Postagens que afirmam que a vacinação obrigatória é ilegal têm circulado em perfis e páginas religiosas em mídias sociais. Uma delas diz que o artigo 15 da Lei 10.406, de 2002, ampara aqueles que se opõem à obrigatoriedade da vacina.
Vacinas precisam ter eficácia comprovadas para serem administradas
A postagem se refere ao seguinte trecho da lei que estabelece introdução às normas do Direito Brasileiro: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Pela interpretação que faz da lei, o conteúdo leva à compreensão de que a vacina gera risco de morte e, portanto, uma campanha obrigatória de imunização entraria em conflito com o direito de um cidadão de se negar a tratamento médico ou intervenção cirúrgica. Vale lembrar que as vacinas aprovadas em diversos países ao redor do mundo têm sua eficácia comprovada. Além disso, é parte do protocolo nacional que a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) precisa autorizar o uso dos imunizantes para a vacinação acontecer no país, como Bereia já checou em outra reportagem.
Decisão do STF diz que vacinação obrigatória é constitucional
Entretanto, a leitura que evoca o trecho da Lei 14.006 não foi sustentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão recente sobre a vacinação obrigatória. Em 17 de dezembro de 2020, o STF declarou que a vacinação obrigatória é constitucional. A decisão também diz que pais sejam obrigados a levar seus filhos para vacinação, conforme o calendário de imunização, mesmo quando for contra as suas convicções. Isso porque o direito à saúde coletiva das crianças e dos adolescentes não se sobrepõe à liberdade de pensamento dos responsáveis, defendeu o ministro Luis Roberto Barroso.
Além de Barroso, o ministro do STF Ricardo Lewandowski também relatou a decisão e defendeu a constitucionalidade da vacina obrigatória, levando em conta também a possibilidade de vacinação compulsória, quando são aplicadas restrições a quem não se vacinar.
A Corte também fixou uma tese em que explicou que vacinação compulsória não é vacinação forçada e ainda determinou alguns parâmetros para sua aplicação. Entre eles estão aspectos como: a necessidade de base científica, ampla informação sobre eficácia e contraindicação, distribuição universal e gratuita. Por fim, a tese diz que a implementação pode ser feita por todos os entes da federação, respeitadas suas esferas de competências.
O que significa vacinação obrigatória
A obrigatoriedade da vacinação no Brasil está prevista na Constituição desde 1975. A Lei 6.259 promulgada naquele ano já apontava para a obrigatoriedade de imunização da população por vacinas e nela são previstas até mesmo medidas estaduais para o cumprimento das vacinações.
O fato de ser obrigatória instituiu o calendário nacional, que é atualizado conforme as vacinas necessárias destinadas a cada faixa etária específica que estiverem disponíveis à população através do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
O não cumprimento das vacinas previstas no Calendário Vacinal Nacional implica em sanções, como o impedimento de se alistar no exército, receber benefícios sociais do governo ou se cadastrar em creches ou se matricular nas demais instituições de ensino, previstas na Portaria nº 597.
Além disso, a Lei 13.979, de 2020, sancionada pelo presidente Bolsonaro para enfrentamento da pandemia, estabelece a vacinação como uma das medidas de combate ao coronavírus.
Por “obrigatoriedade da vacinação” entende-se que, caso a imunização contra a Covid-19 seja estabelecida como obrigatória no Brasil, o seu não cumprimento implicaria em sanções e restrições. Elas não significam medidas extremas como prisões ou restrições severas, como algumas pessoas têm divulgado, espalhando pânico pelas redes.
Conforme comparação feita por autoridades no assunto, a obrigatoriedade da vacina, à qual a população está acostumada, se assemelha à obrigatoriedade do voto no Brasil. O voto político é obrigatório no país, mas sem condicionar isso a punições severas como prisões, multas exorbitantes ou sanções severas.
Bereia classifica as postagens em mídias sociais que informam que a vacinação obrigatória é ilegal, e evocam o artigo 15 da Lei 10.406, de 2002, como falsas. A obrigatoriedade de imunização da população por vacinas é prática antiga no país e está amparada por leis com vistas à proteção da saúde de cidadãos e cidadãs. Conteúdos que insistem neste tema da ilegalidade da obrigatoriedade da vacinação são desinformativos e colocam a vida de pessoas que nele acreditam em risco.
* Matéria atualizada em 05 de novembro de 2020 às 23h03 para acréscimo de informações.
Circulam nos últimos dias em portais gospel e em mídias sociais conteúdos em forma de notícia, vídeo e memes que afirmam que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5668 obrigará o ensino de “ideologia de gênero” nas escolas públicas e privadas do Brasil.
Por exemplo, no dia 28 de outubro, o portal evangélico CPAD News publicou a matéria “Obrigatoriedade da ideologia de gênero nas escolas deve ser julgada em novembro pelo STF”. De acordo com a matéria, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5668, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em 2017, levaria à entrada obrigatória da “ideologia de gênero” nas escolas públicas e privadas, tornando-se uma ameaça a crianças e famílias.
Mobilização contra a ADI 5668
As publicações contrárias à ADI 5668 começaram a aparecer no dia 23 de outubro, com a postagem do vídeo “EDUCAÇÃO E TEORIA DE GÊNERO – ADI 5668” do Canal Terça Livre TV, do blogueiro bolsonarista católico Alan dos Santos, sob investigações de propagação de desinformação. Ali, o apresentador afirma que o pedido da ADI iria inaugurar o ensino da teoria de gênero nas escolas e pede apoio ao Projeto de Lei (PL) 4754/2016, que tipifica crime de responsabilidade dos ministros do STF a usurpação de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.
Segundo os parlamentares que são adeptos à proposta, liderados pelo deputado autor do projeto Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), o objetivo é evitar que decisões do STF esvaziem as atribuições do Congresso Nacional.
Em 4 de novembro, as Frentes Parlamentares Evangélica (FPE), Católica (FPC) e a Frente Parlamentar pela Juventude reuniram-se com o Presidente do STF Ministro Luiz Fux pedindo o adiamento da votação da ADI 5668 para 2021. De acordo com a FPE, a Ação esconde uma intenção de desconstrução da heteronormatividade, o que seria uma “terrível afronta aos valores da sociedade”. Em vídeo publicado no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica, os parlamentares também argumentaram que o Congresso já havia rejeitado a “ideologia de gênero” durante a elaboração do Plano Nacional de Educação. Em seguida, o Presidente do Supremo retirou de pauta a ADI 5668. Além dessa movimentação parlamentar, houve também mobilização por um dia de oração contrária à Ação movida pelo PSOL na véspera da votação.
O que pede a ADI 5668
Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2017, a ADI 5668 pede que o STF dê interpretação do PNE (Lei 13.005/2014) conforme a Constituição Federal para que seja considerada ilegítima qualquer interpretação do Plano que não imponha proteção às crianças LGBTI e meninas (cis e trans) nas instituições de ensino do país. Assim, a Ação pleiteia “o reconhecimento do dever constitucional das escolas de prevenir e coibir o bullying homofóbico, transfóbico e machista” (p. 5). Segundo a ADI, o texto da lei que dá a indicação genérica de erradicação de “todas as formas de discriminação” não é suficiente para proteger alunos LGBTI e mulheres contra atos discriminatórios (p. 5).
O PNE é uma lei, aprovada em 2014, que tem validade até 2024, e determina metas que vão da etapa infantil à pós-graduação, passando pela alfabetização até o financiamento da educação. “Superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” é terceiro item das diretrizes do Plano. Além disso, tratar de questões ligadas à “discriminação, preconceitos e violências” faz parte de estratégias ligadas ao Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Especial (voltada para pessoas com deficiências, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades). O Ensino Médio contempla ainda outra, que diz respeito a políticas de prevenção à evasão motivadas por preconceito ou discriminação.
A criação de uma base comum para a Educação Básica está prevista desde 1988, a partir da promulgação da Constituição Cidadã. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) reforçou a sua necessidade, mas somente em 2014 a criação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi definida como meta pelo PNE.
A BNCC tem o objetivo de garantir aos estudantes o aprendizado de conhecimentos e habilidades comuns em escolas privadas e públicas, urbanas e rurais de todo o país, a fim de reduzir as desigualdades educacionais e elevar a qualidade do ensino.
Nos últimos três anos, a BNCC esteve na pauta dos mais importantes debates sobre educação no país. Em portaria de 20 de dezembro de 2017, o então ministro da Educação Mendonça Filho, a homologou e dois dias depois o Conselho Nacional de Educação (CNE) apresentou a Resolução CNE/CP N° 2, instituindo e orientando a implantação dela.
Após essas publicações, sucederam-se debates em torno da implementação das medidas e seus impactos na Educação Básica brasileira. Para esse fim, o CNE organizou audiências públicas para discussões sobre o tema e foi instituído o Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC).
De acordo com o Portal Guia Escolas, “a BNCC estabelece competências e habilidades que todo estudante deve ser capaz de cumprir ao final da formação escolar básica. Essas competências pressupõem que os alunos devem aprender a resolver problemas e a trabalhar em equipe, entre tantos outros”. Isso significa, segundo o portal, que o trabalho deverá ser feito observando a diversidade em suas diversas manifestações.
Entretanto, de acordo com o Portal UOL, a base nacional curricular de professores apresenta dez competências que os futuros docentes precisarão desenvolver para formar alunos conforme princípios estabelecidos pela BNCC. Segundo UOL, o nono item, embora não mencione “identidade de gênero” ou “sexualidade”, afirma que professores/as precisam “exercitar a empatia, o diálogo, a resolução dos conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceito de qualquer natureza”.
Educação e “ideologia de gênero”
No artigo “‘Não à ideologia de gênero!’ A produção religiosa da violência de gênero na política brasileira”, a professora de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo e coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora/Netmal, Sandra Duarte, afirma que na política brasileira existe uma relação de forças entre dois segmentos distintos. O primeiro, de conservadores apoiados por importantes grupos religiosos do Brasil e do exterior, a partir de uma agenda moralista e, do outro lado, há o segmento que luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e pelos direitos da população LGBT. Assim, segundo a pesquisadora, há complexas composições na arena político-religiosa do país em torno do debate sobre gênero e laicidade.
Para Duarte, o moralismo sexual na política atrai e é reivindicado por diversos segmentos religiosos, principalmente católicos e evangélicos, e sobre essa pauta que se organiza parcela significativa de sua ação na mídia. A ação desse segmento consiste em obstaculizar a luta pela ampliação de direitos das mulheres e da população LGBT ou lutar contra direitos conquistados pelos dois grupos. Enquanto os setores mencionados anteriormente mobilizaram-se para o comprometimento do PNE com a superação das desigualdades, por outro, movimentos conservadores católicos e evangélicos envolveram-se na luta contra a denominada “ideologia de gênero” que perpassaria o PNE.
De acordo com a jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e editora-geral do Coletivo Bereia Magali Cunha, o termo “ideologia de gênero” surgiu no contexto da Igreja Católica Romana, sob o pontificado de João Paulo II, em especial com a elaboração do “Lexicon- Termini ambigui e discussi su famiglia, vita e questioni etiche” (Lexicón- Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas), em 2003, pelo Pontifício Conselho pela Família, assinalando a compreensão da Igreja sobre sexo, gênero e sexualidade.
Ainda segundo a pesquisadora, a ofensiva católica se tornou explícita a partir de 2008, com o Papa Bento XVI, quando em pronunciamento no ano de 2012, afirmou: “salvar a humanidade do comportamento homossexual ou transexual é tão importante quanto salvar as florestas do desmatamento”. A partir deste discurso, lideranças católicas passaram a disseminar o termo “ideologia de gênero”, assumindo o significado pejorativo do termo “ideologia”, como pensamento enganoso, falso.
Esta concepção defende que a “ideologia de gênero” seria concretizada no ensino através das escolas e das mídias, voltada principalmente para crianças e adolescentes. Para Magali Cunha, considerar a parceria entre educadores de ensino fundamental e médio é relevante, dentro do contexto atual em que as escolas tem sido alvo de fundamentalistas e do pânico moral que atinge o papel dos profissionais de educação.
A Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) divulgou nota acerca da ADI 5668, ajuizada pelo PSOL, em que afirma a condenação de todo tipo de bullying, mas entende que o PNE já trata de todas as discriminações. Por fim, pede que o STF faça “discernimento coerente com a Constituição” que não seja mais discriminatório, “que privilegie a proteção de alguns segmentos em detrimento de outros”.
Por outro lado, a ADI 5688 expressa discordância ao argumento de que a menção a “todas as formas de discriminação” seja suficiente. De acordo com o texto, há temor de que “a retirada da menção a gênero, identidade de gênero e orientação sexual dos planos de educação resulte na proibição de debates sobre o assunto nas escolas” (p. 5). A Ação também diz que houve intuito de proibir o tema no Congresso Nacional, o que tem sido interpretado como efetiva proibição (p. 6). Diante disso, pede que haja interpretação que obrigue as escolas a coibirem a discriminação e a respeitarem as identidades das crianças e adolescentes LGBTI (p. 6).
Elas se referem à desaprovação de iniciativas que proibiam a abordagem do tema “gênero” nas escolas. A decisão unânime ocorreu em ações referentes às legislações de Cascavel (PR), Novo Gama (GO), Foz do Iguaçu (PR) e Ipatinga (MG), consideradas inconstitucionais.
Os posicionamentos da corte ajudaram a enfraquecer uma pauta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que ataca o tema desde a campanha eleitoral de 2018 e relaciona-o a uma suposta “sexualização precoce” nas escolas. O assunto é alvo de discussões entre políticos e lideranças evangélicas. Bereia já tratou de desinformações relacionadas às questões de gênero em outra reportagem.
Foto: TV Globo/Reprodução
Atuando desde 2004, o movimento Escola Sem Partido (ESP) foi criado para combater uma suposta doutrinação de esquerda nas instituições de ensino e ganhou fôlego ao abraçar a chamada “ideologia de gênero”. De acordo com informações do site da organização, Escola sem Partido é “uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior”.
De 2014 a 2019, o Movimento Professores Contra o Escola sem Partido identificou 245 projetos de lei pelo Brasil com conteúdo visando à limitação do que o professor pode falar em sala de aula. Apesar disso, o ESP chegou a suspender suas atividades em 2019 e, em agosto de 2020, o fundador Miguel Nagib deixou o movimento. O anúncio veio um dia após o STF considerar inconstitucional uma lei estadual de Alagoas inspirada no Escola sem Partido. Até o momento de publicação desta reportagem, o perfil do movimento não tem mais atividades no Twitter desde o anúncio de Nagib.
De acordo com Andréa de Souza, pesquisadora do REDUGE – Grupo de Pesquisas em Religião, Educação e Gênero – PPCIR/Universidade Federal de Juiz de Fora, o argumento central do ESP é de que “os pais têm o direito de que seus filhos ‘não sejam obrigados’ a receber na escola ensinamentos que não estejam de acordo com as convicções religiosas e morais de suas famílias”. Ela destaca que, a despeito da saída de Nagib, a continuidade do movimento se faz presente em posições do atual ministro da Educação e pastor presbiteriano Milton Ribeiro e da também pastora e ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. “Isso porque, a despeito da dita ‘ideologia de gênero’ se constituir uma agenda notadamente no campo da educação e nas escolas, ela é também uma importante agenda moral do atual governo para políticas públicas em outras áreas relevantes como saúde pública, economia, e emprego e renda, por exemplo.”
Além dessa questão envolvendo o conteúdo divulgado pelo profissional de educação em sala de aula, nas últimas semanas, ganharam destaque nas mídias sociais várias postagens que afirmam que o PSOL teria solicitado ao STF a implementação de banheiros unissex em todas as escolas e que também teria exigido a obrigatoriedade de “ideologia de gênero” no ambiente educacional.A informação foi verificada pelo Portal Boatos.org, que, ao observar itens nas mensagens divulgadas – como conteúdo vago, tom alarmista, erros ortográficos e ausência de fontes dos dados apresentados –, classificou a informação como falsa.
Durante a produção desta matéria, foi encontrada uma nova informação a respeito do caso. A Agência Lupa verificou o vídeo no qual Sikêra Júnior, apresentador do programa Alerta Nacional (Rede TV), declara que o PSOL supostamente provoca o STF para votar a obrigatoriedade do ensino de “ideologia de gênero” nas escolas, além de dizer que lojas são obrigadas a implantarem banheiros unissex.
De acordo com a Agência, a ação ajuizada pelo PSOL deve ser votada nas próximas semanas e não pede que a “ideologia de gênero” seja obrigatória nas instituições de ensino, mas somente que o Supremo reconheça o papel das escolas em “prevenir e coibir o bullying homofóbico”, respeitar a “identidade de crianças e adolescentes LGBT no ambiente escolar” e “combater o machismo”.
Sobre a implantação de banheiros unissex, Lupa concluiu que a informação é falsa, pois não existe obrigatoriedade na implementação de banheiros unissex para nenhum ramo do comércio e cita a Portaria n° 1.066, publicada no Diário Oficial da União em 23 de setembro de 2019. Portanto, essa decisão não tem nenhuma relação com a ADI apresentada pelo PSOL, que não fala na obrigatoriedade de criar banheiros unissex.
Mediante a repercussão das notícias, o partido divulgou nota na qual afirma que entrou com ação criminal por difamação contra Sikêra Júnior e que também protocolou uma ação civil por reparação por danos morais contra o apresentador, a emissora e o Jornal da Cidade On-line, que repercutiu o conteúdo, e o Google para que o conteúdo deixe de ser veiculado na internet e nas mídias sociais.
A desinformação sobre a ADI do PSOL
Um dos quadros do PSOL no Rio de Janeiro, candidata a vereadora Mônica Benicio, declarou ao Coletivo Bereia que:
“essa movimentação de fake news e desinformação, sobre o PSOL e seu projeto por uma sociedade mais inclusiva, não é à toa. É reflexo do período eleitoral e o medo que certos setores, conservadores, sentem pelo possível crescimento político de um partido socialista, feminista e antirracista. Esses conservadores e fundamentalistas não podem defender explicitamente uma sociedade desigual, então criam mentiras para justificar seus preconceitos”.
Monica Benicio (PSOL-RJ)
Monica Benicio avalia que:
“essa provocação do PSOL ao STF é fundamental para que todas as crianças e adolescentes possam viver o período escolar como uma experiência positiva, e não como algo traumático. A escola não pode ser o lugar onde pessoas são excluídas ou aprendam a discriminar outras. Defender um ensino com perspectiva de gênero não é fazer propaganda da ‘ideologia de gênero’, que nem existe. É ensinar que meninos precisam respeitar meninas, é ajudar na prevenção de futuras ISTs e gravidez na adolescência, é alertar sobre pedofilia e violência sexual e é mostrar que todas as pessoas, independente de quaisquer características, são importantes e precisam ser cuidadas”.
Monica Benicio (PSOL-RJ)
Em entrevista ao Bereia, a professora Sandra Duarte também analisa a desinformação sobre a ADI 5668. Para ela, segmentos conservadores (religiosos ou não) repetem a estratégia de pânico moral usada em 2014 sobre a “ideologia de gênero” no PNE. “A ADI 5668 simplesmente reivindica que a escola seja um espaço seguro para todas as crianças e adolescentes.” Duarte afirma que o PNE invisibiliza as desigualdades históricas ao não explicitá-las em sua redação. “As desigualdades educacionais têm sexo, orientação sexual, raça-etnia, classe, idade e o não reconhecimento dessas desigualdades e de sua interseccionalidade as perpetuam”.
“Pânico moral é uma ferramenta narrativa que se vale da desinformação, do desconhecimento de temáticas por parte da população explorando ‘meias verdades’ e preconceitos confundindo as pessoas que a estas informações têm acesso”, afirma Christina Vital, professora de Sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e colabora do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Ela exemplifica casos anteriores de pânico moral por associação de candidatos ao comunismo, dado que o comunismo era tratado como ameaça à família e à religião. Para ela, políticos conservadores cristãos se usam os pânicos como estratégia eleitoral em contexto de acentuação dos temas da sexualidade, gênero e reprodução.
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Bereia conclui que são enganosas as publicações a respeito da ADI 5668 prejudicar famílias brasileiras, veiculados em mídias digitais, na forma de notícias, vídeos e memes. No mesmo sentido, conteúdos que divulgam a imposição banheiros unissex. Estas postagens constroem uma narrativa acerca da decisão que ainda está para acontecer no STF, de forma a conduzir leitores/as por um ponto de vista que nega a educação para a diversidade e os desafios que compõem a sociedade e que falam das complexidades dessa realidade. Estes conteúdos têm ganho muita proporção diante do contexto das eleições municipais, sendo usados como objeto de campanha.
Mais uma vez, a deputada católica Bia Kicis (PSL/DF) desponta nas mídias sociais digitais com discursos que ratificam sua militância antagônica à obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19.
No último dia 16 de outubro, ela retuitou o post do perfil Médicos pela Liberdade, autointitulado como “grupo em prol das liberdades individuais e contra o totalitarismo disfarçado de ciência”.
Fonte: Perfil Bia Kicis no Twitter
A publicação, que parabeniza a ação do grupo, gerou 3,4 mil curtidas, 769 retuítes e 61 comentários. Já o conteúdo original, publicado no perfil Médicos pela Liberdade, angariou 6,9 mil curtidas, 2,3 mil retuítes e 190 comentários.
Fonte: Perfil Médicos pela Liberdade no Twitter
O post foi motivado após o governador de São Paulo, João Doria, no mesmo dia, se pronunciar sobre a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 em todo o estado paulista, caso ela seja aprovada nos testes e tenha o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segundo Doria, em entrevista à Agência Brasil, apenas pessoas com atestado médico serão liberadas de receber o imunizante.
“Em São Paulo a vacinação será obrigatória, exceto para quem tenha orientação médica e atestado médico de que não pode tomar a vacina. E adotaremos medidas legais se houver contrariedade nesse sentido”, disse Doria, em entrevista coletiva em São Paulo.
O governador revelou ainda que os testes com a vacina chinesa CoronaVac deveriam ser finalizados no final da semana e os resultados desses testes deveriam ser anunciados em coletiva à imprensa na segunda-feira, 19. Contudo, matéria do UOL, publicada no dia 19 de outubro, noticiou que Doria recuou e adotou um tom mais cauteloso, dizendo que ainda não seria possível precisar quando as doses estarão disponíveis. Anteriormente, o governador Doria havia dito que a Coronavac, vacina contra o coronavírus que será produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, poderia começar a ser aplicada em profissionais de saúde a partir de 15 de dezembro, caso fosse aprovada em todos os testes. Contudo, durante a entrevista coletiva no Palácio dos Bandeirantes na tarde do dia 19, ocasião do recuo de Doria, o diretor do Instituto Butantan Dimas Covas explicou que “as perspectivas são otimistas, mas não podemos dar data precisa de quando isso vai acontecer. Esperamos que até o final desse ano”.
Na ocasião da coletiva, Doria também disse que a vacina do Butantan é a que está em estágio mais avançado entre todas as que estão em produção no mundo. “Os primeiros resultados do estudo clínico comprovam que, entre todas as vacinas, a Coronavac é a mais segura e a que apresenta melhores índices e mais promissores. É, de fato, a vacina mais avançada neste momento”, declarou. O governo do estado divulgou hoje os resultados dos testes da Coronavac com nove mil voluntários no país. De acordo com Covas, a vacina teve poucos efeitos colaterais e os resultados no Brasil comprovam que a vacina é segura.
Segundo a matéria do UOL, os resultados apresentados mostraram que 35% dos voluntários apresentaram algum tipo de efeito colateral após a aplicação da vacina, sendo dor no local de aplicação a mais comum, relatada por 18% dos que receberam a dose. Não foram apresentadas reações de grau 3, que são mais graves. Apenas 0,1% dos voluntários tiveram febre. “As outras reações foram insignificantes do ponto de vista estatístico. O mais frequente foi dor de cabeça, que pode ter relação com vacina ou não. Os outros sintomas foram muito baixo”, afirmou Covas. “Portanto é a vacina mais segura não só no Brasil, mas no mundo”.
Nas mídias sociais, grupos antivacina seguem usando o espaço para dar eco a conteúdo enganoso e gerar desconfiança sobre futura campanha de vacinação. No caso do perfil Médicos pela Liberdade, a postagem mostra a resistência dos profissionais frente à suposta obrigatoriedade de vacina contra o vírus, classificado como “vírus chinês’, e ainda aponta que esta foi produzida “a toque de caixa, sem nenhum estudo a médio e longo prazo”, fato que dividiu a opinião entre os usuários e seguidores.
Entenda o movimento antivacina
Em 2019 o movimento antivacina passou a figurar na lista das dez maiores ameaças à saúde global, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) A informação consta no Repositório Institucional da Fiocruz. Segundo a organização, o movimento seria um dos fatores responsáveis pelo aumento de 300% no número de casos de sarampo no mundo todo, sendo que, a doença havia sido oficialmente erradicada no Brasil em 2016.
Desconfiança em relação às formas de imunização oferecidas pelo governo e teorias da conspiração sobre os efeitos das vacinas são elementos que sustentam o movimento antivacina pelo mundo. O fenômeno não é recente, tanto é que, a mais de um século, em 1904 ocorreu a revolta da vacina no Rio de Janeiro, movimento de motim popular que rejeitava a obrigatoriedade da vacina contra a varíola. No entanto, a comunidade médica acredita que os movimentos mais recentes e organizados foram desencadeados por um estudo publicado pelo médico britânico Andrew Wakefield na renomada revista de ciência Lancet, em 1998.
Nesse estudo, Wakefield relacionava a vacina tríplice viral, que previne contra caxumba, sarampo e rubéola, à manifestação de quadros de autismo. O médico teria examinado 12 crianças para seu artigo, das quais oito supostamente manifestaram autismo duas semanas após receberem a vacina. Segundo ele, o sistema imunológico das crianças havia sofrido uma sobrecarga com a imunização.
O estudo foi descartado após descobertas de que Wakefield, estava envolvido com advogados que queriam lucrar a partir de processos contra fabricantes de vacinas. Além disso, ele utilizou dados falsos e alterou informações sobre os pacientes.
Portanto, observa-se que dados falsos, mesmo hoje, são um dos principais argumentos utilizados pelo movimento antivacina, que relaciona não só a tríplice viral, como várias outras vacinas à manifestação do autismo.
Outro sistema de imunização que também foi e ainda é alvo de boatos e fake news é a vacina que previne contra o papilomavírus humano (HPV). Ela começou a ser distribuída em 2014 tendo como público-alvo garotas adolescentes entre nove e 14 anos e visa combater o vírus, sexualmente transmissível e causador de doenças como câncer no colo do útero. Na época em que surgiu a vacina contra o HPV, o boato circundante era o que o produto causaria paralisia, segundo matéria publicada no UOL. Contudo, tais alegações foram checadas e comprovadamente declaradas falsas por pesquisadores da área.
No que tange o combate à pandemia de Covid-19, a elaboração e distribuição de uma vacina eficaz no combate ao vírus é a principal esperança das autoridades e da população, mas, mesmo diante desse cenário de expectativa, movimentos antivacinas se fortalecem a partir das incertezas e inseguranças fomentadas pela pandemia e ganham visibilidade, fazendo circular diversos conteúdos falsos ou desinformativos, que atribuem mortes em decorrência de vacinações e substâncias tóxicas que comporiam as vacinas.
Exemplo de conteúdo enganoso sobre vacinação (Fonte: Internet)
O caminho da desinformação sobre a vacina contra o vírus
A cada novo fato sobre os testes de vacinação contra a Covid-19, um turbilhão de desinformação avança por todo o país, invadindo as redes sociais digitais e dividindo as opiniões na sociedade. Percebe-se que, para além da pandemia de uma grave e mortal doença, outra ainda mais sutil e tanto quanto perigosa vem se desenvolvendo: a onda de notícias falsas, desinformativas e enganosas.
A constatação pode ser justificada pelos números levantados pela União Pró-Vacina – UPVacina, um grupo de instituições ligadas à Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto, cujo objetivo é esclarecer informações falsas sobre vacinas. Segundo o levantamento, houve um aumento de 383% em postagens contendo postagens com conteúdos falsos ou distorcidos envolvendo o tema, o que aponta que a desinformação quase quintuplicou em apenas dois meses.
De acordo com informações apresentadas pela UPVacina, a análise foi feita com base em postagens dos dois principais grupos antivacina brasileiros no Facebook, os quais já haviam sido objeto de outro estudo da entidade em março. Entre os dias 1º de maio e 31 de julho, foram identificadas no total 155 postagens ligadas à vacina em desenvolvimento contra a covid-19. O volume de interações chama a atenção: foram 3.282 reações, 1.141 comentários e 1.505 compartilhamentos.
A rapidez com que o número de postagens cresce no decorrer do tempo impressiona. Durante todo o mês de maio, apenas 18 postagens abordavam assuntos ligados à vacina contra a covid-19. Em junho, elas chegaram a 50 e, em julho, a 87.
Fonte: União Pró-Vacina
A análise, apresentada no mês de agosto, também levou em conta os números por períodos. Assim, percebeu-se que em dois há uma frequência maior na disseminação de conteúdo falso: entre 11 e 20 de junho e entre 21 e 31 de julho. Os picos coincidem com informações bastante difundidas pela imprensa e ligadas à temática. Entre elas estão o anúncio da parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac Life Science para a produção de uma vacina contra a covid-19; o início dos testes dessa vacina no País; e os primeiros testes, no Brasil, de outra vacina para combater a doença, desenvolvida pela Universidade de Oxford.
Assim como na análise anterior da UPVacina nos mesmos grupos, há um pequeno número de pessoas produzindo a maior quantidade das postagens. De acordo com a pesquisa, 56 autores foram responsáveis por todas as 155 postagens. Cinquenta deles publicaram 52% (81) do total e os outros seis, 48% (74).
Os resultados apontaram também que a grande maioria das postagens gira em torno de possíveis perigos e ineficácia das vacinas (24,52%), além de uma variada gama de teorias da conspiração (27,10%). Contudo, outras temáticas também se destacam pelo grau de desinformação que trazem. Uma delas já era bastante citada pelos grupos antivacina: a de que vacinas podem alterar o DNA dos seres humanos, que aparece em 14,84% das postagens.
Até mesmo o empresário americano Bill Gates, um dos fundadores da Microsoft, está sendo alvo de grupos antivacina, segundo dados da pesquisa da UPVacina. No rol das notícias enganosas, que aparece em 14,19% das postagens, está a informação enganosa de que ele também fomenta pesquisas e o desenvolvimento de vacinas, patrocinando estudos por meio da Fundação Bill and Melinda Gates. As postagens geralmente associam essa atividade a um possível controle populacional realizado a partir das vacinas ou até mesmo a teorias da conspiração envolvendo o controle da mente humana usando chips implantados com a aplicação dos imunizantes.
Fonte: União Pró-Vacina
De acordo com a análise de UPVacina, um dos vídeos com informações falsas e alarmistas sobre as vacinas, que apresentou maior engajamento entre os usuários, foi produzido pelo jornalista e servidor público da Câmara dos Deputados, Cláudio Lessa, que ganhou destaque pela publicação no site Jornal da Cidade Online, citado na CPMI das Fake News, e pelo compartilhamento na página da deputada Bia Kicis (PSL-SP), investigada em inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo financiamento de notícias falsas.
Fonte: YouTube
No vídeo, Lessa afirma que vacinas modificam o DNA do ser humano e contêm “nanopartículas de controle social” – argumentos recorrentes entre grupos antivacina e que têm tido maior alcance devido ao alto volume de buscas pelas vacinas em fase de testes. O servidor ainda se refere à vacina como “lixo que está sendo produzido” contra a “peste chinesa” e, sem citar quaisquer referências e atribuindo as afirmações a “opiniões” de “várias pessoas”, apresenta informações falsas sobre a imunização. Na ocasião, agências de checagem de informações, como Projeto Comprova, Agência Lupa e Aos Fatos classificaram as alegações do vídeo como falsas.
De acordo com matéria publicada na Carta Capital em 08 de outubro, Lessa consta como Analista Legislativo da Câmara dos Deputados e, segundo o Portal de Transparência da Câmara, ganha mais de 34 mil reais mensalmente como salário bruto. Ele chegou à Casa por indicação política do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), que atualmente cumpre pena domiciliar por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Já a deputada católica Bia Kicis Kicis recebe mais de 33 mil reais como deputada federal.
Carta Capital traz ainda outros números importantes para se entender a dimensão da questão. As publicações no site e na página de Kicis, juntas, tiveram 232,3 mil interações, entre curtidas, comentários e compartilhamentos no Facebook, sendo feitas respectivamente em 24 e 25 de setembro, segundo a análise da UPVacina. Os estudos mostraram também que o post e a matéria foram compartilhados por 79,7 mil usuários, enquanto as outras sete notícias provenientes de sites jornalísticos com maior engajamento no mesmo mês, como Carta Capital, G1 e Folha de S. Paulo, tiveram 79,6 mil compartilhamentos em conjunto.
Seguindo a mesma proposição de checagem, em setembro, o Coletivo Bereiaverificou dois vídeos que viralizaram em mídias sociais no referido mês, especialmente no WhatsApp . O primeiro apresenta um suposto médico que fala contra a testagem e vacinação em massa, pois segundo ele são um projeto de redução da população mundial. O segundo vídeo trata da aferição de temperatura na testa, que supostamente atinge a chamada glândula pineal e pode prejudicar o funcionamento do corpo. Ambos foram categorizados como falsos, baseados em teorias da conspiração com fundo religioso, mas que não se comprovam com dados científicos. Este tipo de conteúdo tem sido disseminado em mídias sociais para causar pânico, alimentar a relativização da gravidade da pandemia de coronavírus e diminuir o engajamento nas medidas preventivas, podendo causar prejuízos graves à população.
No caso da nova postagem checada, que trata sobre a total resistência do grupo Médicos pela Liberdade à vacinação contra a Covid-19, chancelada pela deputada Bia Kicis, o Coletivo Bereia a categoriza como enganosa. O conteúdo traz o rótulo de“vírus chinês” para o coronavírus, tipificação descartada por organismos internacionais e descabida para qualquer organização reconhecida. Apresenta também, a afirmação de que a vacina teria sido produzida “a toque de caixa”, argumento falso, uma vez que as instituições de pesquisa seguem os protocolos internacionais no tocante a processos e prazos. Da mesma forma, dizem que não foi oferecido estudo a médio e longo prazo, argumento que, por si só, não aponta qualquer informação precisa e devidamente apurada.
É importante ressaltar que no dia 21 de outubro, o presidente em exercício, Jair Bolsonaro, causou polêmica no Twitter ao afirmar que o governo só irá disponibilizar a vacina se comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela ANVISA, ratificando que não é possível justificar um aporte financeiro bilionário em um medicamento que “sequer ultrapassou sua fase de testagem”. Tal proposição adiciona mais um fator desinformativo que circula nas mídias envolvendo o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 no Brasil.
No mesmo dia em que a mídia nacional e a internacional rememoravam os atentados ocorridos em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, o site Sul21, jornal online dedicado prioritariamente ao noticiário político, segundo definição na seção institucional da página, trouxe a seguinte manchete: “Câmara de Xangri-Lá (RS) torna obrigatória leitura da Bíblia nas escolas municipais”.
Segundo a matéria, a Casa Legislativa do município, localizado no litoral norte do Rio Grande do Sul, havia promulgado no dia 21 de agosto uma lei que torna obrigatória a leitura bíblica nas escolas públicas na cidade. O texto faz referência ao conteúdo publicado originalmente no Projeto de Lei (PL) n. 2.166, de 21 de agosto de 2020, assinado pelo presidente da Câmara, Valdir Machado Silveira (PSC), e pelo 1º secretário, Fábio Júnior Ramos (PP).
Fundamentada pelo texto do PL, a reportagem de Sul21 descreve como seria a inserção das leituras a partir da promulgação da lei. “Segundo o texto (ver ao final), promulgado pela Mesa Diretora da Câmara local, a leitura da Bíblia será de responsabilidade do professor de cada turma e deverá ser feita no início de cada turno escolar (manhã e tarde), podendo o docente autorizar ou não o debate do texto lido. A lei diz ainda que o trecho a ser lido, bem como capítulo e versículo, será escolhido de forma aleatória ou coletiva, ‘quando melhor convier à classe”. Ainda segundo o PL, a leitura única e exclusivamente do livro terá caráter de “tornar o ambiente escolar mais saudável e altruísta”. De acordo com Sul21, a obrigatoriedade teria entrado em vigor a partir da promulgação da lei.
A matéria jornalística salienta a inconstitucionalidade de legislações que tornam obrigatórias a leitura da Bíblia em escolas; elas são desaprovadas pelos juristas uma vez que vão de encontro à laicidade do Estado. A publicação exemplifica ainda o caso da cidade de Florianópolis, que, em 2015, instituiu uma lei que obrigava escolas públicas e privadas a disponibilizarem bíblias e que foi suspensa após ser considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Na página da Sul21 no Facebook, o post sobre o PL em Xangri-Lá, publicado no dia 12 de setembro, gerou comentários de repúdio à iniciativa da Câmara e questionamentos quanto à laicidade de Estado. Foram 68 interações, 24 comentários e 7 compartilhamentos.
Entendendo a laicidade do Estado
Conforme esclarece o advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Estado laico é a condição de um país ou nação que adota uma posição neutra no campo religioso. Também conhecido como Estado secular, tem como princípio a imparcialidade, não apoiando ou discriminando nenhuma religião. Defende ainda a liberdade religiosa a todos os cidadãos e não permite a interferência de correntes religiosas em matérias sociopolíticas e culturais.
Um país laico é aquele que segue o caminho do laicismo, doutrina que defende que a religião não deve ter influência nos assuntos do Estado. O laicismo foi responsável pela separação entre a Igreja e o Estado e ganhou força com a Revolução Francesa.
O Brasil é oficialmente um Estado laico, pois a Constituição Federal e outras legislações preveem a liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além de proteção e respeito às manifestações religiosas. O inciso VI do art. 5º desse dispositivo legal estabelece:
“VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”
Vecchiatti reforça que a laicidade do Estado pressupõe a não intervenção da Igreja no Estado, entretanto um aspecto que contraria essa orientação é o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Já em países não laicos (teocráticos), a religião exerce controle político na definição das ações governativas. Ali, o sistema de governo está sujeito a uma religião oficial, como ocorre no Vaticano (Igreja Católica), Irã (República Islâmica) e Israel (Estado Judeu).
Outro conceito é o de Estado confessional, em que o Estado reconhece determinada religião como sendo a oficial. Apesar disso, não se deve confundir Estado teocrático com Estado confessional, porque no primeiro caso é a religião que define o rumo do país, ao passo que no segundo ela não é tão importante na comparação entre os dois modelos, mas ainda assim tem mais influência do que em um Estado laico, explica o advogado.
Deve-se destacar, no entanto, que um Estado laico não é o mesmo que um Estado ateu, que não permite que os cidadãos professem sua fé; ao contrário, assume igualdade entre todas as crenças e cidadãos que as professam e deve atuar garantir a liberdade de religião. Por essa razão, um PL que decide impor a leitura bíblica em escolas municipais e privilegia os cristãos em detrimento de estudantes e professores não cristãos fere o princípio de laicidade e, portanto, a Constituição. Sendo assim, projetos desta natureza se tornam inconstitucionais.
Outras localidades também já apresentaram PL semelhante ao de Xangri-Lá
O cristianismo é a religião com o maior número de adeptos no Brasil. Dados de uma pesquisa do Instituto Datafolha, que atualizam dados do Censo do IBGE (2010), mostram que 81% da população do país é cristã. O estudo, realizado nos dias 5 e 6 de dezembro de 2019 com 2.948 entrevistados em 176 municípios, revelou que 50% é de origem católica, 31% evangélica, 3% espírita, 2% autodeclarados como pertencentes ao candomblé ou outras religiões afro-brasileiras, 1% de ateus, 0,3% judaicos e ainda 10% autodeclarados como sem religião.
Os números explicam as iniciativas com foco em projetos de lei que visam promover conteúdos cristãos no ensino público. Nesse sentido, casos como o de Xangri-Lá já foram pauta de diversos debates ao redor do país. Recentemente, o Coletivo Bereiarealizou checagem de matéria sobre a aprovação na Assembleia Legislativa do Maranhão (Alema) do Projeto de Lei nº 281/2019 que insere a Bíblia como livro obrigatório no acervo bibliográfico indicado pela Comissão de Remição pela Leitura. O documento acrescenta dispositivos à Lei Estadual nº 10.606/2017 que institui o Projeto “Remição pela Leitura” no âmbito das penitenciárias do Maranhão. A proposta foi apresentada pela deputada estadual Mical Damasceno (PTB) e aprovada com a totalidade dos votos dos parlamentares presentes.
A checagem do Bereia traz ainda outro exemplo, dessa vez ocorrido na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O PL nº 390/2017 foi vetado em fevereiro deste ano por ser considerado inconstitucional sob o argumento de que legislação penal é de competência do Senado e da Câmara, e não da Alesp, como prevê a Constituição.
Em São Luís (MA), decreto sancionado pelo então prefeito Tadeu Palácio (à época no PDT), em 20 de março de 2003, tornou obrigatório que as escolas municipais do ensino fundamental adotassem a leitura da Bíblia antes do início das aulas.
Por se tratar de um projeto inconstitucional, foi proposto e vetado, assim como ocorreu em outras cidades que também desejavam incluir a leitura bíblica ao ensino municipal. Foi o caso de Nova Odessa (SP), em 2014, em que projeto de autoria do vereador Vladimir Antônio da Fonseca (SDD) – e que foi vetado pelo prefeito Benjamin Bill Vieira de Souza (PSDB) – previa a leitura de um versículo bíblico por dia para os alunos do 1º ao 5º ano .
A inconstitucionalidade da lei também foi declarada no Rio de Janeiro em 2015 sobre a Lei nº 5.998/11, que obrigava escolas públicas e privadas a terem um exemplar da Bíblia em sua biblioteca. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio determinou que a lei feria o princípio de neutralidade das religiões.
Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou pela terceira vez o recurso da Prefeitura de Manaus (AM), que pedia para manter as determinações previstas na Lei n. 1.679/2012 que obrigava que todos os espaços públicos municipais de leitura dispusessem de um exemplar da Bíblia. O projeto de lei, de autoria do então vereador Marcel Alexandre, já havia sido derrubado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas em julho de 2018.
Valdir Machado Silveira (PSC), autor da lei proposta recentemente pela Câmara de Xangri-Lá (RS), é pastor evangélico e cantor gospel. A justificativa para o projeto não é religiosa, conforme ele afirmou. Segundo o vereador, por meio da leitura bíblica quer “tornar o ambiente escolar mais saudável e altruísta”.
O Coletivo Bereia entrou em contato com a Câmara Municipal de Xangri-Lá para apurar a proposição do PL. De acordo com a diretora legislativa, Camila Galvão, trata-se de um projeto aprovado em 2019, mas não sancionado pelo Executivo. A proposta veio à tona novamente, por meio do Projeto de Lei nº 2166, aprovado novamente pelos vereadores, mas ainda não sancionado pela Prefeitura.
De acordo com Ministério Público Federal (MPF), em 2019, o órgão encaminhou ao procurador-geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul representação por inconstitucionalidade do referido PL. A atuação foi do procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Enrico Rodrigues de Freitas.
Para o MPF, é evidente a inconstitucionalidade material da norma, uma vez que o STF possui vasta jurisprudência na análise das diretrizes e limites da laicidade do Estado, bem como da liberdade religiosa do cidadão. Dessa forma, a imposição de leitura e autorização/indução de debate confessional em horário escolar regular, em período de disciplinas de matrícula obrigatória, ofende tanto a Constituição Federal quanto a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Além disso, viola a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da Igualdade Racial.
Soma-se a isso o fato de que a lei municipal também sofre de inconstitucionalidade formal, pois compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, e à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concomitantemente sobre educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação. Não é permitido ao município editar a lei por faltar-lhe competência legislativa.
Portanto, Bereia classifica a matéria do Jornal Sul21 como imprecisa, uma vez que oferece conteúdos verdadeiros, porém sem considerar as diferentes perspectivas e não contextualizar a situação em questão. O site não explica que o PL que tornaria obrigatória a leitura bíblica em escolas de Xangri-Lá foi promulgado pela Câmara dos Vereadores, mas ainda não foi aprovado pelo Executivo.