Uma onda de teorias conspiratórias, interpretações simbólicas e místicas e paralelos proféticos, relacionada à morte do Papa Francisco chegou à equipe do Bereia nas últimas semanas. A ela se soma um intenso debate nas mídias digitais, com especial enfoque em círculos religiosos.
Francisco, líder da Igreja Católica Romana desde 2013, faleceu no dia 21 de abril de 2025, em sua residência na Casa Santa Marta, no Vaticano. De acordo com o comunicado oficial da Santa Sé, a causa da morte foi um acidente vascular cerebral fulminante, seguido de colapso cardíaco. Apesar da clareza do comunicado e da cobertura televisiva dos ritos fúnebres, o fato do falecimento do pontífice, embora esperado após semanas de internações e histórico médico, gerou esta massa de desinformação. Bereia reune nesta matéria uma parcela do que foi coletado e pesquisado pela equipe.
A data, a hora da morte e o clube do coração
Um dos detalhes que mais gerou repercussão nas redes foi a divulgação de uma “numerologia” que representava a idade e o horário da morte do Papa: 88 anos e 2h35, horário argentino de seu falecimento. A união dos números coincide com os dígitos finais da credencial de sócio do clube de futebol San Lorenzo de Almagro, pelo qual Francisco era apaixonado: 88235. O clube divulgou no perfil oficial no X um vídeo em homenagem ao seu mais ilustre torcedor, com a imagem da carteirinha de Bergoglio.
Imagem: Reprodução X
De fato, os números coincidem, o que não significa uma correlação direta entre um clube de futebol e a morte de um Papa. Porém, a constatação acionou uma série de suposições publicadas em mídias sociais.


Bergoglio é o “Anticristo” e o “Último Papa”?
A morte do Papa Francisco reacendeu debates sobre profecias que circulam há décadas, especialmente, em ambientes evangélicos, que supostamente preveem o fim dos tempos. Entre elas, destaca-se a chamada Profecia de São Malaquias, ou a “Profecia dos Papas”, uma lista de 112 ou 113 frases em latim, que descreve os papas da Igreja Católica, começando com Celestino II até o último papa (Petrus Romanus).
A lista teria sido escrita pelo arcebispo de Armagh (Irlanda), no século 12, Máel Máedóc Ua Morgair, que foi canonizado como São Malaquias, no final daquele século. O texto ganhou notoriedade com a publicação do historiador e monge beneditino francês Arnold de Wion, na obra Lignum Vitae (1595). Na lista, cada papa é representado por um lema em latim, que poderia refletir sua personalidade ou o contexto histórico do seu pontificado. De acordo com a teoria, o arcebispo irlandês teria descrito os papas que liderariam a Igreja Católica até o Juízo Final. O manuscrito de 900 anos diz que o ‘Apocalipse’ viria após a consagração do 112º Papa, que foi Francisco.
Segundo interpretações populares, o Papa Francisco corresponderia ao penúltimo lema, que antecede o “Petrus Romanus” (“Pedro Romano”), o último papa que governaria durante grandes tribulações. A inscrição de São Malaquias sobre “Pedro Romano” diz: “Na extrema perseguição da Santa Igreja Romana, sentar-se-á Pedro Romano, que apascentará as ovelhas em muitas tribulações; e quando estas coisas terminarem, a cidade das sete colinas será destruída, e o Juiz terrível julgará o seu povo. Fim.”
A rede de teorias baseadas nessa suposta profecia viralizou na última semana. Entre os evangélicos, a morte e a escolha de um novo líder para a Igreja Romana reacenderam as teorias apocalípticas divulgadas, em especial, por grupos adventistas, pela editora “Chamada da Meia-Noite” e pela teologia dispensacionalista — uma interpretação da bíblica que divide a história da humanidade em diferentes “dispensações” ou períodos, nos quais Deus interage com o homem de maneiras distintas. Este sistema teológico enfatiza a separação entre Israel e a Igreja, com cada um tendo um papel único no plano de Deus. Tal noção foi reforçada, mais recentemente, pelo sucesso editorial do best seller “Deixados Para Trás”, sucesso nos Estados Unidos no começo dos anos 2000 (simbolicamente, a virada do segundo milênio) e foi produzida em filme.
Na leitura dispensacionista do Apocalipse, no fim do mundo há uma guerra em Israel, a morte do papa e uma crise civilizatória. Evidentemente, os três eventos acompanham a história da humanidade desde 1054 – data em que o Bispo de Roma e o Patriarca de Constantinopla se excomungaram mutuamente.
Teses semelhantes já haviam circulado durante os pontificados de Pio XII (contemporâneo de Adolf Hitler) e de João Paulo II (contemporâneo da Queda do Muro de Berlim). Para ampliar as teses macabras e acionar os buscadores de presságios, foi propagada a história de que, em 1958, o cadáver de Pio XII, saturado de gases internos, após longo velório, teria se rompido.
Bereia levantou publicações que divulgam o resumo das “profecias dos papas”, relacionados ao capítulo 17 de Apocalipse. Elas apresentam uma leitura tradicionalista e conservadora sobre o lugar e do poder da Igreja Católica, como se pode identificar:
1. Pio XII (1939–1958) Último pilar da tradição católica. Seu “reinado” marca o início da preparação do ciclo profético, antes da grande ruptura.
2. João XXIII (1958–1963) Convocou o Concílio Vaticano II. Foi o iniciador da “transformação espiritual da Igreja”, abrindo caminho para mudanças profundas.
3. Paulo VI (1963–1978) Implementou as reformas do Concílio. Seu “reinado” consolidou a “perda das tradições milenares e acelerou a crise interna da fé”.
4. João Paulo I (1978) “Reinou” apenas 33 dias. Cumpriu o sinal do “reinado breve”, previsto na profecia, e simbolizou a “fragilidade do tempo”.
5. João Paulo II (1978–2005) Liderança mundial carismática. Promoveu a “expansão espiritual da Igreja, mas também cedeu ao espírito do mundo moderno”.
6. Bento XVI (2005–2013) Lutou pela “defesa da tradição em meio ao isolamento”. Seu papado representou a “última grande resistência antes da divisão aberta”.
7. Francisco (2013–2025) Promoveu uma “abertura extrema e favoreceu o cisma interno”. Sua morte “marca o fim dos sete reis e o encerramento da era”.
8. O Futuro Papa Será o “oitavo rei”. O seu surgimento representa o “fechamento do ciclo profético e a manifestação da besta que caminha para a perdição”.

Profecia de São Malaquias
A pesquisa sobre este assunto indica que estudiosos questionam a autenticidade e a interpretação dessa profecia; entre eles está o escritor Anura Guruge. Ele afirma que, apesar de a profecia usar o nome de São Malaquias, não vale a pena prestar atenção nela. “O fato é que Malaquias é um santo católico, então alguns católicos atribuem qualidades mágicas ou espirituais à visão. O que eles tendem a não entender é que, muito provavelmente, tudo isso é uma falsificação”.
Para a maioria dos teólogos e historiadores eclesiásticos, a chamada “Profecia dos Papas”, atribuída a São Malaquias, é considerada uma falsificação. Para o professor do departamento de Teologia da PUC-SP Dayvid da Silva, a “profecia” usou o nome de São Malaquias para ganhar relevância. “Esse texto é aquilo que nós chamamos de pseudoepígrafo, que é quando você escreve um texto e para obter relevância você coloca o nome de alguém famoso ou de um santo famoso, alguém com uma certa autoridade”, explicou. Não existem registros contemporâneos que comprovem que São Malaquias tenha escrito essa profecia durante a vida.
O intervalo entre a morte de São Malaquias, em 1148, e a primeira publicação da suposta profecia, em 1595, é de mais de 400 anos. O texto foi divulgado pela primeira vez pelo beneditino Arnold de Wion, como já indicado nesta matéria. Além disso, não há qualquer menção a essa profecia nos escritos de São Bernardo de Claraval, biógrafo e amigo pessoal de São Malaquias. Como aponta o pesquisador em História e Filosofia Medieval Dr. Luis Alberto De Boni, São Bernardo descreve Malaquias como um “homem de espírito profético”, mas sem citar qualquer obra. Dado o relacionamento próximo entre os dois, seria improvável que Bernardo desconhecesse tal documento caso ele realmente existisse.
Diante disso, muitos teólogos e historiadores consideram a Profecia de São Malaquias como uma desinformação do século 16, possivelmente elaborada para influenciar eleições papais da época. Assim, não há embasamento teológico ou histórico sério que ligue Francisco a um suposto “último Papa”.


O fim do mundo, mais uma vez…
No prefácio da obra “Visions of the End, Apocalyptic Traditions in the Middle Ages” [Visõesdo Fim, Tradições Apocalípticas na Idade Média”, em 1979, o historiador Bernard McGinn afirma,, que o apocalipticismo faz parte das três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Todavia, a literatura apocalíptica ganhou impulso na Idade Média entre os cristãos – especialmente por conta da virada do milênio e das guerras religiosas promovidas pelas Cruzadas e após a Reforma Protestante do século 16. Viradas de milênio e movimentos de mudança cultural, tecnológica ou transformação geopolítica também são apontadas como “catalizadores” de movimentos milenaristas e de propagação de seitas apocalípticas.
Estudiosos da Bíblia no Brasil compartilham da mesma compreensão. O professor e pesquisador em Cristianismo Primitivo Paulo Augusto de Souza Nogueira afirma que o Apocalipse de João, na Bíblia, é um texto que fascina a humanidade. “Suas imagens misteriosas e sua narrativa surpreendente nos causam admiração, encanto, mas também pavor. Devido a seu potencial simbólico tem sido travada na cultura ocidental uma batalha de interpretação em torno desse texto. O Apocalipse tem sido, dessa forma, atualizado e recriado para expressar as angústias, temores e anseios mais profundos da sociedade”, explica Nogueira, que integra Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas. Ele indica que “apocalipse” quer dizer “revelação”, isto é “desvelamento da experiência profunda do mundo, do encontro do ser humano com o Cristo, para muitas gerações”.
O prof. Paulo Nogueira alerta que, por outro lado, “o Apocalipse também tem sido domesticado, quando não calado”. Por isso, o pesquisador acrescenta: “Ele foi transformado em mapa de fim de mundo, em previsão de notícias de jornais, um horóscopo tão impreciso quanto assustador. Não é à toa que diferentes discursos fundamentalistas cristãos buscam construir suas visões de mundo a partir desse livro”.
Nos livros que escreve e nos cursos que oferece sobre o Apocalipse, Nogueira propõe: “Podemos superar esses medos paralisantes por meio da redescoberta desse texto fundante de nossa cultura, adentrando em seus misteriosos jogos de interpretação, jogos que não se resumem a prever eventos isolados, ao contrário, inserem nossa realidade numa narrativa total e multifacetada, integradora e radical”.
Os cardeais e o Conclave
A morte de Francisco, que alimentou discussões escatológicas sobre o “fim dos tempos”, num contexto de crescente instabilidade global — guerras, crises ambientais e tensões religiosas, também alimentou uma enxurrada de desinformação sobre os cardeais e o Conclave.
O lançamento de um filme homônimo, que concorreu ao Oscar em 2025, Conclave, aumentou a imaginação em torno da eleição do novo pontífice. Publicações em grupos de Telegram e Whatsapp relacionados à própria Igreja Católica e a igrejas evangélicas relacionaram a morte do Papa Francisco com os enredos conspiratórios do filme – e especialmente com “informações secretas” sobre os candidatos. Para complicar a propagação de desinformação , imagens do filme (uma obra de ficção) estão sendo discutidas e tratadas como “documentário”.

No filme, as diversas alas políticas e teológicas disputam a votação do sucessor do papa falecido. A pressão política vazou para as mídias. Conclave é um thriller político dirigido por Edward Berger – o mesmo diretor de “Nada de Novo no Front” (2022). Ele captura o suspense que surge quando o Vaticano atrai o interesse da cobertura internacional.
Em meio às teorias, coincidências e interpretações simbólicas, o fato é que a morte de Francisco marcou o fim de um papado transformador e divide opiniões dentro e fora da Igreja Católica.
Para muitos, Francisco deixa um legado de engajamento, mobilização ambiental, diálogo inter-religioso e defesa da paz e justiça social, bem como atenção aos mais vulneráveis. Para seus admiradores, seu maior sinal profético não foi a data de sua morte, mas a vida que escolheu viver — desafiando estruturas de poder e chamando a Igreja a uma conversão pastoral em tempos conturbados. Para os que são contrários às suas ações enquanto Papa, Francisco dividiu a Igreja Católica e foi por demais permissivo com questões morais destrutivas da fé cristã.
O mundo aguarda agora o próximo capítulo da história. Com Francisco, uma era se encerra; o futuro ainda está por ser escrito.
Referências:
O Estado de São Paulo
https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/profecia-de-sao-malaquias-proximo-papa-fim-do-mundo-enganoso/#:~:text=O%20que%20est%C3%A3o%20compartilhando:%20que,e%20concluiu%20que:%20%C3%A9%20enganoso. Acesso em 25 abr 2025
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https://www.cnnbrasil.com.br/lifestyle/profecia-de-nostradamus-vem-a-tona-apos-morte-do-papa-francisco-entenda/ Acesso em 25 abr 2025
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https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-as-coincidencias-em-torno-da-data-da-morte-do-papa-francisco/ Acesso em 25 abr 2025
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https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/idade-e-hora-da-morte-do-papa-e-igual-ao-dado-de-socio-dele-no-san-lorenzo/ Acesso em 25 abr 2025
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https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2025/04/21/e-fato-idade-e-hora-da-morte-do-papa-francisco-coincidem-com-numero-da-carteirinha-dele-de-socio-do-san-lorenzo.ghtml Acesso em 25 abr 2025
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https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/04/21/time-do-papa-francisco-faz-homenagem-emocionante.ghtml Acesso em 25 abr 2025
PUC-RS
https://revistaseletronicas.pucrs.br/teo/article/view/1689 Acesso em 25 abr 2025
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https://www.newadvent.org/cathen/12473a.htm Acesso em 25 abr 2025
O Estado de São Paulo
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Vatican News
https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2025-04/papa-francisco-causa-morte-21-04-25.html Acesso em 25 abr 2025
Prof. Paulo Nogueira
https://www.profpaulonogueira.com.br/sobre/. Acesso em 7 mai 2025
Revista Fronteiras – Revista de Teologia da UnicapXAVIER, Liniker Henrique. Fundamentalismo e Dispensacionalismo: evangélicos e o engajamento contra a Modernidade. Fronteiras – , Recife, PE, Brasil, v. 6, n. 2, p. 267–286, 2023. https://www1.unicap.br/ojs/index.php/fronteiras/article/view/2519.. Acesso em 7 mai 2025.