Políticos religiosos que atuam pela anistia a golpistas enganam com conteúdo que compara à ditadura militar

Com o acirramento, neste setembro de 2025, da campanha na Câmara dos Deputados pela anistia dos agentes do golpe de Estado contra o resultado das eleições de 2022, políticos religiosos têm feito circular em ambientes digitais conteúdo que, deliberadamente, distorce e confunde a Lei da Anistia aplicada nos anos finais da ditadura militar, em 1979.
O monitoramento do Bereia identificou publicações com grande alcance sobre o tema, de autoria de duas lideranças políticas, deputados federais de identidade evangélica: o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder do partido na Câmara Federal, e Nikolas Ferreira (PL-MG).
Os parlamentares do PL reclamam o mesmo direito à anistia dos presos políticos e exilados pelo Estado de exceção imposto pela ditadura militar (1964 a 1985) e criticam lideranças que a defenderam à época e se manifestam contrariamente à atual campanha. Nas postagens, que ainda estão ativas em mídias sociais, as ações do passado são equiparadas com a possibilidade de concessão de anistia para os agentes do golpe contra a democracia para alterar o resultado das eleições de 2022 e continuarem no Poder Executivo da República.

Imagem: Publicação do deputado Sóstenes Cavalcante no X, em 21 set 2025

Influenciadores alinhados à pauta da anistia também publicaram conteúdo na mesma direção, com amplo alcance.

O que é anistia
O termo anistia tem origem no grego amnestia (a mesma raiz de amnésia) e significa literalmente “esquecimento” ou “perdão”. Desde a Antiguidade, tanto na Grécia quanto em Roma, essa ideia já estava presente: conceder clemência era uma forma de reduzir tensões em períodos de conflito, evitar retaliações e, ao mesmo tempo, garantir estabilidade política.
Com o passar dos séculos, a prática foi adotada em diferentes países do mundo. Durante revoluções e guerras civis na Europa, a anistia serviu como instrumento para permitir que adversários políticos voltassem à vida pública sob os novos regimes, diminuindo a possibilidade de perseguições e fortalecendo os sistemas democráticos em construção.
Hoje, nos países democráticos, a anistia se consolidou como um mecanismo jurídico voltado a um coletivo. Trata-se de um perdão formal concedido pelo Estado a grupos de pessoas que tenham cometido crimes ou infrações, geralmente de natureza política ou administrativa, em determinado período histórico.
É importante diferenciar a anistia do indulto. Enquanto o segundo beneficia indivíduos de forma isolada, a anistia tem caráter coletivo e costuma ser aplicada em contextos excepcionais, como transições de governo, redemocratizações ou iniciativas de reconciliação social.
Segundo o professor de Ciência Política Homero de Oliveira Costa, “a história da anistia no Brasil tem uma longa tradição. Da colônia à República em vários momentos de nossa história, a anistia tem estado presente”. A Lei de Anistia de 1979 tem um destaque na história do país, pois sua aprovação significou o início do encerramento de um período de 21 anos de ditadura militar, que representou um tempo de obscurantismo gerador não apenas de censura, prisões, banimentos e exílios mas do sequestro, da tortura e de execuções sumárias como prática sistemática de repressão perpetrada pelo Estado.
A Lei de Anistia de 1979
O professor Homero Costa recorda o contexto que tornou possível a Lei de Anistia de 1979. Ele se estabelece quando a ditadura militar completou dez anos, em março de 1974, o general evangélico luterano Ernesto Geisel assumiu a presidência prometendo uma abertura “lenta, gradual e segura”. Apesar da retórica, o governo manteve a repressão política: parlamentares continuaram a ser cassados e lideranças de oposição e apoiadores perseguidos. Nesse período quase todos os grupos políticos de resistência e oposição à ditadura que vinham atuando na clandestinidade haviam sido desbaratados pela repressão política, com prisões e execuções, como o caso da aniquilação da Guerrilha do Araguaia, quando o governo enviou ao local cerca de dez mil soldados do Exército para eliminar 69 guerrilheiros armados.
Dois episódios de grande impacto marcaram o período: as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho em quartéis do Exército. Ambos foram oficialmente apontados como suicídios, mas os casos geraram forte indignação, já que nenhum responsável foi punido. No mesmo período, em 1976, ocorreu a “Chacina da Lapa”, quando dirigentes do Partido Comunista do Brasil foram assassinados.
Mesmo diante da repressão, as eleições legislativas de 1974 revelaram um enfraquecimento do regime. O MDB, partido de oposição, conquistou 16 das 23 vagas em disputa no Senado, superando a Arena em votos, e quase dobrou sua bancada na Câmara. Esse resultado refletiu o crescente descontentamento popular. Em resposta, o governo militar, em 1977, lançou o chamado “Pacote de Abril”, que criou os senadores biônicos para assegurar a maioria governista no Senado.
Foi nas brechas que a sociedade civil conseguiu se reorganizavar: em 1978, nasceu o Movimento Feminista pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbini. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) também se destacaram na denúncia de abusos. Paralelamente, estudantes e trabalhadores retomaram as ruas, dando origem ao “novo sindicalismo”, especialmente com os metalúrgicos no ABC paulista, sob a liderança de Luiz Inácio da Silva.
Foi nesse ambiente que surgiram os Comitês Brasileiros de Anistia, criados em 1978. Naquele momento havia no Brasil cerca de 200 presos políticos, 128 pessoas banidas, 4.877 punidas por Atos de Exceção e cerca de 10 mil exiladas. Aos comitês reuniram-se familiares de presos políticos, artistas, intelectuais, parlamentares de esquerda e de centro e opositores do regime, contando ainda com o apoio de setores da Igreja Católica e de grupos progressistas evangélicos, dentro e fora do Brasil. Muitos marcaram suas presenças em atos públicos, manifestos, abaixo-assinados e visitas aos presos políticos.

Os comitês organizaram protestos, debates, campanhas e, no final daquele ano, promoveram, em São Paulo, o 1º Congresso Nacional pela Anistia. Desse encontro nasceu o lema que mobilizaria o movimento: “anistia ampla, geral e irrestrita”, uma proposta que visava beneficiar todos os perseguidos políticos sem exceções.
Quando o general João Batista Figueiredo assumiu a presidência em 1979, a mobilização pela anistia já era irreversível. O governo tentou oferecer apenas um indulto coletivo, mas a proposta foi rejeitada. Como forma de pressão, presos políticos iniciaram uma greve de fome que durou 32 dias e atraiu apoio de intelectuais, artistas e parlamentares. A repercussão obrigou o regime a recuar.
Em agosto de 1979, o Congresso aprovou a Lei de Anistia, depois de uma negociação com o governo militar, que excluiu do perdão condenados na Justiça Militar por terrorismo, sequestro e atentados e incluiu o benefício aos torturadores e agentes do Estado que praticaram crimes na represssão.
Não era a anistia ampla, geral e irrestrita demandada pelos movimentos, nem a aplicação da justiça sobre os agentes do Estado perpetradores dos abusos de poder e autoritarismo que acabaram com muitas vidas. Ainda assim, a Lei da Anistia representou um passo importante: graças a ela, a maioria dos presos políticos foi libertada, milhares de exilados puderam retornar e foi iniciado um processo de reintegração de brasileiros à vida pública. Esta lei representou a consolidação de um processo de abertura democrática e reconstrução do Estado Democrático de Direito.
A ditadura militar chegou ao fim em 1985, o Brasil ganhou uma nova Constituição em 1988, mas somente em 1996, o país aprovou a Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei 9.140/96). Foi criada uma Comissão Nacional de Anistia, que garantiu indenizações a familiares de vítimas da ditadura militar, com os direitos ampliados em 2001. Pela primeira vez, foi estabelecido um regime jurídico específico para os anistiados políticos, incluindo o direito formal ao reconhecimento, a possibilidade de concluir cursos interrompidos pela repressão e a contagem de tempo de serviço para fins funcionais e a reparação econômica (indenizações mensais ou em parcela única).
O que é a campanha por anistia em 2025
A campanha por anistia em 2025 foi concebida pela família e por partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro com o objetivo da aquisição do perdão dos crimes cometidos contra a democracia do país, com vistas à alteração do resultado das eleições de 2022, para que ele continuasse no poder da República.
O movimento começou logo após a condenação de participantes dos ataques a Brasília em 8 de janeiro de 2023. Com a acusação dos líderes e o processo de julgamento, em 2025, foram intensificadas ações de comunicação para a captura de apoios à impunidade dos protagonistas. O PL e aliados organizaram manifestações de rua que reuniram milhares de apoiadores ao projeto de anistia em algumas capitais em março, abril, maio e setembro.
A defesa de um Projeto de Lei na Câmara Federal se intensificou neste segundo semestre de 2025, depois do agendamento do julgamento que condenou todos os réus do “núcleo crucial” do golpe, como foi denominado na acusação da Procuradoria-Geral da República. O grupo é composto pelos líderes da trama golpista: além do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), militares de alta patente e civis do primeiro escalão do governo, que teve mandato entre 2019 e 2022, entre eles quatro ex-ministros (o delegado da Polícia Federal (PF) Anderson Torres e os generais de Exército Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira).
No entanto, pesquisa do Instituto Datafolha divulgada em 14 de setembro passado indica que 54% da população se opõe à aprovação de uma Lei de Anistia aos agentes do golpe contra a democracia em 2022-2023. O Instituto Quaest, em pesquisa encomendada pela Genial Investimentos, também indica maioria contrária, com 41%. Em 21 de setembro centenas de milhares foram às ruas em todas as capitais brasileiras e cidades do interior contra qualquer lei de anistia e contra uma mudança na Constituição aprovada na Câmara Federal para blindar deputados de processos judiciais, que acabou derrubada no Senado dias depois.
Não há consenso entre as lideranças da Câmara e do Senado quanto à aprovação de uma lei que contrarie o processo judicial estabelecido formalmente em todas as etapas de direito no Supremo Tribunal Federal. Em pressão por aprovação, deputados do PL, no retorno do recesso parlamentar em 5 de agosto passado, sob a liderança de Sóstenes Cavalcante, chegaram a ocupar o espaço da mesa diretora no plenário para impedir os trabalhos da Casa, em troca da aprovação da lei. Estas lideranças alegam que a anistia é necessária para pacificação do país.
No entanto, o mesmo grupo político tem exercido pressão por anistia para os envolvidos na trama do golpe com o estabelecimento de problemas para o Brasil. A estratégia de conquista da anistia também passa pela atuação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), radicado nos Estados Unidos, que conseguiu negociar com o governo de Donald Trump a imposição de sanções daquele país contra o comércio com o Brasil e contra autoridades dos poderes Executivo e Judiciário, tendo em vista a negociação do encaminhamento da lei. Uma crise diplomática sem precedentes foi estabelecida neste processo e o caso se tornou novo processo judicial com acusação de obstrução da Justiça da parte dos Bolsonaro, pai e filho.
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Bereia avalia como enganosas as publicações dos deputados Sóstenes Cavalcante e Nikolas Ferreira, e de seus aliados, que propagam a campanha por anistia aos agentes condenados pela trama golpista contra as eleições de 2022. O conteúdo justifica o projeto com base na Lei de Anistia de 1979 e cobra atitude similar daqueles que atuaram à época pela concessão do perdão aos perseguidos pela ditadura militar.
Como Bereia verificou, os contextos de 1979 e de 2025 são radicalmente opostos, bem como as motivações pelo perdão a condenados. Em 1979, buscava-se o retorno à democracia e ao direito à participação e ao voto, a libertação, retorno do exílio e reintegração social das pessoas e suas famílias atingidas por um Estado ditatorial, de exceção, com negação dos direitos democráticos fundamentais e autoritarismo represssivo sem direito a defesa. Em 2025, os praticantes dos crimes contra a democracia, que visavam a um golpe de Estado, incluído o assassinato de eleitos e do juiz responsável pelo acompanhamento do processo eleitoral, estão sendo julgados sob todo o arcabouço legal do Estado Democrático de Direito, com direito a ampla defesa e acompanhamento de cada passo tomado no processo por parte da população. São processos e objetivos muito diferentes.
Referências:
Incursões na História
https://www.dhnet.org.br/direitos/anthistbr/redemocratizacao1988/homero_anistia.html
https://www.dhnet.org.br/direitos/anthistbr/redemocratizacao1988/homero_anistia.html
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Acesso 26 set 2025
Memórias da Ditadura
https://memoriasdaditadura.org.br/aula/comissao-nacional-da-verdade/ Acesso 26 set 2025
Uol
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/04/06/bolsonaro-aposta-pressao-ruas-para-anistia-avancar-camara-deputados.htm Acesso 26 set 2025
Datafolha
https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniao-e-sociedade/2025/09/54-se-opoem-a-anistia-para-bolsonaro-pelo-congresso-e-39-apoiam-medida.shtml Acesso 26 set 2025
G1
https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/09/16/quaest-anistia-bolsonaro-8-de-janeiro.ghtml Acesso 26 set 2025
Estado de S. Paulo
https://www.estadao.com.br/politica/governistas-fazem-ato-contra-anistia-e-pec-da-blindagem-com-criticas-a-bolsonaro-e-tarcisio-nprp/ Acesso 26 set 2025
BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crmexkn080do.amp Acesso 26 set 2025
Bereia
https://coletivobereia.com.br/eduardo-bolsonaro-afirma-que-trabalha-para-dificultar-o-trabalho-de-senadores-brasileiros-nos-eua/ Acesso 26 set 2025
Comissão Nacional da Verdade/Memórias Reveladas
https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade Acesso 26 set 2025
Portal STF
https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ap-2668-stf-comeca-julgamento-do-nucleo-1-da-tentativa-de-golpe-de-estado/ Acesso 26 set 2025