Durante a última semana de eleições, panfletos alarmantes e sensacionalistas foram distribuídos em diversos bairros do Rio de Janeiro, atribuídos a candidatos com identidade religiosa. Um desses materiais, enviado ao Bereia por leitor, intitulado “Estamos vivendo o tempo dificílimo”, circula na cidade e afirma que todos os partidos de esquerda apoiam a ideologia de gênero, a liberação das drogas e o aborto.
Imagem: Reprodução do planfleto impresso
A mensagem afirma explicitamente, sem qualquer base factual, que “todos os candidatos de esquerda” querem erotizar crianças e deslegitimar a autoridade dos pais na educação. O apelo final incentiva que se vote no pastor e cantor da Assembleia de Deus, candidato a vereador, Waguinho (PL).
Este apelo reflete as falsidades e enganos frequentemente veiculados em publicações políticas alarmantes, que associam a defesa da justiça de gênero e a educação sexual a ameaças à família tradicional e à moralidade cristã. Este tema também foi utilizado nas campanhas eleitorais municipal de 2020 e estadual-nacional de 2022 para convencer eleitores por meio do pânico, como Bereia checou, pois são objeto de verificação recorrente. Todas as checagens foram identificadas como falsas e enganosas.
Bereia já publicou que “ideologia de gênero” é um tema amplamente explorado em períodos eleitorais, especialmente em espaços digitais religiosos. O termo surgiu no contexto católico e foi adotado também por grupos evangélicos, com o intuito de deslegitimar a discussão científica sobre identidade de gênero e justiça de gênero.
O termo é falsamente apresentado como uma estratégia marxista, de grupos de esquerda, supostamente destinada a destruir a “família tradicional” por meio de “escolha do sexo que se deseja” e de uma educação sexual que levaria à depravação, homossexualidade e defesa do aborto e da pedofilia. Tal discurso gera pânico e medo entre os grupos religiosos.
Junto com este tema também é utilizado o pânico em torno da liberação tanto do aborto e das drogas, que também são frequentes objetos de checagem do Bereia. Todas as matérias mostram distorção das abordagens destes temas por lideranças religiosas, com omissão de informações e invenção de outras sobre o que se discute publicamente em torno deles.
***
Bereia afirma que os panfletos distribuídos pelo candidato a vereador Waguinho (PL, Rio de Janeiro), intitulados “Estamos vivendo um tempo dificílimo” contêm conteúdo falso. O candidato, que é pastor e cantor da Assembleia de Deus, usa temas sensíveis como “ideologia de gênero” e as discussões em torno de drogas e do aborto para convencer eleitores que “todos os candidatos de esquerda” ameaçam crianças e seus pais. Waguinho faz campanha com conteúdo negativo contra outras candidaturas, sem oferecer qualquer referência que o justifique.
Essa estratégia de disseminação de desinformação busca gerar pânico moral e repulsa a opositores entre os eleitores, semelhantemente ao que foi observado em campanhas de pleitos anteriores. Por isso, é crucial que os eleitores desconfiem de candidatos que atuam com conteúdo negativo e não com propostas verifiquem a veracidade das informações antes de repercuti-las, a fim de evitar a propagação de discursos falsos.
Bereia participa da campanha Bote Fé no Voto. Votar é um direito que alerta sobre este tipo de má-fé nas eleições. Saiba mais.
O uso da Bíblia em escolas tem sido um tema recorrente em época de eleições municipais. As polêmicas que esse tema suscita são usadas como ferramenta de engajamento em mídias digitais e de aceno de políticos às suas bases eleitorais. O caso mais recente foi o de um vereador de Cuiabá (MT), que foi repercutido no portal Metrópoles, no RD News, parceiro do primeiro em Mato Grosso, e no G1 do estado.
O vereador em questão, Rodrigo Arruda e Sá (PSDB), publicou um vídeo em que pede apoio da população para aprovar o projeto de lei que inclui a leitura bíblica como recurso paradidático em salas de aula do município. O parlamentar é evangélico (Comunidade das Nações em Cuiabá) e costuma publicar conteúdo sobre fé em seu perfil do Instagram.
Imagem: Reprodução Metrópoles
Imagem: Reprodução RD News
Projeto de Lei contradiz discurso de vereador e da notícia divulgada
Ao longo do vídeo publicado no Instagram, o vereador usa termos muito comuns ao discurso ultraconservador na política como “resgate da família”, “hino nacional na escola”, “valores da família”. Ao se referir à Bíblia, comete um deslize ao dizer que o livro sagrado dos cristãos Bíblia foi escrito “décadas atrás”.
Porém, o projeto não é exatamente o que o vereador apresenta no vídeo e é repercutido pelo portal de notícias Metrópoles. Sá diz: “Aqui nós vamos colocar um projeto de lei que é obrigatório o estudo da Bíblia, a leitura bíblica nas escolas municipais e particulares de Cuiabá”. Porém, o texto do Projeto de Lei não inclui a noção de obrigatoriedade.
O Projeto de Lei mencionado pelo vereador é o 142/2024, que foi apresentado em 10 de julho de 2024, e já foi despachado às Comissões da Câmara Municipal de Cuiabá. O texto do projeto menciona que “a leitura de textos bíblico poderá ocorrer nas escolas” (grifo nosso) e só cita a palavra “obrigatoriedade” no Art. 2º, para se referir à negação dela, em que diz: “Será sempre garantida a liberdade de opção religiosa e filosófica, sendo vedada a obrigatoriedade de participação em qualquer atividade”.
Na própria legenda da publicação no Instagram o texto é mais ameno: diz que o projeto de lei permite a leitura de textos bíblicos (destaque nosso) e menciona que “A participação será totalmente opcional, respeitando a liberdade religiosa e filosófica de cada um.”
Imagem: Reprodução Instagram
Nos comentários da publicação essa inconsistência continua, pois Sá interage com os comentários positivos e chama seus apoiadores para compartilhar a respeito do projeto para “ajudar a aprovar”, de forma a convocá-los para se engajar e aumentar a visibilidade do vereador nessa época pré-eleição.
Imagem: Reprodução Instagram
Observa-se na interação um discurso confuso por parte do vereador: ora dá a entender, com linguagem incisiva, que o projeto é pela obrigatoriedade do uso da Bíblia nas escolas, e pede pelo apoio de sua base, como que para participar de uma disputa; ora ameniza o discurso, deixando claro que a participação dos alunos seria facultativa e que preza pela liberdade religiosa.
Metrópoles e RD News não apuram o conteúdo e apenas divulgam a proposta, em breve nota, com o termo “leitura obrigatória”. G1-MT tem apuração, usa os termos como constam no PL – “poderá ser utilizada” – e ouviu um cientista político que avalia que a proposta não poderá ser aprovada por conta da laicidade do Estado.
Casos sobre a Bíblia e leis municipais e estaduais
O uso da Bíblia no espaço público para suscitar polêmicas já foi tema de apurações anteriores de Bereia. Em maio deste ano, por exemplo, houve o caso do prefeito de Sorocaba que produziu vídeos enganosos e afirmou que o Tribunal de Justiça de São Paulo havia proibido a Bíblia nas bibliotecas da cidade por perseguição aos cristãos. O ocorrido, diferentemente do alarde do prefeito, foi que a decisão da Corte apenas julgou inconstitucional obrigatoriedade do livro sagrado nas bibliotecas, dada a constitucional laicidade do Estado, ou seja, o Estado brasileiro não é confessional, por isso, instituições públicas no Brasil não podem professar e propagar preceitos ou símbolos de uma determinada religião, mas atuar para que todas tenham direito a suas práticas de fé. Casos semelhantes aconteceram, também em 2024, em São José do Rio Preto (SP) e, em 2021, no estado do Amazonas, este com decisão do STF.
Bereia levantou que pelo menos dez PLs muito semelhantes à proposição do vereador Rodrigo de Arruda e Sá, foram apresentados em municípios dos estados do Amazonas, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, além do Distrito Federal. Todos visam incluir a leitura bíblica como “recurso paradidático” nas escolas, dos quais sete foram propostos ou aprovados em 2024, ano de disputa eleitoral. Possivelmente, estes PLs terão o mesmo destino dos demais e serão declarados inconstitucionais.
*****
Bereia classifica como enganosa a notícia do portal Metrópoles e do RD News, de que a leitura da Bíblia em escolas de Cuiabá poderá se tornar obrigatória por força do Projeto de Lei 142/2024. O discurso do vereador Rodrigo Arruda e Sá, divulgado em vídeo, contradiz o texto de sua autoria, que não prevê obrigatoriedade e torna facultativa a participação dos alunos em atividades que venham a usar o texto religioso como recurso paradidático, caso aprovada a proposta.
A retórica do parlamentar comunica diretamente com o público religioso e ultraconservador, afeito a discursos sobre a defesa de “valores da família” e da presença de símbolos da fé cristã na política. Dessa forma, ao proferir o engano de que a proposta tornará a leitura bíblica obrigatória é um aceno à sua base eleitoral em um ano de campanha eleitoral municipal.
A existência de ao menos uma dezena de proposições nos mesmos termos do projeto de lei de Arruda e Sá demonstra como parlamentares de diferentes regiões do Brasil estão atentos aos temas que conquistam o eleitorado religioso conservador. Mesmo que algum PL seja declarado inconstitucional pelo Judiciário, essas mesmas propostas ainda tendem a ser usadas como capital político para alimentar discursos de perseguição religiosa contra cristãos, como identificado em outros casos verificados pelo Bereia.
É importante que leitores e leitoras estejam atentos ao uso de símbolos religiosos como campanha política neste ano eleitoral. Especial atenção deve ocorrer quando isto é feito de forma sabidamente inconstitucional, para fins de uso posterior em discursos de pânico moral, e busca de audiência por produtores de notícias.
O deputado federal, autodenominado cristão, Hélio Lopes (PL-RJ) publicou, em sua conta no Twitter, conteúdo sobre suposto bloqueio de 1,5 bilhões do orçamento federal, citando as pastas da Saúde e Educação como as mais afetadas. Ele se referiu ao contingenciamento de despesas, termo técnico que significa “retardamento ou, ainda, a inexecução de parte da programação de despesa prevista na Lei Orçamentária em função da insuficiência de receitas previstas”.A imagem publicada contém um texto sobre o suposto contingenciamento, com o título “Silêncio da Mídia!” e uma foto do presidente Lula entre a ministra da Saúde Nísia Trindade e o ministro da Educação Camilo Santana, além da chamada “E o choro da militância, cadê?”
Imagem: reprodução do Twitter
Hélio Lopes foi eleito deputado federal, em 2018, pelo PSL-RJ, com 345.234 votos. Na última disputa, em 2022, foi reeleito com 132.986 votos. Antes da eleição de 2018 e do apoio direto do então candidato a presidente Jair Bolsonaro, com quem trabalhava, Lopes havia concorrido em 2004, pelo extinto PRP, ao cargo de vereador do município de Queimados (RJ), tendo recebido apenas 277 votos. Em 2016, o político havia se lançado candidato pelo PSC ao mesmo cargo municipal, porém, em Nova Iguaçu (RJ), e mais uma vez não foi eleito – naquele pleito recebeu 480 votos.
Contingenciamento e teto de gastos
Bereia checou as informações sobre as quais o deputado federal denuncia “silêncio da mídia”. O político se referia a um decreto presidencial com a indicação dos cortes orçamentários, que foi publicado em 28 de julho passado, em edição extraordinária do Diário Oficial da União. Os ministérios da Saúde e da Educação, de fato, respondem por metade do novo contingenciamento de R$1,5 bilhão no Orçamento de 2023. Eis a lista de cortes (reduções) orçamentárias:
• Saúde: R$ 452 milhões;
• Educação: R$ 333 milhões;
• Transportes: R$ 217 milhões;
• Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome: R$ 144 milhões;
• Cidades: R$ 144 milhões;
• Meio Ambiente: R$ 97,5 milhões;
• Integração e Desenvolvimento Regional: R$ 60 milhões;
• Defesa: R$ 35 milhões;
• Cultura: R$ 27 milhões;
• Desenvolvimento Agrário: R$ 24 milhões.
Em comparação com outros anos, mesmo com as novas condições, o total de recursos bloqueados em 2023 é significativamente menor do que no ano anterior, sob o governo de Jair Bolsonaro. Em 2022 foram contingenciados R$15,38 bilhões para cumprir o limite de gastos, quando o Ministério da Educação sofreu um congelamento de R$ 1,4 bilhão.
Os bloqueios e cortes ocorrem quando a estimativa de despesas supera o limite estabelecido pelo teto federal de gastos , fruto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55/2016. Esta medida, que promoveu um mecanismo de controle de gastos públicos, foi encaminhada pelo governo do presidente Michel Temer ao Legislativo e foi aprovada em 2016.
O conteúdo da PEC é relativamente simples. Ela determinou que o total dos gastos primários do governo federal, isto é, todos os gastos menos o pagamento de juros sobre a dívida pública, deveria ficar, a cada ano, limitado a um teto definido pelo montante gasto neste ano de 2016, reajustado pela inflação acumulada. A aprovação da PEC Teto de Gastos foi, então, apresentada com uma referência positiva de controle para que governos não gastem demais e, caso os gastos fossem reajustados de acordo com a inflação, eles não seriam congelados e não iriam diminuir. Porém, a decisão do Congresso Nacional foi muito criticada por diversos segmentos sociais que viram graves problemas decorrentes.
O professor indicou também que “o governo teve que propor uma PEC, ao invés de um simples projeto de lei, justamente porque um dos seus pontos centrais é a desvinculação dos gastos com educação e com saúde, previstos hoje na Constituição como percentuais da receita – crescendo a economia e a arrecadação, crescem obrigatoriamente tais gastos. Talvez fosse mais transparente chamá-la de PEC da Desvinculação, dessa forma”.
O fato de saúde e educação terem sido alvos explícitos de redução, com geração de consequências graves de tal encaminhamento para as políticas sociais, popularizou o apelido da proposta aprovada de “PEC do Fim do Mundo”. Rugitsky explicou: “[A PEC do Teto de Gastos] longe de representar uma solução, só vai aprofundar a crise política, econômica e social pela qual estamos passando. Sábios foram aqueles que a denominaram de PEC do Fim do Mundo e foram ocupar ruas e escolas para se posicionar contra ela”.
O governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) seguiu à risca o teto de gastos, sem desenvolver alternativas para a crise que se estabeleceu nas políticas públicas, o que resultou em situações dramáticas nas áreas de saúde (especialmente diante da pandemia da covid-19), de educação e de infra-estrutura.
O relatório do Gabinete de Transição para o novo governo (2023-2026), eleito em 2022, apresentou dados sobre a crise. Ainda nesse ano, o Gabinete propôs e conseguiu aprovação no Congresso da PEC de Transição, que permitiu ao novo governo deixar o valor de R$ 145 bilhões do Orçamento de 2023 fora do teto de gastos, para serem utilizados para bancar despesas com o Bolsa Família, o Auxílio Gás e a Farmácia Popular, entre outras.
Em 2023, o novo governo terá que lidar com a realidade de crise econômica estabelecida e com o orçamento aprovado no governo anterior, com base no teto de gastos – justificativa do contingenciamento apresentado, por decreto presidencial, em 28 de julho. Para corrigir as distorções da PEC do Teto de Gastos e preservar investimentos, principalmente de programas sociais, foi enviado ao Congresso o projeto de um novo arcabouço fiscal, já aprovado na Câmara e aguardando votação no Senado.
Hoje, a regra do teto de gastos introduzida na Constituição Federal, em vigor desde 2017, impede que os gastos federais cresçam mais do que a inflação ano a ano. Com a proposta do novo arcabouço fiscal, apresentada pelo atual governo, em discussão no Congresso, em vez do teto de gastos, a despesa poderá crescer o equivalente a 70% da alta nas receitas (por exemplo, se a arrecadação subir 2%, a despesa poderá subir até 1,4%).
Haverá, porém, limites mínimos e máximos para essa variação nas despesas. O percentual mínimo evita que uma queda brusca ou temporária na arrecadação obrigue o governo a comprimir despesas. Já o limite máximo afasta o risco de o Executivo expandir gastos de forma exagerada quando há um pico nas receitas.
O percentual não será aplicado de forma linear a todas as despesas. Com o fim do teto de gastos, serão retomados os mínimos constitucionais de saúde e educação como eram até 2016: 15% da RCL (Receita Corrente Líquida) para a saúde e 18% da receita líquida de impostos, no caso da educação.
Na prática, o avanço dessas despesas acompanhará mais de perto a arrecadação, enquanto outros gastos precisarão ter crescimento mais moderado para respeitar o limite como um todo.
O limite será abrangente, mas algumas despesas ficarão de fora, entre elas os repasses do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e a ajuda financeira para estados e municípios bancarem o piso da enfermagem, conforme proposta introduzida na Câmara de Deputados. São gastos aprovados por emenda constitucional e deverão ser realizados.
***
Bereia classifica a publicação do deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ) como enganosa. Lopes desinforma ao selecionar apenas parte das informações a respeito do contingenciamento dos gastos. Os números dos valores bloqueados são verdadeiros, mas o parlamentar não diz que correspondem ao mecanismo da aplicação constitucional teto de gastos, proposta pelo governo de Michel Temer e aprovada pelo Congresso, em 2016. Lopes não informou aos seus leitores que o governo anterior promoveu cortes mais dramáticos no orçamento e que o atual governo já apresentou uma nova proposta ao Parlamento para alterar distorções das regras do teto de gastos, a fim de garantir investimentos públicos, em especial nas áreas fundamentais da vida da população.
Bereia recebeu pedido de checagem de um panfleto com conteúdo político que circulou na Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) no município de Francisco Morato (SP). O texto, intitulado “Propostas que afrontam os valores cristãos”, foi distribuído aos fiéis e não traz menção à denominação religiosa ou assinatura.
O texto se propõe a enumerar “apenas alguns projetos” em tramitação no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras Municipais ou no Poder Judiciário, e que vão de encontro aos “valores cristãos”, tendo como alvos principais a família, a escola e a igreja. Na lista de projetos estão:
“Ideologia de gênero”
Mudança de sexo em crianças e adolescentes
Lei anti-homofobia
Liberação da maconha
Famílias do século XXI
Programas religiosos na televisão
Limite sonoro nas igrejas
Bereia checou, ponto a ponto, os temas mencionados e o que se sabe sobre cada um.
“Por exemplo, no Supremo Tribunal Federal, a ideologia de gênero nas escolas é tratada pela recente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5568. Ela modificou o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005/2014, com o intuito de obrigar escolas públicas e particulares a tratarem crianças de acordo com o gênero ao qual se identificam.
Mas esse não é o único projeto absurdo. Imagine você que, após todo esse ensino que eles promovem na escola, a criança comece a achar que ela nasceu com o sexo errado e queira mudar, você como pai vai se colocar contra isso porque sabe que aquilo não é uma ideia do seu filho, mas algo que foi implantado nele”.
“Ideologia de gênero”
O panfleto menciona “ideologia de gênero” e apresenta a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.568, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), para argumentar que escolas serão obrigadas a respeitar o gênero com o qual cada criança se identifica.
Ao contrário do que o texto afirma, não se trata de um “projeto” de ensino a ser promovido nas escolas. A ADI nº 5.568 foi ajuizada em 2017, na busca de que o STF reconhecesse o dever constitucional das escolas de coibir o bullying homofóbico e de respeitar a identidade de pessoas LGBT no ambiente escolar.
A justificativa para a ação está na Lei 13.005/2014 – Plano Nacional da Educação – que em seu art. 2º traz como diretriz a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação.
O panfleto omite que, ao final de novembro de 2020, após articulação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) com a Frente Parlamentar Evangélica, o STF retirou a ação da pauta. Desde então, não houve movimentação desta ADI.
O texto que circulou na Iurd afirma que o Projeto de Lei (PL) nº 5.002/2013 busca autorizar crianças e adolescentes a realizarem mudança de sexo, mesmo sem autorização dos pais. Porém,o que o PL busca, na verdade, é reafirmar o direito ao reconhecimento da identidade de gênero de acordo com a vivência individual de cada pessoa.
A Lei 6.015/1973, sobre registros públicos, já prevê que o nome das pessoas é definitivo, “admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”. O que o PL 5.002/2013 propõe é que também se admita a substituição do nome em casos de discordância com a identidade de gênero autopercebida.
Quanto às intervenções cirúrgicas de transsexualização, o PL as prevê para pessoas maiores de 18 anos e requer o consentimento informado da pessoa adulta, informação que o panfleto religioso omite. Para menores de 18 anos, a solicitação de intervenção cirúrgica deve ser efetuada através de seus representantes legais e com expressa anuência da criança ou adolescente.
O panfleto diz que crianças e adolescentes podem realizar mudança de sexo mesmo sem a aprovação dos pais, o que é uma leitura distorcida do projeto de lei. De acordo com o texto do projeto, quando não for possível obter o consentimento dos representantes legais, os menores de idade poderão contar com a assistência da Defensoria Pública. Ou seja, nesse caso há a intervenção, obrigatória, de um órgão do Estado para conduzir o caso, o que não significa, necessariamente, que haverá autorização para a intervenção.
Consta no portal da Câmara dos Deputados que o projeto foi arquivado pela Mesa Diretora em janeiro de 2019, informação que o panfleto religioso também oculta.
Lei anti-homofobia
Segundo o texto que circulou em Franciso Morato, o Projeto de Lei nº 122/2006 busca cercear o direito de expressão, impedindo até mesmo que pais e mães se manifestem em sentido contrário à mudança de sexo em crianças e adolescentes. A informação divulgada é falsa.
Apresentado em 2006, o projeto buscou criminalizar a homofobia, ou seja, a discriminação motivada exclusivamente na orientação sexual ou na identidade de gênero. A ideia era acrescentar à Lei 7.716 – que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor – os crimes contra gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero.
Trata-se de um projeto que tramitou durante 14 anos no Congresso Nacional, mas que, sem ter alcançado consenso para evoluir, foi arquivado em 2015 – informação que não consta no panfleto.
Em 2019, o STF criminalizou a homofobia como forma de racismo, em decisão que não guarda relação com o projeto de lei. Conforme matéria no portal do STF, os ministros da Corte fizeram ressalvas sobre a liberdade de expressão em templos religiosos. Assim, a mera opinião contrária a relações homossexuais não tipifica crime, sendo criminalizada a incitação ou indução da discriminação.
A desinformação sobre a criminalização da homofobia já foi alvo de checagem por Bereia, em que se constatou narrativa enganosa sobre a tipificação do crime e sobre as ressalvas à liberdade de expressão em templos religiosos.
Liberação da maconha
O panfleto religioso diz que o Projeto de Lei 7.270/2014 “abre portas não apenas para a maconha, mas para todos os outros tipos de drogas e males que destroem famílias”. Porém,o que o projeto de lei busca, de fato, é regular a industrialização e comercialização de cannabis (planta que pode produzir substâncias psicoativas, popularmente associada ao termo “maconha”, como exposto pela Fundação Oswaldo Cruz), dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e criar o Conselho Nacional de Assessoria, Pesquisa e Avaliação para as Políticas sobre Drogas.
Entre outras disposições, o PL obriga o registro, a padronização, a classificação, a inspeção e a fiscalização da produção e do comércio de cannabis. Apenas o plantio, o cultivo e a colheita destinados a consumo individual ou domiciliar ficam isentos dessas obrigações, somente até seis plantas maduras e seis plantas imaturas por indivíduo.
O projeto esclarece que não há intenção de “liberar” o comércio da maconha, mas regulá-lo, ressaltando que há, atualmente, um cenário em que o comércio dessa e de outras substâncias proibidas por lei está, na prática, liberado. O documento também aponta que milhares de pessoas morrem graças ao cenário atual da política de drogas, com pessoas armadas exercendo a violência ou, quando presas, submetidas a condições desumanas, enquanto o circuito das drogas continua funcionando.
Famílias do século XXI
Em outro trecho, o panfleto que circulou da Iurd de Francisco Morato menciona o PL nº 3.369/2015, conhecido como “Estatuto das Famílias do Século XXI”, e sustenta que tal projeto permitiria o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo e até entre pessoas da mesma família. Trata-se de informação falsa.
O projeto apresentado em 2015, pelo atual deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) não trata de relações sexuais, mas da definição de família para fins legais. Segundo o texto do PL nº 3.369, família seria toda forma de união entre duas ou mais pessoas que se constitua com o intuito de ser uma família e que se baseie no amor e na socioafetividade.
O projeto ressalta que a família assim constituída independe de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo, raça e inclui filhos e pessoas que sejam consideradas como tal.
O panfleto, sob análise, induz seus leitores a acreditar que há uma permissão a relações incestuosas no projeto de lei, o que não condiz com a realidade. A tramitação do PL pode ser acompanhada neste link.
Programas religiosos na televisão
Outra afirmação presente no panfleto com conteúdo político-religioso é a de que o Projeto de Lei nº 299/1999 limita o tempo de programas religiosos na televisão a, no máximo, uma hora de duração. Porém,o mencionado projeto não guarda qualquer relação com o tema apresentado pelo folheto.
Trata-se, na verdade, de uma proposta de alteração do Código Penal (CP) que propõe que as penas de pessoas condenadas em regime aberto sejam cumpridas em casa de albergado ou prisão domiciliar, entre outras providências também ligadas ao CP.
Em 2022, a Justiça determinou que a Rádio e Televisão Record S/A e a Rádio e Televisão Bandeirantes diminuíssem o tempo televisivo de programas religiosos, conforme noticiado pelo portal UOL. A decisão, no entanto, se justificou pelo limite legal para comercialização de espaço televisivo para programas de qualquer natureza, estipulado em 25%, o que vinha sendo descumprido por essas emissoras.
Limite sonoro nas igrejas
Por fim, o panfleto religioso menciona um projeto de lei que seria benéfico aos “valores cristãos” e que ajudaria na “propagação do evangelho”. O PL 524/2015 estabelece limites para emissão sonora nas atividades em templos religiosos.
O projeto estipula um limite diurno de 85 decibéis em zonas industriais, 80 decibéis em zonas comerciais e 75 decibéis em zonas residenciais, com limite de 10 decibéis a menos para o período noturno (entre 22h e 6h).
Segundo o texto que circulou na Iurd, trata-se de um bom exemplo de projeto de lei, pois permitiria tranquilidade nas atividades religiosas, “sem correr o risco de tomar multas desnecessárias”.
***
Bereia considera enganoso o conteúdo checado, com alguns fragmentos de substância verdadeira, mas apresentados para confundir. Em sua maior parte, o panfleto apresenta projetos de lei existentes e que tratam dos temas referidos, porém faltam detalhes importantes que permitam a total compreensão dos fatos. A omissão de informações, como no trecho que menciona a ADI nº 5.568, já retirada de pauta pelo Supremo Tribunal Federal, contribui para a construção de uma narrativa enganosa persistente no mundo religioso.
Além das omissões, em alguns trechos, há informações que não condizem com as fontes oficiais. Em outros, utiliza-se o exagero como estratégia discursiva para sustentar a tese de que há um projeto em curso contra valores cristãos. O fato de o panfleto não conter fonte ou autoria, uma das características comuns a materiais desinformativos como estratégia de propagação, permite a circulação entre diferentes grupos cristãos que se apropriam do conteúdo. A forma como o texto é apresentado instiga julgamentos negativos contra um ente não revelado, mantendo os interlocutores em constante estado de medo e mobilização política.
Dezenas de sites e mídias digitais evangélicas divulgaram uma controversa pesquisa eleitoral realizada pelo Instituto Brasmarket sobre intenção de votos para a Presidência da República. A pesquisa é polêmica pois vai de encontro a todos os demais levantados dos principais institutos de pesquisa do país.
De acordo com os dados apresentados pelo Brasmarket, o presidente Jair Bolsonaro (PL) estaria liderando a corrida eleitoral com 44,9% (37% no levantamento anterior), enquanto Lula teria 31% (27%, no levantamento anterior). Além disso, quando o corte é por religião, os cristãos católicos e evangélicos rejeitaram em sua maioria o ex-presidente Lula (PT). A pesquisa foi registrada no TSE com o número BR-00580/2022.
Além das pesquisas eleitorais para presidente, três delas contratadas pela Associação de Supermercados do Rio de Janeiro, as demais foram custeadas pelo próprio Brasmarket. O Instituto realizou outras pesquisas este ano: para o governo de Goiás, contratado pela ASSOCIAÇÃO GOIANA DO NELORE, governo de Tocantins, custeada pela própria empresa, para o governo do Rio Grande do Norte, contratada pela CPF/CNPJ: 25450212000100 – BG MÍDIAS E ASSESSORIA DIGITAIS EIRELI, para o governo de Mato Grosso do Sul, contratada pela CPF/CNPJ: 03976495000187 – RADIO CAPITAL DO SOM LTDA / Origem do Recurso: (Recursos próprios). As pesquisas para os governos estaduais foram acompanhadas de pesquisa levantamento de intenção de voto para Presidente da República apenas naquele estado.
Matéria da Revista Veja de janeiro de 2022 apresenta uma suposta pesquisa realizada ainda em 2021 pelo Brasmarket que chegou ao conhecimento público sem o devido registro no TSE e rapidamente inundou as mídias digitais de direita. De acordo com a matéria, o Instituto está envolvido em diversas controvérsias e mistérios.
A metodologia de pesquisa utilizada foi a quantitativa, por meio de entrevistas telefônicas, com aplicação de questionários estruturados e padronizados junto a amostra representativa da população pesquisada. Foram 2.400 entrevistados de 116 municípios.
A pesquisa realizada pelo Instituto Brasmarket chama atenção por ser o único levantamento que aponta o presidente Jair Bolsonaro como favorito e pelo resultado bem diferente dos apresentados pelos Institutos mais conhecidos e renomados do país: Datafolha e Ipec (formado por ex-executivos do Ibope).
O agregador de pesquisas eleitorais do Estadão usa dados dos levantamentos de 14 empresas, considerando suas peculiaridades metodológicas, para calcular a Média Estadão Dados e o cenário mais provável da disputa eleitoral. Lula aparece com 47% e Jair Bolsonaro fica com 33% na média de todos os levantamentos nos últimos seis meses.
O Datafolha não faz pesquisas sob encomenda para políticos ou partidos. Todos os levantamentos são realizados para divulgação e uso público de grandes veículos de comunicação. Quando um meio de comunicação contrata uma pesquisa eleitoral do instituto, uma de suas obrigações é tornar público o resultado desse levantamento.
De acordo com a seção de perguntas e respostas disponibilizada no site, a validade de uma pesquisa eleitoral feita por telefone, como a realizada pelo Instituto Brasmarket, fica comprometida pois “é inviável realizar pesquisas eleitorais telefônicas no Brasil que sejam representativas do total do eleitorado, já que apenas 40% dos brasileiros possuem linha telefônica fixa em casa. Por isso os institutos abordam os eleitores pessoalmente”.
A última pesquisa Datafolha para presidente foi divulgada em 22/09, dia anterior à divulgação da pesquisa do Instituto Brasmarket, com o número de identificação no TSE BR-04180/2022. O custo total da pesquisa foi de R$ 473.780,00. (o levantamento de Brasmarket custou R$ 32.000,00)
Contratantes: EMPRESA FOLHA DA MANHÃ e GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S/A/TV/REDE/CANAIS/G2C+GLOBO GLOBO.COM GLOBOPLAY.
A metodologia de pesquisa utilizada foi a pesquisa do tipo quantitativo, por amostragem, com aplicação de questionário estruturado e abordagem pessoal em pontos de fluxo populacional. O conjunto do eleitorado brasileiro foi tomado como universo da pesquisa. 6.734 entrevistados em 285 municípios. (Brasmarket entrevistou 2.400 pessoas de 116 municípios).
Resultado pesquisa Datafolha.
Fonte: Datafolha
***
De acordo com todas as informações levantadas, o Bereia considera que a pesquisa realizada por Brasmarket, que está sendo amplamente divulgada nas mídias digitais da extrema-direita, é enganosa.
O instituto começou efetivamente suas atividades há quatro meses, e suas pesquisas são as únicas em todo o país a apresentarem resultados divergentes, e mesmo com o registro no TSE, apresenta disparidades em relação às demais pesquisas, como o custo muito baixo dos levantamentos, metodologia e pouco detalhamento de seus resultados.
Desta maneira, esta pesquisa parece funcionar mais como uma ferramenta para batalhas discursivas na campanha política neste pleito 2022, a fim de confundir eleitores.