Eleições: Deputados federais pré-candidatos à Prefeitura do Rio são condenados por propagação de notícias falsas nas eleições de 2020

Os deputados federais evangélicos Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) e Otoni de Paula (MDB-RJ) foram condenados pela Justiça por disseminar informações falsas durante as eleições municipais de 2020. Segundo o blog do jornalista Ancelmo Gois, do jornal O Globo, os parlamentares pré-candidatos à Prefeitura do Rio de Janeiro em 2024, deverão indenizar o Diretório Municipal do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), por terem acusado o partido de distribuir “kit gay” e associá-lo a pedofilia, naquele pleito. 

O ex-prefeito do Rio e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo Crivella, e o ex-vice-líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados e pastor da Assembleia de Deus Otoni de Paula, tiveram uma pena imposta pela Justiça que inclui o pagamento de uma multa no valor de R$ 60 mil. Ainda cabe recurso contra a decisão.

Imagem: O Globo/Reprodução

Bereia checou o caso em 2020

Em novembro de 2020, dois vídeos de campanha de Marcelo Crivella foram divulgados nas mídias sociais. Em um deles, durante uma transmissão ao vivo, Crivella conversa com o deputado Otoni de Paula (PSC-RJ, à época) e afirma que, se seu opositor no segundo turno do pleito para a Prefeitura do Rio, Eduardo Paes (PSD hoje; DEM, à época) vencesse as eleições municipais, a secretaria de educação seria entregue ao deputado do PSOL Marcelo Freixo e a pedofilia passaria a ser praticada nas escolas. 

O segundo vídeo, compartilhado, depois, por Otoni de Paula, mostra o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL; sem partido, à época) afirmando que havia um plano das esquerdas de sexualizar as crianças e legalizar a pedofilia. No vídeo, o deputado demonstra indignação e afirma estarem negociando a educação no Rio.

Imagem: Reprodução/O Globo

O conteúdo do vídeo de campanha foi divulgado naquele ano pelo site Pleno News, sem fornecer contexto ou informações precisas. 

Imagem: Reprodução/Pleno News

O então deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ; hoje, PT), em uma transmissão ao vivo, negou haver qualquer negociação de cargos com Eduardo Paes e declarou a Marcelo Crivella: “Você vai ser processado, vai responder na Justiça. Isso é o desespero de quem vai tomar uma surra eleitoral. Você vai sair da prefeitura como um ser rastejante. Você é um ser político rastejante, Crivella”.

O candidato a vereador pelo PSOL, à época, Chico Alencar, citado no vídeo de Otoni de Paula, como exemplo, também denunciou em suas mídias sociais que as declarações do bispo eram mentirosas.

Imagem: Reprodução/Coletivo Bereia

Em 2020, Bereia verificou o caso, e concluiu que a campanha de Marcelo Crivella utilizou os mesmos temas de conteúdos falsos que haviam sido empregados por Jair Bolsonaro, quando candidato à Presidência da República no pleito de 2018. Um  desses temas foi o “kit gay”, desde então classificado como desinformação e propaganda enganosa.

Foi verificado, também, que desde as eleições de 2018, houve aumento das candidaturas que utilizavam mentiras em campanha, principalmente as que exploravam a moralidade sexual como forma de angariar o apoio de eleitores mais conservadores. 

Imagem: Reprodução/Coletivo Bereia

Na matéria de checagem em 2020, Bereia consultou dois especialistas em religião e política para comentar sobre o caso. A antropóloga do ISER e da UFRJ Livia Reis explicou que, embora o “kit gay” fosse relacionado ao PT, o PSOL se destacava na defesa de pautas identitárias. Ela recordou que conservadores associam a pedofilia à discussão sobre identidade de gênero e direitos sexuais, e veem essas pautas como sexualização de crianças. Reis lembra que o PSOL levou ao STF a ação para enfrentar a homofobia nas escolas, e tornou-se alvo por seu crescimento e visibilidade na Câmara Municipal do Rio. 

Já o sociólogo Alexandre Brasil Fonseca observou que Crivella adotou uma estratégia de tudo ou nada, semelhante à campanha de Bolsonaro em 2018, mas enfrentou alta rejeição e pouco tempo de campanha. Fonseca sugeriu ainda que a acusação de “pai da mentira”, que foi atribuída ao então Prefeito do Rio, por Eduardo Paes em debate na TV, poderia prejudicá-lo mais. O resultado das eleições, com a derrota de Crivella e a vitória de Paes, confirmou esta análise.

O processo

Em 2021, após as eleições,  o PSOL acionou Marcelo Crivella e Otoni de Paula, na Justiça comum, por espalharem conteúdo mentiroso contra o partido (crime de calúnia, previsto no art. 138 do Código Penal). O PSOL demandou R$ 100 mil como compensação pelos danos. 

O partido tinha a seu favor um parecer do Ministério Público Eleitoral do Rio de Janeiro (MPERJ), que havia considerado as ações do ex-prefeito como tentativas de causar medo psicológico e religioso. Na época, o parecer  do MPERJ pediu ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) que Crivella publicasse a resposta do PSOL, em suas publicações de campanha, dentro de 12 horas após a condenação oficial. Por conta disso, o tribunal concedeu direito de resposta ao partido, mas o conteúdo nunca foi divulgado. 

O TRE também decidiu que o candidato à reeleição à Prefeitura do Rio deveria remover o vídeo com as falsas acusações contra o partido, ou enfrentaria uma multa diária de R$ 10 mil até cumprir a decisão. “O vídeo publicado nas redes sociais causa desinformação e veicula ao público notícia sabidamente inverídica, tentando incutir na mente do eleitor tal informação de pedofilia nas escolas com assunção do PSOL”, explicava a sentença. Entretanto, as acusações contra o partido  não foram retiradas.  

Em entrevista ao UOL , a presidente do PSOL à época, Isabel Lessa, se pronunciou sobre o processo impetrado. 

“Nosso objetivo com essa ação indenizatória é fazer prevalecer a verdade e a justiça, num momento em que a mentira e a desinformação se tornaram armas nas mãos de governos e grupos políticos com viés autoritário. A atitude desesperada do ex-prefeito, que sabia que perderia as eleições no ano passado, não atinge apenas ao PSOL, mas ao conjunto da sociedade, já que seu intuito era mobilizar o medo das pessoas através de afirmações mentirosas”. 

Lessa ressaltou que a violência praticada neste caso tem como razão a perpetuação no poder de grupos políticos.  “Uma vez que precisam sustentar uma base dita conservadora, com medo e mentiras para que continuem seu domínio, não só em termos de votos, mas também, financeira e ideologicamente, mesmo que isso seja negar a política. Ao nos acusar de praticar aquilo que, justamente, combatemos, o patriarcado fundamentalista tenta esconder hipocritamente as próprias ações e intenções”.

Após três anos, o caso foi julgado e a sentença que condena Crivella e Otoni por calúnia foi proferida. 

Marcelo Crivella não se posicionou publicamente sobre o caso, até o fechamento desta matéria, Já o deputado Otoni de Paula, publicou na mídia social X uma resposta à postagem do deputado federal Tarcísio Motta (PSOL-RJ). Motta, após a divulgação da sentença, havia afirmado: “ Crivella e Otoni de Paula foram condenados pela Justiça a indenizar o PSOL. A causa foi o uso de informações falsas divulgadas durante a campanha eleitoral, quando acusaram o partido de distribuir um suposto “kit gay” e associaram a sigla à pedofilia. Terão de pagar R$ 60 mil”. 

Na resposta, o pastor da Assembleia de Deus manteve as ideias condenadas pela Justiça: “Fake news que chama @MottaTarcisio? Quem lê pensa que eu e @MCrivella teremos que pagar a ‘turminha polenta’ algum dinheiro amanhã. Calma, o processo ainda não está transitado em julgado. Enquanto isso reafirmo que não deixarei de lutar para que vocês deixem nossas crianças em paz. Escola sem partido JÁ!”

Imagem: reprodução/X

Bereia ouviu o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) sobre o caso. Ele  declarou que “cristão” como esses precisam ser contidos”. “Crivella e Otoni fizeram uma live na qual afirmaram que o PSOL iria compor a Secretaria de Educação em um eventual governo de Eduardo Paes (DEM), então adversário de Crivella, e que o partido seria conivente com a pedofilia. Paes, que assumiu a Prefeitura em 1º de janeiro de 2021, não indicou nomes ligados à legenda para a pasta.” 

O deputado ainda citou o caso da distribuição de panfletos da campanha de Crivella para difamar a oposição, que também foi objeto de matéria do Bereia. “O PSOL informou na ação que a campanha de Crivella distribuiu 1 milhão de panfletos nas ruas da capital fluminense com as mesmas afirmações mentirosas”.  Alencar relata que Crivella e Otoni de Paula terão que indenizar o PSOL em R$ 60 mil e que a desinformação deve ser combatida permanentemente, pois a Justiça tem dado razão aos “caluniados”. 

O deputado recorda  que não é a primeira vez que Otoni de Paula é condenado por atos como esse. “Ele até hoje paga uma indenização ao Jean Wyllys por associá-lo à tentativa de homicídio sofrida por Bolsonaro. Absurdo irresponsável e criminoso”.

Crivella, Otoni de Paula: deputados, líderes religiosos e acusados

Imagem: reprodução/O Globo

Marcelo Bezerra Crivella (Republicanos) é deputado federal, eleito em 2022, e foi senador (2003 a 2017) e Ministro da Pesca e Aquicultura do Brasil (2012-2014), nos governo Dilma Rousseff (PT). Em 2016, foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro, em uma gestão marcada por escândalos de corrupção, pedidos de impeachment na Câmara Legislativa, por sua prisão, pouco antes de finalizar seu mandato, e por acusações de favorecimento à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).

Crivella é bispo licenciado da IURD, e é sobrinho do fundador e líder maior, o Bispo Edir Macedo. O caso mais emblemático do favorecimento à igreja foi a gravação do áudio de uma fala do então prefeito, na sede da Prefeitura, em que afirmava que os fieis e pastores evangélicos poderiam procurar uma das suas assessoras, Márcia Pereira da Rosa Nunes, para facilitar a marcação de cirurgias de catarata e varizes, ou para a assistência do pagamento do IPTU das igrejas. 

Com posições conservadoras, de defesa da família tradicional, dos valores cristãos e críticas às pautas progressistas, especialmente sobre direitos LGBTQ+, Marcelo Crivella esteve ligado a outros casos de disseminação de informações falsas, especialmente em suas campanhas eleitorais, como relatado ao Bereia pelo deputado Chico Alencar. 

O TRE-RJ cassou-lhe o mandato de deputado, em 2023, pelo caso “Guardiões do Crivella”, que utilizava servidores públicos municipais para “monitorar e impedir a interlocução de cidadãos com profissionais de imprensa” e evitar a entrevista e gravação de reportagens que abordaram a situação do sistema de Saúde do Rio em período eleitoral. Nesse processo, além da cassação, ainda foi tornado inelegível por oito anos. 

Porém os efeitos da decisão foram suspensos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao julgar recurso de  Crivella. O deputado federal já se coloca novamente como pré-candidato para a Prefeitura do Rio de Janeiro para as eleições de 2024. 

Imagem: reprodução/g1

Otoni Moura De Paulo Junior, mais conhecido como Otoni de Paula, é deputado federal pelo MDB do Rio de Janeiro, atualmente em seu segundo mandato na Câmara dos Deputados. Ele foi eleito, inicialmente, em 2018, pelo PSC, e, durante o governo de Jair Bolsonaro, esteve na linha de frente da bancada governista, chegando a ser vice-líder do governo na casa legislativa. O deputado também é pastor da Assembleia de Deus, mesma denominação de seu pai, Otoni de Paula Pai, pastor e político de longa carreira, que faleceu em maio de 2023, em decorrência de um câncer, enquanto exercia o cargo de vereador da cidade do Rio de Janeiro, eleito no pleito de 2020. 

Nos últimos anos, Otoni de Paula tem se envolvido em controvérsias e processos judiciais. Em 2020, ele atacou o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), durante transmissões ao vivo em suas redes digitais. Esses ataques ocorreram após Moraes autorizar a quebra dos sigilos bancário e fiscal do deputado em investigações sobre os atos antidemocráticos ocorridos em janeiro de 2023. 

As declarações de Otoni de Paula resultaram em uma denúncia pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por injúria, difamação e coação no curso do processo​. Além do inquérito dos Atos Antidemocráticos, o deputado, também pré-candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, é investigado no STF no âmbito do Inquérito das Fakes News, de relatoria do ministro Alexandre de Morais. 

O parlamentar se apresentou, há alguns meses, como pré-candidato do MDB à Prefeitura do Rio. Entretanto, em 14 de junho, o jornal O Globo divulgou uma nota que afirma que ele decidiu não mais se candidatar a prefeito do Rio de Janeiro, e que vai colaborar na campanha de Eduardo Paes (PSD). Como pastor na Assembleia de Deus de Madureira, Otoni de Paula declarou que vai liderar a campanha do prefeito entre evangélicos. 

Pessoas próximas ao deputado do MDB, que foram ouvidas pelo O Globo, dizem que ele desistiu de concorrer porque o partido decidiu não apoiá-lo sem conversar com ele primeiro, o que o fez se sentir desconsiderado. Fontes ligadas ao deputado afirmam que ele estabeleceu algumas condições para apoiar o prefeito, incluindo não criticar publicamente o ex-presidente Jair Bolsonaro, que é seu aliado há muito tempo.

Referências de checagem:

Bereia.

https://coletivobereia.com.br/marcelo-crivella-e-deputado-federal-apoiador-proferem-mentiras-na-campanha-para-prefeitura-do-rio/. Acesso em 10 de junho de 2024.

https://coletivobereia.com.br/eleicoes-2020-bispo-marcelo-crivella-recorre-a-conteudos-falsos-em-debate-na-tv/. Acesso em 10 de junho de 2024.

https://coletivobereia.com.br/nacionalismo-cristao-promove-terrorismo-no-brasil/. Acesso em 15 de junho de 2024.

https://coletivobereia.com.br/nao-ha-duvida-a-existencia-de-um-kit-gay-organizado-por-fernando-haddad-e-falsa/. Acesso em 17 de junho de 2024.

O Globo.

https://oglobo.globo.com/blogs/ancelmo-gois/post/2024/06/crivella-e-otoni-de-paula-sao-condenados-a-indenizar-o-psol-por-fake-news-sobre-kit-gay.ghtml.  Acesso em 10 de junho de 2024.

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2020/mp-eleitoral-denuncia-crivella-por-difamacao-propaganda-falsa-em-panfletos-contra-paes-psol-24768755. Acesso em 10 de junho de 2024.

https://oglobo.globo.com/google/amp/politica/noticia/2024/06/14/otoni-de-paula-desiste-de-pre-candidatura-a-prefeitura-e-assume-coordenacao-de-paes-com-evangelicos.ghtml. Acesso em 15 de junho de 2024.

https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/psol-cobra-indenizacao-de-r-100-mil-de-crivella-e-deputado-bolsonarista-por-fake-news.html. Acesso em 13 de junho de 2024.

G1.

https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2020/10/09/veja-o-que-e-fato-ou-fake-em-video-do-horario-eleitoral-de-crivella-sobre-o-carnaval-no-rio.ghtml. Acesso em 11 de junho de 2024.

https://oglobo.globo.com/politica/tre-cassa-mandato-do-deputado-federal-marcelo-crivella-25709803. Acesso em 11 de junho de 2024.

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/05/11/morre-aos-77-anos-o-vereador-otoni-de-paula-pai-do-deputado-federal-otoni-de-paula.ghtml. Acesso em 11 de junho de 2024.

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/01/inquerito-das-fake-news-investigados-penas-e-proximos-passos-do-processo-no-stf.ghtml. Acesso em 11 de junho de 2024.

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/05/11/morre-aos-77-anos-o-vereador-otoni-de-paula-pai-do-deputado-federal-otoni-de-paula.ghtml. Acesso em 12 de junho de 2024.

Estadão. https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/panfleto-apocrifo-atribui-a-freixo-e-a-paes-liberacao-de-aborto-e-drogas/. Acesso em 11 de junho de 2024.

Uol.

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/12/22/gestao-crivella-relembre-os-principais-escandalos-da-prefeitura-do-rio.htm. Acesso em 11 de junho de 2024.

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/pgr-denuncia-deputado-otoni-de-paula-por-ataques-a-alexandre-de-moraes/. Acesso em 12 de junho de 2024.

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/03/25/psol-marcelo-crivella-otoni-de-paula-pedofilia.htm.  Acesso em 13 de junho de 2024.

https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/11/27/justica-eleitoral-direito-de-resposta-psol-crivella.htm. Acesso em 13 de junho de 2024.

Câmara dos deputados.

https://www.camara.leg.br/deputados/220599.  Acesso em 12 de junho de 2024.

https://www.camara.leg.br/deputados/204521. Acesso em 12 de junho de 2024.

https://www.camara.leg.br/noticias/608791-otoni-de-paula-e-o-novo-vice-lider-do-governo-na-camara/. Acesso em 12 de junho de 2024.

PSOL Carioca. https://psolcarioca.com.br/2021/03/25/um-acao-contra-o-terrorismo-psicologico-religioso-de-crivella/. Acesso em 12 de junho de 2024.

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Foto de capa: reprodução/YouTube

É urgente enfrentar o tráfico de mentiras entre cristãos!

Publicado originalmente na Carta Capital

As últimas pesquisas de opinião pública de diferentes institutos têm registrado um derretimento do apoio do segmento cristão, em especial o evangélico, ao governo Bolsonaro. Quem vive o cotidiano e a carestia que o aflige (compra comida, remédios, paga contas, usa transporte público, entre os muitos gastos) se sente traído pelo não cumprimento das promessas de um “Brasil acima de tudo”. E, entre cristãos e cristãs, não são poucos os que avaliam que Deus não está “acima de todos” nesta situação. 

O grupo cristão ainda segue como base forte e privilegiada de apoio do governo, afinal, os 29% do segmento evangélico que atribuem “bom e ótimo” ao governo não são desprezíveis. Tornou-se imprescindível, portanto, como estratégia de superação das baixas de apoio, manter esta base. Com isto, a disseminação de conteúdo falso e enganoso com vistas à manutenção e à ampliação do apoio de cristãos ao governo segue com força.

Esta preocupação levou a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), uma organização que atua na promoção, na defesa e na garantia de direitos no Brasil, a dedicar atenção ao enfrentamento das popularmente denominadas “fake news”. Ou seja, as mentiras. Estas mensagens com conteúdo falso e enganoso que circulam amplamente entre cristãos, por sites gospel e por mídias sociais, são agora tema da campanha anual da CESE, a Primavera pela Vida. 

Criada por igrejas cristãs há 48 anos, a CESE realiza esta campanha na primavera, desde os anos 2000, pela qual oferece estudos e reflexões inspirados em demandas sociais prementes. “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” é o tema da campanha Primavera pela Vida de 2021. 

Tive a honra de participar do evento de lançamento como pesquisadora do tema e editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias (em ambientes digitais religiosos), quando apresentei um estudo sobre o tema (a gravação pode ser acessada aqui). Na ocasião foi lançada a publicação “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” (que pode ser baixada aqui). 

Pesquisas mostram como o pânico em torno da moralidade sexual, somado à antiga falácia da “ameaça comunista”, foram importantes para garantir o apoio de cristãos à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Durante o primeiro ano do governo do ex-capitão estas pautas ainda foram fortes, em especial na sustentação dos chamados ministérios ideológicos da Educação e o da Mulher, Família e Direitos Humanos. Estas pautas foram também aplicadas na campanha eleitoral para os municípios em 2020, mas com menor incidência. A não-reeleição de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, que fez farto uso destes conteúdos na campanha, mostra que o efeito destes conteúdos falsos e enganosos já não é mais o mesmo. Pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER) a ser publicada em breve mostra bem isso.

Quais são, então, os temas fortes que têm alimentado a busca de apoio ao governo Bolsonaro entre cristãos neste momento em que ele completa mil dias e se encontra com baixíssima aprovação? De acordo com as checagens realizadas pelo Bereia, durante o último ano, mensagens sobre a covid-19 alimentaram o pânico e a ideia da “ameaça comunista” por conta de ênfases em relação à China (origem do vírus e de vacinas). Outra temática muito disseminada tem sido a da liberdade religiosa, que estaria em risco por conta do que passou a ser denominado “cristofobia”. O discurso de Jair Bolsonaro na ONU em 21 de setembro, com acenos sobre concessão de vistos a ‘cristãos afegãos’ e defesa da liberdade e da família tradicional expressa bem isso.

Este tema foi base para os atos de apoio ao governo em 7 de setembro passado, quando se reclamava o direito à liberdade que estaria sendo negada por conta de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) às quais governo e manifestantes se opõem. Há um ano eu já escrevia neste espaço sobre a liberdade religiosa. Afirmei naquele setembro de 2020, que no Brasil, se seguirmos a lógica dos fatos, o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no país.

Casos de perseguição religiosa que atingem este grupo religioso são pontuais e são reflexos de vários aspectos. Um deles é a ignorância e do preconceito contra evangélicos. Outro é a repressão a ações por justiça (como o que ocorre com o padre Júlio Lancelloti em São Paulo). E ainda os atentados a símbolos e templos católico-romanos por extremistas evangélicos.

É sempre bom lembrar que perseguição religiosa recorrente no Brasil quem sofre mesmo são as religiões de matriz africana. Relatórios do governo federal até 2015 mostram isto, como fruto de histórica demonização destas religiões por conta da hegemonia cristã exclusivista, e também do racismo estrutural, por serem expressões de fé da cultura negra.

Cristãos têm plena liberdade no Brasil. Os conservadores extremistas que pedem mais liberdade usam a palavra para falarem e agirem como quiserem contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e até mesmo cristãos progressistas. 

Daí o conteúdo falso postado por supostas mídias de notícias e em mídias sociais, que afirma que o STF está freando a liberdade de cristãos e promovendo perseguição religiosa. Referem-se a quando a Corte decide pelo direito à união estável homoafetiva, que homofobia seja tipificada como crime de racismo, que terceiros (incluindo missões religiosas) sejam proibidos de entrar em aldeias indígenas isoladas durante a pandemia de covid-19. Vale lembrar que o STF atua para que a Constituição Brasileira seja cumprida, garantindo direitos a todos independentemente de vinculação religiosa, pois esta não rege as leis do país, que é laico.

A iniciativa da CESE na Primavera para Vida é muito relevante. Ela se une a projetos como o Coletivo Bereia, a Plataforma Religião e Poder do ISER e outros que tomam grupos religiosos como componentes importantes na arena pública. Eles colaboram para o enfrentamento do tráfico de mensagens que mantém cristãos presos em uma rede de mentiras. Eles devem ser amplamente apoiados e divulgados.

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Foto de capa: Pixabay

Eleitores evangélicos viram público-alvo de fake news na campanha pelo segundo turno das eleições municipais

São quatro as campanhas eleitorais para prefeituras consideradas as mais sujas do Brasil, no tocante à disseminação de desinformação e calúnia contra concorrentes. O Coletivo Bereia teve acesso a materiais impressos e digitais de contracampanha para prefeituras do Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife e São Gonçalo, e identificou conteúdos muito semelhantes, com alertas de pânico moral, acusações e mentiras, especialmente contra de candidatos de partidos de esquerda com chances de vitória. Além da disseminação de desinformação, com linguagem religiosa voltada a eleitores evangélicos, a quase totalidade tem autoria desfocada ou era anônima, o que configura crime eleitoral.

Os ataques de contrapropaganda, visando associar candidatos às prefeituras dessas cidades a perseguição religiosa e a perversão moral, foram repetidos pelo presidente da República no Facebook, na transmissão ao vivo que faz semanalmente, em 26 de novembro.

Os apelos do presidente da República

Na transmissão, Jair Bolsonaro (sem partido) repetiu conteúdo da campanha difamatória contra o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em favor do candidato a reeleição no Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos). A campanha ataca o PSOL para atingir o concorrente de Crivella, Eduardo Paes (DEM). Depois de ser derrotado no primeiro turno das eleições, o PSOL não declarou apoio em Eduardo Paes, mas conclamou seus partidários a derrotarem Crivella nas urnas no segundo turno. O partido foi mais bem sucedido em São Paulo, com a candidatura de Guilherme Boulos que disputou o segundo turno com Bruno Covas (PSDB). Bereia publicou matéria sobre as fake news contra o PSOL proferidas por Marcelo Crivella o início do segundo turno.

Bolsonaro estava acompanhado na transmissão ao vivo pelo pastor evangélico ministro da Educação, Milton Ribeiro. Foram feitas várias afirmações contra a política de educação dos governos anteriores e contra o fechamento das escolas durante a pandemia. Ele desafiou que alguém provasse que tenha chamado a COVID-19 de gripezinha. A doença atingiu mais de 6 milhões de brasileiros e já matou mais de 171 mil – entre os quais um senador da República, o integrante da bancada evangélica Arolde de Oliveira (DEM-RJ), apoiador de Bolsonaro e crítico das medidas de contenção. Esta mentira proferida pelo presidente repercutiu fortemente nas mídias noticiosas, uma vez que um dos usos do termo “gripezinha” por Bolsonaro ocorreu em março passado, em pronunciamento oficial.

No final da transmissão de 26 de novembro, o presidente da República repetiu as mentiras da campanha eleitoral de Marcelo Crivella, que levaram a Justiça Eleitoral a retirar do ar o vídeo de divulgação desse conteúdo e concedeu direito de resposta ao PSOL no Facebook do candidato:

Domingo eu vou no Rio de Janeiro, está previsto vou votar. O pessoal já sabe em quem eu vou votar. Fiz campanha pro Marcelo Crivella. Não me interessa pesquisa. Nunca acreditei em pesquisa. E quem vai pro segundo turno, boa sorte. Uma boa decisão. E leva em conta, sim, o partido, a qual esse candidato no segundo turno pertence. O que esse partido defende, sempre defendeu . Ideologia de gênero, desgaste dos valores familiares, ignorando educação, um montão de coisa. Veja o que esses partidos defenderam, e você então não votar nesses candidatos a prefeitos, desses partidos. Vocês sabem é PT, PC do b, PSOL, PDT entre outros ali. Esse é o apelo que eu faço, porque o futuro do teu filho vai passar pelas mãos desse prefeito. Esse prefeito vai decidir se a escola vai tá fechada, ou não. E o que em parte vai ser ensinado em sala de aula. O quê ele vai defender. O que, muitas vezes, esse candidato a prefeito prometeu a um partido coligado a ele. Por exemplo, vamos supor, no Rio de Janeiro o candidato a prefeito lá, prometeu ao Psol a secretaria da educação. Se esse cara ganhar, não reclame do lixo que teu filho vai ter, quando chegar em sala de aula”.

Jair Bolsonaro

Bereia já havia produzido verificação sobre estas mentiras, em matéria de 20 de novembro.

Bereia ouviu o advogado Gabriel Antunes, que fez o alerta de que os eleitores ou candidatos que veicularem, ou repassarem este tipo de propaganda, em tese, podem ser responsabilizados perante a Lei Eleitoral. De acordo com o disposto na Lei 13.834, de 4 de junho de 2019, os perfis de mídias sociais e os usuários poderão ser enquadrados no crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral. São considerados agravantes, o anonimato e aquele que divulga “incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado, e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído”. A aplicação dessa pena, ou mesmo indiciamento, porém, ainda não está clara. Todavia, o alerta é: se há lei, está tipificado o crime.

O curioso ataque em São Gonçalo

O presidente Jair Bolsonaro também declarou curioso apoio a uma candidatura de cidade com pouco destaque no quadro político nacional, São Gonçalo, da região do Grande Rio.

Foto: Reprodução/Facebook

O capitão Nelson, candidato do Avante a prefeito em São Gonçalo, agradeceu ao presidente Bolsonaro pelo apoio nos segundo turno e fez circular o vídeo que lhe é favorável. O adversário de Nelson é Dimas Gadelha, do PT, cuja vitória no primeiro turno reforça tendência de consolidação de um “cinturão da esquerda” na região metropolitana do Rio, o que pode explicar a investida do presidente.

Pesquisa do Instituto Inteligence Serviços, entre 23 e 24 de novembro, apontava em Dimas Gadelha (PT) com 61% das intenções de voto e o Capitão Nelson (Avante) tem 39%.

A campanha pró-Nelson usa o mesmo argumento de pânico moral pró-Crivella, de que PT, PSOL e a esquerda são contra a família, a favor da “ideologia de gênero” e da erotização de crianças nas escolas. Uma das mentiras propagadas era a de que o candidato adversário iria instalar banheiros unissex nas escolas da cidade. O boato foi desmentido pelo site Boatos.org.

São Gonçalo já teve uma prefeita evangélica, Aparecida Panisset (PDT), de 2005 a 2012. Ela foi denunciada pelo Ministério Público por repasses de verbas à duas igrejas evangélicas em um convênio de 600 mil reais. Além da pauta de costumes, comum aos evangélicos, Aparecida Panisset também promovia “guerras espirituais” contra as religiões e monumentos de matriz africana. Desde Panisset, a força do eleitorado evangélico é disputada por todos os candidatos em São Gonçalo.

Em estratégia para enfrentar os ataques do Capitão Nelson, Dimas Gadelha acabou assinando uma carta em que nega apoiar as pautas relacionadas à perversão moral de que foi acusado, como trata análise publicada na seção Areópago do Coletivo Bereia.

O ataque a Marília Arraes em Recife

Foto: Autoria desconhecida/Reprodução/Época

As acusações contra Marília Arraes (PT) no segundo turno em Recife, seguem os mesmos temas de pânico moral e, também, a mesma estética dos demais folhetos espalhados entre eleitores cristãos no Rio e em Fortaleza.

Os folhetos (atribuídos à coligação de João Campos) acusavam Marília Arraes, ainda, de ser contra a presença e a leitura da Bíblia nas escolas. O projeto Comprova, com a colaboração do Coletivo Bereia, checou as alegações e concluiu que as acusações distorceram as falas da candidata com objetivos eleitorais.

O ataque a João Sarto, em Fortaleza, mesmo ele sendo evangélico

O candidato ao segundo turno de Fortaleza João Sarto (PDT) é evangélico, mas isto não foi suficiente para livrá-lo dos ataques que apelam à fiéis do segmento a não votarem nele, favorecendo o concorrente, o Capitão Wagner (PROS).

O mesmo tipo de material impresso, sem autoria, foi distribuído em Fortaleza nos últimos dias.

Foto: Autoria desconhecida

O Coletivo Bereia produziu matéria com a verificação deste conteúdo classificado como falso.

O Coletivo Bereia chama a atenção para a análise publicada no Observatório das Eleições, do UOL, que constatou que as campanhas de desinformação buscaram mobilizar grupos de eleitores conservadores contra os líderes em intenção de voto da esquerda, em uma reação às derrotas do primeiro turno e ao encolhimento das bancadas conservadoras para Câmaras Municipais em várias cidades. A estratégia de voltar às pautas morais exploradas na campanha eleitoral de 2018 é uma tentativa de repetir os êxitos e surpresas daquele ano. Somente após a divulgação dos resultados será possível avaliar se a estratégia alcançou resultado.

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Foto de Capa: Desconhecido/Reproduzido por Época

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Referências

Youtube, https://www.youtube.com/watch?v=UqEQfL6il8M. Acesso em 28 nov. 2020.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/marcelo-crivella-e-deputado-federal-apoiador-proferem-mentiras-na-campanha-para-prefeitura-do-rio/. Acesso em 28 nov. 2020.

Folha de S. Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/11/bolsonaro-nega-que-chamou-covid-19-de-gripezinha-apos-ter-usado-o-termo-em-pronunciamento-oficial.shtml. Acesso em: 28 nov. 2020.

Estado de Minas, https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/11/11/interna_politica,1203769/justica-tira-do-ar-propaganda-de-crivella-por-exposicao-excessiva-de-b.shtml. Acesso em: 28 nov. 2020.

G1, https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2020/noticia/2020/11/27/justica-concede-direito-de-resposta-ao-psol-apos-crivella-dizer-que-paes-levaria-pedofilia-para-escolas-com-apoio-do-partido.ghtml. Acesso em: 28 nov. 2020.

O Globo, https://oglobo.globo.com/brasil/eleicoes-2020/pt-pdt-buscam-consolidar-cinturao-de-esquerda-na-regiao-metropolitana-do-rio-24760393. Acesso em: 28 nov. 2020.

O São Gonçalo, https://www.osaogoncalo.com.br/politica/90732/dimas-gadelha-pt-vence-por-61-contra-39-de-capitao-nelson-em-votos-validos-aponta-pesquisa. Acesso em: 28 nov. 2020.

Boatos, https://www.boatos.org/politica/dimas-gadelha-banheiro-unissex-escolas-sao-goncalo.html. Acesso em: 28 nov. 2020.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/para-fugir-de-estigma-candidato-de-esquerda-embarca-em-fake-news/. Acesso em: 28 nov. 2020.

Comprova, https://projetocomprova.com.br/publica%C3%A7%C3%B5es/panfletos-distorcem-frase-de-marilia-arraes-sobre-a-biblia/. Acesso em: 28 nov. 2020.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/folheto-contra-o-candidato-sarto-pdt-ce-tem-conteudo-falso/. Acesso em: 28 nov. 2020.

UOL, https://noticias.uol.com.br/colunas/observatorio-das-eleicoes/2020/11/26/campanhas-de-desinformacao-mobilizam-conservadores-contra-lideres-em-votos.htm. Acesso em: 28 nov. 2020.

Vídeo em que pastor Silas Malafaia pede “Fora, Crivella!” é usado de forma enganosa

Circula nas mídias sociais vídeo com intervalo entre 15 e 30 segundos em que o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia, diria “Fora, Crivella” em seu programa de TV “Vitória em Cristo”. Bereia verificou que a fala de Silas Malafaia foi editada e tirada do contexto de sua oposição à corrida de Marcelo Crivella a Governador do Estado do Rio de Janeiro nas eleições de 2014. Malafaia tem se declarado neutro nas eleições para a Prefeitura do Rio em 2020, tendo apoiado apenas candidatos a vereança durante o primeiro turno.

A neutralidade de Silas Malafaia no segundo turno foi objeto de análise na coluna Diálogos da Fé do site da revista CartaCapital e foi abordada nas versões impressa e online do jornal O Globo. Nas análises se destaca como as igrejas da Assembleia de Deus e outras vertentes ancoradas em líderes midiáticos, como a de Silas Malafaia, não cederam votos para candidatos da Igreja Universal do Reino de Deus no Rio e em São Paulo (os candidatos da IURD nas cidades eram Crivella e Celso Russomano, respectivamente, ambos do Republicanos). Os votos demonstraram, mais uma vez, que evangélicos não são um bloco monolítico.

Já as críticas de Silas Malafaia contra Marcelo Crivella eram acentuadas nas eleições estaduais do Rio de Janeiro em 2014. Na época, Crivella fora para o segundo turno com Luiz Fernando Pezão (PMDB), e era questionado por Malafaia sobre suas ligações com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Foram feitas acusações de “mentiroso” de ambos os lados. Um ano depois, Silas Malafaia mantinha a postura crítica pública ao bispo da IURD, só agindo favoravelmente a Crivella ante a ameaça de um segundo turno para a prefeitura da cidade com Marcelo Freixo, em 2016.

Desde então a relação dúbia entre os dois mobilizou a ironia de portais como o Sensacionalista, que fez uma coletânea dos tweets ambíguos de Silas Malafaia, mostrando o “antes e depois” da relação entre os dois pastores. A versão mais completa da declaração de 2014 de Silas Malafaia sobre Crivella pode ser encontrada aqui, em canal do candidato a deputado estadual pelo PSOL, na Bahia, em 2018, David Lopes Machado, sob o título “Silas Malafaia manda recado para Marcelo Crivella em 2014”. Silas Malafaia excluiu o respectivo vídeo de suas mídias oficiais.

O Coletivo Bereia classifica as postagens em mídias sociais que usam um vídeo de 2014, em que o pastor Silas Malafaia critica o candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro como se fosse atual, como enganosas.

Trecho de vídeo descontextualizado (print aos 0:14 do vídeo que circula de forma enganosa)

Referências

O Globo, https://oglobo.globo.com/brasil/eleicoes-2020/liderancas-evangelicas-redefinem-apoios-no-rio-em-sao-paulo-no-segundo-turno-24759714. Acesso em: 22 nov. 2020.

A Pública, https://apublica.org/2020/11/silas-malafaia-sobre-esquerda-nao-tem-moleza-e-pau-e-ideologico/. Acesso em: 22 nov. 2020.

CartaCapital, https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/notas-preliminares-sobre-religiao-nas-eleicoes-2020/. Acesso em: 22 nov. 2020.

UOL, https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/11/21/crivella-paes-panfleto-fake-news.htm. Acesso em: 22 nov. 2020.

Veja, https://veja.abril.com.br/videos/em-pauta/debate-veja-2o-bloco-a-mistura-entre-politica-e-religiao/. Acesso em: 22 nov. 2020.

Youtube, https://www.youtube.com/watch?v=GnREQ6N_jU4. Acesso em: 22 nov. 2020.

BBC Brasil, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37818301. Acesso em: 22 nov. 2020.

Sensacionalista, https://www.sensacionalista.com.br/2016/10/31/10-tweets-do-malafaia-antes-e-depois-da-vitoria-de-crivella-que-parecem-coisa-do-sensacionalista/. Acesso em: 22 nov. 2020.

Youtube, https://www.youtube.com/watch?v=mI8NIUtt3HI. Acesso em: 22 nov. 2020.

Eleições 2020: Bispo Marcelo Crivella recorre a conteúdos falsos em debate na TV

Em um dos debates promovidos pela Rede Bandeirantes de TV com candidato/as a Prefeituras de 14 cidades do Brasil, na noite de 1 de outubro, o atual prefeito do Rio de Janeiro Bispo Marcelo Crivella (Republicanos), da Igreja Universal do Reino de Deus, recorreu a conteúdos falsos para confrontar debatedora.

Crivella que tenta a reeleição fez uso de mentiras já na primeira pergunta direta que deveria fazer a outro/a candidato/a. Ele escolheu a deputada estadual do PSOL Renata Souza, para indagar o que ela faria, caso vença as eleições, a respeito da “ideologia de gênero nas escolas” e do combate às drogas entre alunos.

Renata Souza respondeu com uma crítica ao prefeito da cidade, acusando-o de negligenciar a pandemia. Na réplica, Crivella retomou a pergunta e acusou:

“Se o PSOL ganhar a eleição nossas crianças vão ter uma coisa que tinham que ter em casa, orientação sexual. Vai ter kit gay na escola e vão induzir à liberação das drogas. Esse é o perigo do PSOL e por isso ela não quer tocar no assunto”.

Na tréplica, Renata Souza retomou a crítica que tinha feito:

“Estou falando de gente que morreu e o senhor quer falar do que o professor quer ensinar na escola? O professor tem que ter debate pedagógico, tem que ter autonomia”.

Ideologia de gênero e kit gay: duas falsidades político-religiosas

O prefeito Marcelo Crivella, que encontra dificuldades para se reeleger no pleito de 2020 por conta denúncias de corrupção, conseguiu se blindar na Câmara de Vereadores contra dois pedidos de impeachment em um período de 15 dias (casos de propina à Prefeitura e “Guardiões do Crivella). Porém, na Justiça o candidato à reeleição tem encontrado mais obstáculos: em 24 de setembro, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) decidiu por unanimidade, por 7 votos a 0, declará-lo inelegível até 2026 por abuso de poder político e conduta vedada a agente público. A defesa de Crivella está recorrendo da decisão e, por isso, ele pode disputar o pleito. Caso seja eleito, precisará de uma liminar para derrubar a decisão do TRE.

Enquanto briga para permanecer candidato, Marcelo Crivella participa dos debates recorrendo a conteúdos que fizeram sucesso entre o público cristão, durante a campanha de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.

Os dois temas, “ideologia de gênero” e “kit gay”, são objeto de estudos no Brasil e no exterior e de investigações sobre desinformação como estratégia para conquistar apoios políticos, com recurso a valores religiosos, para interferência de líderes e grupos em temas de interesse público.

A estratégia é embasada em terrorismo verbal, impondo o medo de que valores caros a pessoas religiosas, como a família, seriam destruídos. Da mesma forma, toca na questão da sexualidade, aspecto da vida humana tratado de forma frágil por grupos cristãos, frequentemente embasado em repressão e pouco em educação, conforme abordado no clássico estudo “Protestantismo e Repressão”, de Rubem Alves (Editora Ática, 1979). O recurso ao tema da educação e das crianças, como elementos que estariam em risco numa “guerra a inimigos da família”, é usado insistentemente neste tipo de desinformação sem que haja evidências do terror indicado.

O Coletivo Bereia já publicou matérias sobre estes dois temas abordados pelo candidato Marcelo Crivella, que podem ser acessadas aqui: O Presidente do Brasil e a falaciosa ideologia de gênero, “Kit Gay” continua sendo alvo de políticos de direita e Não há dúvida: a existência de um “kit gay” organizado por Fernando Haddad é falsa.

Sobre a acusação que relaciona o PSOL e seus partidários ao tráfico de drogas, agências de verificação de conteúdos já produziram checagens como: É falso que PT e PSOL entraram na justiça para reduzir escopo de atuação da PRF, Post falso sobre ‘relação’ de Marielle Franco com Marcinho VP continua a circular 2 anos após assassinato e É #FAKE que Freixo chamou traficante Elias Maluco, encontrado morto na prisão, de ‘grande amigo e ídolo’

Perguntada pelo Coletivo Bereia sobre o que significa Marcelo Crivella usar deste tipo de conteúdo mentiroso para atacar uma adversária, a antropóloga, pesquisadora em Política e Religião, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do ISER Profa. Christina Vital afirma que “Crivella não foi o único a tentar produzir medos nos cidadãos sobre seus adversários. No entanto, diferente dos outros, mobilizou pânicos morais. A sua única intervenção mais detida sobre o tema da educação foi na pergunta que fez à candidata Renata Souza, do PSOL. A um só tempo ele retoma uma pauta das eleições presidenciais de 2018 e outra muito forte na produção da Base Comum Curricular Nacional”.

A Profa. Christina Vital acrescenta que:

“o pertencimento religioso de vários candidatos e candidatas no debate emergiram de um modo menos caricato do que vimos em outras campanhas. Isso chama atenção no sentido de que foi naturalizada aquela identidade e as menções a Deus e à Bíblia não precisavam ser expostas de modo virulento”.

“Este ponto torna mais interessante o pleito: qual ou quais serão então as cartas na manga dos concorrentes à prefeitura? Se a religião não servir como apelo exclusivo de um ou outro, quais serão as estratégias narrativas mais utilizadas? Acompanhemos. Crivella ficou fora do tom ao trazer supostamente valores religiosos daquele modo antigo, como acusação. Foi démodé!”, avalia a antropóloga ouvida pelo Coletivo Bereia.

O cientista político da Fundação Joaquim Nabuco e pesquisador em Política e Religião Prof. Joanildo Buriti foi entrevistado sobre o tema pelo Coletivo Bereia e avalia:

Há muito me acostumei com a forma desabusada como muitos líderes evangélicos inventam consequências ou perigos de certas coisas sem qualquer preocupação com os fatos. Mas não faziam isso no espaço público. Reservaram aos sermões, palestras e aulas de escola bíblica. Não admira que, numa conjuntura que favorece o uso destemperado e aleivoso da linguagem, esse estilo se torne parte do debate público. Não começou com Crivella. Mas ele parecia ter mais compostura em outros tempos. Não há nenhuma evidência de que jamais tenha existido o tal kit gay, nem que a chegada de uma liderança de esquerda à prefeitura signifique que haverá indução à liberação de drogas. Esta nunca foi uma prática de gestores de esquerda até hoje no país. Por que seria agora? Parece que, confrontado com o que foram os pontos fracos de sua gestão, o atual prefeito sente-se em maior segurança recorrendo a um velho estilo de “denúncia do mal” que implica no ataque ad hominem e na transformação de mentiras em verdades.

Bereia classifica a afirmação do candidato Marcelo Crivella à reeleição para a Prefeitura do Rio de Janeiro como falsa. Para retomar a credibilidade com apoiadores religiosos, diante dos casos de corrupção relacionados à sua gestão, o bispo recorre a conteúdos falsos que foram eficazes na campanha eleitoral de 2018, para desqualificar adversários, buscando resultado semelhante.

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Foto de Capa: TV Bandeirantes/Reprodução

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Referências

Rede Bandeirantes Rio, Debate com Candidatos à Prefeitura, https://www.youtube.com/watch?v=dc8g6NmHruI. Acesso em 2 out 2020

Correio Braziliense, https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/09/4877815-destinos-cruzados-de-witzel-e-crivella.html. Acesso em 2 out 2020

Tribunal Regional Eleitoral, https://www.tre-rj.jus.br/site/gecoi_arquivos/noticias/arq_166319.jsp?id=166319 Acesso em 2 out 2020

Revista Piauí, https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/19/kiy-gay-coletanea/ Acesso em 2 out 2020