Deputada evangélica pratica intolerância religiosa ao criticar encontro de primeira dama com mulheres de igrejas

A deputada federal evangélica Clarissa Tércio (PP-PE) usou seu perfil no Instagram para atacar a Primeira Dama Janja da Silva, que se encontrou com mulheres evangélicas e participou de culto durante visita a Caruaru (PE), no último 30 de setembro. De acordo com a deputada, “dias atrás ela estava no terreiro de macumba, e agora quer posar de ‘amiga das evangélicas’”. 

Reprodução: Instagram

A parlamentar também afirma, no mesmo vídeo, que “eles (o Partido dos Trabalhadores, as esquerdas, lideranças progressistas) querem o voto das mulheres de Deus, mas não têm respeito nenhum pelo Evangelho”. Em outra publicação, Clarissa Tércio também reprime a presença de membros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em um culto evangélico. “Janja chegou na igreja com o MST… só esqueceram de avisar que invadir o que é dos outros não tá no Evangelho”, escreveu na legenda. No último 2 de outubro, a vereadora Liana Cirne (PT-PE), de Recife, denunciou a deputada federal ao Ministério Público Federal por intolerância religiosa. 

A Primeira Dama do Brasil, que é praticante de religiões de matriz africana, já afirmou que tem buscado entender como as políticas públicas do governo do presidente Lula têm atingido as mulheres, principalmente mulheres negras e das periferias. Janja mencionou, ao compartilhar sobre o encontro com as evangélicas em Caruaru, que foi um momento potente e de troca de experiências. “Quando caminhamos lado a lado, a esperança se fortalece e a transformação acontece”, escreveu.

Mesmo não sendo abertamente professa de qualquer religião, Janja já acenou em entrevista que se emociona em diferentes contextos religiosos, como na missa, com a fala do padre, com o tambor do candomblé e da umbanda, e com hinos evangélicos. A Primeira Dama já relatou ter sofrido intolerância outras vezes, e frequentemente é vítima de desinformação relacionada à sua proximidade com religiões de matriz africana. Em julho de 2024, por exemplo, Bereia desmentiu que ela havia encomendado um ritual de candomblé para reduzir o dólar.

Jurista afirma que falas da deputada federal se enquadram como intolerância religiosa

De acordo com, doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Renato Ribeiro de Almeida, crenças religiosas não devem estar na discussão política. “Quando se ataca o que uma pessoa pensa, temos uma crítica política. Quando o ataque se direciona às crenças da pessoa, deixa de ser política”. 

Ele acrescenta que as falas da deputada federal Clarissa Tércio podem ser consideradas criminosas, e que a imunidade parlamentar não é salvo-conduto para a prática de crimes. 

“A intolerância religiosa apresenta ampla possibilidade de interpretação. O caminho é analisar se nas palavras houve a intenção de ofender, humilhar ou menosprezar quem é praticante de dada religião. No contexto dos fatos, parece-me que a deputada pretendeu justamente atacar a primeira dama”, afirma o jurista. 

Líderes evangélicos defendem que deputada contraria ensinamentos cristãos

Desde julho de 2025, Janja e Lula participaram de vários encontros com evangélicos, como a participação no podcast “Papo de Crente”, em setembro; visita de Janja a igreja de pastor crítico a Malafaia, em Brasília, e reunião com grupo de evangélicas em Salvador, em agosto, e participação de Janja e da ministra Anielle Franco em encontro com evangélicas no Rio de Janeiro, em julho. Bereia ouviu pastoras e pastor sobre a reação publicada pela deputada evangélica do PP.

A pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana Romi Bencke comenta que o encontro de Janja com mulheres de diferentes fés não parece ser sobre “estar atrás de voto”, mas sobre valorizar as diferentes espiritualidades das mulheres brasileiras. “A religião é um elemento importante para boa parte das mulheres no Brasil. O encontro entre Janja e mulheres evangélicas é um belo exemplo de como deveria ser o Brasil, ou seja, sem intolerâncias e discriminação”. 

A líder eclesiástica enxerga o encontro como um acerto da Primeira Dama ao “ouvir o que mulheres evangélicas pensam sobre a política e sobre os desafios de se viver em uma sociedade misógina, mas que têm nas mulheres o pilar de sustentação das casas e dos cuidados”. 

As mulheres, evangélicas ou não, votam em quem quiser, argumenta Bencke, que vê o encontro em Caruaru como uma demonstração de que podemos e devemos dialogar e nos reconhecer em nossas diversidades.“Tomara que ela repita estes encontros com mulheres de outras espiritualidades,reafirmando este Brasil feminino com diferentes experiências do sagrado”, conclui.

Para o pastor batista Sérgio Ricardo Dusilek, a fala e os vídeos da deputada hostilizam alguém que deveria ser acolhida por quem professa a fé evangélica. “Não faz o menor sentido alguém que se diz evangélico botar uma porta giratória na frente da igreja e começar a dizer quem entra e quem não entra. Porque se se coloca isso, você tem que mostrar a carteirinha. Se só pode entrar quem é crente premium, então virou clube, já não é mais igreja. Não deveria haver nenhum óbice, nenhum obstáculo para que Janja ou qualquer outra pessoa que deseje participe de um culto em uma igreja evangélica”, afirma.

O pastor acrescenta que as falas da parlamentar não representam o posicionamento dos evangélicos como um todo, pois para a grande maioria do mundo evangélico, “o que mais se quer é que as pessoas que não professem a fé que nós professamos comecem a frequentar as igrejas que nós vamos, para que, quem sabe, de alguma forma, em algum momento, elas tenham um encontro com Jesus”.

Sérgio Dusilek também critica grupos fundamentalistas da extrema direita, do meio evangélico e também do integrismo católico, que vêm, desde as eleições de 2018, colocando a escolha político-partidária e o voto como se fossem equivalentes a uma profissão de fé, o que não é verdade. 

“Dizer que uma pessoa só pode se considerar salva se e somente se crê em Jesus e também vota no Bolsonaro (porque, se crê em Jesus e vota no Lula, salva ela não é), é uma argumentação estranha ao coração do evangelho. O evangelho é a afirmação de que Jesus completou cabalmente a obra salvífica na sua morte vicária e também na sua ressurreição. Então não há nada mais”, afirma.

A reverenda da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil Bianca Daéb’s reitera que pessoas políticas que usam o texto bíblico para pregar o ódio precisam ser denunciadas como quem tem compromisso com sua autopromoção. Ela destaca o compromisso da Constituição Federal de 1988 em garantir a liberdade de culto e de crença. “Estamos numa democracia, e as pessoas podem defender pontos de vistas distintos, podem discordar sobre questões políticas e argumentar acerca de suas ideias. Mas, se a pessoa, sobretudo se for cristã, deixar os argumentos de lado para fazer falsas acusações, certamente ela comete crime e pode ser processada, além de dar um péssimo testemunho”, afirma.

“Eu vejo com alegria grupos de mulheres e juventudes que se  levantam desde as periferias do Brasil  resgatando um Evangelho de potencial revolucionário, com força suficiente para questionar o sistema e com abertura para o ecumenismo e diálogo inter-religioso, mantendo acesa nossa esperança profética que nos permite viver a fé na beleza de nossa diversidade”, diz Daéb’s.

Intolerância religiosa no Brasil

Assim como apurado pelo Bereia, a intolerância religiosa é um problema grave no Brasil. De acordo com dados do canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Disque 100, o Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa em 2024, um aumento de mais de 80% em relação a 2023, que teve 2.128 casos. As religiões que registraram o maior número de violações foram a umbanda e o candomblé, ambas de matriz africana. Os evangélicos ocupam o terceiro lugar no ranking, com 111 registros em 2024, crescimento de mais de 50 ocorrências em relação a 2023. A maioria das vítimas da discriminação religiosa são mulheres, que foram vítimas de 1.423 casos registrados no Disque 100 em 2024.

No Brasil, há duas leis específicas sobre intolerância religiosa: a Lei nº 7.716/1989 (Lei Caó), que considera como crime de racismo a prática de atos que envolvam discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; e a Lei nº 9.459/1997, que define o crime de discriminação ou preconceito de religião e estabelece que a discriminação religiosa é um crime inafiançável (o acusado não pode pagar fiança para responder em liberdade) e imprescritível (pode ser punido a qualquer tempo), com pena de reclusão de um a três anos e multa. 

Além dessas legislações, o Código Penal (CP) tipifica o crime de “Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo” e prevê punição para quem zombar de alguém por motivo de crença religiosa, impedir ou perturbar cerimônia religiosa ou vilipendiar objeto de culto. O CP também descreve a injúria racial com a qualificadora de intolerância religiosa, quando alguém ofende alguém com xingamentos relacionados à religião, e prevê pena de um a três anos de reclusão.

Uma das formas de promoção de intolerância e da violência religiosas é a instrumentalização da religião por políticos para criar reação negativa e destruir reputação de opositores. Intolerância e violência religiosa é o conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a diferentes crenças e religiões, podendo em casos extremos tornar-se uma perseguição. É um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana, e essa violência constitui práticas de extrema gravidade.

Verbete sobre intolerância religiosa publicado na Plataforma Religião e Poder do Instituto de Estudos da Religião (ISER), a liberdade religiosa, garantia constitucional, não significa agredir e destruir outras fés, mas conviver, respeitar e construir a paz social. A intolerância religiosa intensificou-se no Brasil na última década com a instrumentalização política da religião por movimentos que promovem uma visão de mundo hegemônica ao utilizar discursos e símbolos religiosos para fins políticos.

Com isso, grupos extremistas excluem visões diferentes, e têm como principais alvos as religiões minoritárias, especialmente as de matriz africana, espiritualidades indígenas, a fé islâmica e também ateus. No período eleitoral de 2021-2022, por exemplo, a organização Safernet registrou um aumento de 522% nos casos de intolerância religiosa online. Nesse contexto, o discurso de “liberdade religiosa” é distorcido para justificar posturas autoritárias, alimentar a retórica de guerra contra “inimigos” e atuar contra a pluralidade religiosa e os avanços da inclusão social.

Bereia chama a atenção para o tipo de oposição política extremista que usa a religião para se basear em mentiras e intolerância religiosa, estimulando ódio às diferenças. Oposição política é saudável em uma democracia, por meio de debates qualificados e denúncias, quando couberem, não com o uso de discurso de ódio e preconceito contra pessoas e religiões determinadas. 

Um Estado laico não deve oferecer espaço em suas instituições e representantes para que determinadas expressões de fé se sobreponham sobre outras e haja promoção de intolerância. Em um contexto democrático e plural,  o diálogo e a cooperação inter-religiosos deve ser ressaltado por agentes públicos como fonte de paz e  coexistência pacífica e deve ser incentivado e não desqualificado e demonizado.

Referências:

Bereia

https://coletivobereia.com.br/para-criticar-politica-economica-opositores-espalham-noticia-de-jornal-inventada-sobre-esposa-de-lula-e-candomble/ Acesso em 7/10/2025

https://coletivobereia.com.br/o-que-e-o-sionismo-cristao-e-por-que-ele-e-usado-politicamente-no-brasil/ Acesso em 7/10/2025

https://coletivobereia.com.br/extremismo-religioso-na-politica-stf-recebe-mensagem-com-ameaca-ilustrada-com-simbolos-catolicos/ Acesso em 7/10/2025

https://coletivobereia.com.br/fala-do-deputado-pastor-marco-feliciano-contra-religioes-de-matriz-africana-reabre-debate-sobre-intolerancia-religiosa/ Acesso em 8/10/2025

https://coletivobereia.com.br/a-intolerancia-religiosa-e-um-problema-grave-no-brasil-o-que-fazer/ Acesso em 8/10/2025

CNN Brasil

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/intolerancia-religiosa-no-brasil-cresceu-mais-de-80-diz-estudo/ Acesso em 8/10/2025

G1

https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/11/14/ser-ligada-a-uma-religiao-de-matriz-africana-so-me-da-orgulho-afirma-janja-sobre-intolerancia-religiosa.ghtml Acesso em 7/10/2025

Instagram

https://www.instagram.com/p/DPPx_bkDj90/?img_index=2 Acesso em 7/10/2025

https://www.instagram.com/reel/DPM5vaeAa0P/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA== Acesso em 7/10/2025

Ministério dos Direitos Humanos

https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/paineldedadosdaondh Acesso em 8/10/2025

Poder 360. 

https://www.poder360.com.br/poder-gente/janja-se-encontra-com-mulheres-evangelicas-em-caruaru-pe/ Acesso em 7/10/2025.

Religião e Poder

https://religiaoepoder.org.br/artigo/intolerancia-religiosa

Safernet – Planilha de denúncias de intolerância religiosa

https://docs.google.com/spreadsheets/d/1UXTafDanz6hszfAFbOmnO5dxsd6_cMX1Mi7OimdjtWU/edit?gid=0#gid=0

X https://x.com/LianaCirne/status/1973818550658990361?t=kzkzL94OJmfOSEX09QO2xw&s=19 Acesso em 7/10/2025

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