Um mercado especializado, que vai além de produtos religiosos tradicionais tem sido impulsionado, nos últimos anos, pelo crescimento da população evangélica no Brasil. Condomínios residenciais, parques temáticos, bancos digitais e planos de saúde voltados exclusivamente a esse público revelam uma tendência: a consolidação de um setor econômico que une fé, consumo e identidade religiosa.Com propostas similares, as empresas têm propagado a manutenção de um ideal religioso personalizado através da fé comum.
Segundo dados do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os evangélicos já representam 26,9% da população brasileira. Essa representatividade tem atraído o interesse de setores empresariais que veem oportunidades de investimento em produtos e serviços voltados para esse grupo.
Entre os exemplos mais recentes está o Residencial Clube Manancial da Fé, primeiro condomínio com foco exclusivo no público evangélico, que ganhou destaque nas mídias de notícias em julho passado. Localizado em Nova Iguaçu (RJ), o projeto promete uma “morada edificada sobre os alicerces da tradição familiar”, diz o slogan estampado no website do empreendimento. O empresário responsável pelo condomínio Alcindo Plácido, declarou que seu objetivo é mostrar aos investidores “a força do setor evangélico” e o retorno financeiro possível ao atender esse segmento.
Um dos slogans do empreendimento afirma: “Você não vai à Terra Santa, mas a Terra Santa vai até você”, em referência a elementos arquitetônicos e simbólicos inspirados em Israel, além disso, versículos bíblicos alusivos a áreas como quadras esportivas, ou piscinas, são utilizados para retratar as facilidades do local.

Imagem: Extrato do jornal Folha de S. Paulo on line, publicado em 22 jul 2025
Para a revista Veja, Plácido afirmou que, embora o projeto tenha um apelo religioso evidente, parte das moradias estará aberta ao público em geral. Essa abertura é respaldada pelo artigo 5º, inciso VIII, da Constituição Federal, que proíbe qualquer tipo de discriminação ao acesso a bens e serviços por crença religiosa.
Ainda na esfera do lazer, a Prefeitura do Rio de Janeiro já havia anunciado, em 2024, a criação do parque temático Terra Prometida, voltado ao público cristão. Com 198,5 mil metros quadrados, o parque será construído em Santa Cruz, Zona Oeste carioca, e ocupará a sexta posição entre os parques erguidos na região desde 2021.
“Esse será um parque especial porque, além dos benefícios que trará para o meio ambiente e para a população, também será um espaço dedicado à propagação e ao exercício da fé. Um lugar de congregação, peregrinação e para realização de eventos religiosos, que fará bem ao corpo e à alma”, afirmou o prefeito do Rio, Eduardo Paes, durante o anúncio oficial.
Outro setor que aderiu à lógica da segmentação religiosa foi o bancário. O banco digital Clava Forte, fundado pelo pastor e cantor da Igreja Batista Lagoinha André Valadão, apresenta-se como uma solução financeira voltada ao público gospel. Com sede em Belo Horizonte (MG), o banco oferece serviços como crédito, cashback, planos funerários e seguros de vida. A esposa de André, Cassiane Montosa Pitelli Valadão, atua como diretora do banco.
Em seu site, o banco se apresenta com a missão de criar soluções financeiras personalizadas, oferecendo espaço para instituições religiosas e pastores. Entre os serviços estão financiamentos para apoiar igrejas em seus projetos, além de seguro de vida e planos funerários para líderes religiosos e suas famílias.

O segmento fitness também ganhou versão religiosa. Em Curitiba (PR), foi inaugurado em junho de 2024 o estabelecimento esportivo Sou Mais Cristo, considerada a primeira academia cristã do Brasil. O espaço traz cruzes na decoração, uma sala de oração disponível aos alunos e treinos embalados por música gospel em vez das tradicionais batidas eletrônicas. Segundo o sócio-proprietário Patrick Baptista, a ideia nasceu após sua conversão à fé evangélica e busca oferecer um ambiente mais “familiar e acolhedor”, que já reúne mais de 400 frequentadores. A proposta viralizou nas redes sociais e deve se expandir em modelo de franquias a partir de 2025.

Na área de relacionamentos, aplicativos como o Amor em Cristo seguem a mesma lógica de segmentação. Com uma proposta conservadora e tradicional, o app se propõe a unir casais cristãos, com funcionalidades similares a outras plataformas de encontros, como localização por proximidade e filtros personalizados.

O setor de saúde também aderiu a esta tendência gospel. A plataforma ACBI Saúde disponibiliza planos de saúde, seguros e serviços odontológicos voltados a fiéis e instituições religiosas, com um discurso de acolhimento e cuidado espiritual aliado ao físico.
Diante da multiplicação desses empreendimentos, especialistas analisam o que esse fenômeno representa no contexto religioso e sociocultural brasileiro.
Fenômeno não é novo, mas se atualiza
Para a editora-geral do Bereia e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) doutora em Comunicação Social Magali Cunha, a relação entre fé e mercado é antiga e ganha novos contornos com a consolidação da cultura gospel no Brasil. “Sempre houve produtos religiosos voltados para as pessoas de fé. Em relação a evangélicos, as lojas de produtos para este grupo sempre existiram – livros, camisetas, Bíblias, objetos simbólicos”.
A pesquisadora explica que esse movimento se intensificou a partir dos anos 1990 e 2000, com a expansão do mercado fonográfico gospel e a emergência de um consumo simbólico voltado aos fiéis. “Quando a cultura gospel do show business se ampliou, começaram a surgir também produtos simbólicos diversos, como bares gospel, aparelhos eletrônicos gospel (como o celular da Nokia), cursos pré-vestibular gospel, grifes de roupas e calçados, cosméticos gospel, seguradoras e até sex shops com nomes como ‘Rosa de Sarom’”, ressalta.
Para Cunha, o que se vê atualmente é uma nova fase desse fenômeno, com mais diversidade e alcance. “Com a cultura evangélica consolidada e expandida no Brasil, e o número de fiéis do segmento ampliado para 26,9% da população, conforme o Censo 2022, vemos uma atualização e uma expansão desta cultura mercadológica de bens e serviços com marca religiosa em nova versão — o que podemos chamar de ‘mercado gospel 2.0’. É a expansão do alcance da lógica mercadológica desta cultura religiosa”.
Lógica de consumo e pertença simbólica
Já a professora titular de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e doutora Karla Patriota, enxerga essa expansão como parte de um processo sociocultural mais amplo, onde fé e consumo caminham lado a lado.
“Vejo a expansão do ‘mercado gospel’ como resultado de um processo histórico de longa duração, sustentado por dinâmicas graduais e contínuas que integram práticas religiosas e lógicas de consumo num mesmo ecossistema simbólico. Nesse ambiente, produtos e serviços funcionam como dispositivos de pertença que atravessam múltiplos segmentos, conectando-se a repertórios de fé e estilos de vida.”
De acordo com a doutora em sociologia, essas iniciativas ajudam a consolidar identidades e criam novas formas de vivência religiosa no cotidiano. Ela também destaca os desafios que ainda persistem. “Persistem lacunas de representação e de alinhamento comunicacional que o próprio público identifica como relevantes. O desafio consiste em compreender as gramáticas de uso e os contratos de leitura que se estruturam nesses contextos, valorizando as mediações cotidianas que geram reconhecimento, legitimidade e sentido para um grupo que busca ver refletidas, no mercado, suas concepções identitárias e seu universo simbólico”, indica Karla Patriota.