Um olhar evangélico “raiz” sobre o Papa-Pastor viveu sua Páscoa

***Versão completa do artigo publicado pela Carta Capital, em 21 de abril de 2025.

E o Papa Francisco viveu sua Páscoa-Passagem! Depois de semanas de sofrimento, com uma pneumonia bilateral, Francisco fez sua travessia “para os braços de Deus” – uma expressão religiosa muito cara aos evangélicos no Brasil.

Como já escrevi neste espaço de Carta Capital, quando das celebrações dos dez anos do pontificado de Francisco (2023), evangélicos brasileiros, majoritariamente, tiveram um imaginário em torno dos Papas da Igreja Católica construído com base em rejeição.

A herança crítica da Reforma Protestante à “corrupção” que a Igreja de Roma promoveu contra o Evangelho, alimenta um imaginário negativo na figura do seu líder maior, o Papa. A imagem é fortemente atrelada à ideia do poder terreno que perverte a fé (como chefe de Estado) e à riqueza representada no amplo no patrimônio da Igreja Católica.

Quando o Papa Francisco assumiu, em 13 de março de 2013, ele sucedia, praticamente, dois papas. Primeiro, João Paulo II que, por 26 anos, se tornou muito popular, marcadamente por suas dezenas de visitas papais a muitos países do mundo. Deu atenção a povos e situações antes esquecidas pela liderança maior da Igreja Católica, colocando-se fisicamente presente.

João Paulo II, porém, tornou-se também conhecido como aquele que “puxou o freio do processo e deu marcha-ré” a uma série de avanços do Vaticano II, com a assessoria especial daquele considerado seu “braço direito”, o cardeal e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o antigo tribunal da Inquisição) Joseph Ratzinger.

A ofensiva conservadora que marcou a Igreja Católica, no final dos anos 1980, nos anos 90 e nos 2000, estabeleceu um período de oposição a tudo o que alimentasse a igreja progressista, acusada de ser um desvio marxista. Foram 26 anos de pontificado de João Paulo II (1978 -2005), caracterizados por perseguição a bispos, padres, freiras e leigos ligados à Teologia da Libertação, ou simplesmente lideranças comprometidas com os princípios do Concílio Vaticano II, a fim de “restaurar a grande disciplina”, como João Paulo II afirmou ser prioridade de seu papado, no discurso inaugural.

Ratzinger se tornou o Papa Bento XVI, em 2005, para manter e garantir continuidade desse projeto, afinal, 172 dos 184 membros do Colégio Cardinalício foram nomeados por João Paulo II. Porém, foi um curto papado. Em 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI apresentou sua renúncia.

Foi neste contexto que, um mês depois, um Conclave elegeu como Pontífice o argentino, religioso da ordem dos jesuítas, Jorge Mario Bergoglio. Numa referência ao santo de Assis, reconhecido pelo seu trabalho com os empobrecidos, o primeiro latino-americano a se tornar papa escolheu o nome Francisco. A escolha do nome marcava a identidade do episcopado de Bergoglio, como um homem sem luxos, com vocação missionária.

A qualidade de Francisco como “pastor”, elemento significativo do seu papado, relevante característica de uma liderança religiosa sacerdotal, do ponto de vista evangélico “raiz” (não aquele das igrejas-corporações, das churches, ou de Legendários), possivelmente colaborou para a reconstrução da imagem do Papa entre evangélicos, com elementos muito positivos.

A figura do pastor é muito destacada na tradição cristã pela atividade pecuária que marcava o sustento da vida: a criação de ovelhas e o trabalho do pastoreio. Esta atividade era transportada simbolicamente para a vivência da fé.

Deus é considerado o Verdadeiro Pastor, o modelo de pastoreio, pois tem autoridade e é dedicado àqueles de quem cuida, tem poder e carinho, tem vigor e ternura. A maior imagem disto está no Salmo 23, “O Senhor é meu Pastor e nada me faltará”. Assim como Deus faz, os governantes e os líderes religiosos deveriam fazer também, na responsabilidade de conduzir o povo, para o seu bem-estar.

Jesus demonstra, então, com suas ações todas baseadas em misericórdia e justiça, o sentido de ser um bom pastor: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10.11-15). Jesus reafirma o sentido do pastoreio das ovelhas que, nesta imagem, representam todos que carecem de cuidado amoroso, misericordioso e justo: acompanha-as todas, guia, cuida, conduz, abre caminhos seguros, de bem viver.

A tradição das igrejas evangélicas (o sentido de “raiz”), do valor ao pastoreio dos sacerdotes, no cuidado com o rebanho mais próximo, a Igreja, e o mais amplo, o mundo, torna possível olhar para o pontificado implementado por Francisco por este prisma: o do Papa-Pastor.

São muitos exemplos dos 12 anos de pontificado de Francisco. A começar da primeira visita papal, pouco mais de três meses depois de assumir a função, em 8 de julho de 2013, a Lampedusa. a ilha é uma das principais rotas de entrada de refugiados do Norte da África, via Mar Mediterrâneo, pela Itália, em busca de sobrevivência na Europa. A ida do então novo papa funcionou como um “cartão de visita” do que a ele passaria a representar.

Quando Francisco visitou Lampedusa, estimava-se que cerca de 20 mil pessoas haviam morrido na travessia precária pelo mar nas duas décadas anteriores. Dias antes, um barco com 165 migrantes do Mali atracou no porto. No dia em que ele estava na ilha, 120 pessoas foram resgatadas no mar depois que os motores de um barco quebraram a 11 quilômetros da costa, entre elas, quatro mulheres grávidas.

Depois de colocar uma coroa de flores no mar para reverenciar os mortos, Francisco pronunciou crítica ao que chama de “globalização da indiferença” aos migrantes, classificando-os como principais vítimas de uma “cultura do descartável”.

“Peçamos ao Senhor a graça de chorar sobre a nossa indiferença, de chorar pela crueldade do nosso mundo, do nosso coração e de todos aqueles que no anonimato tomam decisões sociais e econômicas que abrem as portas para situações trágicas como esta”, desafiou Francisco na ocasião. O Papa-Pastor estabelecia ali sua plataforma de trabalho ancorada no pastoreio do cuidado comprometido com a justiça, como o desejo que manifestou a jornalistas, em encontro logo após sua eleição: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!”.

Neste contexto, Bergoglio inscreveu seu nome como o primeiro Papa latino-americano, o primeiro Papa jesuíta, o primeiro Papa com o programático e simbólico nome de Francisco. Tudo isto o tornou singular e suficiente para fazer história.

Com aquela base teológica e pastoral que tornou pública em Lampedusa, Francisco atuou pela paz e pela justiça em muitas frentes, com a das relações Estados Unidos-Cuba, pelo fim da guerra entre Ucrânica e Rússia e, mais recentemente, na denúncia do genocídio promovido por Israel contra a Palestina. Ele produziu também, importantes plataformas para a Igreja Católica.

A sua primeira carta pastoral publicada em novembro de 2013 foi intitulada “La alegría del Evangelio” (Evangelii Gaudium). Ela traz um tema importante na teologia e na cultura das igrejas evangélicas “raiz” que é o da conversão. A ideia de conversão vem do termo grego “metanoia”, traduzido como “mudar de ideia”, “mudar o modo de pensar e sentir”. A raiz latina “conversio”, “mutatio”, evoca a noção de transformação, mudança. Por isso, se construiu uma pregação, entre evangélicos, embasada na ideia de transformação, nas crenças e nas práticas, e com ela a mudança de percepção do mundo.

Descartada a reflexão em torno do proselitismo dos evangélicos, centrado na conversão à crença e no (re)batismo, e na mudança de vida ancorada na moralidade puritana, a noção de que o encontro com o Evangelho de Cristo traz mudança de vida, é um elemento-chave nesta leitura pastoral.

É esta a linha da reflexão que o Papa Francisco impôs à sua Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”, que encontra ressonância nesta tradição evangélica ainda viva em parcela importante das igrejas brasileiras. No texto, o papa pede aos fiéis que se desloquem com a noção da “Igreja em Saída” – uma igreja que não é fechada em si mesma e vai ao encontro dos desafios missionários impostos pelo mundo e suas injustiças.

Na Encíclica, Francisco inclui até mesmo uma “conversão do papado”, para torná-lo “mais fiel ao significado que Jesus Cristo quis dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização”

A noção de “igreja em saída” abriu caminho para aprofundamentos que passam pelo cuidado com toda a Terra, expresso na importantíssima Encíclica Laudato Si (2015) e na realização do Sínodo da Amazônia (2019). Também se conecta com o cultivo de fecundos encontros e expressões de amor que Francisco teve com lideranças de igrejas irmãs e de outras religiões.

Neste caminho, o Papa-Pastor, pregador da conversão, colocou como prioridade, no seu primeiro ano, a reestruturação das instituições financeiras do Vaticano, para que estivessem alinhadas com as regras internacionais de transparência e acompanhadas por um controle visível.

Ao mesmo tempo, Francisco frustrou expectativas de conversão entre fiéis progressistas, com posições conservadoras em relação à justiça para mulheres e para pessoas LGBTQIA+. Ele se rendeu à falaciosa noção de “ideologia de gênero”, apesar de ter realizado gestos amorosos e inclusivos para com mulheres e para com a população LGBTQIA+.

Porém, os focos de oposição manifestos em várias partes do mundo ao Papado marcadamente humanitário e conciliador de Francisco devem-se fortemente ao legado conservador dos dois pontificados passados. Há muita resistência de alas da Igreja Católica a suas ações marcadas pela reestruturação das confusas finanças do Vaticano, criação de comissão para combater abuso sexual de crianças na Igreja, defesa de uma Igreja mais tolerante em questões de família, duras críticas ao capitalismo, à destruição do meio ambiente e ao enfrentamento dos poderes que promovem guerras e morte.

É fato que Francisco fez história com sua proposta de imprimir um estilo humanizado ao cargo, coerente com suas ideias. Foi assim que ele marcou seu pontificado como um Papa-Pastor: buscou se aproximar das pessoas comuns e de suas mazelas, com discursos simples, ações e propostas de humildade para a Igreja. Francisco, portanto, rompeu com o histórico aparato em torno do cargo, que tende a afastar Pontífices dos fiéis, e mais ainda dos considerados “infiéis”. Ao mesmo tempo que atingiu racionalidades, afetou corações.

Por estas coisas, é possível reconhecer que um significativo número de evangélicos brasileiros puderam se sentir um pouco mais próximos e menos avessos a um Papa. Este é um exemplo de como Francisco deixa um legado importante, não apenas para quem se reconhece cristão, mas para todas as pessoas com ou sem religião, que têm sede e fome de justiça.

** Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

Foto de Capa : Vatican News/Reprodução

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