*publicado originalmente no blog Religião em Debate
Escrevo este artigo no contexto da celebração dos seis anos de existência e atuação do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, projeto de enfrentamento à desinformação sobre religião que circula em ambientes digitais religiosos e laicos. A equipe do Bereia frequentemente compartilha, com muito orgulho, que o projeto nasceu de uma atividade científica. Ele foi criado em 2019 como um dos resultados de pesquisa, realizada pelo Grupo de Estudos sobre Desigualdades na Educação e na Saúde (Gedes), do Instituto NUTES da UFRJ, “Valores e argumentos na assimilação e propagação da desinformação: uma abordagem dialógica”. A iniciativa teve como objetivo investigar como a desinformação circula entre grupos ligados a religiões, pelo WhatsApp e também por outras mídias sociais, com foco no segmento evangélico. O relatório intitulado “Caminhos da Desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, publicado em 2021, é um importante recurso que ainda não tem paralelos.
Naquele processo, foi observado que as várias agências e projetos de checagem de conteúdo desenvolvem trabalho relevante, de alcance significativo, no entanto não se dedicam a conteúdos específicos do universo religioso ou ao aprofundamento de elementos relacionados.
Bereia surgiu, portanto, fruto da pesquisa do NUTES/UFRJ, como uma iniciativa independente, sem fins lucrativos, pela necessidade de enfrentamento da desinformação, em especial a que circula em espaços digitais de identidade religiosa. Ela é levada adiante por pesquisadoras/es, jornalistas, profissionais de áreas das ciências humanas e sociais e organizações apoiadoras, estimulados e orienados pela defesa do direito humano à comunicação, à informação, à liberdade de expressão e à liberdade religiosa. O projeto segue como o único com esta característica no Brasil e na América Latina.
Desinformação: do que se trata?
Preliminarmente denominados em estudos como “fake news”, os conteúdos que são objeto da checagem e das abordagens informativas vão além da noção de “notícia falsa”. É um processo que envolve a produção e a propagação de discursos em diferentes formatos que também incluem anúncios, denúncias, sátiras concretizadas nos populares memes. Daí a compreensão de que se trata de um fenômeno complexo.
Embora o uso de mentiras para conquistar apoios ou desmoralizar adversários não seja algo inédito na história, o que se torna novo neste tempo é tanto a intensidade da propagação, viabilizada pela era digital, quanto a sofisticação dos conteúdos falsos e enganosos, elaborados de modo a afetar o público. A lógica consiste em produzir temas que despertem emoções e dialoguem com as visões de mundo das pessoas, impulsionando atitudes como o compartilhamento das mensagens (para que viralizem), a rejeição de determinadas personagens e pautas e o apoio a outras.
A disseminação massiva dessas mensagens é favorecida pelas big techs, corporações que controlam plataformas e aplicativos digitais, como Facebook, Instagram, WhatsApp (da Meta), , o Youtube (da Google), o X, o TikTok, entre outros. Nesses ambientes circula ampla variedade de materiais textuais, imagéticos e audiovisuais, que incluem conteúdos não factuais, fabricados com a intenção deliberada de interferir em assuntos de interesse público e gerar ganhos financeiros e/ou políticos.
Estudos realizados fora do Brasil somados ao que foi desenvolvido pelo NUTES/UFRJ mostram que a religião, em especial o Cristianismo, tem sido identificada como um fator de facilitação na circulação da desinformação, bem como campo de alcance preferencial de seus efeitos. Estas abordagens apontam grupos cristãos como atores relevantes nas vitórias eleitorais de Donald Trump, nos Estados Unidos (2016), e de Jair Bolsonaro, no Brasil (2018), tendo participado ativamente da difusão de conteúdos fraudulentos que mobilizaram afetos e sustentaram as campanhas desses candidatos.
Esses processos tornaram-se paradigmáticos. As eleições brasileiras nos municípios, em 2020 e 2024, assim como as estaduais e nacionais de 2022, mantiveram a mesma dinâmica. E mais: no caso do Brasil, a desinformação se tornou política de Estado com o governo Bolsonaro, sendo o segmento cristão alvo privilegiado das produções do chamado Gabinete do Ódio.
Outros estudos revelam como a população cristã foi impactada pela pandemia de covid-19 em virtude da intensa circulação de conteúdos desinformativos negacionistas sobre as medidas sanitárias e a vacinação nos ambientes digitais religiosos.
A equipe do Bereia com base na pesquisa que forjou o projeto, construiu o conceito de desinformação com o qual trabalha e o oferece como contribuição aos estudos: Conteúdo deliberadamente criado (falso ou manipulado/enganoso) para convencer, captar apoios, confundir (desviar a atenção, dividir), destruir reputações, com a finalidade de se obterem ganhos econômico-financeiros e/ou políticos (defesa de pautas e/ou campanhas eleitorais) para interferência em temas e situações de interesse público.
Com este conceito está a comprensão de que o uso da mentira é um recurso persuasivo antigo na história humana, assim como a circulação de informações equivocadas por erro ou imprecisão não intencional. Contudo, o que distingue o contexto atual é o fato da fabricação e propagação das mensagens ser digital, com alcance amplificado por um vasto ecossistema comunicacional.
Esse ecossistema combina humanos e máquinas (interlocutores reais e perfis forjados, entre eles pessoas fictícias e bots) e opera por meio de conteúdos variados, disseminados de forma segmentada conforme motivações, valores e imaginários de distintos públicos, com a exploração de diferentes formatos e canais. As plataformas das big techs são os principais veículos dessa circulação intensa que é viabilizada por uma verdadeira indústria de conteúdo fraudulento composta por profissionais de várias áreas e financiadores interessados.
A Psicologia Social explica a ampla adesão à desinformação pelas chaves da emoção e da cognição. Mesmo após reconhecerem a falsidade de uma mensagem, muitas pessoas não a descartam, pois ela atua na confirmação de suas crenças, opiniões e modos de ver o mundo, oferecendo-lhes coerência ou conforto.
Pesquisadores associam essa atitude ao “viés de confirmação”: a tendência de validar informações que reforçam convicções prévias, sem verificação. Nesse sentido, a disseminação de falsidades ocorre entre diferentes gêneros, classes sociais, idades, grupos religiosos e ideológicos. Entretanto, pesquisas indicam que há grupos mais propensos à assimalação e à propagação, caso dos ideologicamente conservadores e dos religiosos cristãos.
Desinformação entre cristãos
As pesquisas que apontam que cristãos tendem a absorver e difundir mais intensamente conteúdo fraudulento demonstram que isto se dá não apenas por coerência com suas crenças, mas também pelo sentimento de pertença e de confiança nos ambientes religiosos nos quais estão inseridos. Soma-se a isso o “espírito missionário” para o qual são doutrinados, ou seja, a motivação de compartilhar o que entendem como “verdade revelada”. Este movimento adquire contornos de uma “evangelização” digital, uma forma de difundir mensagens para converter outros à mesma noção. Pessoas de fé cristã são, ainda, alvos preferenciais de discursos alarmistas estruturados no pânico moral e na retórica do medo, que geram alimentam imaginários em torno de inimigos, promovem insegurança e reações defensivas.
A pesquisa do NUTES/UFRJ que gestou o Bereia, voltada ao contexto brasileiro pós-2018, evidencia também que a desinformação circula com facilidade entre religiosos não apenas por alinhar-se a valores e crenças, mas também por fatores ligados à prática da fé. O uso intenso das mídias sociais, em especial dos grupos WhatsApp das comunidades de fé, como extensão da vivência religiosa se configura “um novo ir à igreja”, especialmente entre evangélicos, reforça laços comunitários e a percepção de líderes e irmãos como fontes confiáveis de informação.
Entre os conteúdos verificados pelo Bereia nos seis anos de atuação, são pelo menos três os principais blocos temáticos explorados para mobilizar o apoio de religiosos para pautas na cena pública. Questões ligadas à moralidade sexual, com ênfase sobre infância, adolescência e educação, são centrais. Propagam-se denúncias de doutrinação marxista em escolas e universidades promovidas por governos de esquerda e de erotização de crianças e adolescentes, acompanhadas de forte resistência à educação sexual nas instituições de ensino. O movimento Escola sem Partido e a retórica da chamada “ideologia de gênero”, amplamente disseminada por católicos e evangélicos, alimentam esse processo.
Outro tema de forte apelo é a “cristofobia”, noção construída sobre a ideia de uma suposta perseguição aos cristãos no Brasil, inspirada em presumidos casos internacionais, e associada ao discurso sobre possível ameaça de silenciamento ao grupo religioso e de fechamento de templos por parte de governantes alinhados às esquerdas. Esse conteúdo é frequentemente utilizado por políticos e lideranças religiosas quando criticados por suas posições públicas sobre direitos relativos à sexualidade, à reprodução e a grupos tradicionais.
Além desses temas que acionam crenças e moralidades religiosas, a desinformação entre cristãos também se manifesta em estratégias extremistas de ataque ao sistema eleitoral e ao voto eletrônico. Iniciados em 2018, esses discursos se intensificaram em 2020 e tornaram-se ostensivos em 2022, chegando ao clímax nos ataques às sedes dos Três Poderes da República, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, encontrando ampla repercussão em espaços digitais religiosos. Este conteúdo ainda permanece em circulação, junto com outros como oposição ao atual governo federal, em especial no que diz respeito à economia, à saúde e ao meio ambiente.
Um campo aberto a novos estudos
Nestes anos em que a desinformação se tornou tema de debate público e objeto de pesquisas acadêmicas, ela não só é um processo consolidado que é parte da vida dos milhões de pessoas conectadas nos espaços digitais, como se tornou estratégia política dentro e fora de períodos eleitorais. Com conteúdo fraudulento se faz política para captação de apoios do público com apelo ao pânico e ao sentimento de insegurança, e com destruição de reputações na conformação de inimigos. A ampla assimilação de grupos religiosos ao conteúdo em circulação, com produções destinadas especialmente a eles, é constatada não apenas nas pesquisas de voto, mas também em situações como a queda na cobertura vacinal no país, fruto do negacionismo que encontra terreno fértil entre grupos religiosos.
Iniciativas de enfrentamento deste quadro são articuladas, entre elas o Bereia e outros projetos, entre coletivos e grupos de pesquisa de universidades, reunidos na Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD). Também estão neste grupo as atividades de agências de checagem e as medidas de instituições do Estado, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que passou a incorporar regras específicas sobre propaganda e fake news na legislação eleitoral.
Porém, em um cenário no qual a desinformação se consolida como estratégia para ganhos políticos e econômicos, agora agravado pelo uso da inteligência artificial, se intensifica o desafio de atentar para a instrumentalização da religião como meio de influência sobre temas de interesse público. Muitas abordagens são observadas sobre desinformação, porém poucas ainda que tratem da relação com as religiões. Neste contexto, novos estudos e pesquisas na interface comunicação, religiões e política se colocam como demanda emergente e urgente.
Estudos-Base
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