Fala do deputado Pastor Marco Feliciano contra religiões de matriz africana reabre debate sobre intolerância religiosa

O deputado federal Pastor Marco Feliciano (PL-SP) foi acusado por entidades de religiões de matriz africana de intolerância religiosa, após discurso no evento evangélico “Celebrai”, em Conselheiro Lafaiete, no último 13 de setembro. Em um palco montado no estacionamento do ginásio poliesportivo Deputado Agostinho Campos Neto, o deputado afirmou: “Não sobrará em Conselheiro Lafaiete Zé Pelintra, Zé Pilantra, Exu Caveira, Tranca Rua e Preto Velho. Nenhuma obra de feitiçaria vai governar mais essa terra, porque a presença do Deus eterno pode modificar os nossos corações.”

Imagem: Reprodução

As falas motivaram notas de repúdio do Fórum de Religiões de Matrizes Africanas (Forma) e do terreiro Ilê Axé Egbé Iyá Omi. As entidades classificaram o episódio como incitação à rejeição e ao desrespeito às tradições afro-brasileiras, reafirmando compromisso com a liberdade religiosa assegurada pela Constituição. A Prefeitura de Conselheiro Lafaiete também divulgou comunicado em defesa da diversidade cultural e religiosa, ressaltando que a declaração “é de inteira responsabilidade do artista” e que “a cultura não admite exclusão”.

A reação se ampliou no campo político e institucional. Dias depois do discurso de Feliciano, a deputada estadual Lohanna (PV-MG) e a vereadora de Conselheiro Lafaiete Damires Rinarlly (PV) protocolaram denúncia no Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) e apresentaram manifesto de repúdio na Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do estado. Em vídeo, Lohanna afirmou: “Em um evento em praça pública, bancado com dinheiro público, ele achou que era uma boa ideia atacar as pessoas de religião de matriz africana. Quando isso acontece, a gente não tem uma pessoa enaltecendo a própria fé, o que a gente tem é alguém cometendo crimes.”

No mesmo dia, o deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) anunciou medidas institucionais: pediu explicações à Prefeitura de Conselheiro Lafaiete e encaminhou pedidos de apuração à Procuradoria-Geral da República (PGR), à Mesa da Câmara dos Deputados e aos ministérios dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial. A iniciativa ocorre após o lançamento da Frente Parlamentar em Defesa do Estado Laico e da Liberdade Religiosa, presidida por Vieira, com 201 deputados signatários e caráter permanente para reunir denúncias e fiscalizar violações ao Estado laico.

Em nota, a assessoria de Feliciano negou intolerância e sustentou que o encontro era destinado ao público evangélico. O texto defende que a liberdade religiosa inclui o proselitismo em espaço público — o direito de pregar e tentar convencer outras pessoas —, e que tal prática está protegida como manifestação de fé e de expressão.

Histórico público de Feliciano e a disputa religião–política–mídia

Em 2013, Feliciano assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. A indicação desencadeou protestos e forte cobertura midiática, com grupos de direitos humanos apontando declarações discriminatórias racistas anteriores como incompatíveis com a função. A pesquisadora e editora geral do Bereia Magali Cunha analisou, em artigo, o episódio, mostrando como a eleição do deputado potencializou a relação mídia–religião–política e como se construiu, no debate público, a figura de “inimigos” em torno de pautas morais. Na época, Feliciano foi acusado por declarações racistas e homofóbicas, e o caso tornou-se marco pela articulação evangélica em defesa de uma agenda de “família”.

O que caracteriza intolerância religiosa?

Em verbete do Glossário da Plataforma Religião e Poder, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), o conceito de intolerância religiosa é tomado de um relatório oficial do Estado brasileiro. Ele foi registrado no Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015), publicado pelo Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, em 2016: “Intolerância e violência religiosa é o conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a diferentes crenças e religiões, podendo em casos extremos tornar-se uma perseguição. Entende-se intolerância religiosa como crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana. A violência e a perseguição por motivo religioso constituem práticas de extrema gravidade e costumam ser caracterizadas pela ofensa, discriminação e até mesmo por atos que atentam contra a vida”.

Segundo este e outros relatórios sobre o tema citados no verbete, a violência produzida pela intolerância pode se dar na forma de agressões físicas, simbólicas ou por meio de palavras que desumanizam a experiência religiosa do outro. Os dados mostram que todas as religiões são foco de intolerância mas as religiões de matriz africana são o principal alvo no Brasil, com com elevado registro número de ataques.

O texto do ISER alerta sobre “a insurgência de movimentos no Brasil que passaram a instrumentalizar politicamente as religiões”. Com isso, há posturas políticas que fazem uso de “um instrumental de discursos e de símbolos religiosos para captar apoios de fiéis para pautas e personagens políticas”, que também recorrem a “práticas extremistas com apelo religioso”. 

Além de momentos face a face nas ações de intolerância religiosa, os espaços virtuais são utilizados de forma ampla na prática da intolerância e da violência religiosa.

Jurisprudência sobre casos de intolerância religiosa

O debate jurídico resgata dois marcos. O artigo 5º, VI, da Constituição assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença; já a Lei 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo e agravou a pena: dois a cinco anos de prisão, além de multa, para quem impedir, constranger ou empregar violência (inclusive verbal) contra manifestações religiosas. 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixa o contorno desses limites: em março de 2018, a 2ª Turma negou habeas corpus e manteve a condenação (pena de três anos, em regime inicial aberto) do pastor da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo Tupirani da Hora Lores, por praticar e incitar discriminação religiosa na internet, assentando que manifestações concretas de ódio religioso não são protegidas pela liberdade de expressão. No voto, o então ministro Celso de Mello sublinhou que a liberdade de expressão é “o mais precioso privilégio dos cidadãos”, mas não é absoluta e sofre limitações éticas e jurídicas; Dias Toffoli destacou o risco de escalada a uma “guerra de religiões” se o Estado não pacificar a sociedade.

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