com o objetivo de destruir reputações e se tornaram tão comuns que o termo “fake” acabou entrando para nosso vocabulário cotidiano e já usamos em outros contextos. Isso acontece porque nossa sociedade não havia desenvolvido o hábito de checar a veracidade das informações que nos eram repassadas. No entanto, com a popularização dos smartphones, a produção e a disseminação de informação aumentou muito e requer maior cuidado para verificar se o que chega em nossas mãos é fato ou fake.

Sabemos que a maioria das pessoas não produz as fake news, mas acaba compartilhando por não saber distinguir uma notícia falsa. Muitas vezes o conteúdo da mensagem mistura fatos verdadeiros com falsos ou desatualizados e confunde até os mais atentos leitores. Por isso é importante desconfiar de notícias que são veiculadas sem fontes ou com fontes desconhecidas, que trazem textos alarmantes tentando te convencer de algo, dados desatualizados ou apenas imagens sem explicações. Hoje é possível até colocar um rosto de uma pessoa num vídeo que ela não fez e produzir um vídeo totalmente falso, é o que se denomina “deep fake”. Então, por essa razão, a regra deve ser desconfiar e buscar verificar a autenticidade da informação. Uma outra dica é: não ler apenas a manchete, ler todo o texto e olhar a data da publicação.

Não são meras piadas ou brincadeiras, as fake news são mentiras construídas com o intuito de desestabilizar o debate político e favorecer os interesses econômicos que fomentam sua criação e sua proliferação pelas redes sociais. O mesmo fenômeno é observado em outros países, especialmente em momentos de acirramento político e incerteza. Por isso, o cenário de pandemia, crise econômica e sociopolítica que vivemos durante esta campanha eleitoral pode ser campo fértil para o espalhamento dessa desinformação. Dessa forma, essas mensagens são uma arma contra a democracia e um risco para todas as nações, estados e cidades.

As igrejas são unânimes em condenar a prática da mentira. Na bíblia, manual de fé e conduta cristã, há diversas condenações à prática da mentira, inclusive a que adverte para não acompanhar a maioria quando esta torce a verdade (Êxodo 23.1,2). Mas, os locais de culto e seus públicos não estão isentos de serem contaminados pelas fake news. Ao contrário disso, algumas notícias falsas são construídas com o objetivo específico de circular nesses arraiais e têm sido eficientes em manipular os votos do povo religioso. Você já deve ter recebido no seu celular aquela mensagem que diz que determinado candidato pretende proibir a leitura da bíblia, ou que uma candidata disse que quer fechar igrejas. Essas mensagens moveram inúmeras pessoas a mudarem seus votos sem ao menos se perguntarem se tais afirmações eram verdade.

Foi pensando em prover meios de enfrentamento dessa manipulação do voto, que as Escolas de Fé e Política ligadas ao Instituto Solidare e a Igreja Batista em Coqueiral (Recife-PE), em parceria com a Tearfund e Aliança Bíblica Universitária Brasil desenvolveram a campanha #IgrejaSemFakeNews para contribuir com o confronto destas mentiras disfarçadas de notícias dentro do campo religioso cristão, especialmente entre evangélicos. A campanha também conta com o apoio do Coletivo Bereia e do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE).

A campanha lançou o e-book “Diga Não Às Fake News”, que aborda a problemática do ponto de vista político, ético e teológico. A publicação aposta no estudo comunitário do texto e sugere questões norteadoras que levam à reflexão sobre a conjuntura política, sobre a relação entre fé e política no processo eleitoral e sobre o impacto das fake news para democracia e para a espiritualidade. O e-book propõe uma leitura simples e rápida, que possibilite que cada pessoa possa se informar sobre esses riscos e saiba onde pode checar a veracidade das informações que recebe. Para isso, foram listados os principais sites de veículos de imprensa de credibilidade reconhecida que fazem o “fact-checking”, ou seja, verificam os fatos que circulam nestas mensagens de redes sociais apontando o que é verdade ou mentira. O Coletivo Bereia é um destes sites.

Ainda que o espalhamento das fakes seja rápido e generalizado como uma pandemia, a “vacina” para acabar com isso é assumir a responsabilidade de verificar os fatos que compartilhamos. Então, cada pessoa é importante. Por isso, além de ler e compartilhar o e-book “Diga Não Às Fake News”, você pode contribuir com a campanha postando nas suas redes sociais e falando sobre o risco das fake news. Marcando a tag #IgrejaSemFakeNews você se soma nessa corrente de combate à desinformação dentro das igrejas.