Pouco mais de um mês após matar a golpes de facão a esposa Auriscléia Lima do Nascimento, 25 anos, na comunidade Campo Alegre, zona rural de Capixaba (AC), o pastor evangélico Natalino do Nascimento Santiago, 50, tornou-se réu por feminicídio e duas tentativas de homicídio. Segundo a denúncia do Ministério Público do Acre, além de assassinar a companheira, ele feriu o filho dela e o cunhado. O histórico do acusado inclui condenações anteriores por homicídio e estupro. O caso traz novamente à tona o tema pouco enfrentado dentro das igrejas: a violência de gênero que atravessa espaços de fé.
O Brasil é um país onde a religião ocupa lugar central na vida cotidiana e pode, sim, funcionar como rede de apoio, acolhendo e oferecendo suporte jurídico a mulheres em situação de violência doméstica. Porém, o mesmo ambiente pode se converter em barreira, quando é pedido para a mulher que ore e sustente a relação em nome indissolubilidade do casamento, em vez de romper o ciclo abusivo. Uma realidade tanto de comunidades evangélicas como católicas.
Os números da quinta edição do relatório Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Datafolha de 2025, reforçam a urgência desse debate específico. Entre as brasileiras que se declaram evangélicas, 42,7% relataram ter sofrido violência por parceiro íntimo ou ex-parceiro ao longo da vida; entre as católicas, o índice é de 35,1%. O recorte religioso dialoga com outra informação relevante: a população evangélica atinge cerca de 26,9%, de acordo com o Censo 2022 do IBGE.
Dentro de certas comunidades, mulheres que tentam denunciar agressões esbarram em discursos teológicos que naturalizam o sofrimento feminino e demonizam a separação. É nessa hora que o Movimento Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG) se insere como espaço de acolhimento a partir de uma perspectiva de fé libertadora. “A violência de gênero e de raça/etnia, assim como a violência política e doméstica, perpassam ambientes religiosos com diversas nuances. Hoje sabemos que as mulheres evangélicas são as que mais sofrem violência doméstica no Brasil, sendo que, entre elas, as negras e residentes em periferias são as maiores vítimas”, afirma a teóloga e doutora em Ciências da Religião Lauana Flor, integrante do EIG.
“É possível entrelaçar debates e promover construções coletivas que dialoguem com vivências religiosas e espiritualidades diversas, para enfrentar as múltiplas formas de violência, inclusive as religiosas e espirituais, que atingem meninas, mulheres cis, travestis e mulheres trans”, analisa a teóloga, que ainda lembra sobre a importância da Área 44, do Ministério da Educação e Cultura (MEC), que trata de Teologia e Ciências da Religião, como espaço legítimo para falar sobre democracia, laicidade do Estado e experiências cotidianas.
A pastora e pesquisadora Lívia Carvalho, membra do EIG, reforça o dado do Fórum de Segurança Pública que aponta a religiosidade cristã como um ambiente onde “há inúmeros registros de violência contra a mulher” e defende políticas públicas que considerem a espiritualidade como parte da saúde integral feminina. “Acreditamos em um Cristo que traz justiça social e vida abundante, e na manifestação feminina de Deus na figura de Ruah, pois somos feitas à imagem do divino, com direito à dignidade, ao bem-viver e à restauração corporal”.
A atuação do EIG não se restringe à denúncia. Em junho, a organização iniciou uma série de três conferências intituladas Livres, com o objetivo discutir fé, democracia e políticas públicas de gênero que rompam o ciclo da violência dentro das igrejas. A organização pretende levar propostas à 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres e compor uma Plataforma Nacional das Mulheres. Antes mesmo da conclusão, integrantes do EIG levaram até a ministra do governo federal da Mulheres Márcia Lopes propostas debatidas no primeiro encontro.
Foto: acervo/EIG
As próximas edições da conferência estão marcadas para os dias 26 de julho e 9 de agosto. “Nossa fé não nos cala, nos move. O Evangelho que seguimos é antirracista, acolhedor e comprometido com a justiça social”, declara a presidenta do EIG, a cientista da Religião Valéria Cristina Vilhena.
Para participar, inscreva-se pelo formulário https://forms.gle/oPc22qf52jvTXDqh8 e siga EIG @mulhereseig no Instagram
***
Imagem de capa: Tânia Rego/Agência Brasil