Bereia checou a matéria da revista Fórum, que repercutiu em ambientes digitais religiosos, por conta das críticas relacionadas à família do ex-presidente Jair Bolsonaro. A matéria, de 20 de outubro passado, informa que a filha da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, Letícia Firmo, teve uma viagem de lazer para o festival de tradição alemã Oktoberfest paga com dinheiro público. A publicação mostra reproduções de fotos do perfil da Secretária de Articulação Nacional de Santa Catarina (SAN-SC) Vânia Oliveira Franco no Instagram, publicadas no stories no dia anterior, 19 de outubro. Nas imagens, Vânia Franco e Letícia Firmo aparecem vestindo trajes típicos da Oktoberfest e seguram canecas de cerveja.
De acordo com a publicação, Letícia Firmo ocupa o cargo de Assistente de Gabinete na SAN-SC, desde abril de 2023, nomeada pelo governador de Santa Catarina Jorginho Mello (PL). Teria sido por meio do Gabinete do Governador do Estado que a filha da ex-primeira dama recebeu diárias, no valor de R$ 660,00, para viajar de Brasília, de onde atua, a Florianópolis, de 17 a 22 de outubro.
A revista classifica a participação na festa como “mamata” com “farra com dinheiro público” e a localiza no contexto das situações de violência praticadas pelo crime organizado em Florianópolis, em 19 de novembro.
Imagem: Reprodução de matéria da revista Fórum, de 20 out. 2024
Filha de Michelle Bolsonaro é contratada de Santa Catarina
Em pesquisa no Portal da Transparência de Santa Catarina, Bereia encontrou o registro de Letícia Marianna Firmo da Silva como servidora do Estado, nomeada para o cargo de Assistente de Gabinete, em 14 de abril de 2023. Lotada no Gabinete da Secretária Executiva da SAN-SC, em Brasília, Letícia recebe mensalmente R$ 13.496,86 (dado referente ao mês de setembro de 2024), valor composto por R$ 12.946,86 de remuneração básica e R$ 550,00 de verbas indenizatórias (parcelas como o auxílio alimentação, vale-transporte, creche, indenização pelo uso de veículo próprio, ajuda de custo, entre outras).
Imagem: Reprodução/Portal da Transparência de Santa Catarina
De acordo com o portal, em 16 de outubro a servidora recebeu o valor de R$ 660,00, referente ao pagamento de diárias “nos trechos BSB – FLN, FLN – BSB, nos dias 17/10/24 e 22/10/24”. A descrição da Nota de Pagamento indica que o destino do dinheiro é a compra de passagens aéreas de ida e volta de Brasília a Florianópolis.
Desde julho de 2023, o Portal da Transparência registrou quatro pagamentos, no valor total de R$ 2.353,00, para custeio de diárias de Letícia Firmo em viagens a Florianópolis e outros fins que não foram detalhados nas Notas de Pagamento.
Em agosto de 2023, a assessora parlamentar foi nomeada pelo governador Jorginho Mello como secretária do Conselho de Desenvolvimento e Integração Sul (Codesul), para ser um braço da SAN-SC na região sul do Brasil. Em abril do mesmo ano, Letícia Firmo foi nomeada também por Jorginho Mello para ocupar o cargo de assistente no Gabinete de Articulação Nacional, em Brasília.
Atualmente, Vânia de Oliveira Franco é a secretária da Secretaria Executiva de Articulação Nacional (SAN-SC) – onde Letícia Firmo está lotada como assistente de gabinete – e secretária do Conselho de Desenvolvimento e Integração Sul (Codesul), onde articula, em Brasília, as demandas dos estados do Sul do Brasil.
Agenda de compromissos
Viagens entre Brasília e Santa Catarina são comuns na agenda da SAN-SC. No mês de setembro a secretária de Articulação Nacional e do Codesul esteve no estado para cumprir uma agenda de compromissos. De acordo com a Secretaria foram realizadas visitas a dois hospitais, Santo Antônio e Santa Isabel, ambos no município de Blumenau.
Além dos dois hospitais, Vânia Franco participou do II Seminário do Terceiro Setor do Vale do Itajaí, iniciativa da Associação Renal Vida, instituição parceira do governo de Santa Catarina que atende pacientes renais em mais de 75 municípios do estado. Enquanto secretária da Codesul/SC, Franco recebeu o representante da Daltor Gestão e Projetos Leandro Torres, além de realizar outras reuniões com a equipe do Codesul/SC, para tratar de assuntos administrativos.
Imagem: Reprodução/Revista Forum
Vânia Franco voltou a Santa Catarina em outubro, e, de acordo com uma publicação em seu perfil do Instagram, em 18 de outubro, contou que teria reuniões com diversos secretários de Estado e com o governador Jorginho Mello. Em 21 de outubro, a secretária participou de uma reunião com a Aliança Láctea Sul Brasileira. Ainda de acordo com a SAN-SC, Franco está cumprindo uma intensa agenda de reuniões. Entre os compromissos profissionais, ela participou da Oktoberfest Blumenau, no final de semana, em 19 de outubro, quando publicou fotos festivas ao lado de Letícia Firmo (e marcou o perfil da jovem) no Instagram.
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Bereia classifica a publicação da revista Forum como imprecisa. O texto oferece informações verdadeiras, porém elas são alocadas no texto para que seja emitida uma opinião negativa em relação às viagens de Leticia Firmo de Brasília e Florianópolis.
A informação de que a filha de Michelle Bolsonaro, Letícia Firmo, é contratada pelo governo do estado de Santa Catarina, do partido PL, onde a família Bolsonaro está vinculada, como assistente de Gabinete da SAN-SC, é verdadeira. A checagem no Portal da Transparência de Santa Catarina mostrou que os dados sobre o cargo, a remuneração e o recebimento de diárias para a viagem por Letícia Firmo são verdadeiros.
O relato de que houve uma viagem de Brasília a Florianópolis no período da Oktoberfest é verdadeiro. Porém, não é possível afirmar que a viagem foi financiada para que Letícia Firmo participasse do festival de tradição alemã, como a matéria registra. Bereia verificou que viagens da secretária da SAN-SC e da assistente de gabinete do órgão, Vânia Franco e Letícia Firmo, entre Brasília e Florianópolis, são frequentes, que havia uma agenda registrada para os dias que incluíram a Oktoberfest e que a participação no festival que aparece em fotos da secretária com a assistente ocorreu no final de semana, fora da agenda da SAN-SC (como correntemente ocorre com agendas oficiais de trabalho, que liberam finais de semana).
As reproduções das fotos publicadas por Vânia Franco não têm indícios de adulteração, o que registra a participação da jovem na festa. Apesar de a filha de Michelle Bolsonaro não ter sido marcada ou citada em outras fotos ou vídeos dos compromissos oficiais da secretária, a data da viagem a Florianópolis coincide com a agenda de compromissos do órgão.
A conexão que a matéria da revista Fórum estabelece entre a participação de Letícia Firmo na festa e a onda de violência que assolou Florianópolis no mesmo final de semana não apresenta caráter informativo e se revela também imprecisa.
Bereia alerta leitores e leitoras sobre a importância de avaliações críticas sobre casos de nepotismo (favorecimento dos vínculos de parentesco para o exercício de funções públicas) muito comuns no Brasil, para os quais a revista Fórum chama a atenção como prática recorrente da família do ex-presidente da República Jair Bolsonaro. Porém, tais críticas devem ser feitas em forma de análise e opinião, explicitamente indicadas, ou, quando oferecidas informações, elas devem ser precisas, acompanhadas de dados e outros elementos factuais coerentes com o que se deseja afirmar. Caso contrário, promove-se desinformação, como em caso semelhante já checado pelo Bereia.
O site gospel Pleno.News noticiou, em 12 de outubro passado, que, em 2024, as empresas estatais acumulam um “rombo” de R$7,2 bilhões – o maior déficit da série histórica, registrada pelo Banco Central desde 2002. A publicação, intitulada “Déficit histórico: Estatais têm rombo de R$7,2 bilhões, em 2024”, cita o canal de TV CNN Brasil como fonte da informação, e destaca que tais perdas podem aumentar o endividamento do país por levar o Executivo a cobrir esses custos.
A notícia da CNN Brasil referida, de 10 de outubro, destaca que o “rombo” de R$7,2 bilhões é o maior em 22 anos e é composto pelas contas negativas de estatais federais e estaduais, que acumulariam, respectivamente, R$3,3 bilhões e R$3,8 bilhões. A matéria explica, ainda, que os dados sobre o déficit foram divulgados por um relatório de estatísticas do Banco Central, e este resultado se dá quando os gastos superam o fluxo de entrada no caixa das empresas. Outros veículos como O Globo e Infomoney divulgaram o mesmo conteúdo.
Imagem: reprodução/Pleno.News
A notícia publicada pelo Pleno.News tem os mesmos poucos dados em quatro parágrafos, como a matéria da CNN, e não oferece elementos informativos complementares para o público religioso, que é alvo deste veículo, e não compreende as implicações de tais questões econômicas. Bereia checou.
Cenário complexo exige cautela
Bereia apurou que os resultados negativos das empresas estatais no acumulado de 2024 estão longe de ser uma novidade: a lei que estabelece as regras do orçamento deste ano definiu que o déficit poderia chegar a R$ 7,3 bilhões. Desse modo, a informação divulgada pelo Banco Central mostra que as perdas das estatais estão muito próximas do limite estabelecido pelo governo, o que pode despertar um sinal de alerta quando um contexto maior não é considerado.
A última edição do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (documento que acompanha o cumprimento das metas fiscais do Executivo), publicada em 23 de setembro passado, projeta que os investimentos do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) devem equilibrar as contas das estatais e mudar o cenário que, num primeiro momento, pode parecer catastrófico.
O orçamento de 2024, aprovado pelo Congresso no ano anterior, prevê que R$ 5 bilhões do PAC sejam abatidos das contas das estatais, fazendo com que, segundo as expectativas do governo, o déficit fique em R$ 4 bilhões e a meta fiscal seja alcançada. Além disso, outros fatores podem influenciar no resultado individual das empresas e transformar o prejuízo em lucro, como foi visto em 2023.
Em novembro do último ano, o jornal O Globo publicou uma lista de estatais deficitárias que poderiam precisar de socorro do Tesouro Nacional para não fechar o ano no vermelho. De acordo com a matéria, a empresa Hemobrás, que desenvolve e produz medicamentos hemoderivados, amargaria um prejuízo de R$ 352,86 milhões em 2023, dado que não se confirmou: a estatal registrou lucro recorde de R$ 326,5 milhões.
A Dataprev, empresa que fornece tecnologia de dados para o funcionamento de programas sociais, superou uma estimativa de déficit de R$ 198,29 milhões e alcançou o maior lucro de sua história: R$ 598,6 milhões. Essas diferenças entre o que foi estimado e o que de fato se concretizou mostram que o assunto é complexo e demanda atenção e cautela por parte da imprensa.
Em entrevista ao Bereia, o mestre em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) Presley Vasconcellos aponta para fatores que podem explicar casos como os da Dataprev e Hemobrás:
“A diferença entre o déficit previsto em novembro de 2023 e o lucro de algumas estatais no fechamento do ano pode ser explicada por uma combinação de previsões conservadoras, melhora no desempenho operacional, recuperação econômica, reconhecimento tardio de receitas, e políticas de gestão de dívidas e custos. Além disso, o contexto macroeconômico mais favorável no final do ano, com controle de inflação e eventuais ganhos extraordinários, pode ter contribuído para reverter a expectativa de déficit em resultados positivos.”
Vasconcellos explica, ainda, que as estatísticas fiscais são construídas a partir dos dados de fluxo de caixa das empresas, e fatores relacionados à gestão financeira, políticas públicas e contexto econômico podem ajudar a explicar os resultados negativos das estatais. Além disso, é importante considerar que cada empresa tem as suas particularidades, visto a diversidade de setores em que atuam.
A situação das estatais brasileiras
As estatais federais brasileiras compõem um conjunto diverso, no qual podem ser encontradas empresas de porte global, como a Petrobras, até empresas que atuam regionalmente, como a central de abastecimento CeasaMinas. Como característica comum, elas foram criadas com o objetivo de atender ao interesse público.
Em julho deste ano, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) publicou o Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais, que organiza e consolida os principais dados contábeis, econômicos, e operacionais respectivos à atuação das empresas controladas pela União em 2023.
Alguns pontos do balanço foram destacados, como a riqueza produzida pelas estatais no ano anterior – registrada como seu Valor Adicionado Bruto – contabilizando R$ 627,1 bilhões, o que equivale a 5,75% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
Em conjunto, o lucro líquido que as estatais apresentaram foi de R$ 197,9 bilhões. De acordo com o Relatório, no ano de 2023, as empresas federais pagaram R$ 128,1 bilhões em dividendos e Juros sobre Capital Próprio (JCP) a seus acionistas. A União recebeu R$ 49,4 bilhões em pagamentos nessa modalidade.
Ao final de 2023, as estatais geraram mais de 400 mil empregos, com atuação em praticamente todo o território nacional, e contavam com ativos que, somados, chegavam à casa dos R$ 6 trilhões.
Imagem: reprodução/Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais (MGI)
Além da lógica do lucro
As estatais geram, por definição, valor à sociedade brasileira e operam em diversas frentes de atuação que, embora importantes para o desenvolvimento do país, ultrapassam a lógica estritamente mercadológica, baseada na geração de lucro. Como exemplo, temos o acesso universal a atendimento médico gratuito e a prestação de serviços financeiros em agências dos Correios.
Combinado ao seu papel de prestação de serviços públicos fundamentais e de estímulo ao desenvolvimento do país, é possível também verificar, quantitativamente, a importância das estatais na economia brasileira.
Para compreender a dinâmica de funcionamento das estatais, foi elaborada a Demonstração de Valor Adicionado, que é um demonstrativo contábil – obrigatório para todas as sociedades por ações desde 2007 – que indica o quanto uma empresa gera de riqueza e como a distribui na sociedade. Esse demonstrativo ajuda a compreender a atividade das estatais e como elas contribuem para o crescimento da nação.
Imagem: gráfico elaborado pelo Bereia com base no Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais 2024
Abordagem rasa pode gerar equívocos
Diante de cenários complexos, como é o caso da economia e da gestão pública, abordagens rasas que não contextualizam os dados devidamente podem gerar no público uma percepção de que empresas estatais são ineficientes e altamente deficitárias, ou que o governo em questão é corrupto ou não faz uma boa gestão da coisa pública.
Sobre a abordagem da imprensa a respeito das estatísticas fiscais do Banco Central, Presley Vasconcellos comenta que, apesar da análise técnica estar correta, falta clareza para apontar a natureza dos déficits, que podem ser entendidos pelo leitor como uma “falência” das empresas.
“A abordagem se torna tendenciosa para indicar o “rombo”, enquanto que na verdade estamos falando de um déficit em que pode, em muitos casos, ser justificado por aumento do investimento para ampliação da atuação. Há uma enorme diferença na tratativa nesse cenário. Há um sensacionalismo em associar gasto a desperdício, enquanto que investimento é um ato necessário, em diversos casos.”
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Bereia classifica a publicação do Pleno.News como imprecisa. A matéria se baseia em dados da emissora de TV CNN, que, por sua vez, lançou mão de estatísticas publicadas pelo Banco Central. Como Bereia verificou, os dados são verdadeiros, porém, carecem da devida contextualização e explicações sobre as causas, as implicações e as consequentes ações do Estado diante de tal situação.
A produção de conteúdo desta forma, caracteriza a informação imprecisa, que desinforma, neste caso, por dois fatores: 1) a ausência de elementos que expliquem devidamente o tema ao público que não o domina, o que gera conclusões e avaliações equivocadas sobre o que é divulgado; 2) o título sensacionalista com o termo “rombo” que estimula avaliações críticas à gestão do Estado relacionadas a corrupção e incompetência.
Bereia alerta leitores e leitoras a não consumirem notícias que tratem de temas complexos, como os relacionados a economia, em poucos parágrafos, sem apuração de dados e avaliações de especialistas que contextualizem o que se quer informar.
*Matéria atualizada em 20/09 para acréscimo de informações.
Circula em mídias sociais, chamada para matéria publicada pelo site de notícias Brasil 247 intitulada “Lula sugere envolvimento de bolsonaristas como Malafaia em incêndios criminosos”, com o subtítulo: “O presidente recordou uma declaração do pastor, que usou as redes sociais para convocar bolsonaristas para um ato em São Paulo”.
Imagem: reprodução/Brasil 247
A matéria se baseou em discurso do presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, proferido durante reunião realizada no Palácio do Planalto, em 17 de setembro passado, para tratar, de forma emergencial, sobre a escalada da crise com os incêndios e queimadas florestais em várias regiões do país.
A reunião, convocada por Lula, contou com os representantes dos Três Poderes da República: o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, o presidente do Congresso Nacional Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o procurador-geral da República Paulo Gonet, e ministros do governo.
Ao noticiar sobre o discurso de Lula, que abordou as investigações sobre o caráter criminoso dos incêndios, a matéria do Brasil 247 afirma:
“o presidente Lula sinalizou que o pastor bolsonarista Silas Malafaia pode ter envolvimento com os incêndios no Brasil. ‘Uma pessoa muito importante na convocação do ato de 7 de setembro na Paulista disse que ‘O Brasil vai pegar fogo’, afirmou o chefe de Estado. A declaração do religioso ocorreu em agosto, quando ele usou as redes sociais, para convocando apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) a um protesto marcado para o dia 7 de setembro. A Polícia Federal abriu 52 inquéritos, com o objetivo de apurar os motivos dos incêndios no país”.
O site ilustrou a matéria com uma reprodução de postagem do pastor líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia no X/Twitter, de agosto passado, que convocava para um protesto de rua, em 7 de setembro, na Avenida Paulista (cidade de São Paulo), em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro e em protesto contra ações do Supremo Tribunal Federal em torno dos ataques ao Estado Democrático de Direito iniciados no governo do capitão do Exército. Com o bordão “Vai pegar fogo!” o líder religioso incentivou a participação dos seus seguidores na manifestação bolsonarista.
Imagem: reprodução/Brasil 247
Outras mídias jornalísticas também noticiaram a reunião e o discurso de Lula, porém, mantiveram a expressão usada pelo presidente, “Uma pessoa muito importante na convocação do ato de 7 de setembro na Paulista disse que ‘O Brasil vai pegar fogo’”, sem menção ao nome do pastor assembleiano.
Imagem: reprodução/Metrópoles
A suspeita infundada sobre a fala de Silas Malafaia
Os incêndios e queimadas florestais que atingem o Brasil de forma dramática neste 2024, começaram a ser observados de forma emergencial pelo poder público a partir do final de agosto passado. Propagadores de desinformação logo se aproveitaram da calamidade para espalhar conteúdo alarmante. Bereia checou, no início deste mês que líderes políticos e religiosos postaram várias publicações enganosas com questionamentos, sem evidências, da atuação do governo federal no controle dos incêndios e com atribuição de responsabilidade pelos focos de fogo a grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Nesta semana o assunto volta às redes com a fala do presidente Lula, que não mencionou o pastor mas, de fato, aludiu à fala do líder assembleiano divulgada em agosto passado, como Bereia verificou ao acessar a gravação do discurso, disponível no canal do Youtube Gov, da Empresa Brasil de Comunicação. No minuto 8:38, o presidente comenta sobre as suspeitas de crime na promoção dos incêndios e afirma:
[Pode ser] pela realização da COP 30 aqui no Brasil, ou pela performance que o Brasil tem na discussão ambiental no mundo inteiro, talvez uma parte disto seja por interesses políticos. A gente não sabe, não pode acusar, mas que há suspeita há. É importante eu não deixar de dizer para vocês que uma pessoa muito importante na convocação do ato da avenida Paulista utilizou a palavra “Vamos botar fogo no Brasil” ou “O Brasil vai pegar fogo” uma coisa mais ou menos assim. Isto tem na internet, algumas coisas, vocês podem ver. O dado concreto é que a mim parecem muita anormalidade…
A pesquisa do Bereia confirma que não há qualquer base factual para se afirmar que o uso da frase “O Brasil vai pegar fogo”, pelo pastor Silas Malafaia, na convocação para a manifestação de rua em 7 de setembro, tenha relação com os incêndios e queimadas florestais. Portanto, a fala do presidente Lula é baseada em imprecisões, o que caracteriza desinformação.
Da mesma forma o site Brasil 247, ao noticiar a reunião e o discurso no Palácio do Planalto, não só reproduz a imprecisão, sem apuração que apresente elementos que corroborem a afirmação do presidente. O site de notícias expõe o nome do pastor Silas Malafaia no título e no corpo da matéria, e coloca na boca do presidente da República a pronúncia que ele optou por não fazer, o que amplifica a desinformação.
O uso da imagem do fogo entre cristãos
Silas Malafaia é amplamente destacado em sua presença pública pelo alinhamento recente com políticos e políticas do extremismo de direita, por ter se tornado uma espécie de conselheiro e defensor do ex-presidente Jair Bolsonaro, pela verbalização violenta e autoritária, que angaria seguidores e opositores por conta do discurso ancorado em polêmicas, conforme mostram estudos acadêmicos. Nesse sentido, o pastor líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo ganha visibilidade frequente nas mídias de notícias e chega a ser alçado em alguns espaços como porta-voz dos evangélicos, o que é falso, pois evangélicos, na diversidade que marca o segmento, não têm representantes.
Bereia avalia ser relevante, neste contexto, a informação de que o pastor Malafaia não é o único líder religioso que usa a imagem do “fogo” para captar a atenção de seguidores. Por isso, é importante garantir que para se relacionar o uso desta imagem com o incentivo a um crime incendiário, é preciso reunir evidências para não se cometer injustiças em nome de uma oposição política.
Para os cristãos de uma forma geral, o fogo é um símbolo importante. De acordo com o arcebispo católico de Passo Fundo (RS) Dom Rodolfo Luis Weber, em artigo pastoral, “o fogo representa o poder da fé, a transformação, o desejo e a purificação”. A imagem do fogo está relacionada a muitos episódios na tradição da Bíblia, entre eles, o mais destacado, a “descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus”, após a assunção dele aos céus, durante a festa judaica de Pentecostes.
Conforme narrado no livro de Atos dos Apóstolos, capítulo 2, vieram sobre aquelas pessoas presentes à festa, em Jerusalém, “línguas como de fogo”. Nesse sentido, o fogo passou a ser atribuído entre cristãos como símbolo de força, coragem, poder da fé, e os fez saírem de si mesmos, das fronteiras culturais e étnicas para anunciarem o Evangelho ao mundo.
É comum o uso da palavra fogo nos hinos e nas canções evangélicos, mas para os crentes pentecostais, cuja doutrina é ancorada na leitura da experiência relatada na Bíblia, em Atos 2, é ainda muito mais presente. É comum o jargão pentecostal “sapato de fogo”, ou “reteté”, para as participações espontâneas “inflamadas”, emotivas, nos cultos e rituais com expressões em “línguas estranhas”, chamadas profecias (práticas de proferir publicamente palavras em nome de Deus nas comunidades religiosas pentecostais).
Repetidas vezes nos cultos evangélicos os momentos musicais têm cânticos como: “Deus de fogo, Deus de fogo que abriu o mar vermelho. Deus de fogo, Deus de fogo que não deixa ninguém tocar no fio do teu cabelo…” (grupo Águas Purificadas/Gospel Music Brasil); “Acende o Fogo em Mim” (David Quinlan); “Acende o fogo em meu coração eu não resistirei, eu quero mais de ti, Deus” (Nívea Soares), entre outras centenas de canções repetidas nos cultos pentecostais brasileiros.
“Fogo Divino” é um hino da tradicional “Harpa Cristã”, o hinário oficial da igreja Assembleia de Deus. Um dos seus versos diz: “Fogo divino, clamamos por ti; Vem lá do alto, vem, desce aqui; Ó vem despertar-nos com teu fulgor; Vem inflamar-nos com teu calor. Desce do alto, bendito fogo, Desce poder celestial! Desce do alto, bendito fogo, Vem, chama pentecostal!”.
Outro exemplo do uso da imagem simbólica do fogo está no tradicional hinário utilizado pela Igreja Batista, que pertence à Convenção Batista Brasileira, o “Cantor Cristão”. O segundo verso do hino “Avivamento” diz: “Aviva-nos, Senhor! Eis nossa petição. Ateia o fogo do alto céu em cada coração!”.
A imagem do fogo também é usada em eventos religiosos. O grupo de jovens da Igreja Batista Deus é Fiel, na cidade de Sete Lagoas (MG), tem divulgado nas redes digitais uma conferência para 14 a 16 de novembro próximo, com o título “Incendiários”.
Fonte: Site Incendiários.com.br
No site da conferência, os jovens são convidados com chamadas como esta: “Seja um incendiário! Deus não colocou este fogo em nós para que queimássemos apenas, Ele quer espalhar este fogo através de nós. No Reino de Deus não é possível ser um incendiário sem estar incendiado.”
Imagem: reprodução/Instagram
Uma conferência evangélica com este tema não é nova. Em 2023, foi realizado evento com o mesmo nome sob a liderança da Batista do Brasil Church, em Barreiros (BA).
Imagem: reprodução/Instagram
Palavra “fogo” é usada como expressão popular
Ainda é preciso considerar que o termo “fogo” é usado popularmente com muitos diferentes sentidos:
para classificar uma situação positiva ou negativa ou mesmo estimular a atenção a ela, bastante usada em canções (“Isto vai pegar fogo”).
para classificar pessoa de qualquer idade inflamada, agitada, que cria confusão (Fulano é fogo!)
E muitas outras expressões como: fogo de palha, fogo no cabaré, ver o circo pegar fogo, entre tantas.
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Bereia classifica como imprecisa a fala do presidente Lula e a matéria publicada pelo site Brasil 247 que explicita suspeitas sobre a fala do pastor Silas Malafaia, em vídeo para convocação para a manifestação de rua, em 7 de setembro passado, na Avenida Paulista, como incentivo a incêndios florestais criminosos.
A pesquisa do Bereia confirma que não há qualquer base factual para se afirmar que o uso da frase “O Brasil vai pegar fogo”, pelo pastor Malafaia tenha relação com os incêndios e queimadas florestais. Como Bereia pesquisou, o que existe de forma intensa é o uso da imagem do fogo como símbolo comum no discurso evangélico, especialmente entre pentecostais e pode ter sido usada pelo pastor dentro deste contexto.
* Matéria atualizada em 12/08/2024 para ajuste de título
O portal evangélico Gospel Prime publicou, em 5 de agosto passado, que o Ministério Público Federal (MPF) propôs uma multa de R$ 100 mil ao pastor da Igreja Apostólica Central Wilson Felix da Silva, por discurso de intolerância religiosa contra religiões de matriz afro-brasileira.
Imagem: Reprodução: Gospel Prime
A matéria do Gospel Prime é intitulada: MP quer multar pastor em R$ 100 mil por pregar contra Iemanjá. O veículo descreve que o caso do pastor Wilson Félix da Silva envolve acusações de “discurso de ódio” contra religiões afro-brasileiras.
Segundo as informações, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão diz que a declaração do pastor desrespeita essas religiões e pede uma indenização, além da investigação criminal do vídeo. Ao final a matéria compara a situação com outra relacionada ao pastor youtuber Yago Martins, que também foi acusado de discriminação religiosa. A conclusão aponta que ambos os casos mostram a dificuldade de equilibrar a liberdade de expressão religiosa com a proteção de grupos minoritários contra discriminação.
O ocorreu após o pastor criticar a inclusão do evento “Águas de Axé” no calendário oficial de Mangaratiba, município da Costa Verde do Rio de Janeiro. Esse é um evento anual organizado pelo Instituto Lucia Castilho, entidade ligada às religiões de matriz africana.
O caso foi acolhido pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC-RJ), que apontou que o pastor utilizou sua posição de liderança para incitar a discriminação de religiões afro-brasileiras durante um culto transmitido online.
No sermão, o líder evangélico teria atribuído a Iemanjá “toda sorte de coisas maléficas que possam ocorrer” na cidade, segundo as acusações.
Bereia checou a veracidade da informação propagada pelo Gospel Prime.
A entidade organiza o evento anual “Águas de Axé”, em 20 de janeiro, que promove o encontro de diversos terreiros da região, na Praia do Saco, em Mangaratiba, em prol da divulgação da cultura afro-brasileira e para a realização de rituais para a entrada do novo ano.
Em reconhecimento, a Câmara Municipal da cidade, aprovou em novembro de 2023, um Projeto de Lei, de autoria do vereador Aristides Barcelos (PL-RJ), para a inclusão do evento no calendário oficial do município.
Em repercussão, o pastor Wilson Félix da Silva, criticou a decisão municipal, no sermão transmitido em rede digital, que “onde eles colocam isso, há uma degradação, uma destruição”.
O pastor afirma que tal ato visa a acabar com as praias de Mangaratiba, assim como as praias de Sepetiba e Coroa Grande, também localizadas no estado do Rio, pois elas “não prestam mais”, já que há representações de orixás, como Iemanjá, rainha dos mares.
Imagem: Reprodução/YouTube
Wilson Félix ainda argumenta que o município está em uma “guerra espiritual” e que é necessário um posicionamento cristão em todas as esferas da administração pública. Ele também critica o prefeito Alan Campos da Costa, chamando-o de “crente desviado”, por ter aprovado a lei.
Após as falas do pastor, representantes do Instituto Lucia Castilho registraram ocorrência por crime de intolerância e racismo religiosos. O Ministério Público Federal (MPF), pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC/RJ), ajuizou ação civil pública contra Wilson Félix da Silva por disseminar discurso discriminatório contra religiões de matriz afro-brasileira.
Na ação, o MPF pede indenização de R$ 100 mil, em função das violações aos direitos fundamentais causadas pelas ofensas. E ressalta que comunidades tradicionais têm o direito de praticar sua religião e expressar sua identidade cultural, e que o Estado tem o dever de salvaguardar a diversidade das expressões culturais.
A PRDC/RJ também determinou a remessa de cópia da gravação para apuração na área criminal, com base na Lei nº 7.716/89, que trata de crimes de racismo.
Bereia ouviu a advogada especialista em Direito Antidiscriminatório, e membro da Rede Cristã de Advocacia Popular (RECAP) Claudia Patricia Luna. Ela explicou que o Ministério Público não precisa esperar por uma denúncia para agir. Ele pode iniciar uma ação cível ou penal por conta própria, especialmente quando o caso envolve interesses coletivos. No caso de racismo religioso, que afeta uma comunidade de pessoas negras, o MP, como previsto na Constituição, pode abrir um inquérito civil e determinar uma multa, como aconteceu com o pastor.
A advogada também explica que o pastor está sendo denunciado com base na Lei 14.532/2023, que equipara os crimes de injúria racial aos de racismo, tornando-os inafiançáveis, incluída uma lista dos contextos nos quais devem ser enquadrados, incluído o religioso.
Claudia Luna esclarece que o MPF atua tanto na esfera criminal quanto na cível. Neste caso de Mangaratiba, foi aberto um inquérito cível, e o pastor foi multado conforme esta lei. Isso significa que, além das punições criminais, a pessoa que comete atos de racismo ou injúria racial também pode ser responsabilizada civilmente e obrigada a indenizar a vítima. A multa pode ser destinada a um fundo coletivo, visto que a ofensa impacta toda a comunidade, não apenas o indivíduo.
Repercussão do caso
Vários perfis evangélicos têm divulgado a notícia sobre a condenação do pastor Wilson Félix da Silva como perseguição religiosa. O Gospel Prime afirmou que a medida visa “proteger grupos religiosos minoritários” mas cria tensões com o direito à liberdade religiosa.
Imagem: reprodução/Gospel Mais
Imagens: Reprodução: Gospel+ e Pleno News
Calendário cívico e disputas religiosas
O racismo religioso neste caso é mais um exemplo do palco de disputas que revelam tensões religiosas e culturais no país que cercam também o calendário oficial brasileiro, com seus feriados e datas comemorativas.
Historicamente dominado por datas cristãs, especialmente católicas, o calendário enfrenta desafios à medida que grupos minoritários buscam reconhecimento e representação.
A antropóloga e pesquisadora nos temas de religião e política Izabella Bosisio, em artigo publicado observa que “o catolicismo se coloca como um elemento fundamental na construção da nacionalidade, do tempo e do espaço públicos, incorporando-se ao calendário sem grandes questionamentos ao ser entendido como parte da tradição e da cultura nacional”.
A Lei Federal 9.093/1995 estabelece regras distintas para feriados civis e religiosos. Os feriados religiosos, limitados a quatro por município, devem seguir a “tradição local”, o que frequentemente favorece as datas cristãs. Já a Lei Federal 12.345/2010 determina que as datas comemorativas devem ter “alta significação para os diferentes segmentos profissionais, políticos, religiosos, culturais e étnicos que compõem a sociedade brasileira”.
No entanto, a implementação dessas diretrizes enfrenta obstáculos. O crescimento da presença evangélica na esfera pública adiciona complexidade a essas disputas. Enquanto buscam estabelecer suas próprias datas comemorativas, alguns setores evangélicos se opõem à inclusão de datas relacionadas a religiões afro-brasileiras, que, de forma predominante, historicamente, demonizam.
Em períodos eleitorais, políticos alinhados a pautas conservadoras frequentemente exploram casos de aplicação da lei como supostos exemplos de “perseguição aos cristãos”, afirma Bosisio. O debate sobre a inclusão de novas datas, como o Dia da Consciência Negra, exemplifica essas tensões. Embora seja uma data comemorativa nacional, sua instituição como feriado enfrenta resistências em diversas localidades.
“O calendário é algo tão naturalizado e incorporado ao nosso cotidiano que, em geral, não nos damos conta das presenças e das ausências nele”, complementa a antropóloga.
Violências sofridas por religiões de matrizes afro-brasileiras
Dados do Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, indicam que, no primeiro semestre de 2024, foram registradas 1.940 violações à liberdade religiosa no Brasil. Esse número corresponde a 91% do total de violações desse tipo ocorridas em 2023.
As religiões afro-brasileiras são as mais afetadas pela intolerância. Entre 525 violações em que a religião da vítima foi identificada, 276 envolvem seguidores de crenças de origem africana. O Candomblé é a religião com mais violações, com 166 denúncias, seguido pela Umbanda com 124, e 22 casos envolvendo ambas as religiões.
Em 2024, o pastor evangélico Felippe Valadão, da Igreja Lagoinha de Niterói, foi indiciado por intolerância religiosa após fazer ameaças contra terreiros de Umbanda durante um evento, em Itaboraí (RJ), em maio de 2022. Ele prometeu acabar com os centros espíritas da região e afirmou que a igreja estaria fechando esses locais, o que gerou grande polêmica e levou à sua acusação.
Esses discursos frequentemente ignoram o princípio da liberdade religiosa e promovem discursos que contribuem para a marginalização e o preconceito contra essas tradições.
Desinformação religiosa como estratégia
Bereia verificou que conteúdos religiosos estão sendo utilizados como estratégia política, principalmente em períodos eleitorais. Embora a intolerância religiosa seja um problema sério no País, a forma sensacionalista como alguns sites gospel abordam o tema pode distorcer a realidade. Isso pode causar reações exageradas e criar confusão sobre como a lei realmente protege todas as religiões, incluindo o Cristianismo.
Publicações como a do Gospel Prime contribuíram para a disseminação de informações que levaram diversos perfis em mídias sociais a atribuírem o caso a uma suposta perseguição a cristãos.
O conceito de perseguição a cristãos tem sido amplamente explorado como pretexto para abusos do direito à liberdade religiosa, como Bereia já tratou. A ideia ganhou mais força no Brasil a partir de agosto de 2021, quando pesquisas eleitorais indicaram o crescimento da oposição à reeleição do então presidente Jair Bolsonaro. Desde então, houve um aumento nas publicações em mídias digitais sobre a ameaça de fechamento de igrejas e tentativas de silenciar líderes religiosos e professores cristãos que se opõem a questões de diversidade sexual e pluralidade religiosa. A retórica da “Cristofobia”, criada por milícias digitais, apela para o imaginário evangélico, explorando a noção de que a perseguição é uma prova de fé e é amplamente divulgada em igrejas e músicas gospel.
A antropóloga, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Estudos da Religião Christina Vital explica que a liberdade religiosa é o direito de praticar qualquer religião. O Estado laico é importante para garantir essa liberdade, mas não é o único fator. A sociedade e a cultura também são essenciais para respeitar e valorizar a diversidade religiosa. A Constituição de 1988 reforça a laicidade do Estado e a liberdade religiosa nos artigos 5º e 19. No entanto, essa liberdade deve respeitar outros direitos e pode ter limitações legais. Isso significa que todos podem praticar e expressar sua religião, inclusive convidar outras pessoas a participarem e se converterem. No entanto, essa liberdade não permite desrespeitar ou ofender outras religiões.
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Bereia classifica a matéria do Gospel Prime como imprecisa. De fato, o site religioso relata o ocorrido, porém, insere comparação com outro caso mesclando informação e opinião em relação ao tema da liberdade religiosa, sem oferecer referência com base no Direito.
O Gospel Prime, bem como outros com identidade religiosa evangélica, têm explorado a ênfase na aplicação da lei com a alegação de restrições à liberdade religiosa, o que se revela falso. Leitores e leitoras devem estar atentos a esta prática e verificar a veracidade de publicações antes de qualquer compartilhamento.
* Matéria atualizada em 02/07/2024 às 08:00 para correção de informações
O portal de notícias Metrópoles publicou, em 19 de junho, matéria sobre a declaração de um pastor evangélico, que teria afirmado fazer uma mulher obesa emagrecer instantaneamente. O jornal também divulgou o trecho do vídeo, em que o líder religioso faz a declaração, no perfil oficial do veículo de comunicação no X, antigo Twitter, em 21 de junho.
O jornal DCM repercutiu o vídeo publicado pelo Metrópoles no X, em matéria em seu portal oficial, ainda em 21 de junho. O Globo também noticiou a viralização do vídeo com a declaração do pastor, em 20 de junho, sob o título: “Ozempic cristão? Pastor viraliza ao dizer que mulher perdeu 23kg após oração: ‘tiveram que segurar a saia dela para não cair’”. Bereia analisou o conteúdo gerado pela imprensa acerca do caso.
Imagem: reprodução DCM
Declaração do pastor e redes digitais
O vídeo em questão é um extrato de entrevista do pastor Célio Rosa da Silva ao programa POD Acreditar, transmitido pelo canal da baixada cuiabana (MT), TV Capital, e apresentado por Michelly Alencar, em 4 de maio último. Na entrevista, o pastor relatou suas experiências espirituais, incluindo alguns milagres realizados, segundo ele.
O recorte da gravação da entrevista com o pastor Célio Rosa viralizou nas redes digitais, em 19 de junho, com as afirmações do pastor sobre situações em que suas orações resultaram no emagrecimento imediato de duas fiéis com quadro de obesidade.
Imagem: reprodução YouTube
Célio Rosa conta dois casos em que ele teria curado a obesidade de forma instantânea. “A filha do pastor tinha um problema de obesidade. Quando eu orei por ela, tiveram que segurar a saia dela, porque senão a saia caía”. Indagado pela entrevistadora, o pastor confirmou que o emagrecimento foi “na hora”.
No segundo caso, Célio Rosa diz: “Em Maringá, eu orei para (sic) uma mulher que emagreceu 23Kg na hora. Eu estou falando para você, eu já vi coisas nesses trinta anos”. A apresentadora chega a rir do “milagre do emagrecimento”, mas não contesta os relatos.
Depois de viralizado, o recorte também foi publicado na página oficial da igreja Ministério Pescador Sal para Terra no TikTok, e alcançou mais de três mil visualizações.
Imagem: reprodução TikTok
Pastor Célio Rosa e Ministério O Pescador Sal da Terra
De acordo com texto publicado pela Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso (ALMT), Célio Rosa da Silva passou a atuar como pastor em 1997, quando fundou o Ministério Sal da Terra, em Rondonópolis (MT). A informação foi divulgada pelo site, em 2010, em meio ao pedido apresentado pelo então deputado estadual Hermínio J. Barreto (PR), para conceder título de cidadania matogrossense ao pastor.
O texto aponta ainda que o líder religioso se estabeleceu como pescador profissional em Rondonópolis, em 1981, função que exerceu até 1999. Segundo a ALMT, Célio Rosa é natural de Ivolândia (GO).
Imagem: reprodução portal da ALMT
Conforme contou na entrevista ao POD Acreditar, antes de se dedicar às pregações, ele era um pescador de origem humilde, sem eletrodomésticos em casa e analfabeto. Um dos milagres a que faz referência teria acontecido com ele mesmo, aos sete meses de idade, quando a mãe o teria deixado aos cuidados de um irmão ainda mais novo:
“Eu morri, literalmente. Eu engasguei e quando minha mãe chegou em casa eu estava morto (…) eu não tinha respiração”, relatou.
Ao longo da entrevista, Célio Rosa conta outros milagres por ele realizados, como a cura do câncer. “Na Suíça (…) eu chegava para a pessoa [com câncer] e falava ‘em nome de Jesus, joga esse câncer aqui dentro’, e a pessoa vomitava o câncer ali dentro”.
Imagem: reprodução YouTube
O pastor também conta sobre um caso de ressurreição. Na ocasião, Célio Rosa teria conhecido uma mulher grávida que perdeu o filho antes do nascimento e passaria pelos procedimentos médicos para retirada do feto, morto havia quatro dias. Antes que a mulher desse entrada no hospital, Rosa teria feito a criança voltar à vida, mesmo após atestados médicos de morte.
A lista de milagres operados por intermédio do pastor Célio Rosa, segundo ele, é longa. Além da cura da obesidade, da cura do câncer e da ressurreição, o pastor relata casos como o de um cego que teria voltado a enxergar, um paralítico que teria voltado a andar e a cura de uma lesão óssea em uma idosa.
No Instagram, o pastor publica conteúdos de pregações e milagres que teria realizado. A origem pobre contrasta com os discursos de prosperidade, frequentes em seus discursos atuais. Em 27 de abril, o pastor publicou um vídeo em que promove sua imagem em um telão na Times Square, um dos principais centros comerciais de Nova York, nos Estados Unidos.
Imagem: reprodução Instagram
Repercussão da declaração pela imprensa
A matéria publicada pelo Metrópole, com o título “Pastor diz que fez mulher obesa emagrecer “na hora” com oração. Vídeo”, noticia a viralização do discurso do pastor, identifica o líder religioso, reproduz as falas de Célio Rosa e ressalta que o pastor não apresentou provas de suas afirmações.
Com uma chamada apelativa, o jornal O Globo fez associação do feito declarado pelo pastor com o remédio Ozempic. O medicamento injetável foi desenvolvido para diabetes, mas também é utilizado por algumas pessoas que desejam perder peso para inibição de apetite, apesar de não haver indicação médica oficial para tal uso. Nos últimos meses o remédio foi razão de alguns debates públicos no Brasil. O texto segue o mesmo caminho do Metrópole, mas aproveitou o assunto para tratar do tema da obesidade, com a apresentação de alguns dados.
Imagem: reprodução O Globo
Já a publicação do jornal DCM (Diário do Centro do Mundo), traz um título que não atribui a oração milagrosa diretamente ao pastor. Apesar de explicar a origem da informação e identificar o líder religioso, apresenta os casos citados pelo pastor como um único caso, e direciona o leitor para a publicação do trecho de vídeo feita pelo Metrópoles no antigo Twitter.
Críticas à cobertura enviesada
Bereia ouviu profissionais de saúde para compreender os efeitos deste tipo de informação sobre o público. A psicóloga Márcia Guinâncio explica que ao apresentar apenas o trecho com a fala do pastor sobre milagres, os veículos de imprensa ignoraram o valor da oração para o cristão. Segundo ela, a oração possibilita a conexão com o sagrado e a espiritualidade. “A matéria gera desinformação para o próprio cristão, ao sustentar a cura milagrosa da obesidade e, ao mesmo tempo, alimenta uma visão distorcida sobre evangélicos, sua fé e o valor da oração como forma de aproximação com Deus”, afirma Guinâncio.
Em sua interpretação, a enfermeira, mestre em educação e doutora em Ciências da Saúde Janize Maia, as matérias foram produzidas de “forma sarcástica, sem uma preocupação com a qualidade da informação passada e o que estava sendo propagado, justamente por não acreditarem no que estavam divulgando, ou seja, foram parciais demonstrando a sua incredulidade no conteúdo”.
Maia destacou ainda que da forma como as notícias foram veiculadas, o impacto tem sido significativamente negativo sobre as pessoas com problemas de saúde, e expõe, inclusive, as pessoas que se denominam evangélicas e que vivem uma espiritualidade sadia.
Imagem: reprodução Metrópoles
Já o pastor batista Irenio Chaves, identificou “uma certa dose de ironia” na abordagem dos textos noticiosos. “É difícil vencer a obesidade. A busca de soluções fáceis tem sido procurada por várias pessoas, com dietas mágicas, emagrecimento sem esforço e até procedimentos estéticos. O lado da ironia é que o milagre religioso seria mais uma dessas fórmulas mágicas e fantasiosas”, explica Chaves.
No entanto, o pastor alerta que é preciso ter um olhar crítico sobre a atuação de religiosos que vendem a imagem de poder, de unção e de capacidade espiritual por conta dos milagres anunciados. “Num país em que a população padece com a dificuldade de acesso aos recursos de saúde pública, ainda mais num tempo em que há um crescente movimento para se negar a ciência, essa atitude transforma a religião num verdadeiro mercado de milagres”, reforça.
Márcia Guinâncio aponta também para o fato que não contextualizar ou problematizar questões ligadas à obesidade nestes tipos de conteúdo, reforça diversos preconceitos. “Conceitos como obesidade e excesso de peso nos remete à preocupação com aquilo que entendemos como ‘ter saúde’, que pode se modificar em virtude de constantes pesquisas, e com o que em cada tempo histórico se estabelece como o corpo desejado. Não corresponder ao estabelecido, ao padrão, impulsiona preconceitos, que afetam a autoestima das pessoas, que não se enquadram no modelo ‘ideal’ de corpo”.
Bereia alerta para que leitores e leitoras invistam no consumo de conteúdos que apresentem apuração suficiente para contextualizar sobre as circunstâncias em que os fatos ocorreram. Nenhuma das matérias publicadas ofereceu detalhes sobre as declarações, versões ou mesmo crença do pastor e das fiéis. Possíveis testemunhas,demais pessoas envolvidas nos casos e especialistas sobre religião e saúde não foram ouvidas para o propósito de informar. As publicações foram feitas em momento na qual lideranças evangélicas estiveram em evidência no noticiário político, conjuntura que se faz propícia para compartilhamentos em redes digitais sobre o segmento religioso, e gerar visibilidade para os portais de notícias.
Circulam nas mídias sociais memes e publicações com uma citação que teria sido dita pelo ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro Leonel Brizola (1922-2004). As publicações apresentam em comum a frase “Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço, o país retrocederá vergonhosamente e matarão em nome de Deus”.
Na semana em que se comemora o aniversário de 20 anos da morte de Leonel Brizola, falecido em 21 de junho de 2004, Bereia checou a frase atribuída ao político gaúcho.
Em geral, a citação é acompanhada por expressões que identificam Brizola como “visionário” e “atemporal”. Em alguns casos, a frase é até mesmo vista como uma “profecia”.
Imagem: Reprodução do X
Reprodução: Imagem Instagram
As publicações e memes que circulam na rede atribuem à fala a autoria de Brizola e são usadas como forma de oposição à participação e posicionamento de evangélicos na política brasileira. Devido à grande repercussão da citação, que ganha ainda destaque de tempos em tempos nas mídias sociais, quando o segmento evangélico adquire algum protagonismo no cenário público, Bereia recebeu de leitora um pedido de checagem da veracidade dessas informações que são virais.
Leonel Brizola disse essa frase?
Apesar do grande número de publicações que circulam com a mesma frase ao longo dos anos, elas não apresentam fontes oficiais que legitimam a frase como autoria de Brizola. As publicações estão presentes nas mais diversas mídias sociais, são realizadas em perfis do Instagram, X, Facebook, vídeos do YouTube e até mesmo fotos e mensagens que circulam no Whatsapp e citam a frase como de autoria de Brizola sem embasamento concreto.
Como é comum a prática de falsa atribuição de frases a personagens com destaque público, para viralização em mídias digitais, veículos de mídia, como o jornal O Estado de São Paulo, criaram espaço de checagem de autoria destas menções.
Bereia verificou a veracidade nesses espaços de checagem de frases, sem chegar a um resultado positivo.
Mesmo não havendo indícios de que Leonel Brizola tenha sido o autor da frase, há diferentes posicionamentos do ex-governador em relação ao tema “evangélicos”.
Um ponto importante da história da vida de Leonel Brizola é o fato de sua mãe ter participado da Igreja Metodista e ele ter sido criado por um pastor dessa igreja. Historiadores narram que, na infância, como a família enfrentou muitas dificuldades, aos onze anos, em 1933, Brizola foi levado para a cidade gaúcha de Carazinho, onde a mãe, Oniva de Moura Brizola, frequentava o grupo de mulheres da Igreja Metodista. Lá D. Oniva conseguiu aproximar o filho do pastor da metodista Isidoro Pereira e sua esposa Elvira, que lhe conseguiram bolsa para concluir os estudos primários na escola da Igreja Metodista. Além de frequentar a escola, que estava localizada nos fundos da igreja, se tornou ajudante nos cultos e outros serviços. “As falas do Brizola eram recheadas de imagens rurais, de inspiração bíblica. Ele fala através de parábolas”, declarou em uma ocasião o senador do PDT do Rio, Saturnino Braga.
“Criado dentro da tradição metodista, tanto por sua mãe, quanto no período em que sua educação foi assumida pelo pastor Isidoro e sua esposa, Brizola sofreu influência direta do pensamento protestante. Em sua vida adulta, embora não fosse praticante, denominando-se genericamente como cristão, em diversas oportunidades fez questão de enfatizar a contribuição do protestantismo em sua formação. Não restam dúvidas de que sua preocupação com a educação integral, sobretudo para as camadas mais pobres da sociedade, possuía origem na tradição reformada, e em todas as suas experiências pessoais neste sentido”.
Em reportagem no Jornal do Brasil, de 8 de setembro de 1990, sobre uma carreata que Brizola fez na Baixada Fluminense, em segunda campanha para o governo do Estado do Rio, da qual saiu vencedor, o então candidato a governador falou sobre sua origem evangélica. “Nunca em minha vida toquei neste assunto, mas como tem muita gente usando religião para fazer a campanha de políticos que nada têm a ver com as forças populares, eu me sinto à vontade para afirmar: se há um voto coerente do povo evangélico, esse voto tem de ser dado àquele de formação evangélica, que é Leonel Brizola”.
Nesse período estava sendo concluído o mandato da primeira Bancada Evangélica na Câmara Federal, entre eleitos, em 1986, para atuar no Congresso Constituinte. A maioria do grupo foi alvo de muitas críticas, pelas trocas de votos por favores do então governo José Sarney, e ajudou a compor o segmento que fisiológico veio ser chamado “ Centrão”.
Ao continuar o discurso na carreata, o candidato gaúcho radicado no Rio de Janeiro referiu-se a “políticos que se disfarçam de evangélicos, desviam os cristãos para o caminho do próprio demônio”. “Quem duvidar da minha formação evangélica, pode perguntar a seu Isidoro Pereira, que está vivo no Rio Grande do Sul, com seus 83 anos. Ele poderá falar dos antecedentes do menino e do jovem Leonel. Nunca em minha vida usei este argumento, mas resolvi denunciar essa obra demoníaca que se disfarça de evangélica”, disse em uma referência ao pastor metodista que o criou.
Imagem: Reprodução do Jornal do Brasil de 8/9/1990 (captada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)
Já em 16 de maio de 2000, em uma reunião que teve na sede do PDT, com pastores evangélicos que queriam saber sobre sua possível candidatura à prefeitura do Rio, Brizola falou mais uma vez sobre sua origem metodista. A coluna de Danuza Leão, de 18 de maio de 2000, no Jornal do Brasil, falou sobre o encontro. “O engenheiro condenou quem mistura política com religião, falou de sua amizade com um velho pastor metodista de Porto Alegre e terminou fazendo uma revelação que deixou a plateia em estado de graça: “Se eu não fosse político, seria um pastor”.
Imagem Reprodução do Jornal do Brasil de 18/05/2000 (captada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional).
Nesse período, em reportagem publicada pela Folha de São Paulo, em março de 2000, há uma citação na qual Brizola pede o fim da participação de pastores evangélicos no governo do Estado do Rio de Janeiro. À época, quem comandava o estado era o ex-governador Anthony Garotinho, evangélico e membro da Igreja Presbiteriana e a vice-governadora Benedita da Silva, então membro da Igreja Assembleia de Deus.
Garotinho havia vencido as eleições para governador do Rio, em 1998, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), partido de Brizola. Em 2000, por desavenças entre os dois, Garotinho deixou o partido para se filiar ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), partido pelo qual concorreu à Presidência da República, em 2002.
Em entrevista gravada no programa Câmara Aberta, da TV Câmara, em abril de 2000, o líder do PDT repetiu as críticas específicas à participação política de evangélicos no governo do Estado do Rio e cita o caso do Cheque-Cidadão e do Pastor Everaldo, sem pronunciar palavras na forma pela qual leva crédito (minuto 36:16 a 40:10).
Destaca-se na pesquisa do Bereia que, nas críticas expostas pelo Jornal do Brasil, pela Folha de S. Paulo e na gravação da TV Câmara Aberta, Leonel Brizola usa palavras elaboradas e polidas, dirigidas, dentro de um contexto, a um caso específico no governo do Estado do Rio de Janeiro. Observa-se que o conteúdo e o tom é bem diferente das palavras ásperas e genéricas aos evangélicos dos memes que circulam nas redes atualmente, o que pode ser atribuído ao respeito pela fé evangélica, que é parte das origens dov ex-governador.
Possível confusão entre os personagens
No início do mês de junho, após decisão da Câmara sobre o Projeto de Lei 1904/24, conhecida como “PL do Aborto”, que equipara o aborto acima de 22 semanas de gestação ao homicídio, Leonel Brizola Neto se declarou na mídia social X contra a decisão e criticou o posicionamento de políticos evangélicos sobre o tema.
Imagem: Reprodução X
A fala do neto do ex-governador apresenta um posicionamento semelhante ao do avô. Contudo, as frases são diferentes, não está colocada entre aspas ou com indicação de origem e essa também não legitima a autoria de Brizola na citação em que é considerado visionário.
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Bereia verificou os memes e citações de diferentes fontes nas mídias sociais e identificou que o conteúdo que atribui ao ex-governador Leonel Brizola a frase “Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço, o país retroceder vergonhosamente e matarão em nome de Deus”, é IMPRECISO .
Nas pesquisas realizadas pela equipe não foram encontrados registros que legitimem a autoria da citação. Portanto, não há base suficiente para se afirmar que Leonel Brizola tenha proferido as palavras na forma que amplamente circulam em memes pela internet.
Além disso, uma análise do discurso apresenta diferença entre a forma polida dos registros da abordagem crítica do ex-governador, específica sobre a participação de pastores evangélicos no governo do Estado do Rio, em 2000, e as críticas ásperas e genéricas sobre a presença de evangélicos na política contidas nos atuais memes e outras publicações. Isto levanta dúvida se a frase que hoje circula tenha sido criada e atribuída ao ex-governador, prática comum a outras divulgações de citações atribuídas a diversos personagens da cena pública.
Apesar de o posicionamento crítico de Brizola sobre a participação de evangélicos no governo do Estado do Rio no final dos anos 1990 e início dos 2000, ser evidente em registros de mídias, o fato de o ex-governador ter sido criado em ambiente evangélico, entre outras manifestações positivas em relação ao segmento em sua trajetória, reforça as dúvidas quanto à autoria da frase como está concebida.
* Matéria atualizada às 18:24 para ajuste de título
A partir do último 28 de maio, a morte da artista e empresária Djidja Cardoso tomou repercussão nacional. O caso enigmático ganhou espaço nas mídias e gerou comoção e curiosidade. Por causa de seu papel como “sinhazinha” do Boi Garantido, no Festival Folclórico de Parintins, Djidja era uma pessoa conhecida, e sua morte precoce, aos 32 anos, gerou visibilidade às práticas de cunho místico que sua família assimilou, que incluíam o consumo de drogas ilegais.
A principal suspeita é de que a morte da artista tenha relação com uma overdose de cetamina, droga usada como anestésico, analgésico e no tratamento da depressão, que também causa alucinações e dependência química. Seu uso recreativo é ilegal. A mãe de Djidja, Cleusimar Cardoso, seu irmão, Ademar Cardoso, e funcionários do salão de beleza da família foram detidos, suspeitos de participar de rituais místicos, nos quais faziam uso indiscriminado da droga.
O grupo, que se denominava “Pai, Mãe, Vida”, realizava cultos em que os participantes utilizavam cetamina para, supostamente, alcançar um estado espiritual pleno. Também há suspeita de abuso sexual e cárcere privado envolvendo os rituais, que estão sendo investigadas pela polícia.
O nome “Pai, Mãe, Vida”, que estava presente no perfil do Instagram de todos os envolvidos da família de Djidja Cardoso, faz referência a uma prece encontrada no livro “As Cartas de Cristo“.
Imagem: reprodução/Instagram
O livro em questão foi publicado pela Almenara Editorial, uma editora cujo propósito é “expandir a consciência do leitor nas direções em que o levem a sua jornada pessoal”, para que tais leitores “sejam sustentáculos para a transformação da Terra no atual processo de transição planetária”. Essa obra, de autoria anônima, tem diversos leitores e admiradores no Brasil. É possível encontrar no Facebook, por exemplo, grupos dedicados ao seu estudo, alguns com milhares de seguidores.
Seguidores deste livro afirmam que a obra foi psicografada, ou seja, ditada pelo espírito do próprio Jesus para uma médium inglesa, que preferiu não ser identificada. A obra trata de ensinamentos para “expansão da consciência” e traz uma nova interpretação sobre a vida e os ensinamentos de Jesus, não como uma divindade como no Cristianismo, mas como um ser humano iluminado.
Embora o livro “As Cartas de Cristo” tenha sido encontrado na casa da família Cardoso e ela tenha se apropriado da crença na prece “Pai, Mãe, Vida”, não existe uma relação direta entre o conteúdo desse livro e o uso de psicotrópicos em rituais, nem dos outros seguidores desses ensinamentos, com as práticas ilegais adotadas.
A cobertura da imprensa sobre o caso utilizou fartamente o termo “seita” para se referir à família de Djidja e às pessoas próximas envolvidas nessas práticas.
Imagem: reprodução/G1
Imagem: reprodução/Site Metrópoles
Imagem: reprodução/CNN Brasil
Bereia apurou se caso tem relação com uma seita religiosa, ou se o termo “seita” tem sido usado de forma generalizada e incorreta pela imprensa.
Grupo religioso ou seita? Do que se trata?
Para o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, “seita é um termo de conotação quase sempre pejorativa”. Neto, que é coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, atuando nas áreas de Bioética, Igreja, Sociedade e Cultura e Doutrina Social da Igreja, uma seita é definida por um grupo de pessoas que partilham um conjunto de crenças religiosas ou filosóficas, diferentes daquelas que praticam os grupos hegemônicos. Em síntese, uma seita é uma crença ou uma religião que ocupa posição subalterna em uma sociedade.
Uma seita é sempre uma dissidência, uma nova forma de interpretar e enxergar a realidade. Assim, lançam mão de diferentes artifícios para recrutar e manter os adeptos – como a persuasão -, utilizam uma literatura para basear o grupo intelectualmente e podem até mesmo fazer uso de substâncias alucinógenas.
A American Psychological Association (APA) define uma seita como um “grupo religioso ou quase religioso caracterizado por crenças incomuns ou atípicas, isolamento do mundo exterior e uma estrutura autoritária”.
Para o pesquisador associado do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Clemir Fernandes, ouvido por Bereia, o termo seita é inadequado no caso do grupo familiar “Pai, Mãe, Vida”. Para Fernandes, a reunião
“… de três pessoas de uma mesma família com uso dessas drogas, como descritas nas matérias jornalísticas e que se apropriavam de alguma linguagem religiosa não configura uma seita. Pois seita, sociologicamente, é um grupo que se segmentou de um grupo maior e toma um caminho diferente, às vezes até mais radical.”
No caso em questão, não há indícios de uma dissidência de uma religião maior, e também se trata de um número pequeno de pessoas, com vinculação a uma mesma família. Para o pesquisador, “[esse caso] nem é um grupo religioso também, porque três pessoas de uma mesma família não configuram [um ajuntamento de motivação religiosa], embora tivesse uma ou outra pessoa de fora da família ali naquele conjunto.”
Cobertura desinformativa da imprensa
O pesquisador Clemir Fernandes faz um alerta sobre o uso indiscriminado desses termos (seita e grupo religioso), por parte da imprensa. Para Fernandes, um caso como esse levanta questões de outros campos, dentro da própria relação familiar. Mesmo que haja, sim, o uso de linguagem religiosa e até menção a um livro religioso, não é possível classificar esse grupo como seita ou usar a nomenclatura “grupo religioso”.
O relatório reporta como jornais e portais de notícias relatam os casos de intolerância e violência religiosa que ocorrem no país, demonstrando como a maioria dos casos são mal tratados pelas mídias brasileiras, por desconhecimento, falta de apuração devida e condução a partir de conceitos prévios sobre as religiosidades. O texto indica que, em relação a linha editorial das mídias, dependendo da sensibilidade dada às ocorrências do campo da religião, violência e intolerância religiosa podem ser reprimidas, contempladas ou ainda narradas de modo tendencioso nas pautas.
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Bereia classifica o uso dos termos “seita” e “grupo religioso”, na cobertura da imprensa, no caso da morte de Djidja Cardoso, como impreciso. As circunstâncias envolvidas não dizem respeito, conceitualmente, a uma seita ou a um grupo religioso. Pela dimensão pequena da práticas místicas que estão atreladas ao caso, que dizem respeito apenas ao círculo familiar e a pessoas próximas (funcionários de um salão de beleza), elas não podem ser consideradas práticas de uma seita, mesmo que se utilizem de linguagem religiosa para embasar os atos classificados como ilícitos. Desta forma, esses termos, erroneamente utilizados nas matérias jornalísticas, ganham caráter sensacionalista, não informam e atuam para reforçar preconceitos e intolerância religiosa.
A deputada federal, de identidade religiosa católica, Carla Zambelli (PL-SP) publicou, em seus perfis nas redes digitais, a informação de que os incêndios no Pantanal aumentaram quase 900%, com 880 focos de queimadas nos cinco primeiros meses de 2024, e que este é um recorde desde 2020.
Zambelli aproveitou as mobilizações em torno do Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, que neste ano tiveram como foco a tragédia no Rio Grande do Sul, para atacar o governo federal. Ela criticou o discurso da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil Marina Silva (Rede), divulgado no dia 5, e acusou o presidente Lula da Silva (PT) de cometer ‘barbaridade’. Bereia checou o discurso da deputada.
Imagem: reprodução Facebook
Incêndios no Pantanal
A Organização Não-Governamental (ONG) WWF Brasil, que atua em causas ambientais, divulgou, em 3 de junho, uma análise comparativa entre os registros de focos de queimadas, de janeiro a maio, de 2024 e 2023, que apontou um aumento de 898%. O levantamento, baseado nos dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), também comparou a taxa com a média do mesmo período nos últimos três anos (2021 a 2023) e revelou que os 880 focos, valor cumulativo dos primeiros cinco meses deste ano, é o segundo maior registro dos últimos 15 anos. O maior registro de focos de queimadas, para o mesmo período analisado, ocorreu em 2020, com 2.128 focos.
A analista de conservação da WWF Brasil Cyntia Santos, ao comentar o relatório da ONG, ressalta que a falta de chuvas, a pouca quantidade de água acumulada no território e o acúmulo de matéria orgânica seca, características dos solos pantaneiros, são os principais fatores que intensificam os incêndios.
Ainda sobre o relatório, o especialista em conservação da WWF Brasil Daniel Silva afirmou que “não adianta conservar só um bioma, precisamos ter políticas consistentes para diferentes áreas do país. E, no Brasil, barrar o desmatamento é o ponto mais importante para evitar efeitos ainda mais severos da crise climática”.
Imagem: incêndio no pantanal – Joédson Alves/Agência Brasil (2023)
A publicação da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) apresenta, como fonte, matéria da CNN que divulgou a análise do WWF. A postagem acusa o presidente da República Lula da Silva de “cometer barbárie”, mas não apresenta as causas dos incêndios nem a forma como o líder do governo tem conduzido a situação.
A publicação não explora, tampouco, fenômenos climatológicos em curso que contribuíram para o atual cenário no pantanal. A WWF Brasil afirma que a seca é impulsionada pelo forte fenômeno climático El Niño, que ocorreu no país em 2023 e que, desde o início deste abril, “especialistas já alertavam que o bioma poderia passar, em 2024, por uma de suas piores secas da história”. À época, a chuva no estado de Mato Grosso do Sul estava cerca de 600 milímetros abaixo do esperado.
O documento, com validade de cinco anos, sela o compromisso dos dois estados da federação em gerir um grupo de trabalho composto por equipes técnicas, criar respostas a incêndios florestais, responsabilizar culpados, elaborar mecanismo de monitoramento da fauna silvestre e investir em produção sustentável e turismo.
Em fevereiro deste ano, entrou em vigor a Lei do Pantanal, nova norma estadual de Mato Grosso do Sul para conservação, proteção, restauração e exploração ecologicamente sustentável em toda Área de Uso Restrito do Pantanal, após consultas e negociações feitas pelo Grupo de Trabalho composto por técnicos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), da Procuradoria Geral do Estado (PGE), do Instituto de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul) e da secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação (Semadesc) do Mato Grosso do Sul.
Entre as medidas anunciadas pelo Ministério, estão o lançamento do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Pantanal, na Caatinga, na Pampa e na Mata Atlântica, com previsão de lançamento em 2024. O comunicado expôs, ainda, dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal (Prodes), segundo os quais houve queda de 9,2% no desmatamento no bioma Pantanal, de agosto de 2022 a julho de 2023, na comparação com o mesmo período anterior.
Foi anunciado, também, a criação de um pacto entre o governo federal e os entes estaduais para implementação de ações conjuntas de prevenção e combate a incêndios florestais no Pantanal e na Amazônia. Além disso, foi anunciada a reestruturação da política climática brasileira.
Imagem: reprodução Balanço Geral MMA
Recorde de incêndios (2020)
Em 2020, o Pantanal foi atingido por incêndios históricos. O bioma teve 26% – cerca de quatro milhões de hectares – de sua área destruída pelo fogo. Apesar de ser considerada uma região adaptada a incêndios, que se renova em conformidade aos ciclos de seca e de chuvas, incêndios de grandes proporções provocam perdas significativas de vegetação e de fauna.
As causas dos incêndios à época foram os mesmos fenômenos de seca e falta de chuvas, no entanto, o então presidente da República Jair Bolsonaro declarou, em setembro daquele ano, em discurso apresentado na cúpula de biodiversidade da Organização das Nações Unidas (ONU), que “algumas ONGs” comandavam crimes ambientais no Brasil e no exterior.
Além disso, seu governo não implementou políticas de controle e prevenção e punição. O Ministério do Meio Ambiente, à época comandado pelo hoje deputado federal Ricardo Salles (PL), chegou a anunciar a suspensão das ações contra o desmatamento na Amazônia, em razão de suposta inviabilidade fiscal. O enfrentamento dos crimes ambientais no período foi agravado pelo que foi avaliado como sucateamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Em 2023, a Justiça Federal no Pará aceitou uma denúncia do Ministério Público Federal contra Salles por uma mudança de regras no Ibama, em fevereiro de 2020, que permitiu a exportação ilegal de madeira. O caso, que veio à tona em 2021, já havia resultado no afastamento do então ministro do governo Bolsonaro.
Imagem: reprodução UOL
Naquele mesmo 2021, Carla Zambelli, que já havia reproduzido o discurso de que ONGs colocavam fogo na Amazônia, assumiu a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados. Em seu discurso de posse do cargo, a então deputada não fez qualquer menção aos índices recordes de queimadas e desmatamento registrados durante a gestão Bolsonaro.
Em entrevista ao Jornal da USP à época, o professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Côrtes, disse que, dado o histórico de Zambelli, não era possível esperar que ela defendesse causas ambientais.
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Os dados sobre incêndios no pantanal divulgados na publicação feita pela deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) são verdadeiros e condizem com os números divulgados pela organização WWF Brasil, reconhecida por sua atuação na proteção do meio ambiente. A análise propagada pela deputada alerta para a realidade ocasionada pelas mudanças climáticas, situação enfrentada pelo Brasil e por outros países, independentemente do governo.
A deputada dissemina desinformação, no entanto, ao omitir em sua publicação as causas do fenômeno, além de dizer, sem respaldo na realidade, que o atual presidente da República “está fazendo” o que chamou de “barbaridade”. A deputada também não apresenta o contexto e a realidade do bioma em questão.
O levantamento da WWF Brasil e o alerta de especialistas sinaliza preocupação em evitar o que ocorreu em 2020. Não aponta negligência ou descaso com a situação do Pantanal da parte do atual governo federal, nem responsabiliza qualquer pessoa de forma individual. Bereia considera imprecisa a publicação da deputada.
A omissão deliberada de informações, mesmo quando acompanhada de dados verdadeiros, é uma estratégia política que visa ensejar interpretações limitadas ou exageradas sobre fenômenos e acontecimentos. Especialmente no que diz respeito ao tema ambiental, é necessário entender o fenômeno de maneira completa e buscar, sempre, o que dizem as autoridades no assunto.
Em meio à calamidade que assola o Rio Grande do Sul após enchentes históricas, muitos conteúdos sobre a situação na região são amplamente compartilhados nas mídias sociais, o que acende o alerta de atenção para casos de disseminação de desinformação.
Em apenas 16 dias após o início da tragédia, cerca de 42 páginas na internet foram derrubadas por veicular notícias falsas, e a Polícia Civil do estado investiga 52 casos envolvendo a propagação de mentiras e golpes.
Frente a esse cenário, leitores do Bereia sugeriram a checagem de um vídeo que apresenta a frase “Padre expulsa crianças autistas de abrigo no Rio Grande do Sul”. As imagens apresentam uma discussão entre uma mulher e um idoso, que, ao ser questionado sobre o que teria a declarar sobre a retirada de pessoas desabrigadas de uma igreja, responde: “Eu não tenho nada a declarar, se vocês tivessem se comportado como gente (o final da frase é inaudível)”.
Imagem: reprodução/Instagram
O vídeo enviado ao Bereia foi publicado em 9 de maio e exibe o selo da página do jornal Diário do Vale (veículo regional do sul do Estado do Rio de Janeiro, sediado na cidade de Volta Redonda) no Instagram. Também é possível identificar uma edição que oculta informações: a palavra “padre” sobrepõe um destaque em vermelho com a expressão “denúncia”.
A partir deste indício de uma versão anterior que poderia apresentar mais informações, Bereia encontrou a postagem do influenciador digital Ivan Baron, ativista pela inclusão de pessoas com deficiência. Publicado em 8 de maio (um dia antes do conteúdo do Diário do Vale), além do alerta de “denúncia!”, o vídeo apresenta a frase “Padre expulsa desabrigados no RS de igreja, incluindo CRIANÇAS AUTISTAS, por não se comportarem como gente”.
Imagem: reprodução/Instagram
Bereia checou o conteúdo com base nas questões: o homem do vídeo é mesmo um padre? Quem é a mulher que discute com ele? Qual é a origem do vídeo? Crianças autistas realmente foram expulsas de um abrigo?
Bereia contatou testemunhas do ocorrido e apurou que a história do caso é complexa.
Quem são os envolvidos e qual é a origem do vídeo
Na legenda da publicação do Diário do Vale, o conteúdo repete a afirmação de que crianças autistas, abrigadas na paróquia Santo Antônio, em Alvorada (RS), foram expulsas por um padre.
O texto complementa que o clérigo teria interrompido o fornecimento de luz e água para pressionar a saída de pessoas que haviam sido acolhidas na igreja. A postagem diz, ainda, que o religioso teria afirmado que crianças autistas não estariam se comportando “como gente”.
Imagem: reprodução de postagem do Diário do Vale no Instagram em 9 de maio/Instagram
Bereia verificou que o idoso que aparece no vídeo é o padre Libanor Picetti, responsável pela paróquia Santo Antônio, na cidade de Alvorada (localizada na grande Porto Alegre, RS), há 36 anos. Em entrevista ao veículo Jornal da Semana, pela ocasião de seu aniversário de 70 anos, em 2020, o pároco conta que era um dos cinco padres da arquidiocese de Porto Alegre a ter mais de 30 anos na mesma igreja.
Quando perguntado sobre o que queria ganhar de presente, o padre responde: “Se eu pudesse fazer qualquer pedido, gostaria que os meus paroquianos se dedicassem ao próximo e à caridade, principalmente na criança e no doente. Não quero nada pra mim, mas sim que eles entendam o valor do social”.
Conflito ganhou as redes
A mulher que discute com o padre Libanor Picette no vídeo é a empresária local e influenciadora digital Milena Bittencourt. Quando soube que as vítimas das enchentes teriam sido expulsas do salão da igreja por ordem do pároco, ela o questionou, enquanto gravava as imagens pelo celular. Elas foram repercutidas amplamente nas redes – uma das publicações teve mais de um milhão de visualizações.
Milena Bittencourt contou ao Bereia que, em 7 de maio, foi até a Paróquia Santo Antônio levar doações, e lá foi abordada por pessoas que pediram ajuda para fazer uma live e registrar a situação tensa que estava acontecendo. Foi neste momento que foi gravado o trecho do vídeo, publicado originalmente no perfil da loja da influenciadora no Instagram.
Nas imagens, voluntárias que prestavam apoio às vítimas dos alagamentos dizem que a polícia foi chamada para que todas fossem embora do local. Contam, ainda, que entre os abrigados no salão da igreja havia crianças autistas e uma criança doente, que precisou de atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), na noite anterior.
Ainda na gravação, um voluntário explica que o padre queria que os desabrigados e voluntários se retirassem da paróquia, mas deixassem as doações que arrecadaram: “Ainda bem que a polícia veio aqui e conseguiu falar com ele para nós tirar (sic) as doação (sic)”, disse.
Na sequência, a empresária publicou outros vídeos que mostram a presença de, ao menos, três viaturas da Brigada Militar no local e uma grande mobilização da população para retirar pessoas (principalmente mulheres e crianças), alimentos, colchões e outros itens do espaço da igreja. De acordo com os relatos, todos que perderam suas casas na enchentes precisaram deixar o local. O registro da discussão com Picetti é um dos últimos a ser divulgado e teve mais de 180 mil visualizações atéo fechamento desta matéria.
Procurada pelo Bereia para falar sobre o caso, a paróquia Santo Antônio preferiu não se posicionar.
Padre mandou desabrigados saírem?
De acordo com Bittencourt e com relatos de voluntários no vídeo, a relação entre o padre e os desabrigados foi marcada por uma série de atritos durante o curto tempo em que as pessoas ocuparam o espaço. O grupo teria sido acolhido em 6 de maio, um dia depois de a Defesa Civil emitir um alerta de alagamento para a cidade de Alvorada.
Os primeiros problemas, de acordo com o que é narrado nas imagens, envolveram o acesso à água do poço artesiano da paróquia: Picetti teria desligado o motor do poço algumas vezes por se incomodar com o número de pessoas (incluindo outros moradores da região, que padeciam com a falta de água potável) que buscavam pelo recurso no local. Para contornar a situação, voluntários conseguiram uma caixa d’água e a abasteciam com água retirada de outra localidade.
O padre Picetti também teria se incomodado com o excesso de barulho gerado pelas crianças que brincavam no pátio. Porém, de acordo com testemunhas ouvidas pelo Bereia, não foi essa a principal motivação do pedido para que as famílias saíssem da igreja. A versão completa do vídeo publicado por Milena Bittencourt, confirma que voluntários contam que o grupo foi “convidado a se retirar” do local, após se recusar a aceitar o apoio de pessoas ligadas a políticos locais.
“A gente não quis se envolver com política aqui. Veio um pessoal da Prefeitura e o Dr. Darci aqui, que vai sair candidato a vereador, e ele queria que a gente fizesse parceria, se unisse com ele e com o pessoal da Prefeitura”, disse uma voluntária. Depois da negativa, junto com a ordem para a desocupação do espaço, o padre Libanor Picetti teria pedido para que as doações fossem deixadas na igreja para que uma mulher, de nome Neusa, fosse buscar depois.
Bereia procurou a Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Alvorada para perguntar sobre a suposta visita de funcionários ao abrigo e sobre o envolvimento de Neusa Abruzzi, secretária da pasta, na situação, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem. Darci Barth, médico e ex-vereador do município, também não respondeu ao contato.
Bereia apurou que o nome do MDB, partido para disputar as eleições para a Prefeitura de Alvorada, em 2024, em substituição ao atual prefeito José Arno Appolo do Amaral, que encerra o segundo mandato, é o da ex-secretária de saúde do município Neusa Abruzzi. Ela esteve sete anos à frente da Secretaria de Municipal de Saúde, e assumiu, em agosto de 2023, a Secretaria Municipal de Comunicação Social e Relações Institucionais.
Abruzzi passou a coordenar os projetos do município em conjunto com os governos estadual e federal, nas áreas de segurança, educação, geração de emprego, saúde, infraestrutura e inovação. Com a confirmação da candidatura, Neusa Abruzzi concorrerá, pela primeira vez, a um cargo eletivo.
Bereia tem, em seus arquivos, um vídeo (publicado em um perfil individual no Instagram, mas removido antes desta publicação ir ao ar) que confirma parte da história que veio a público. Em resumo, as imagens são gravadas em uma escada no pátio da paróquia Santo Antônio e registram três minutos de conversa entre voluntários e um homem, que dá a eles um prazo para que saiam da paróquia e deixem parte das doações: “Hoje não vem pessoas? (…) É, vou aguardar até umas cinco horas e depois a gente vai começar a mobilizar essas peças de roupa para outro lugar”.
Uma mulher prontamente responde que o destino das doações será diferente: “Não, isso aqui a gente vai guardar, daí é nosso, a gente vai levar pra um lugar”. Os participantes da conversa discutem sobre o suporte prestado aos desabrigados e não chegam a um consenso.
O homem, que demonstra ser responsável pela paróquia, reforça o prazo para que o local deixe de servir como abrigo. “Então, cinco horas. Não vindo ninguém pra dormir aqui hoje, nós vamos desmobilizar o espaço pra poder também manter a ordem”. Ele diz, ainda, que parte das doações seriam enviadas para outro lugar e a Prefeitura entraria em contato para tratar sobre a situação.
Desse modo, o conteúdo confirma que desabrigados e voluntários receberam uma ordem para deixar o salão da igreja, deixando no local os donativos arrecadados.
O motivo da remoção
Bereia ouviu uma pessoa que prestou apoio aos desabrigados e presenciou os momentos de tensão vividos na paróquia Santo Antônio, em 7 de maio. A testemunha, que preferiu não se identificar, afirma que existe uma relação política entre a paróquia e a Prefeitura. Diz, ainda, que os nomes de Dr. Darci e Neusa foram citados na visita de pessoas que teriam objetivos políticos de se aproximarem do trabalho de acolhida às vítimas da chuva, organizado somente por voluntários.
Sobre essa questão, Milena Bittencourt conta que esses visitantes pediram para fazer fotos do abrigo e levar algumas doações para a Prefeitura, o que gerou a revolta daqueles que coordenaram o apoio aos desabrigados e arrecadaram doações sem ajuda do poder público.
Versão sobre uso de drogas no local
Com a repercussão do caso, comentários em postagens nas mídias sociais relatam uma versão diferente da que é contada por voluntários e testemunhas. De acordo com esses relatos, a motivação para a retirada dos desabrigados seria o comportamento inadequado do grupo, o que envolveria o uso de bebidas alcoólicas, de drogas ilícitas e de rádio em volume alto.
Imagem: reprodução/Instagram
Milena Bittencourt contesta a versão e diz que, se ela fosse verdadeira, a igreja teria as imagens de suas câmeras de segurança como prova. A outra testemunha ouvida por Bereia conta que mora perto da paróquia e não viu tais práticas, que mulheres e crianças eram maioria no local e que, diante de tamanha calamidade, não havia qualquer espaço para o comportamento mencionado.
Fiéis prestam de apoio ao padre
Em 13 de maio, a missa mensal em honra a Santo Antônio foi marcada por manifestações de apoio ao padre Libanor Picetti: fiéis lotaram a igreja e ostentaram cartazes prestando solidariedade ao pároco. No dia anterior, a página da igreja no Facebook fez uma publicação em referência ao caso, e destacou que a postura seria de ignorar o que chamou de provocações.
Imagem: reprodução/Facebook
Imagem: reprodução/Instagram
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Com base na apuração, Bereia conclui que o conteúdo disseminado é impreciso. A frase destacada no vídeo divulgado pelo jornal Diário do Vale 3 e verificado, conforme esta matéria, diz que crianças autistas “foram expulsas” da igreja. De fato elas foram retiradas, de acordo com testemunhas. Porém, a nota viralizada nas redes não informa que essas crianças não foram as únicas removidas do local e que não foram a causa da ação da igreja: todos os desabrigados tiveram que deixar o espaço.
Apesar de o padre Libanor Picetti afirmar, nas imagens, que as pessoas não se comportaram “como gente”, a referência a crianças autistas não é feita por ele nem por Milena Bittencourt no vídeo original. Além disso, relatos de testemunhas indicam que a motivação para a ordem do pároco teria caráter político, diante da recusa dos voluntários e dos beneficiários da ajuda de políticos locais.
Desse modo, a ausência dessas informações pode levar o público a julgamentos errôneos, como uma exclusiva violação de direitos de crianças com deficiência por parte do padre e da igreja. Ainda que tal fato seja, em parte, verdadeiro, o contexto é mais amplo, conforme relatos de testemunhas e o vídeo que registra um representante da paróquia indicando um prazo para que um grupo saísse do local.
O site evangélico Gospel Prime publicou, em 25 de abril, que o casal Thiago e Beatriz Jungerfeld Martins, proprietários da loja Jurgenfeld Ateliê e Fotografia, enfrentam ameaças online após recusarem, com base em seus princípios cristãos, um pedido de serviços para uma cerimônia de “união gay”.
Imagem: reprodução do site Gospel Mais
As ameaças, de acordo com Gospel Prime, incluem mensagens de “violência física e desejos macabros”, têm origem em “usuários que se identificam com a comunidade LGBT” e estariam sendo investigadas pela polícia para garantir a segurança do casal.
Segundo a matéria do Gospel Prime, Thiago e Beatriz Jungerfeld Martins defendem sua postura como uma expressão de fé e não de discriminação. O site destaca a liberdade religiosa como um direito fundamental, o direito de cada cidadão ou empresa agir conforme suas crenças e ressalta a “perseguição enfrentada por cristãos em diversas partes do mundo”.
Bereia checou as informações publicadas por Gospel Prime.
O caso dos convites de casamento
O caso descrito pelo site Gospel Prime veio à tona nas mídias sociais, quando o casal Henrique Nascimento e Wagner Cardoso, teve um pedido de convite de casamento negado pelo estabelecimento comercial Jurgenfeld Ateliê e Fotografia, com alegação de motivos religiosos que não aceitam união homoafetiva, registrou boletim de ocorrência, com a alegação de preconceito. . Henrique Nascimento publicou na plataforma X um trecho da troca de mensagens entre ele e o Ateliê no momento da recusa de atendimento.
A repercussão desse caso trouxe grande visibilidade à empresa. Antes dele, o Ateliê Jurgenfeld contava com pouco mais de dois mil seguidores no Instagram, seguia 44 perfis, exibia 134 publicações e se apresentava como uma loja de artesanato com os dizeres: “Seu sonho merece um atendimento! do interior de SP à qualquer lugar.” [sic]
Imagem: reprodução do Instagram
Após a polêmica, o perfil passou a ter mais de 90 mil seguidores e a seguir apenas quatro perfis, as publicações antigas foram arquivadas e novas publicações de cunho religioso e a respeito dos convites negados foram feitas, com bloqueio de comentários. Além disso, o Ateliê passou a destacar sua confessionalidade religiosa no perfil, como “uma papelaria cristã de convites de casamento produzidos à mão”.
Imagem: reprodução do Instagram
Um dos vídeos publicados na conta do Ateliê no Instagram, apagado depois da repercussão do caso, foi reproduzido na página do canal do YouTube do site Metrópoles. Nele, o casal afirma que recorrentemente nega serviço a casais homossexuais e equipara as críticas à sua escolha de “trabalhar dessa forma” com a própria homofobia:
“Enfim, não quero entrar no mérito da questão, mas nós não fazemos casamentos homossexuais e nem eventos homossexuais. Há algum tempo, basicamente uns dois anos, nós temos negado muito serviço em relação a isso. E hoje, esses dias na verdade, mas hoje em específico foi a gota d’água. Nós dissemos que não iríamos realizar nenhum tipo de casamento homossexual, nós não fazemos esse serviço, e fomos, de certa forma, retaliados por um casal que não aceitou a nossa oposição, não aceitou a nossa opinião, e tem de fato feito alguns comentários aqui no nosso Instagram, tanto da fotografia quanto do ateliê. Enfim, tem feito alguns comentários aqui no nosso Instagram falando sobre isso, dizendo que homofobia é crime, dizendo do nosso posicionamento. Enfim, eu gostaria de compartilhar isso com vocês, as pessoas que nos acompanham. Eu sei que talvez esse vídeo aqui possa talvez ter pessoas que deixem de nos seguir. De verdade, nós não nos importamos com isso, nós não estamos preocupados com a nossa fama, com as pessoas que não são nossos fãs. Não é isso. Nossa intenção com a fotografia não é essa, nunca foi essa, e nem com os convites de casamento. Então nós nos posicionamos assim e nós agora estamos sendo tachados de homofóbicos. E uma reflexão minha, acho engraçado porque quem tacha as pessoas homofóbicas, dizem que as pessoas que são homofóbicas, entre aspas, têm que aceitar o seu posicionamento, mas ao mesmo tempo não percebem que o argumento que elas usam para validar aquilo que elas acreditam é o mesmo argumento que as acusa também, porque nós temos que aceitar aquilo que elas são, mas é, as pessoas não podem aceitar que nós escolhemos fazer dessa maneira e trabalhar dessa forma” (Fala de Thiago Martins em trecho do vídeo publicado pelo Metrópoles).
Em seguida, os donos da loja publicaram uma nota de repúdio, que também já foi retirada do Instagram, indicando que estão sofrendo “heterofobia”. Afirmam também que defendem a “família como ela é” baseada no texto bíblico de Gênesis, condenam a busca por “privilégios” pelo homossexuais e fazem críticas pontuais à Rede Globo e à cantora Anitta, associadas à “galera” politicamente correta.:
A única publicação sobre o caso dos convites que continua na página do Instagram do Ateliê é bem mais branda do que as duas publicadas anteriormente. Nela, o casal afirmou que apesar de não ter buscado essa “fama”, veem um propósito divino em tudo e se alegram em honrar a Cristo.
Os donos da loja agradecem as mensagens de apoio recebidas, a solidariedade de vários advogados que se ofereceram para ajudar legalmente, e a Polícia Civil de Pederneiras, pela atenção ao caso. Eles também mencionam o apoio de deputados e senadores, destacando que o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e outros parlamentares defenderam sua causa. Agradecem aos amigos que os apoiaram durante esse período turbulento e pedem desculpas por qualquer ódio dirigido a eles.
Finalmente, afirmam perdoar aqueles que os ofenderam ou ameaçaram, e pedem a Jesus que lhes dê graça para manter um diálogo respeitoso e sabedoria para seguir em frente. Concluem citando Tiago 1:2-4, que fala sobre considerar as provações como motivo de alegria por produzirem perseverança.
Não foram encontradas, nas publicações, evidências das ameaças sofridas pelo casal, referentes a “violência física” e “desejos macabros”, como mencionado pela matéria do Gospel Prime. O Ateliê foi contactado pelo Instagram, mas até o fechamento desta matéria ainda não forneceu resposta.
A matéria checada pelo Bereia menciona dois pontos dignos de esclarecimento: a questão jurídica da liberdade religiosa envolvida no caso e o assunto da suposta perseguição a cristãos no Brasil e no mundo.
Liberdade religiosa X discriminação
O Brasil é um dos países recordistas de casos de discriminação e violência contra pessoas homoafetivas. Segundo dados do Dossiê do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, publicado em 2023, foram 273 vítimas de crimes de identidade de gênero ou sexual no Brasil. Este número equivale a dois assassinatos de pessoas LGBTQIA+ a cada três dias em 2022. Os assassinatos atingem mais mulheres trans e travestis: foram 159 casos (58%), segundo o relatório. Homens gays aparecem com 97 óbitos (35% das ocorrências). A maioria das mortes resultam de circunstâncias violentas, com armas de fogo, esfaqueamento, espancamento e apedrejamento.
O artigo 5° da lei afirma que qualquer estabelecimento comercial aberto ao público não pode negar atendimento que se caracterize como discriminação. Portanto, o sistema jurídico brasileiro reconhece que qualquer conduta discriminatória em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero, incluindo a negação de atendimento e prestação de serviço por parte de uma empresa, é passível de punição.
Nesse sentido, a Justiça entende que não há justificativa que não seja discriminatória para que um casal homossexual seja impedido de encomendar convites de casamento, principalmente com a afirmação expressa, por parte da própria empresa, de que a negação de atendimento se deu por causa da orientação sexual dos possíveis clientes. Segundo o advogado e jornalista André Eler ouvido pelo Bereia, “no contexto do Brasil não faz sentido dizer que uma alegação de consciência ou liberdade religiosa seja suficiente para que uma empresa negue um serviço com base em discriminação de orientação sexual”.
Portanto, de acordo com esta orientação, por se tratar de uma relação jurídica em que uma empresa se nega a prestar serviços por causa da orientação sexual de uma pessoa, a justificativa da liberdade de consciência religiosa não é válida nesse contexto.
Perseguição dos cristãos pelo mundo
Quanto à afirmação de que este é um caso de perseguição religiosa, atribuída a aliados do casal homoafetivo, que reagiram à postura do casal dono da empresa, ela também é imprecisa e injustificada. Como já abordado por Bereia, o termo “cristofobia”, entendido como uma perseguição a cristãos em países em que esse grupo religioso é majoritário, se trata de uma falácia que é instrumentalizada politicamente, com frequência.
Nesse contexto, a ideia de que os cristãos estejam sofrendo perseguição ideológica, fomenta disputas no cenário religioso e político e é associada principalmente aos que se alinham a um conservadorismo no que se refere a pautas morais. Mesmo que os cristãos sejam a maioria no país e tenham plena liberdade de prática da fé, lutas antidiscriminação e iniciativas de inclusão de grupos historicamente marginalizados, que oferecem orientação distinta a de certas doutrinas e teologias, são interpretadas como noções e práticas contra o certos grupos religiosos, em especial, determinados cristãos. Com isso, são utilizadas para criar uma noção de inimigo em comum.
Essa noção toma outros contornos quando associada, nos contextos religiosos, com a ideia de “batalha espiritual”, que entende a vida pública e a arena política como um espaço de disputa entre forças espirituais do bem e do mal. A ideia de batalha convoca os cristãos a se posicionarem a favor dos “princípios e valores cristãos”, entendidos geralmente como relacionados ao conservadorismo moral, e faz com que esse grupo se veja como atacado quando é confrontado em suas posturas discriminatórias.
Bereia já checou vários conteúdos sobre o tema e mostrou como o assunto da “perseguição aos cristãos” tem sido instrumentalizado por lideranças extremistas de direita, por meio de notícias de cunho duvidoso para criar pânico no público cristão. Este tema tem um histórico de ser utilizado em época de eleições para direcionar a preocupação das pessoas religiosas contra políticas progressistas, com disseminação de pânico moral sobre grupos de esquerda terem intenções de acabar com as igrejas do Brasil. Isto é falso pois carece de elementos factuais.
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Bereia classifica a matéria de Gospel Prime sobre os donos do Ateliê como imprecisa.
Os dados relativos ao caso em si são verdadeiros: houve a recusa por parte do Jurgenfeld Ateliê de prestar o serviço de confecção de convites de casamento ao casal Henrique Nascimento e Wagner Cardoso, expressamente por se tratarem de homossexuais, como comprovado nas próprias mídias digitais dos dois lados envolvidos.
Porém, não foi verificada a ocorrência de ameaças de violência física ao casal. Estas não foram tornadas públicas pelo casal, dono da empresa, que também não respondeu ao contato do Bereia.
Além disso, as afirmações da matéria sobre a dimensão jurídica desse caso, assim como sobre o contexto mais amplo de afirmação de perseguição religiosa a cristãos, são falsas e se inserem em uma narrativa de desinformação ideológica, pauta extremista de direita..
A recusa do Jurgenfeld Ateliê de prestar serviços a um casal homossexual, com base em sua orientação sexual, coloca em evidência um conflito cada vez mais perceptível entre o direito à liberdade religiosa e o combate à discriminação no Brasil. A posição adotada pela empresa, embora respaldada por suas crenças religiosas, entra em confronto direto com a legislação brasileira, que equipara o preconceito sexual e de gênero ao crime de racismo, com a proibição expressa a discriminação por orientação sexual em serviços públicos e privados. Isto significa que quem se vê impedido a prestar serviços a qualquer cidadão, no seu direito de consumidor, não deve atuar no ramo.
O caso também ressalta a utilização de narrativas de perseguição religiosa em contextos políticos e sociais, frequentemente empregadas para fortalecer posições conservadoras, de cunho extremista, especialmente em períodos eleitorais. A alegação de perseguição, muitas vezes desprovida de evidências concretas, como demonstrado pela ausência de provas nesta direção, referentes às ameaças de violência alegadas, pode desviar a atenção do cerne da questão: a necessidade coexistir com respeito e igualdade de direitos para todos, independentemente das diferenças, de vários tipos, entre cidadãos.
* Matéria atualizada em 20/03/2024 às 09:28 para correção de título
O portal de notícias gospel Pleno News publicou, em 11 de março passado, matéria, baseada em reportagem do jornal O Estado de São Paulo, sobre acordos milionários que o governo federal, por meio do Ministério da Saúde, teria firmado em contrato com a empresa Piquiatuba Táxi Aéreo, acusada de envolvimento com garimpo ilegal. A publicação traz imagem do presidente Lula da Silva ao lado da ministra da saúde Nísia Trindade. Bereia checou os fatos.
Imagem: reprodução Pleno News
Governo Lula, Piquiatuba Táxi Aéreo e o garimpo ilegal no Brasil
Na mesma data, o jornal o Estado de S.Paulo resgatou, e transformou em notícia, a informação da contratação feita no ano passado, por parte da atual gestão do governo federal, de uma empresa ré por associação ao garimpo ilegal, para atendimento de demandas do Ministério da Saúde.
Imagem: reprodução O Estado de S.Paulo
Após a publicação do Estadão, veículos noticiosos declaradamente de direita, entre eles o portal de notícias gospel Pleno News, repercutiram a informação de forma sintética.
Contratos vigentes entre Ministério da Saúde e empresa de táxi aéreo
Conforme o painel do Ministério da Saúde, três contratos para prestação de serviço de fretamento de aeronave com a Piquiatuba Táxi Aéreo estão ativos, dois deles iniciados em 2023. Os acordos foram firmados em junho e agosto do ano passado, nos valores de 6,8 milhões e 7,5 milhões, respectivamente, ambos com validade de um ano.
Os contratos são firmados pelos Distritos Sanitários Especiais Indígena (DSEIs), unidades gestoras do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). No caso do acordo assinado em 19 de junho de 2023 com a Piquiatuba Táxi Aéreo, o contrato foi fechado com o DSEI Rio Tapajós, já o efetivado em 4 de agosto de 2023, com o DSEI Kaiapó do Pará.
Os dados informados pelo painel do Ministério da Saúde foram gerados a partir de informações oficiais repassadas pela Secretaria de Saúde Indígena (SESAI). A pasta é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do SasiSUS no Sistema Único de Saúde (SUS).
Imagem: reprodução Ministério da Saúde
Acusação de ligações com o garimpo
Segundo informações do jornal Estado de São Paulo, a Justiça Federal aceitou, em maio de 2021, denúncia contra a Piquiatuba Táxi Aéreo, que tem sede em Santarém (PA). De acordo com a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF), a empresa teria utilizado aeronaves em proveito de um garimpo na Reserva Biológica Maicuru, no Pará.
Edson Barros da Silva e Patrick Paiva da Silva, sócios da empresa, são acusados de atuação na extração ilegal de ouro em região conhecida como Garimpo do Limão, localizada próxima a territórios indígenas. O fundador da empresa Armando Amâncio da Silva teria arrecadado R$13,4 milhões com a venda de ouro e em sua casa foram encontrados cerca de 45Kg do ouro ilegal.
Entre 2010 e 2022, a empresa firmou 24 contratos com o governo federal. Em 2023, dois novos contratos foram formalizados entre as partes, em valores que chegam a R$14,4 milhões. Denunciada em 2021, a empresa responde ainda em primeira instância.
Em 2023, uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontou irregularidades em contratos entre o Distrito Sanitário Especial Indígena Guamá-Tocantins (Dsei-Guatoc) e a Piquiatuba Táxi Aéreo Ltda. De acordo com a CGU, havia evidências de subcontratação irregular de terceiros, uso de aeronaves com capacidade técnica inferior à exigida no contrato, pagamentos sem documentos mínimos e indícios de superfaturamento no quantitativo de horas de voo.
Posição do governo face às acusações
Em nota ao Estadão, o Ministério da Saúde disse que acompanha atentamente a conclusão dos inquéritos e que suspenderá quaisquer relações com empresas comprovadamente envolvidas em atividades ilegais. A pasta alega que o fretamento de voos é fundamental nas ações de promoção da saúde em territórios indígenas, que são de difícil acesso.
De acordo com a Lei 14.133/2021, que versa sobre licitações e contratos administrativos, a revogação de um processo licitatório deve ser resultante de um fato devidamente comprovado após a realização da licitação. O caso que envolve a empresa contratada ainda está em trâmite na Justiça
As matérias publicadas pelo Estadão e pelo site gospel Pleno News omitem que um dos contratos do governo federal com a Piquiatuba Táxi Aéreo foi feito com o Ministério da Justiça, pasta à qual a Fundação Nacional do Índio (Funai) está subordinada.
Ao jornal O Globo, o Ministério da Justiça afirmou que realizou todas as diligências devidas, como consulta de todas as certidões públicas ligadas à empresa. A pasta afirma, ainda, que “não compete ao órgão a realização de investigações criminais de empresários supostamente vinculados às empresas contratadas pela Administração Pública”.
O Ministério da Saúde, por sua vez, informou ao jornal que o contrato com a empresa em questão cumpre todos os requisitos legais e visa a garantir a assistência prestada aos povos indígenas.
Greenpeace e MapBiomas mostram expansão do garimpo no Brasil
De acordo com um recente levantamento da organização ambiental Greenpeace, em 2023, foram devastados 1.410 hectares em terras indígenas, principalmente nos territórios dos povos Kayapó, Munduruku e Yanomami.
Imagem: reprodução MapBiomas (expansão do garimpo 2000-2022)
Segundo o Greenpeace, a região com mais avanço garimpeiro é justamente a terra indígena Kayapó, que teve 1.019 hectares devastados. Imagens de satélite mostram que o garimpo na TI Kayapó se concentra na parte leste do território.
Imagem: Google (área de garimpo na terra indígena Kayapó)
Em janeiro passado, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) emitiu nota técnica em que apontou a continuidade das atividades garimpeiras ao longo de 2023. A nota diz que apesar de o governo federal ter decretado, em janeiro de 2023, estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), “o caminho para a recuperação territorial e sanitária da TI Yanomami ainda é longo e muitos ajustes precisam ser feitos”.
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Bereia classifica o conteúdo checado como impreciso. A notícia publicada pelo portal gospel Pleno News dispõe de conteúdos verdadeiros, mas não considera diferentes perspectivas. Embasado totalmente na publicação de apuração limitada do jornal O Estado de São Paulo, o texto não apresenta a contextualização necessária.
Ao contrário de outros veículos de comunicação que buscaram documentação e posição jurídica detalhada – como explicações de que um processo licitatório em plena execução deve ser revogado após comprovação de irregularidades, o que ainda não aconteceu, já que o caso está em andamento na Justiça- a matéria do Pleno News priorizou o ataque ao governo federal, especificamente ao Ministério da Saúde.
Em detrimento de uma apuração minuciosa, a publicação se alinha a um discurso que mira na pasta como alvo de denúncias, pauta proposta e sustentada pelo fisiologismo de partidos do dito Centrão, contra a ministra da saúde Nísia Trindade, desde o ano passado. A publicação constrói um caminho para julgamentos errôneos sobre a atual gestão do Ministério da Saúde. O conteúdo é, portanto, desinformação e carece de complementações.
Bereia incentiva que seus leitores busquem informação de qualidade e estejam sempre atentos à utilização de manchetes acusatórias e a conteúdos que não detalham os fatos transcorridos em sua inteireza.
Os principais veículos de comunicação no Brasil repercutiram dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e apresentaram uma análise comparativa entre a quantidade de templos religiosos e instituições de ensino e de saúde, no início de fevereiro.
As matérias jornalísticas enfocaram o número maior de estabelecimentos religiosos em relação à soma dos estabelecimentos de ensino e de saúde, e apresentaram outros aspectos da pesquisa de forma secundária. A abordagem ganhou repercussão política nacional, em mídias mais à direita e à esquerda, assim como em portais regionais, que aplicaram recortes da informação difundida.
Figuras públicas e ativas nas mídias sociais também sustentaram a mesma abordagem dos dados e chegaram a questionar a secularidade e colocar a laicidade do Estado brasileiro em questão. Em contrapartida, pesquisadores da religião apontaram inconsistências nesta interpretação dos dados.
Censo 2022: dados e informações divulgados pelo IBGE
O IBGE divulgou, pela primeira vez, as coordenadas geográficas das espécies de endereços do país, coletadas durante o Censo 2022. Os dados foram detalhados por município e cada espécie corresponde a uma finalidade do endereço.
Imagem: reprodução do site do IBGE
Ao todo, foram catalogadas oito espécies de endereço: domicílio particular (90,6 milhões), domicílio coletivo (104,5 mil), estabelecimento agropecuário (4,05 milhões), estabelecimento de ensino (264,4 mil), estabelecimento de saúde (247,5 mil), estabelecimento de outras finalidades (11,7 milhões), edificação em construção (3,5 milhões) e estabelecimento religioso (579,8 mil).
Os dados coletados e estruturados pelo IBGE integrarão o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), a base de endereços usada no Censo Demográfico, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS).
Após a divulgação oficial pelo IBGE, diversos veículos da mídia repercutiram os dados, apontando, principalmente em manchetes, a diferença entre o número de estabelecimentos religiosos e o número de estabelecimentos de educação e de saúde.
O jornal Folha de S. Paulo veiculou, já na manhã de 2 de fevereiro, a manchete “Brasil tem mais espaços religiosos do que de educação e saúde juntos, aponta Censo”. O portal G1, por sua vez, publicou: “Brasil tem mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos; Região Norte lidera com 459 para cada 100 mil habitantes”.
Imagem: reprodução Folha de São Paulo
Imagem: reprodução G1
Foi assim, também, com a Revista Exame (“Censo 2022: Brasil tem mais igrejas e templos do que escolas e hospitais somados”), com o portal UOL (“Censo: Brasil tem mais igrejas que soma de escolas e hospitais”) e diversos outros sites. A Agência Brasil, que integra o sistema público de comunicações, também optou por destacar a comparação: “Brasil tem mais estabelecimentos religiosos que escolas e hospitais”.
Imagem: reprodução Exame
Imagem: reprodução UOL
Alguns intelectuais e pensadores brasileiros divulgaram os dados nos mesmos termos, sempre comparando o número de estabelecimentos seculares e religiosos. Em alguns casos, as publicações, em mídias sociais, adotaram tom crítico à configuração de endereços. Em seu perfil no X, o professor e pesquisador do Pietro Dell’ova associa os dados à “multiplicação de stalinistas, bolsonaristas, miseráveis, moribundos, etc.”. A doutora em literatura em língua inglesa e professora da UFC (Universidade Federal do Ceará) Lola Aronovich compartilhou, também, no X, a notícia com o comentário “sinal de atraso”.
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Já a antropóloga Lilia Schwarcz, em seu perfil no Instagram, teceu comentários sobre o dados e comparou o cenário brasileiro com o da Europa ocidental: “Tais dados ajudam a demonstrar como, na prática, como o Brasil, apesar de ser formalmente um estado secular, não é ainda um país pouco secularizado quando comparado a outros, como na Europa ocidental”, escreveu.
Críticas à cobertura enviesada
O teólogo, mestre em filosofia e em religião e sociedade e diretor de programas no Instituto de Estudos da Religião (ISER) Ronilso Pacheco questionou, em seu perfil no X/Twitter, a cobertura dos dados pela imprensa: “O Reino Unido tem mais templos que escola e hospitais. A França tem mais igrejas que escolas. Porque esse dado básico está sendo noticiado como surpreendente?” indagou.
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Em sua crítica à forma como a imprensa tratou os dados do IBGE, Pacheco reflete: “Analistas políticos e comentaristas passaram o dia comentando isso como se fosse razoável achar que para cada templo (não apenas de igreja) que se abre, uma escola e um hospital deixam de ser construídos ou perdem investimento, ou relevância. Além disso, claro, o reforço do estereótipo de que as igrejas crescem porque o estado é ausente. Mais uma vez, vitória da ideia elitista de que as pessoas na periferia só são crentes porque são pobres e não tem assistência do estado, não é mesmo?”.
Em entrevista ao Bereia, o pesquisador no Instituto de Estudos da Religião (ISER) e professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV ECMI) Matheus Pestana também criticou a forma como os dados foram explorados na mídia. “O número de pessoas que acessa um hospital, uma escola, tem interseções com o público que acessa os estabelecimentos religiosos, mas são coisas completamente distintas e incomparáveis. No meu entender, o equívoco está aí. É uma comparação que, para mim, não fez sentido nenhum, nenhum. São estabelecimentos de natureza distinta”, afirmou.
Pestana destaca a importância dos dados compilados pelo IBGE na construção de políticas públicas: “É importante entender que esses dados são bastante valiosos para o poder público no desenho de políticas públicas. São dados que vão delinear a ação do governo, em auxílio à população e à configuração urbana existente (…). Na maioria dos municípios, isso era um dado que não existia. Os dados são ótimos. É louvável a iniciativa do IBGE.”
Mas o pesquisador reforça que o entendimento dos dados “de forma alarmante” é equivocado: “Se tivermos 500 mil igrejas e 300 mil escolas, vamos construir mais 200 mil escolas para equiparar ao número de igrejas? Isso não faz sentido. Isso vai mudar alguma coisa? Efetivamente, não. A gente esquece que o público que vai para a escola também vai para a igreja; o público que vai para a igreja, frequenta hospital; só que em questão de volume, são coisas completamente distintas. Escolas, por exemplo, concentram algumas faixas etárias; igrejas contemplam todo o segmento da sociedade Enfim, não faz sentido”.
O pesquisador e professor também abordou a questão da laicidade, levantada por algumas figuras públicas nas mídias sociais. “Alguns comentaristas disseram que, apesar de o Brasil ser, formalmente, um Estado secular, quando a gente compara com outros países – e o exemplo, claro, vem do Norte global – é um país pouco secularizado porque tem muita igreja. Isso não faz sentido.”
Por fim, Pestana aborda as tendências recentes no que diz respeito ao confessionalismo na população brasileira. Em sua percepção, alguns comentaristas teriam conectado os dados do IBGE com o crescimento de grupos evangélicos no país, algo que não necessariamente seria verdadeiro.
“Existem estudos que falam do crescimento dos estabelecimentos evangélicos, mas isso é outra coisa, não está sendo pautado [pelos dados recém-divulgados pelo IBGE]. Essa repercussão é bastante curiosa e mostra, de certa forma, um ataque da mídia ao campo religioso e um não entendimento do brasileiro enquanto um povo com uma dinâmica religiosa que a gente tem. Na verdade, isso não tem problema nenhum. Religião é cultura também e é algo importante de ser considerado”, afirma Matheus Pestana
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Após avaliar a cobertura da imprensa e a abordagem amplamente difundida nas mídias sociais sobre os dados do IBGE segmentados por espécies de endereço, Bereia classifica o viés adotado como impreciso. De maneira geral, as notícias e declarações sobre o tema apresentam dados verdadeiros, mas não consideram diferentes perspectivas e não contextualizam o fenômeno religioso no Brasil de modo a justificar a abordagem adotada.
O IBGE não fornece conclusões de qualquer natureza ou mesmo indícios de que os dados expliquem o cenário da religião no Brasil. A abordagem amplamente difundida nos meios digitais de comunicação pode levar o público a julgamentos errôneos sobre determinados grupos, instituições, organizações, associações ou movimentos sociais e constituir fonte de intolerância.
No último 28 de agosto, o portal de notícias Gospel Prime veiculou informações de uma pesquisa que apontou evangélicos como maioria na América Central, em matéria com o título “Evangélicos já são maioria na América Central, diz pesquisa”.
Sem apresentar detalhes sobre a metodologia utilizada, o site também divulgou informações sobre o comportamento da população religiosa e apresentou dados sobre liberdade religiosa na região.
Imagem: reprodução Gospel Prime
Bereia apurou informações sobre a pesquisa utilizada.
Dados apresentados pela pesquisa
O site religioso Gospel Prime traz, em manchete, a informação de que evangélicos já são maioria na América Central. No texto veiculado, o portal de notícias destaca que 42% dos habitantes da região identificam-se como protestantes, enquanto 39,9% identificam-se como católicos romanos.
Para reforçar o papel evangélico na composição social centro-americana, o site traz, ainda, dado segundo o qual a Igreja Católica teria perdido, entre 1950 e 2023, 60% dos fiéis na Nicarágua. Outro dado exposto é o de que cristãos evangélicos estariam mais comprometidos com atividades religiosas e com a leitura da Bíblia.
As informações utilizadas pelo site são da segunda edição da pesquisa “Afiliación, Participación y Prácticas Religiosas”, estudo conduzido na América Central durante o primeiro semestre de 2023 e que entrevistou mais de 3 mil pessoas. A pesquisa afirma que o nível de confiança de seus resultados chega a 95% e os dados apresentam margem de erro de 1.65% para mais ou para menos.
O estudo também apresenta diversos dados relacionados ao fenômeno religioso, sendo o primeiro deles a migração religiosa do catolicismo para o protestantismo na América Central. Entre os entrevistados, 58% disseram ter sido educados no catolicismo, sendo que mais de 10% teriam migrado para o protestantismo, 6,9% para correntes sem denominação, e 0,4% teriam simplesmente abandonado a religião.
Em todos os países contemplados pelo estudo – Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá – houve diminuição do número de católicos e aumento do número de protestantes. Outras informações expostas pela pesquisa dizem respeito a práticas religiosas como frequência de orações, frequência de leitura da Bíblia, presença em cultos ou missas, contribuição com o dízimo, questões relativas à educação sexual e uso de contraceptivos, homossexualidade, aborto, entre outros.
Ao final, o estudo volta ao tema da proporção populacional de diversas correntes religiosas. A informação dá conta de que, especificamente na Nicarágua, observou-se, desde 1950, queda da população católica. A pesquisa não informa como os dados históricos foram obtidos ou coletados.
Informações sobre a instituição de pesquisa
A segunda edição da pesquisa sobre prática religiosa na América Central foi realizada pela M&R Consultores. Em seu site oficial, a instituição define-se como uma agência de inteligência de mercado da Nicarágua, fundada em 1991. A página informa, ainda, que a organização está em processo de expansão, já que, atualmente, realiza estudos na América Latina.
A M&R Consultores apresenta-se como membro da Sociedade Europeia para Pesquisa de Opinião e Marketing (Esomar, na sigla em inglês), fundada em 1947, e é dirigida pelo economista, psicólogo e declaradamente militante cristãoRaúl Obregón Morales. Apesar dos alegados mais de 30 anos de atuação, o estudo mais antigo publicado no site da instituição é de 2020. Nas mídias sociais, o perfil da organização tem poucos seguidores e quase nenhuma interação.
Imagem: reprodução Instagram
Dentre as pesquisas realizadas pela M&R Consultores, há diversas edições sobre a aprovação do governo de Daniel Ortega (FSLN), presidente da Nicarágua desde 2006. Bereia identificou alguns questionamentos acerca da credibilidade destas informações.
Reputação e credibilidade da M&R Consultores
O jornalista nicaraguense Miguel Mendoza contestou, em dezembro de 2019, as técnicas de pesquisa utilizadas pelo gerente geral da M&R Consultores Raúl Obregón Morales, em seu perfil do X, Twitter à época. Um dos comentários na publicação suscita a possibilidade de fraude nas eleições para corroborar os dados da pesquisa.
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Na mesma época, o advogado e cientista político Adolfo Miranda Sáenz, colunista do jornal nicaraguense La Prensa, escreveu sobre as falhas técnicas do estudo. “A última pesquisa de M&R Consultores, me surpreendeu porque tem, segundo o que se lê publicado por eles em sua página na web, várias falhas técnicas que prejudicam a credibilidade”.
Em 2021, o portal de notícias Geopolitical Economy publicou uma reportagem sobre a popularidade da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) na Nicarágua, e tomou como base a 9ª pesquisa pré-eleitoral, de novembro de 2021. O texto aponta a M&R Consultores como “a principal empresa de pesquisas na Nicarágua” e pontua que a instituição “costumava ser regularmente citada pelos principais meios de comunicação, como a Reuters”, mas passou a ser ignorada por questões políticas.
O portal de notícias Nicarágua Investiga, em matéria publicada em 2022, divulgou que a M&R Consultores havia apontado a aprovação do governo do casal Ortega em 71,2%, e afirmou que a consultoria CID Gallup revelou em outubro de 2021, antes mesmo das eleições, que apenas 8% da população era favorável a manutenção da FSLN no poder.
Ritmo de crescimento da população evangélica em países da América Central
O professor da Universidad del Pacifico, no Peru, e vice-presidente do Instituto de Estudos Sociais Cristãos (IESC) José Luis Pérez Guadalupe, em entrevista ao Bereia, afirma que a tendência geral, desde os anos 1970, é de crescimento da população evangélica e diminuição da população católica, principalmente na América Central, mas há particularidades.
Segundo Pérez, é possível que, a partir de 2030, países como Nicarágua, Honduras e El Salvador passem a ter mais evangélicos do que católicos, realidade, porém, ainda não concretizada. Já em países como Costa Rica e Panamá, o cenário é diferente. O crescimento evangélico também é uma realidade, mas este segmento ainda representaria entre 20% e 25% das respectivas populações.
Outro aspecto que Pérez pontua é que a identidade religiosa, hoje, é cada vez mais fluida, o que torna comum que pessoas adeptas a diferentes religiões frequentem cultos de outras denominações, por exemplo. O professor destaca que, mais do que a mera identificação, o compromisso de cada comunidade com sua respectiva denominação é que constitui o dado mais importante.
Indagado sobre a qualidade da pesquisa divulgada pelo site Gospel Prime, Pérez afirma que, quando se trata de governos ditatoriais e autoritários, não se pode confiar em dados oficiais ou em supostos institutos de pesquisa. “Nas ditaduras, a primeira vítima é a verdade”, afirma.
Outros estudos sobre o assunto
Bereia buscou uma fonte relevante, não comprometida com o mercado, para comparar com os dados divulgados pelo Gospel Prime e chegou aos levantamentos realizados pelo Latinobarómetro, uma organização não-governamental (ONG) sem fins lucrativos com sede em Santiago do Chile. A ONG declara ter o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da democracia, da economia e da sociedade como um todo, através de indicadores de opinião pública que medem atitudes, valores e comportamentos.
A Pesquisa Latinobarômetro é um estudo de opinião pública que aplica anualmente cerca de 20.000 entrevistas em 18 países latino-americanos, representando mais de 600 milhões de habitantes. Os resultados do Latinobarómetro são usados por acadêmicos, agentes públicos e governamentais, produtores de mídias, meios de comunicação, entre outros atores sociopolíticos da região e internacionais.
Enquanto a pesquisa elaborada pela M&R Consultores, e repercutida pelo Gospel Prime, afirma que a população evangélica na América Central chega a 42%, dados da ONG chilena mostram números menos expressivos. O relatório Latinobarómetro de 2020 aponta que o número de evangélicos na América Central era de 31,3%, chegando a 34,7% quando consideradas as categorias “evangélicos sem especificar”, “batistas”, “metodistas”, pentecostais”, “adventistas” e “protestantes”.
Imagem: reprodução Latinobarómetro
Os números para a população católica também divergem. Enquanto M&R Consultores e Gospel Prime afirmam que os católicos representam 39,9% da população na região centro-americana, os dados do Latinobarómetro 2020 apontam representatividade de 46,1% deste segmento.
A discrepância entre as duas pesquisas chama mais atenção no caso da Nicarágua que, segundo M&R Consultores, tem 47,5% da sua população identificada como evangélica. O Latinobarómetro 2020 demonstra que a parcela deste segmento religioso representa 38,7% no país em questão.
Ainda a respeito da Nicarágua, a pesquisa divulgada pelo Gospel Prime apresenta um gráfico sobre a evolução da presença de católicos e não católicos no país, desde 1950. Afirma-se que a presença católica no país saiu de 95,8% em 1950 para 41,8% em 2020. Já o Latinobarómetro, afirma que os católicos representavam 44,9% da população nicaraguense em 2020.
Liberdade religiosa na América Central
Outro dado também apresentado pela pesquisa da M&R Consultores, que foi omitido pelo site Gospel Prime, diz respeito à liberdade religiosa na América Central. Segundo a pesquisa, 92,7% da população centro-americana considera que têm liberdade de religião. Entre os grupos religiosos, 91,3% dos católicos, 94,2% dos protestantes e 93,1% dos crentes sem denominação teriam afirmado que há liberdade religiosa na região.
A pesquisa traz, ainda, os dados sobre a percepção de liberdade religiosa em cada país. Excetuando-se a Nicarágua, que apresenta 82,6% de respostas afirmativas para a existência de liberdade religiosa, todos os outros países pesquisados pontuaram acima dos 90% (Guatemala: 95,9%; El Salvador: 95,8%; Honduras: 94,6%; Costa Rica: 90,9%; Panamá: 96,7%).
O relatório Informe 2021 elaborado pela Latinobarómetro revela que 68% dos cidadãos da América Latina percebem que têm garantias de escolher livremente a sua religião. O percentual está oito pontos percentuais abaixo do valor registrado em 2018 e 2017 (76%). A diferença é a mais elevada desde quando o indicador começou a ser medido, em 2007.
Imagem: reprodução Latinobarómetro
Além dos dados do Latinobarómetro, o Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo – 2023 publicado bienalmente, desde 1999, pela organização Aid to the Church in Need (ACN) – Ajuda à Igreja que Sofre –, ligada à Igreja Católica, revela dados diferentes sobre a liberdade religiosa na Nicarágua, país de origem da pesquisa elaborada pela M&R Consultores.
Enquanto na pesquisa da M&R Consultores o país aparece com 82,6% de liberdade religiosa percebida, o Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo, da ACN, destaca negativamente o país. A ACN salienta que, pela primeira vez, a Nicarágua foi incluída na categoria “perseguição”.
“Isso se deve à forte opressão que o governo Ortega continua a exercer sobre a Igreja Católica, cujas ações incluem, entre outras, a expulsão do núncio apostólico e das congregações religiosas, o exílio forçado de sacerdotes, a privação do estatuto jurídico de entidades e organismos religiosos, a perseguição aos sacerdotes, o cerco a igrejas, a detenção arbitrária de líderes e fiéis religiosos, o fechamento de um canal de televisão católico, ameaças explícitas e insultos a líderes religiosos”, afirma o relatório.
O levantamento Latinobarómetro 2020 Nicarágua apresenta a opinião da população nicaraguense sobre até que ponto a liberdade de professar qualquer religião está garantida no país. Apenas 39,2% disseram ter a liberdade religiosa completamente garantida, enquanto 12,5% afirmaram não ser nada garantida. Os outros 48,3% dos participantes da pesquisa responderam que tem alguma garantia, pouca garantia ou não responderam.
Imagem: reprodução Latinobarómetro
Perseguição religiosa na Nicarágua
Os desafios relacionados à liberdade religiosa são cada vez maiores na América Central e vêm sendo destaque na imprensa internacional. O caso da Nicarágua, em especial, tem chamado atenção pelas atitudes do governo de Daniel Ortega.
O Correio Braziliense divulgou, em setembro do ano passado, que Ortega acusou a Igreja Católica de ser uma “ditadura perfeita” e que a polícia havia proibido procissões religiosas naquele período. A notícia também informava que “as relações entre o governo e a Igreja Católica se deterioraram desde os protestos de 2018, que o presidente vinculou a uma suposta tentativa fracassada de golpe de Estado planejada pela oposição com o apoio de Washington”. O texto pontua que o conflito se agravou em agosto daquele ano, após a prisão domiciliar do crítico do governo, arcebispo de Matagalpa, Rolando Álvarez e que quatro padres e dois seminaristas também foram detidos sem que as acusações contra os religiosos fossem divulgadas.
Na mesma ocasião, o portal Nicaragua Investiga publicou texto que mostra a ligação de Ortega com pastores evangélicos e a perseguição aos líderes católicos no país. Em 2023, a revista Forbes divulgou que duas dioceses dirigidas por Álvarez, a essa altura condenado a mais de 26 anos de prisão por crimes considerados ‘traição contra a pátria’, e a diocese de Manágua tiveram as contas bancárias bloqueadas pelo governo Ortega. O texto também cita a prisão de outros três padres. Esta perseguição é sofrida pelas lideranças católicas que se expressam de forma crítica a ações autoritárias do governo Ortega, o que não ocorre em relação outras lideranças cristãs alinhadas com o poder nicaraguense.
A Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou, em março deste ano, que o relatório do Grupo de Peritos em Direitos Humanos sobre a Nicarágua apontou que a população do país sofre violações de direitos humanos que configuram crimes contra a humanidade.
Imagem: reprodução ONU News
Em artigo traduzido e publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos, o teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, Marcelo Neri detalha como o governo da Nicarágua tem agido com a Igreja Católica por se posicionar contra o regime Ortega. “Entre os dias 5 e 6 de fevereiro, ocorreram dois julgamentos de farsa que condenaram o grupo de colaboradores de Dom Alvarez e outro padre detido também em agosto de 2022 a 10 anos de prisão sob a acusação de conspiração contra o Estado da Nicarágua”, diz o texto do teólogo.
Na última semana, a BBC News Brasil publicou matéria sobre a perseguição do governo Ortega a ordens religiosas na Nicarágua. Em entrevista por telefone à BBC, o teólogo e porta-voz oficial da Companhia de Jesus na Nicarágua José María Tojeira explica de que modo o governo Ortega vem perseguindo a Igreja no país.
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Bereia considera o conteúdo checado como impreciso. Os dados da pesquisa divulgada pelo portal de notícias Gospel Prime, de forma ufanista, não são comprováveis, principalmente por não haver informações sobre a metodologia utilizada para a coleta e processamento destes dados. Ainda, a fonte tem histórico que levanta dúvidas em relação a comprometimento mercadológico e político.
Afora isto, o levantamento apresenta características de desinformação quando não considera a perspectiva católica sobre liberdade religiosa na Nicarágua. A maneira que as informações foram apresentadas pode levar o público a julgamentos errôneos sobre determinados grupos e organizações. Portanto, carece de complementações e alguma contextualização, por isso Bereia recomenda recurso a instituições de pesquisa metodologicamente acreditadas.
*Matéria atualizada em 27/07/2023 para correção de informações
Nos primeiros dias de julho de 2023, o governo federal anunciou o encerramento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim). Em ofício às secretarias estaduais, o Ministério da Educação (MEC) informou que o programa chegará ao fim e terá início um período de transição para que as escolas que anteriormente integravam o Pecim sejam reintegradas à redes regulares de ensino. Na sexta-feira, 21, o governo publicou um decreto revogando o Pecim.
O portal gospel Pleno News, em matéria crítica ao fato, veiculada em 16 de julho, afirma que escolas cívico-militares foram responsáveis pela queda das taxas de evasão e violência escolar, e que a decisão de extinguir o Pecim ignora os “bons resultados apresentados pelo Programa”. Bereia checou esta alegação.
Imagem: reprodução site Pleno.News
Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim)
Em setembro de 2019, o então presidente da República Jair Bolsonaro (PFL, depois PL) criou o Pecim via Decreto, ou seja, sem a necessidade de aprovação pelas casas legislativas. Instituído, então, pelo Decreto nº 10.004/19, o Pecim propunha-se a aplicar, a escolas do ensino regular, práticas pedagógicas ligadas ao ensino dos colégios militares, do Exército, das polícias militares ou dos corpos de bombeiros militares. Ao contrário do que ocorre nas tradicionais escolas militares, subordinadas ao Ministério da Defesa, as escolas cívico-militares permaneceram sob alçada das Secretarias de Educação.
A implementação do modelo cívico-militar, prevista no Decreto nº 10.004/19 é efetivada por meio da contratação de militares inativos para a execução de tarefas disciplinares nas escolas que aderirem ao programa. Tal contratação é feita pelas próprias Forças Armadas, sob coordenação do Ministério da Defesa, e o pagamento dos salários realizado com o orçamento do MEC.
Resultados do Pecim
A afirmativa apresentada pelo portal Pleno News não indica a referência dos bons resultados atribuídos ao programa, apontados no texto, porém o MEC divulgou algumas informações relativas ao Pecim no final de 2022. O Replanejamento Estratégico do Pecim, divulgado em dezembro do último ano, expôs, na seção de Análise dos Resultados, dados do programa colhidos ao longo de 2022, em 117 escolas do Pecim.
O documento aponta índices de avaliação subdivididos em quatro aspectos: Gestão Escolar (GE), Ambiente Escolar (AE), Práticas Pedagógicas (PP) e Aprendizado e Desempenho Escolar dos Alunos (ADEA). O indicador é medido entre 0 e 1, quanto mais próximo de 1 é a nota, mais perto está de atingir a meta avaliada.
No contexto deste levantamento a que teve acesso Bereia, o indicador de AE ‘Reduzir os índices de violência na escola’ é apontado com média 0,80 e o indicador de ADEA ‘Diminuir o índice de faltas e reduzir as taxas de abandono e evasão escolar’ com 0,79. Os valores coincidem com os apresentados pelo Portal Pleno News.
O relatório concluiu que o programa apresentava “necessidade de ações mais intensas dos gestores das Ecims” em estratégias que apresentaram “maiores déficits de atendimento”, entre estas: potencializar o trabalho do supervisor escolar (coordenador pedagógico), envidando esforços para que ele receba apoio de um psicopedagogo (GE) e possuir quantidade suficiente de professores, gestores e funcionários (GE). Além destas medidas também foram citadas como carentes de melhorias: atingir as metas do Ideb para a escola (PP) e definir e respeitar o efetivo máximo de alunos em todas as salas de aula da escola (ADEA), que foram indicadores com nota 0,4.
Reação dos governos estaduais à decisão do MEC
A decisão do encerramento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) pelo MEC foi comunicada por meio do Ofício Circular nº4/2023, emitido em 10 de julho, aos secretários estaduais de educação. O documento informa que a medida foi tomada após avaliação do programa e que a partir deste fato inicia-se um processo de desmobilização do pessoal das Forças Armadas envolvido na implementação e lotado nas unidades educacionais do Pecim.
O ministro da Educação Camilo Santana garantiu, em entrevista à CNN, em 18 de julho, que nenhuma das escolas cívico-militares será fechada e afirmou que o programa existirá até o fim de 2023, e dentro deste prazo, o MEC irá dialogar com as gestões de educação estadual e municipal a transição para o sistema regular de ensino. Santana frisou ainda que caso haja interesse dos prefeitos e governadores em manter as escolas no formato cívico-militar será uma decisão própria desvinculada do MEC.
Em reação à medida tomada pelo governo federal, alguns governadores ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro manifestaram a intenção de manter o programa com recursos estaduais. Um deles foi Tarcisio de Freitas (Republicanos), à frente do estado de São Paulo, que informou pretender não só continuar, mas ampliar as unidades cívico-militares de ensino. O governador de Santa Catarina Jorginho Mello (PL) também divulgou que irá expandir o programa e afirmou ter pedido à Secretaria de Educação um estudo para determinar quais regiões do estado poderão receber escolas desta modalidade. Líderes dos estados do Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Bahia, Goiás, Rondônia e Distrito Federal também se manifestaram com intenção de dar continuidade ao programa.
Críticas ao Pecim
O diretor da Secretaria-Executiva do Ministério da Educação Gregório Grisa comentou o tema, em seu perfil no Twitter. Grisa afirma que o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares não tem respaldo legal. “Não há base legal na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e no Plano Nacional de Educação (PNE) que ampare o pagamento de militares para exercer funções em escolas, mesmo que administrativas”.
Imagem: reprodução do site UOL
As verbas de manutenção dos colégios militares são provenientes do orçamento do Ministério da Defesa. No modelo cívico-militar, o orçamento vem do Ministério da Educação e remunera militares inativos. Em alguns casos, como nos bônus destinados aos coronéis, o valor chega a R$ 9,1 mil – maior que o piso salarial dos professores, de R$ 4,4 mil.
Para o cientista social e diretor do Instituto Cultiva, ONG dedicada à educação para a cidadania e participação social, Rudá Ricci, o Programa de escolas cívico-militares é “ilegal, equivocado e inócuo”. Em entrevista ao Bereia, Ricci destaca que o Pecim ofende a lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB) e o Programa Nacional da Educação (PNE), instrumentos nacionais que garantem a gestão democrática das escolas brasileiras.
Foi baseado neste entendimento que a 25ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul suspendeu a implementação de novas escolas cívico-militares no estado, em novembro de 2022. A decisão foi tomada depois do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul e do Sindicato dos Trabalhadores em Educação ajuizarem uma ação civil pública contra o decreto que criou o programa em setembro de 2019.
Em junho de 2022 o Tribunal de Justiça de São Paulo também suspendeu a implantação do Pecim em uma escola de São José do Rio Preto, a decisão atendeu a um pedido de liminar do Sindicato dos Professores da Rede Estadual de Ensino de São Paulo (Apeoesp).
Ricci afirma, ainda, que “educação é socialização – saber viver em sociedade – e desenvolver a autonomia – autocontrole e definição do papel individual na sociedade. (…) a militarização das escolas não debela a violência e gera instabilidade entre adolescentes. Um erro grosseiro que levará ao desastre as gerações expostas a este modelo”.
Questionado sobre a disposição de governos estaduais darem continuidade ao modelo, o cientista social identifica três blocos distintos. “O primeiro bloco é composto por bolsonaristas. Aqui se trata de um confronto claro com o governo federal, não exatamente de um projeto educacional nítido. O segundo bloco é composto por governos progressistas que perderam uma noção clara de estratégia educacional, abraçando toda sorte de propostas que prometem responder às mazelas de momento. O terceiro bloco – que inclui parte do segundo – é composto por governos cujo foco é atender a demanda imediata do eleitor, descartando projetos de mais longo prazo”.
Ricci correlaciona o que entende ser uma tendência imediatista aos ciclos eleitorais que ocorrem no Brasil a cada dois anos. “Este calendário eleitoral força a obtenção de ações espetaculares ou que parecem atender imediatamente às demandas mais agudas do eleitor, tratando a gestão pública como balcão de atendimento de uma clientela ansiosa”.
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Bereia conclui que o conteúdo checado é impreciso, pois apresenta dados verdadeiros, mas sem amplitude suficiente para serem considerados informação. A maneira seletiva de expor os dados e a condução do conteúdo como uma resposta defensiva a uma medida política revogada, aponta para o uso do produto jornalístico como meio de defesa de interesses e pode levar o público a julgamentos errôneos.
O relatório do fechamento do ano de 2022 do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares apontou problemas a serem resolvidos em áreas pedagógicas e de aprendizado, o que deu base para a decisão de encerramento do programa pelo Ministério da Educação. Também foram apresentados, como justificativa pela pasta, os altos gastos retirados indiretamente da educação para a remuneração de militares da reserva.
O texto em questão não contextualiza todos os aspectos desta situação, e com base em dados parciais defende a manutenção do programa, atribuindo uma decisão prejudicial à educação nacional ao governo e não há referência ao documento usado como base para os dados apresentados. O programa não teve ampla adesão e nem elevou os níveis da educação nas escolas contempladas com a metodologia, portanto, não é possível afirmar que houveram “bons resultados” o suficiente para que o programa não fosse descontinuado a partir de uma ótica técnico-pedagógica.
Mídias noticiosas informaram no final deste abril de 2023, que uma igreja foi depredada por intolerantes religiosos e adeptos da teoria “terraplanista”. A notícia rapidamente ocupou grupos de mensagens e mídias sociais religiosas.
Imagem: reprodução do site Metrópoles
Bereia checou as informações e, de fato, a Capela de Nossa Senhora da Piedade, conhecida como ‘Igrejinha’, localizada na zona rural de Araras (SP), foi alvo de um ato de vandalismo no sábado, 29 de abril.
Segundo os relatos, um maçarico foi utilizado para destruir a porta e invadir o local, que fica à Avenida Fábio da Silva Prado, no bairro Elihu Root. Na capela, que pertence ao território da Paróquia São Benedito, da Igreja Católica Romana, imagens de santos foram destruídas e jogadas ao chão, paredes pichadas com dizeres que expressam intolerância religiosa e teoria da conspiração. conhecida como “terraplanismo”.
“Estas estátuas não tiveram poder algum para me impedir de entrar aqui, de movê-las de lugar e de escrever nestas paredes”.
“Teriam elas algum poder para ouvir orações ou livrar do mal aqueles que clamam a elas?”
Imagem: reprodução do G1
“Detalhe importante, a Bíblia também diz que a Terra é plana Marcos 13:25”
“A Terra é um círculo plano com uma cúpula acima”.
A Diocese de Limeira repudia veementemente a manifestação de intolerância religiosa cometida, no último fim de semana, contra a capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade, localizada na zona rural de Araras e que pertence ao território da paróquia São Benedito.
A capela foi invadida e teve imagens retiradas de seus nichos e pichações nas paredes com dizeres que demonstram o desrespeito religioso.
Em tempos de um comportamento social agressivo, onde destaca-se a violência, o preconceito e a intolerância ao próximo, devemos ressaltar a Carta Magna de 1988, principalmente no tocante da prática da tolerância religiosa e da cultura de paz, respeitando a dignidade e a liberdade de consciência da religião.
Que a bandeira da paz, do respeito às manifestações religiosas e do amor ao próximo seja a bandeira a ser empunhada por todos nós.
Intolerância religiosa no Brasil
Mesmo com as mensagens de ódio religioso e referentes a teorias da conspiração, não é possível afirmar que os praticantes do ato de vandalismo são mesmo seguidores destas teorias ou que este tenha sido um ato pensado para justificar uma prática de cristofobia.
De acordo com a cientista social Brenda Carranza, o termo cristofobia “se intensificou e consolidou uma narrativa de perseguição e ameaça, centrada no ataque aos cristãos (católicos e evangélicos), vilipendiados por sua fé, moralidade e crenças religiosas, (…) entretanto, uma perseguição religiosa pressupõe ameaça a direitos de expressão e culto religioso (liberdade religiosa) e de ataque físico e simbólico a templos, igrejas, pessoas e até morte. Porém, no Brasil é inexistente a ameaça e/ou ataque à maioria histórica, demográfica e simbolicamente cristã, portanto, a narrativa parlamentar cristã é construída a partir de um sentimento de perseguição fictício”
Para a pesquisadora do Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER), antropóloga Lívia Reis, Bolsonaro deu legitimidade estatal à falsa trama de que cristãos brasileiros são acossados pelo que creem.“Para comprovar esse ponto, fez-se necessário que o governo estimulasse o uso de canais de denúncia entre pessoas cristãs, de modo que as estatísticas corroborassem essa narrativa”, diz a pesquisadora.
A alta de cristãos que acionam o Disque 100 também está, segundo Reis, “intimamente ligada à forma negacionista como o governo federal [no poder de 2019 a 2022] encarou a pandemia de covid-19, desencorajando medidas sanitárias de prevenção à doença, entre elas o fechamento das igrejas”. Determinações para a suspensão de cultos e missas foram interpretadas por algumas lideranças como um ataque à liberdade religiosa.
A pesquisa resultante da parceria ISER / Data_Labe aponta que após anos de protagonismo dos adeptos de religiões de matriz africana entre as vítimas de intolerância religiosa no Brasil, dados do Disque 100 indicam que cristãos passaram a ser maioria entre os denunciantes no canal, a partir do segundo semestre de 2020, quando o instrumento esteve sob o comando da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves. Diante desse quadro, ISER e Data_Labe apresentaram dados e opiniões sobre como a ascensão de fundamentalistas religiosos na política nacional durante o governo de Jair Bolsonaro pode ter contribuído para a mudança nos dados existentes até então.
A média de registros de denúncia de intolerância religiosa entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2022 indica 46% de fiéis do segmento cristão católico, 30% de cristãos evangélicos, 12% que apontaram não ter religião, 6% que indicaram a opção “outras”, 3% de espíritas, e 2% de afrorreligiosos.
O cenário é bem diferente do período compreendido entre 2011 e o primeiro semestre de 2018, como consta na reportagem Terreiros na Mira, lançada, em 2019, pela associação jornalística Gênero e Número e pelo Data_Labe. Naquela análise, cerca de 60% das denúncias sobre intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100 eram referentes a seguidores de religiões de matriz africana.
Cristãos também eram minoria no último levantamento nacional e oficial produzido pelo governo federal. O Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015), realizado pela Assessoria de Direitos Humanos e Diversidade Religiosa – ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos – foi lançado em 2017 e apontava que 33% das vítimas não tinham sua religião identificada. Em segundo lugar, com 27%, estavam cidadãos que professam as religiões de matriz africana, seguidos por evangélicos com 16% e católicos com 8%.
Terraplanismo
Terraplanismo, segundo o Dicionário dos Negacionismos (2022), é um termo anticientífico e negacionista utilizado para defender a noção de que a Terra é plana. É uma teoria conspiratória baseada em algumas passagens da Bíblia, em dados sem comprovação científica e na imaginação de promotores da noção, cultivada por adeptos.
O jornalista científico Javier Salas explica que negar o formato esférico da Terra é o caso mais extremo de um fenômeno que define a nossa época: desconfiar dos dados, enaltecer a subjetividade, rejeitar o que nos contradiz e acreditar em falsidades:
Apenas 66% dos jovens de 18 a 24 anos nos Estados Unidos têm plena certeza de que vivemos em um planeta esférico (76% na faixa de 25 a 34 anos). Trata-se de um fenômeno global, também presente no Brasil, que costuma ser motivo de piada. No entanto, quando observamos os mecanismos psicológicos, sociais e culturais que levam as pessoas a se convencerem dessa gigantesca conspiração, descobrimos uma metáfora perfeita que resume os problemas mais representativos de nossa época. Embora pareça medieval, é muito atual.
Uma pesquisa do Instituto Datafolha, de 2019, mostrou que uma parcela de 7% dos brasileiros acredita que o formato da Terra é plano – cerca de 11 milhões de pessoas.. O levantamento foi realizado com 2.086 entrevistados maiores de 16 anos, em 103 cidades do país. Entre os entrevistados, 90% declararam crer que a Terra seja redonda e o restante disse não saber sua forma.
Segundo a pesquisa, a crença de que a Terra é plana corresponde à baixa escolaridade: 10% das pessoas que deixaram a escola após o ensino fundamental defendem o chamado terraplanismo. O número diminui entre os que estudaram até concluir o ensino médio (6%) ou superior (3%).
Na pesquisa Datafolha, de forma similar ao que ocorre nos Estados Unidos, o recorte por idade também revelou uma propensão ligeiramente maior à crença entre os jovens no Brasil. Abaixo de 25 anos, 7% creem na Terra plana, e o número cai para 4% na faixa entre 35 e 44 anos. O terraplanismo é mais popular, porém, entre aqueles brasileiros acima dos 60 anos —11% adotam a crença.
No Brasil ainda não há dados sobre quando o terraplanismo surgiu. O desenvolvedor web Danilo Wiener, 43 anos, é um dos coordenadores do movimento Terra Plana Brasil. Matéria da Folha de S. Paulo informou que, como hobby, ele costuma fazer experimentos de observação do oceano buscando mostrar que ele não possui curvatura.
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Bereia classifica as notícias sobre o vandalismo contra a capela católica em Araras(SP), como imprecisas. A igreja foi, de fato, invadida, depredada e pichada com frases que expressam intolerância religiosa e teorias da conspiração que defendem o formato plano da Terra. Porém, não é possível afirmar que “terraplanistas” foram os responsáveis, tomando por base apenas os textos pichados nas paredes da capela. Apenas a investigação da Polícia Civil de São Paulo poderá apontar o perfil dos autores/as do ataque.
Além disso, atos de intolerância religiosa contra igrejas, praticado por “terraplanistas”, ou seja, adeptos de uma teoria da conspiração que tem vínculos com outras noções relacionadas à grupos extremistas são incomuns. Portanto, as ações que envolvem este caso podem ter outros objetivos.
Bereia também chama a atenção para o transbordamento de teorias da conspiração expostas em mídias sociais digitais e de discursos de ódio para o “mundo real”, transformando retórica, teorias conspiratórias e ideias extremistas em combustível para atos violentos.
A deputada federal Carla Zambelli (PL) repercutiu em seu perfil no Twitter matéria do UOL sobre voos com aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) no governo Lula. No post, além de um card afirmando que “a mamata voltou”, Zambelli acrescenta que “Além de gastarem mais, segundo levantamento do UOL, a média de passageiros foi menor neste desgoverno”. Sua postagem teve 63,7 mil visualizações e compartilhada em espaços digitais religiosos.
O site evangélico Pleno News também publicou matéria que citou a informação publicada no site UOL e deu destaque para o fato de que os ministros da Infraestrutura e da Cidadania no governo Bolsonaro, Tarcísio de Freitas e Osmar Terra foram os que mais utilizaram aviões da FAB durante o início do governo. Nesta comparação, que durante o atual governo Lula, “Fernando Haddad, ministro da Fazenda e Nísia Trindade, ministra da Saúde, são os atuais ‘campeões’.”
O que diz a matéria do UOL
No texto, o UOL afirma que “a equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) superou a de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), em viagens com aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira)”. Segundo o levantamento feito pelo portal de notícias, nos primeiros 40 dias de governo do atual presidente do Brasil, foram realizados 89 voos com aviões da FAB , o que representa 46% a mais do que a gestão do ex-presidente, que, nos primeiros 40 dias de 2019, utilizou as aeronaves em 61 viagens.
A assessoria do ministro da Fazenda Fernando Haddad, respondeu ao site UOL e explicou “que as viagens a São Paulo se justificam pelo fato de haver escritório do Ministério da Fazenda na cidade, o maior centro financeiro da América Latina”. Também em resposta ao site, a ministra da Saúde Nísia Trindade disse “que as viagens ao Rio eram necessárias porque é o estado que mais possui unidades de saúde vinculadas ao ministério”. Os ministros Haddad e Nísia, e o atual governador do estado de São Paulo Tarcísio de Freitas, disseram ao UOL que respeitam o decreto que regula voos da FAB.
Legislação que regula voos da FAB
De acordo com matéria publicada pelo UOL “desde 1999, decretos regulam o uso de voos da FAB por autoridades, ministros, comandantes de Forças Armadas e presidentes de Casas do Congresso e do Supremo Tribunal Federal”. Em 2020 o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou novo decreto que manteve a permissão do uso de voos da FAB por motivos de emergência médica, de segurança e a serviço e o voo deve ser compartilhado “sempre que possível” quando o intervalo entre os voos para o mesmo destino for “inferior a duas horas”. Para alegar necessidade de segurança, é preciso uma “justificativa que fundamente a necessidade”, afirma a regra. Segundo o site UOL, o decreto 10.267 de 05/03/2020, editado por Jair Bolsonaro, “ainda diz que essa justificativa é presumida quando os viajantes são os presidentes das Casas do Congresso e do Supremo e se dirijam a ‘local de residência permanente’.”
Também a matéria do UOL diz que “a versão anterior do decreto, baixada por Dilma Rousseff em 2015, proibia o trajeto para residência dos ministros. O texto foi revogado por Bolsonaro. Agora, o decreto estabelece que o registro em agenda oficial é a comprovação de que a viagem é para serviço”, informa o site.
Motivos para a realização dos voos
Para uma informação corretamente oferecida ao público, pelo UOL e por quem repercute o conteúdo, é preciso levantar, na avaliação dos números de voos da FAB,os respectivos propósitos para as viagens.
Bereia oferece como exemplo, a tragédia humanitária sofrida pelo povo Yanomami, que demandou ações emergenciais durante o primeiro mês do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. As ações resultaram em mais de 1.200 horas de voos da FAB para o território indígena conforme relatório da instituição divulgado em 4 de março deste ano. Além de levar autoridades e agentes públicos para atuarem no local, “a Força Aérea Brasileira (FAB) já entregou mais de 400 toneladas de mantimentos e medicamentos à população da Terra Indigena Yanomami em um mês de operação da instituição no território […] O transporte de suprimentos faz parte de uma das frentes de atuação das Forças Armadas na crise sanitária no território. As entregas tem sido feitas pelo Comando Operacional Conjunto Amazônia (Cmdo Op Cj Amz).”
Bereia avalia como IMPRECISA a notícia que o governo Lula usou voos da FAB quase 50 por cento a mais do que o ex-governo Bolsonaro em seus primeiros 40 dias de trabalho. A notícia do site UOL repercutida por políticos religiosos, em crítica ao atual governo, checada oferece conteúdo verdadeiro, com base em números, mas não contextualiza as demandas em que geraram a quantidade de voos da FAB. Isto pode levar o público a julgamentos errôneos sobre o uso de recursos governamentais do Poder Executivo. É desinformação e necessita de complementações e contextualização.
Circula em mídias sociais de perfis cristãos uma mensagem de áudio em que locutor anônimo faz alusão a uma suposta lei, aprovada pelo atual governo, que impediria o uso de determinados termos em orações. O áudio é dirigido a cristãos e aparentemente, alerta sobre o risco de igrejas ou indivíduos responderem à justiça se forem flagrados fazendo uso de palavras para se referirem criticamente a fiéis de religiões de matriz africana.. A pedido de um leitor, Bereia fez a checagem deste conteúdo que tem circulado amplamente.
No áudio, o locutor faz um alerta aos fiéis: “Para quem não sabe, não pode mais orar falando mal dos catimbozeiro, macumbeiro, feiticeiro na oração, não pode. (…) foi uma lei outorgada agora nessa última quinta feira. (…) Sejamos cautelosos nessas questões (…) infelizmente é o presidente que foi elegido (sic) e infelizmente, são as leis do nosso país, agora tem que respeitar.”
Pela data de veiculação do áudio, possivelmente, a norma mencionada trata-se da Lei 14.532, de 2023, aprovada em 11 de janeiro pelo atual governo, com o objetivo de alterar a Lei do Crime Racial (7.716/1989) e o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) para tipificar a injúria racial como racismo. Ao contrário do tom dado ao conteúdo do áudio, não se trata de um cerceamento à liberdade religiosa, mas de mais uma camada de proteção a esta liberdade que, comprovadamente, é historicamente negada às tradições de matriz africana.
Injúria racial e racismo
Ao alterar a redação da Lei do Crime Racial, a Lei 14.532/2023, sancionada logo no primeiro mês de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, equipara o crime de injúria racial ao de racismo e prevê punição para os delitos resultantes de discriminação não apenas por cor, raça e etnia, mas também por religião ou procedência nacional.
A injúria racial é um dos crimes contra a honra, previsto no Código Penal como uma forma qualificada para os atos de injúria. Para que este tipo de crime ocorra, deve haver ofensa à dignidade de uma pessoa por sua raça, cor, etnia, religião ou origem. Já a prática de racismo, prevista na Lei de Crime Racial tipifica esta discriminação contra a coletividade, sem considerar este tipo de violência direcionada ao indivíduo. A injúria racial é uma maneira de conseguir abranger esses tipos de delitos direcionados a uma pessoa.
Com a equiparação, a pena para injúria racial torna-se equivalente à aplicada para racismo. A nova redação prevê pena de dois a cinco anos de reclusão e multa no caso de injúria racial, podendo a pena ser aumentada de metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas. Se cometida no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público, além da pena de reclusão, pode-se aplicar a proibição de frequência a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais (a depender do caso) por três anos – a frequência a locais destinados à prática religiosa permanece garantida. Incorre nas mesmas penas quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas.
Os novos dispositivos podem ser interpretados de diversas formas, a depender do caso concreto em questão. Ouvido pelo Bereia, o advogado, mestre em Direitos Fundamentais e membro da Rede Cristã de Advocacia Popular José Carlos Muniz, afirma que “a interpretação normativa é, em alguma medida, ampla. O que a gente tem que considerar é o contexto. Uma norma dessa pode ser utilizada para finalizar práticas de incitação ou indução à discriminação religiosa contra qualquer religião. Durante muito tempo era muito comum haver preconceito contra evangélicos, mas pode ser contra religiões de matriz africana.” E continua: “Não se pode ter o discurso de uma religião que induza o preconceito e a discriminação de outra, seja qual for”.
Intolerância religiosa no Brasil
Nos últimos anos, o Brasil assistiu ao crescimento de ataques contra centros de umbanda e candomblé. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), levantados pelo Portal UOL, entre 2021 e 2022 houve um aumento de 141% nas denúncias de intolerância religiosa, com 586 denúncias em 2022, contra 243 no ano anterior. O portal ainda expõe que obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação, dados que apontam o registro de mais de 15 mil denúncias de ataques religiosos recebidos pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP).
Em depoimento ao Jornal Nacional, da Rede Globo, o padre Marcus Barbosa Guimarães afirma que a intolerância vem crescendo nas dimensões religiosa, humana e social, e afirma que a nova lei surge como um gesto concreto de combate à intolerância. Já o pastor , da Comunidade Caverna SP Levi Araújo, relembra a etimologia da palavra religião, que conclama a união, jamais o desrespeito.
Para a antropóloga Christina Vital o senso comum sobre a liberdade religiosa não reflete a totalidade da questão no Brasil. Segundo Vital as disputas políticas aumentam a complexidade deste tema. “A ação de evangélicos protestantes e pentecostais foi dada como fundamental para a garantia da liberdade religiosa no Brasil como um meio de ação contra a hegemonia da Igreja Católica. Aos religiosos de matriz afro-brasileira, a identificação com o tema teria surgido mais recentemente e na forma das ações de combate à intolerância religiosa. Contudo, cada vez mais a liberdade religiosa como afirmação da democracia e combate à violência vem sendo ativada por esses religiosos afro-brasileiros como meio de disputa com os grupos majoritários da agenda em nível global” afirma Vital.
Na onda conservadora que atravessa o mundo infiltrando-se em todas as áreas da sociedade, desde a política até a religião, a afirmação de convicções pessoais tem cedido espaço a ataques que provocam cismas sociais. É o que explica Ana Gualberto, historiadora e coordenadora de ações com comunidades negras tradicionais na Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, em entrevista à Rádio Brasil de Fato: “A gente tem vivido, hoje, no mundo e no Brasil, um movimento em que o conservadorismo e as práticas fundamentalistas estão ganhando espaço e, com isso, as pessoas se sentem mais à vontade para infringir a lei”.
O advogado José Carlos Muniz, na entrevista ao Bereia, ressalta que “se alguém tem a intenção de injuriar, o fato de fazer isso em culto religioso não torna a conduta lícita”. Nesse sentido, o novo entendimento acerca da injúria racial, equiparando-a, na lei, ao crime de racismo, vem preencher uma lacuna jurídica, visando a garantir ampla e efetiva liberdade religiosa. Isto é, o Estado atuando de modo a garantir a livre manifestação de todas as crenças, sem ameaças, ataques ou preconceitos.
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Bereia classifica como impreciso o conteúdo do áudio enviado por leitor. A declaração oferece uma informação verdadeira, mas vaga e sem apresentar os fatos e o contexto na amplitude necessária. A ausência de diferentes perspectivas, por exemplo, contribui para a caracterização da desinformação. Assim, o áudio pode colaborar, mesmo que de maneira implícita, para a construção de uma narrativa errônea, segundo a qual o atual governo federal estaria cerceando a liberdade de religião cristã, e protegendo apenas determinadas certas confissões religiosas. Ao desinformar, além de buscar criar aversão de cristãos contra o atual governo, o áudio anônimo ainda transmite a defesa de um falso direito de expressão que libera a ofensa e a injúria contra quem professa fé diferente.O conteúdo, de fato, omite que o que ocorre é a proteção ampla a todos os tipos de crença, na esteira do aumento dos casos de ataques religiosos, e a previsão de penas para crimes comuns praticados dentro ou fora dos espaços da religião.
Bereia alerta leitores e leitoras para a divulgação deliberada de conteúdo impreciso para confundir sobre temas de interesse público. A desinformação, nestes casos, se caracteriza pela falta de consistência na informação veiculada, sem apresentar os fatos e o contexto na amplitude necessária, pelo anonimato (não registra quem está falando e suas fontes), e por recorrentes erros no uso da língua portuguesa.
Bereia também chama à participação cidadã com atenção ao Disque 100 para denúncia de violação de Direitos Humanos, incluídos os casos de intolerância religiosa citados nesta matéria.
No contexto da cobertura noticiosa dos casos de reação negativa de membros de igrejas evangélicas a discursos de campanha pró-reeleição do presidente Jair Bolsonaro, o jornal O Globo produziu, em 6 de setembro passado, a matéria “Campanha eleitoral em cultos evangélicos provoca reação de fiéis e até troca de igreja”. O texto também enfatiza que algumas lideranças têm sido punidas internamente após as reações negativas a estas práticas.
Entre os casos mencionados na matéria está o do tiro disparado em uma igreja por um PM depois de um membro reagir a um pregação política contra esquerdas. É também apresentada a situação do pastor da Igreja Batista de Água Branca Ed René Kivitz. O jornal afirma que ele teria sido punido pela Ordem dos Pastores Batistas de São Paulo depois de fazer pregação política. O jornal desinformou ao inserir este caso na matéria pois ele não corresponde à ênfase dada.
Liderança evangélica com forte presença nas mídias, Ed René Kivitz há tempos é alvo de críticas de um público conservador das igrejas, tendo sofrido linchamentos virtuais e “cancelamentos”. Conhecido por sua crítica ao posicionamento político alinhado à extrema direita, de algumas igrejas e religiosos, Kivitz manifesta-se contrário a uma série de pautas defendidas por apoiadores do governo Bolsonaro, entre eles o porte de armas e o apoio institucional de igrejas ao governo. Ele sofreu graves críticas por um sermão pregado em sua igreja, em culto online do dia 25 de outubro de 2020, intitulado “Cartas vivas contra letras mortas”, pelo qual desafia os fiéis a uma leitura da Bíblia mais contextualizada e relacionada à vida. No apedrejamento virtual que sofreu, o pastor foi acusado de herege por querer “atualizar a Bíblia”.
A abordagem de O Globo menciona brevemente que Kivitz foi excluído da Ordem dos Pastores Batistas de São Paulo por ser crítico ao candidato Bolsonaro. Sem aprofundar o tema, a matéria coloca o pastor entre outros que estão relacionados a punições por realização de discurso político em cultos.
O pastor Kivitz comentou uma postagem de divulgação na matéria no Twitter e afirma que não foi expulso da Ordem dos Pastores Batistas de São Paulo:
Em vídeo publicado em suas mídias sociais em 2021, o pastor reconhecia o seu desligamento da Ordem Batista por conta da pregação online, de 2020, que gerou a acusação de heresia. Ele afirma: “foram oito minutos, em um sermão de 50 minutos, numa série de treze sermões, numa história de mais de 30 anos; e foram exatamente esses oito minutos que deram origem a um processo disciplinar que culminou, nessa última semana, com o meu desligamento da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil”.
Durante o vídeo em questão não há menção à perseguição religiosa por motivações políticas. Bereia tentou conversar com o Pastor, mas não obteve resposta.
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Bereia classifica a informação levantada pelo Jornal O Globo como imprecisa. O Pastor Kivitz não foi ouvido pelo jornal para a construção da matéria, houve falha de apuração do caso que levou à redação de conteúdo superficial e inverídico, levando o público a uma compreensão distorcida dos acontecimentos que foram indevidamente utilizados no texto.
O portal evangélico de notícias Gospel Prime publicou matéria dando conta que a Polícia Civil indiciou o Pastor Guaracy Jr. por crime de racismo qualificado como homofobia contra a população LGBTI+. As declarações que levaram à denúncia aconteceram em 10 de dezembro de 2020, em live do religioso no Facebook. Guaracy Jr, que foi candidato à prefeitura de Macapá (capital do Amapá) pelo Partido Social Liberal (PSL) usou a transmissão ao vivo para esclarecer que não apoiaria nenhum dos dois candidatos presentes no segundo turno: Dr. Furlan (Cidadania) e Josiel (DEM).
A partir do minuto 18:25 da live, ele começa as declarações sobre políticos que apoiam pautas progressistas como a LGBTI+. O Gospel Prime reproduz desta parte da fala do candidato:
“Entendo que quem apoia pautas esquerdistas, pautas LGBT, pautas progressistas, não merece o apoio do povo cristão. […] Hoje eu me deparei com essas posições, comparei a posição do candidato Josiel, que apoia as mesmas pautas, então decido não apoiar nenhum candidato que possa envergonhar o povo do Amapá com essas ideias e pautas progressistas. Digo, de maneira clara, não apoio nenhum tipo de discriminação social ou sexual, porém entendo que nós não podemos estar ligados como cristãos a esse tipo de grupo”.
No entanto, o Coletivo Bereia apurou que a partir de 19 minutos e 50 segundos de transmissão, ele também afirmou:
“[…] Estou fora, estou fora porque entendo que quem apoia pautas esquerdistas, pautas LGBT, pautas progressistas não merecem (sic) o apoio do povo cristão. E eu falo povo cristão evangélico e católico, porque quem rasga bíblia, quem vilipendia e quebra santo, seja da imagem católica ou da Bíblia evangélica, quem enfia cruz, porque vocês viram o que aconteceu nessas paradas LGBT aí em Macapá, isso é absurdo gente. Eu não posso apoiar esse tipo de coisa, isso pra mim é podridão, é cachorrada. E vou dizer, eu respeito a opção sexual de ninguém, de qualquer um, eu tenho que respeitar como pastor, mas eu não posso aceitar esse tipo de coisa.”
Associação da “pauta LGBT” com pedofilia
A partir de 9:50, o pastor também faz associação entre a “pauta lgbt” com pedofilia. “A pauta LGBT tem trazido ideologia de gênero, ela tem defendido pedofilia e outros tipos de escândalos que nós não podemos admitir. Quando nós temos visto Prefeituras e governo financiam passeatas quando crianças são expostas à nudez de adultos, onde a religião é desprezada, a fé católica é vilipendiada. Fé católica e fé evangélica”, afirmou Guaracy Jr.
Neuton Júnior justificou o indiciamento do religioso: “Uma vez que, com a intenção de agradar supostos eleitores defensores da pauta conservadora, passou a promover discurso preconceituoso e discriminatório, inclusive ligando a população LGBT+, sem provas e elementos para isso, com o envolvimento com a pedofilia, que, como se sabe, é crime”. O caso agora segue ao Ministério Público do Amapá (MP-AP).
Legislação a respeito de homofobia
A qualificação de homofobia no crime de racismo decorre de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em junho de 2019. A decisão faz ressalva à liberdade religiosa. Por exemplo, o STF não criminalizou dizer em templo religioso que o grupo é contra relações homossexuais, mas enquadra na lei quem induzir discriminação ou preconceito em templo religioso.
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Bereia conclui que a matéria do Gospel Prime é imprecisa e desinforma porque omite informações importantes sobre as declarações públicas do pastor e da investigação conduzidas pela polícia. Apesar de dizer que respeita pessoas LGBTI+ e não discrimina, ele também associou a “pauta LGBT” à pedofilia. Essa não é a primeira vez que o portal Gospel Prime desinforma sobre casos envolvendo homofobia e religiosos. Bereia também classificou como imprecisa matéria que o site publicou sobre o caso do Ministério Público contra a cantora gospel Ana Paulo Valadão.
O portal conservador Conexão Política publicou, em 25 de fevereiro, matéria que afirma que um centro de recuperação para dependentes químicos na região de Mérida, Venezuela, foi atacado por criminosos. Segundo a publicação, “quatro pessoas ficaram feridas no ataque e tiveram ferimentos graves na cabeça, braços e costas. Alguns cristãos tiveram fraturas e outros foram marcados em seus corpos com facas com um “X”, enquanto foram forçados a comer páginas da Bíblia.”
O lugar onde se deu o possível ataque, de acordo com o Conexão Política, seria dedicado a reabilitar pessoas com problemas relacionados à dependência de drogas. Contudo, não foi encontrada evidência ou mesmo alguma referência ao local nos buscadores na internet. O nome do local emerge apenas dos sites que republicaram a referida matéria.
Bereia verificou que o texto é uma reprodução original do site da organização Portas Abertas. Segundo informações do site oficial, a organização existe desde 1955 e “atua em mais de 60 países apoiando a Igreja Perseguida por meio de projetos realizados em lugares onde acontece a perseguição, para que a igreja local seja fortalecida”. Contudo, outras checagens já apontaram a recorrência de publicações desinformativas mostradas no portal, que sinaliza ainda para uma forte tendência em sites religiosos de notícia, de cunho conservador, de levar leitores a compreenderem que há perseguição religiosa, especialmente em países dos quais questionam o tipo de governo.
A notícia foi replicada em diversos portais. No site da rádio Fe Y Alegria são trazidos mais detalhes, como a data e a hora do ataque; fotos dos agredidos; e que foi aberta uma queixa pelo pastor responsável pelo centro (aqui chamado de “Igreja Casa de Restauração 12 homens de valor”) junto ao Cuerpo de Investigación Científica Penales y Criminalística, uma instância de investigação do poder executivo da Venezuela.
O site Caraota Digital traz reportagem em texto e vídeo, entrevistando o pastor responsável pelo centro de recuperação, bem como áudios dos feridos relatando o ataque. O site El Pitazo apresenta reportagem ampliada, descrevendo como a igreja recebeu ameaças prévias, onde os feridos foram hospitalizados e relatos de como se deu o ataque.
Segundo a matéria publicada pelo Conexão Política, Adelis José Lobo teria sido uma das vítimas do ataque. Em áudio compartilhado nas redes sociais, ele teria contado “o terror que viveu durante o crime”. No depoimento apresentado na reportagem, Adelis Lobo fala ainda que “os homens armados invadiram o local, rendendo os seguidores de Jesus e os jogando no chão, cobrindo-lhes os rostos e agredindo-os com paus e pedras”.
No perfil do Facebook de Lobo, ele se descreve como “trabalhando com a Rede Cristã: Fundação de Apoio aos Ministérios Sociais das Igrejas”. Há postagens divulgando o Ministério Cristão Evangélico junto à Guarda Nacional Bolivariana, compartilhando postagem da Fundação Venezuelana de Atletas Cristãos e ainda de outras instituições cristãs, indicando ser praticante de fé cristã evangélica. Também compartilhou posts contra a vacina russa e conteúdo rotulado como “Sem contexto” pelos verificadores do Facebook a respeito do exame PCR para a Covid-19.
A equipe do Bereia encontrou publicações que evidenciam a suposta ocorrência. A primeira delas, datada de 17 de fevereiro, apresenta imagens de pessoas agredidas, acompanhadas pela legenda:
URGENTE: GRUPOS DELICTIVOS DE BELEN ATACAN CENTRO DE REHABILITACION DE DROGAS PARA DESALOJARLOS. Mérida.
Llama la atención q a los jóvenes cristianos los golpearon y los marcaron con cuchillos con cruces en sus cuerpos. La Iglesia Evangélica de Mérida, la Confraternidad de Pastores se unen para repudiar este lamentable hecho q se sucito tristemente el día Martes 16 de febrero en San Jacinto, ciudad de Mérida.
Postagem de Adelis José Lobo no Facebook
Dois dias após a postagem, uma nova publicação no perfil exige a detenção dos responsáveis pelo ataque ao centro de reabilitação.
Apesar dos dados no perfil de Lobo apontarem a veracidade das agressões ao centro de reabilitação na Venezuela, a origem da publicação decorre de um site religioso já classificado pelo Bereia e por outras agências de checagem como propagador de desinformação.
Neste aspecto, é importante ressaltar também a publicação sobre o ataque realizada pelo site Pleno News, que, segundo dados do Bereia, desponta como o site religioso de notícias que recorrentemente publica conteúdo que representa mais uma defesa de suas ideologias e valores morais. Pleno News foi destaque como aquele que mais ofereceu material para ser verificado ao longo do ano de 2020, merecendo assim um ponto de atenção.
A publicação, realizada no dia 22 de fevereiro, apresenta na íntegra o texto do portal da Portas Abertas. No fim da publicação, os comentários gerados via plugin de comentários do Facebook evidenciam a divergência de opinião entre os usuários.
Entendendo o suposto ataque
O que aponta a matéria apresentada no site de Portas Abertas é que, na terça-feira, 16 de fevereiro, as pessoas que moravam no centro de recuperação estavam na casa quando oito homens encapuzados invadiram o local com facas e paus, lançando palavras de ódio contra elas. O texto diz que “os criminosos destruíram a casa, agrediram os cristãos e marcaram as costas deles com um “X”. Além disso, também os forçaram a comer páginas da Bíblia”. Ainda de acordo com a publicação, todas as vítimas seriam participantes do programa criado pelo pastor Dugarte e a esposa, para reabilitação da dependência em drogas.
O pastor teria então relatado que, durante uma reunião do bairro, dois homens ameaçaram destruir a Casa de Restauração Doze Homens de Valor “porque não concordavam com esse tipo de programa”. Segundo Dugarte, para evitar problemas com os vizinhos, ele teria estabelecido um acordo com o conselho do bairro para reduzir os internos de 10 para seis homens. No entanto, esses dois vizinhos não teriam aceitado nenhum tipo de acordo.
Há ainda a informação de que o pastor apresentou uma queixa contra os possíveis responsáveis pelo ataque. Contudo, a equipe Bereia não encontrou indícios de ocorrência policial.
Sobre o Conexão Política
Originalmente, o Conexão Política era um perfil criado no Twitter em 2017, tendo se tornado cada vez mais popular entre a direita e extrema-direita. Segundo matéria publicada pela revista Época, o perfil foi se desenvolvendo, valendo-se “de memes, mentiras e textos rápidos para atrair seguidores, não diferindo em praticamente nada do conteúdo que era enviado aos grupos de WhatsApp que apoiavam Jair Bolsonaro”.
O número dos seguidores do Conexão Política foi alavancado a partir do momento em que os filhos do então candidato à presidência Jair Bolsonaro passaram a repercutir as postagens e dar entrevistas para o grupo.
O site, criado em 2018, é intitulado como “jornal digital inteiramente compromissado com a análise e cobertura das principais pautas da política nacional e internacional”. Contudo, de acordo com a Agência Pública, o Conexão Política é um dos 13 sites alinhados ao Governo Bolsonaro e acusados de disseminar notícias falsas, sobretudo sobre a pandemia do novo coronavírus. Segundo a análise realizada pela Pública, alguns deles estão associados a pessoas investigadas no inquérito das fake News e já tiveram conteúdos checados e marcados como falsos por agências profissionais de checagens de fatos.
Em dezembro de 2020, Bereia realizou verificação sobre ataque islâmico a cristãos na Indonésia publicado pelo portal. A matéria foi categorizada como “imprecisa”, mediante as contradições evidenciadas na apuração dos fatos.
Outra matéria do Conexão Política, verificada pelo Bereia em outubro de 2020, envolvia a organização estadunidense Jubilee Campaign, que promove os direitos humanos e a liberdade religiosa. A publicação dizia que a organização havia realizado um evento paralelo à 45ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, intitulado “China Proíbe a Fé para Todas as Crianças”.
Na ocasião, Bereia avaliou que a matéria, também publicada em outros veículos ligados a grupos religiosos, e divulgada pelo deputado federal Pastor Marco Feliciano, era imprecisa. Ela foi inserida no conjunto de matérias veiculadas intensamente, em 2020, para alimentar a rejeição da opinião pública à China, país com o qual os Estados Unidos encontravam-se em guerra comercial.
A partir dessas evidências, Bereia categoriza a matéria publicada no Conexão Política como “IMPRECISA”. A imprecisão se justifica mediante a ausência de vários indícios de veracidade do fato, como o link do suposto áudio de Adelis José Lobo, uma das vítimas que estaria no local; o registro policial ou da ocorrência realizada pelo Corpo de Bombeiros e ainda informações mais precisas sobre o local onde se deu o ataque e sobre os possíveis criminosos envolvidos. É válido destacar também que o fato não foi referenciado ou apurado por qualquer grande grupo de mídia ou agências de notícias brasileiras. Outra imprecisão diz respeito à motivação do ataque. A matéria do Portas Abertas reproduzida diz que vizinhos discordavam “deste tipo de programa” e o pastor dirigente do centro de reabilitação já havia modificado a proposta para atender às demandas dos vizinhos. A matéria quer levar leitores a crerem que o ataque foi realizado por conta de a organização ser cristã, mas não há elementos suficientes na descrição e no levantamento sobre o caso que corroborem para esta conclusão.
O vídeo usado como fonte para a reportagem do Conexão Política é de autoria do blogueiro e youtuber canadense Abdullah Sameer, publicado em seu canal no YouTube em 28 de novembro de 2020, baseado em matéria original da Agência France Presse (AFP). Sameer professou o islamismo durante muitos anos até abandonar a fé e decidir compartilhar suas posições contrárias ao islamismo, como ele mesmo afirma em seu blog.
No vídeo, Sameer relata o ocorrido na vila de Lemban Tongoa, localizada na ilha de Sulawesi, ao leste da Indonésia, em 28 de novembro, conforme reportado pela AFP. Sameer aponta que seis casas foram incendiadas, sendo que uma delas seria utilizada como capela para orações. A BBC também reproduziu essa informação em matéria do dia 01 de dezembro. Já o Conexão Política, afirma na matéria que publicou, que “foram seis capelas incendiadas no ataque”.
Contradições
A contradição está no fato de que não há prova de que as casas incendiadas, eram de fato, capelas. As autoridades locais não as reconheceram como capelas. A afirmação partiu de um pronunciamento do Exército da Salvação, que assumiu que a casa incendiada era um local de culto e que os cristãos mortos atuavam no Exército da Salvação.
Conforme a própria reportagem do Conexão Política, o inspetor de polícia de Sulawesi Rakhman Baso, “disse que ‘nenhuma igreja foi queimada’ – os edifícios que foram queimados não foram oficialmente reconhecidos como igrejas oficiais”. Entretanto, no texto original produzido pela AFP, a fonte é o chefe da polícia de Sigi Regency Yoga Priyahutama, e Rakhman Baso não é citado.
Segundo a matéria do Conexão Política, quem afirma que as casas eram utilizadas como capelas pelo Exército da Salvação é o , presidente do “Sínodo Cristão Protestante, o reverendo Gumar Gultom”.
O Conexão Política também traz a afirmação de que Gumar Gultom condenou os ataques e admitiu que as vítimas eram membros do Sínodo Cristão Protestante, organização de igrejas protestantes na Indonésia. A fala do reverendo (tampouco a sua ligação com as vítimas do ataque) não está presente no vídeo de Abdullah Sameer, nem no texto da AFP. A fala do pastor aparece em texto da Asian News, site de notícias católico, publicado em 28 de novembro. O texto da BBC, embora não cite o pastor Gumar Gultom, também traz trechos da nota emitida pelo Exército da Salvação e pelo Sínodo Cristão Protestante.
A matéria da AFP não oferece conteúdo referente às vítimas serem do Exército da Salvação ou membros do Sínodo Cristão Protestante, e está ancorada no relato das autoridades locais, que afirmam que apenas uma das casas incendiadas era utilizada como capela. Também nada cita sobre as vítimas assassinadas serem membros de uma mesma família, conforme trouxe a Asian News Católica, e o Conexão Política reproduziu.
O vídeo de Abdulla Sameer, apesar de também não citar ligação do ataque ao Sínodo Cristão Protestante, nem ao Exército da Salvação, apresenta uma análise do caso a partir da qual especula sobre o grupo terrorista apontado como principal suspeito pelo atentado, indicando suas possíveis motivações e comentado sobre o que chama de “Ideologia Terrorista”, que colocaria em risco os cidadãos não muçulmanos.
O grupo terrorista Mujahideen
A única informação que não foi passível de contradições entre os textos e o vídeo publicados sobre o ataque foi a autoria do atentado, atribuída ao East Indonesia Mujahideen ou Mujahidin Indonesian Timur (MIT) . “Chegamos à conclusão de que eles [os atacantes] eram do MIT depois de mostrarem fotografias dos seus membros aos familiares das vítimas” que testemunharam a emboscada, disse o chefe da polícia de Sigi Regency, Yoga Priyahutama.
O Mujahideen é um grupo extremista criado em 2010 que apoia ações do Estado Islâmico e é responsável por diversos ataques em Sulawesi e em outras ilhas da Indonésia, mas estava inativo desde 2016. Conforme o Conselho de Segurança das Nações Unidas o “Mujahidin Indonesian Timur (MIT) foi listado em 29 de setembro de 2015 nos termos dos parágrafos 2 e 4 da resolução 2161 (2014) como estando associado à Al-Qaeda por ‘participar no financiamento, planejamento, facilitação, preparação ou perpetração de atos ou atividades por, em conjunto com, sob o nome de, em nome de, ou em apoio do’ Estado Islâmico no Iraque e no Levante (ISIL), listado como Al-Qaida no Iraque (QDe.115)”.
O Bereia classifica a notícia veiculada pelo site Conexão Política sobre ataque a cristãos na Indonésia como imprecisa. Foi verificado, conforme publicações da AFP, da BBC e de sites de notícias religiosos, como a Asian News Católica, que há contradições sobre o parentesco das vítimas, sobre se o atentado foi de fato a capelas ou somente a casas de cristãos locais. Por fim, a matéria está ancorada em material opinativo de um blogueiro ex-islâmico sem pesquisa de dados, importante para um jornalismo comprometido com a informação.
O Bereia completou um ano de atuação em 31 de outubro de 2020. Como parte deste marco tão importante, é apresentado um aprofundamento de levantamento publicado em junho de 2020 com um balanço das verificações realizadas pelo coletivo durante esse período.
Foram levadas em consideração todas as publicações da seção “Verificamos” do site Bereia, que se referem à checagem de veracidade de conteúdos informativos sobre religião que circulam em espaços digitais, encontrados pela equipe do coletivo ou indicados por seguidores/as (textos analíticos da seção Areópago não foram considerados). No total, nos doze meses de atuação do Coletivo Bereia (outubro de 2019 a outubro de 2020) foram realizadas 133 verificações de conteúdos, distribuídas conforme o gráfico a seguir:
No que diz respeito ao conteúdo qualitativo dessas checagens, serão expostos a seguir dados quanto à classificação do tipo de informação aos temas e às fontes de informação mais recorrentes nos conteúdos avaliadas.
Classificação por tipo de informação
Há pouca variação entre os dados de classificação apresentados na análise realizada em junho passado. Mais da metade das matérias publicadas por Bereia (60%) ainda concluem que os conteúdos verificados são falsos e enganosos. Pouco mais de 20% ainda representam conteúdos imprecisos e inconclusivos, ou seja, que não apresentam fundamentos para a informação transmitida ou não apresentam recursos necessários para a avaliação de sua veracidade. E apenas 19,20% são confirmadas como verdadeiras.
Temas abordados
Neste aspecto, é possível notar algumas alterações em relação à última análise. Desta vez, o conteúdo que mais se destaca na base de dados como o mais citado é Política Brasileira, com 25,20% dos casos verificados. Na sequência, está “Perseguição Religiosa”, representando 21,26% das notícias e em terceiro, com percentual de 20,47%, está Saúde (com ênfase em coronavírus), que aparecia como o assunto mais citado na última avaliação. Tal fato pode ser atribuído a redução dos casos da COVID-19 no âmbito nacional e a diminuição do espaço de divulgação de informações sobre a pandemia nas mídias. Além disso, o fato de 2020 ser um ano de eleições municipais, o tema se destaca ainda mais no dia a dia da população informações relacionadas ao cenário político.
Fontes de desinformação mais citadas
Quanto as fontes de desinformação mais recorrentes nas verificações do Bereia, o Twitter ainda se destaca como a principal, representando um percentual de 23,47 % nas matérias produzidas. Outras mídias sociais como WhatsApp e Facebook, além da categoria “Mídias digitais variadas” utilizada quando a informação não parte de uma mídia específica, mas para um conjunto delas, são ressaltadas na visualização de dados. Juntas, as plataformas de mídias digitais representam quase 60% das fontes de informação de conteúdos verificados pelo coletivo. Isto remete mais uma vez para o alerta do tipo de informação publicada nestas plataformas, que contam com critérios ainda pouco efetivos para o enfrentamento da desinformação.
As demais fontes são de sites religiosos de notícias, que recorrentemente publicam conteúdo que representam mais uma defesa de suas ideologias e valores morais. Destaca-se o portal Pleno News, como aquele que mais ofereceu material para ser verificado, seguido do Gospel Prime, do Gospel Mais, do CPAD News e do Conexão Política como os espaços digitais com vinculação religiosa que mais produzem desinformação.
Bereia reafirma um alerta aos leitores, para que não deem crédito ou compartilhem informações que não estejam fundamentadas em dados ou tenham sido expostas em veículos de informação não credenciados. O Bereia, neste um ano de atividades, renova o compromisso de atuar pela informação verdadeira e responsável e se dispõe como parceiro de maneira cada vez mais presente, colaborando a partir da metáfora bíblica de “separar o joio do trigo”, pelos próximos longos anos que espera servir.
Confira o balanço e perspectivas no enfrentamento à desinformação em espaços religiosos
Como parte das comemorações do aniversário de 1 ano do Bereia, foi realizada uma live através do Facebook com o balanço de atividades e novas perspectivas no enfrentamento à desinformação em espaços religiosos. Confira o vídeo abaixo:
Neste outubro de 2020, depois de mais uma declaração pública de exaltação ao destacado comandante da tortura de presos da ditadura militar brasileira, o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, passou a circular em mídias sociais de perfil evangélico a afirmação de que o militar teria sido uma liderança da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).
As postagens, com tom crítico à existência de torturadores entre evangélicos históricos, surgiram nas redes digitais, depois da divulgação da declaração do vice-presidente da República General Hamilton Mourão, em entrevista ao jornal alemão Deutsche Welle, em 7 de outubro, de que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por tortura na ditadura militar, foi um homem de “honra”, “que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”.
Uma das postagens críticas mais compartilhadas nas mídias sociais dizia que Ustra fazia parte do “quarteto de ferro” de militares presbiterianos, que perseguia subversivos na igreja.
O conteúdo foi propagado de várias formas:
Depois de comentários feitos nas postagens, indagando sobre fontes desta informação, emergiram desdobramentos:
Fonte: Reprodução do Twitter
Reprodução: Twitter e Facebook
Sobre o coronel Ustra ter sido presbiteriano
Para verificar a informação sobre a vinculação de Carlos Alberto Brilhante Ustra à fé evangélica presbiteriana, Bereia contatou o autor de um dos conteúdos mais compartilhados sobre o tema nas mídias sociais em outubro, postado no Twitter. Ele relatou que tomou como fonte duas informações: uma notícia no website da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), a respeito de uma palestra do Prof. Zwinglio Motta Dias, em que foi indicada a vinculação de Ustra à Igreja Presbiteriana do Brasil, e o livro “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”, que tem um capítulo de Dias, em que é mencionada a relação do coronel com a igreja.
Bereia verificou estas fontes. De fato, foi publicada matéria no site da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), intitulada “Protestantismo ignorou característica brasileira, lamenta professor sobre golpe militar”, com o relato de palestra oferecida pelo teólogo Prof. Zwinglio Motta Dias, também pastor da Igreja Presbiteriana Unida (IPU). A palestra foi realizada em 23 de setembro de 2014, na XVIII Semana de Estudos da Religião, daquela universidade, sob o tema “Religião e Poder: Os 50 anos do Golpe Militar”. A coordenação da mesa foi feita pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP, à época, Leonildo Silveira Campos. Diz a matéria:
“Foi esse distanciamento das marcas culturais e políticas brasileiras que teria influenciado a pronta adesão das igrejas evangélicas ao golpe de 1964, com a presbiteriana à frente devido à preponderância que detinha sobre a classe média da época e ao prestígio nos meios militares. ‘Oficiais de alta patente eram presbíteros, entre os quais Carlos Alberto Brilhante Ustra’, citou Zwinglio sobre o chefe do aparelho repressor DOI-CODI entre 1970-74”.
Já o livro “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”, publicado dois anos antes, organizado por Wanderley Rosa e José Adriano Filho [Editora Mauad, 2012), tem um capítulo de autoria de Zwinglio Dias, com o título “O Protagonismo dos Evangélicos durante os ‘Anos de Chumbo’ e a busca incessante por uma ‘Ecclesia Reformata’” (p. 55-73). Nela, o teólogo afirma na página 59:
“[A dissertação] relaciona os nomes de quatro oficiais militares de alta patente, presbiterianos, com funções de importância no seio do regime: cel. Renato Guimarães, presbítero, que na década seguinte se tornou vice-presidente da IPB, cel. Teodoro de Almeida, cel. Walter Faustini e o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi comandante do DOI de São Paulo”.
Esta é a única menção no livro publicado em 2012, e foi repetida por Zwinglio Dias na palestra de 2014, como relatado no site da UMESP. A matéria diz que Zwinglio Dias afirmou que “oficiais de alta patente eram presbíteros”, o que indica ser uma incompreensão da pessoa responsável pela redação, que deveria ter escrito “presbiterianos”. Segundo afirma Zwinglio Dias no livro, presbítero (cargo de liderança na IPB) era apenas um, o coronel Renato Guimarães. Esta desinformação acabou reproduzida pelo autor da postagem no Twitter, que afirmou ser o coronel Ustra um presbítero da IPB.
Bereia também verificou a fonte utilizada por Zwinglio Dias para afirmar a vinculação religiosa de Ustra, no capítulo e na palestra. Foi a dissertação de Mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Programa de Pós-Graduação em História, por Eduardo Paegle, intitulada “A posição política da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) nos anos de chumbo (1964-1985)”, defendida e aprovada em 2006. A informação, referenciada por Zwinglio Dias, consta na p. 82 da dissertação: “A participação no Golpe de 1964, contou com algumas personalidades presbiterianas, entre elas, de Eraldo Gueiros Leite, Evandro Gueiros, Nehemias Gueiros, Renato Guimarães, Teodoro de Almeida, Walter Faustini e Carlos Alberto Brilhante Ustra”.
No trabalho acadêmico, há referências para a vinculação dos Gueiros, de Guimarães e de Almeida, porém não constam fontes para afirmar a vinculação de Faustini e Ustra. O autor da dissertação afirmou ao Coletivo Bereia que não lhe é possível retomar a origem da informação da qual se valeu.
Bereia ouviu lideranças presbiterianas e buscou levantar possível vinculação do coronel Ustra com a igreja em São Paulo, durante o período que atuou no DOI-CODI, ou a partir dos anos 1986, quando se estabeleceu em Brasília e não obteve qualquer dado sobre isto. Uma das fontes levantou a possibilidade de amizade entre os coronéis Ustra e José Walter Faustini (este membro da Igreja Presbiteriana Independente). Faustino poderia ter levado o primeiro para a IPI. Esta hipótese foi rechaçada por três lideranças da IPI em São Paulo ouvidas pelo Coletivo Bereia.
Desta forma, permaneceu a dúvida, o que levou a novas buscas do Coletivo Bereia, que recorreu aos registros da Comissão Nacional da Verdade, a fonte oficial do país quanto aos fatos e às personagens que dizem respeito à ditadura militar de 1964 a 1985.
A Comissão Nacional da Verdade e o levantamento sobre igrejas na ditadura
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012 com a finalidade de “apurar (examinar e esclarecer) as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
Dada a complexidade das pesquisas e do relatório que deveria ser apresentado, o mandato da Comissão foi prorrogado até dezembro de 2014 (Medida Provisória nº 632/dez 2013). A criação e o trabalho da CNV se inspiraram em outras mais de 20 CNVs instaladas em outros países desde 1974, as quais viveram circunstâncias semelhantes à da ditadura militar brasileira. A CNV da África do Sul, por exemplo, ajudou a esclarecer violações de direitos humanos ocorridas sob o regime do apartheid. Também foram instaladas comissões em países latino–americanos como Argentina, Chile, Peru, Guatemala, El Salvador e Colômbia.
A CNV foi composta por sete membros nomeados pela Presidência da República: Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Maria Cardoso da Cunha. Eles/as coordenaram 13 grupos de trabalho temáticos, entre eles, o “Papel das Igrejas durante a ditadura”. As atividades da CNV consistiram em: pesquisa documental, realização de entrevistas e coletas de depoimentos de vítimas da repressão, agentes do Estado, parentes de vítimas e testemunhas, visitas para reconhecimento de locais que serviram como base para a violação de direitos de vítimas da repressão, diligências e audiências públicas.
No website da CNV é possível acessar o relatório final, publicado em 2014, no ano 50 do golpe militar de 1964. No Volume II consta o relatório do GT Papel das Igrejas durante a ditadura, intitulado “Violação de Direitos Humanos nas Igrejas Cristãs”. Foram levantados casos de prisões arbitrárias, sequestros, tortura, desaparecimentos, assassinatos, expulsões e exílio de católicos e evangélicos que atuaram em oposição à ditadura militar. Não há menção ao nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra entre os cristãos colaboradores da repressão, delatores e perpetradores das violações de direitos, citados no relatório.
Ouvido pelo Coletivo Bereia, o coordenador do GT Papel das Igrejas durante a ditadura Anivaldo Pereira Padilha, explicou que uma expressiva parte do conteúdo reunido durante a pesquisa não consta no relatório e foi encaminhado para o Arquivo Nacional. Ele afirma que o nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra apareceu em depoimento colhido pelo GT, nas dependências do Escritório Regional da Presidência da República em São Paulo, em 3 de maio de 2013.
Uma das torturadas pelo regime, Ana Maria Ramos Estêvão, que era membro da Igreja Metodista, presa em 1970, em 1972 e 1973, relatou ter sido interrogada pelo coronel Ustra em julho de 1973. Ela contou que, ao ver na ficha dela que ela tinha estudado no Instituto Metodista (em São Paulo), o militar lhe disse “Eu também sou metodista!” e a partir daí passou a dizer que ia lhe favorecer, deu o número do telefone dele, caso precisasse quando saísse da prisão, pois dizia acreditar que “o seu compromisso com a fé é maior do que o compromisso com a política”.
A afirmação de Ana Maria Ramos Estêvão consta na Tese de Doutorado, defendida na Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em História, em 2015, por Leandro Seawright, com o título “Ritos da oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro”. O autor havia atuado como pesquisador da CNV, por um período, e também entrevistou a ex-presa política. O relato do encontro de Ana Maria Ramos com o coronel Ustra, quando ele lhe afirma que “também era metodista” consta na página 282 da tese.
Bereia localizou Ana Maria Ramos Estêvão, que confirmou o depoimento à CNV e a Leandro Seawright. Perguntada se haveria possibilidade de o coronel Ustra ter sido presbiteriano, ela afirmou:
“Presbiteriano ele não era, com certeza. Ele era metodista, originalmente da Igreja de Santa Maria no Rio Grande do Sul. E ele frequentava a Igreja Metodista Central quando estava em São Paulo. Tenho amigos em Santa Maria que foram na Igreja Metodista pedir a declaração de que ele era membro lá, mas o pastor, o povo lá, não se manifesta sobre isto e se recusa a falar qualquer coisa. Eu tenho muito claro na memória que ele se declarou ser da Igreja Metodista. Ele conhecia várias coisas. Disse para mim e para a minha amiga, que também era do Instituto Metodista e foi presa junto comigo. A Igreja de onde ele veio era a Metodista Santa Maria, Rio Grande do Sul. Estou repetindo porque isto eu repito até morrer. Nós só não conseguimos o documento da Igreja Metodista, do registro dele como membro. Mas a família dele ainda é de lá”.
Ana Maria Ramos Estêvão
O coordenador do GT da CNV Anivaldo Padilha afirmou ao Coletivo Bereia que foi feito contato formal com a Igreja Metodista em Santa Maria, em 2013, e o nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra não foi encontrado no rol de membros da igreja.
Sobre a vinculação do coronel Ustra à Igreja Metodista
Bereia fez contato com a Igreja Metodista em Santa Maria, pastoreada pela Revda. Lediane Dias de Almeida Mello, que forneceu todas as informações disponíveis e confirmou o que foi levantado pela CNV, em 2013. O pai do Coronel Ustra, sr. Celio Martins Ustra, era membro da Igreja Metodista, tendo sido recebido em 1927, junto com a irmã Serafina. A esposa, Cacilda Brilhante Ustra, não foi localizada no rol de membros. Dois dos quatro filhos do casal constam nos registros da Igreja Metodista: Glaucia Brilhante Ustra (a terceira filha, que depois de casada, adotou o nome Glaucia Ustra Soares) e o caçula, José Augusto Brilhante Ustra, este falecido em 1982 (com registro de morte na igreja). Os irmãos Carlos Alberto, o mais velho, e Renato, o segundo filho, não foram batizados ou recebidos como membros da Igreja Metodista, de acordo com os registros.
A Revda. Lediane Mello ainda ofereceu informações que colheu com um dos membros mais antigos da igreja, uma senhora de 99 anos, em plena lucidez, que tem boa memória da atuação do sr. Celio Ustra, o pai, como líder na igreja (dirigente da Escola Dominical e da associação de homens), bem como da esposa que o acompanhava em algumas atividades. Ela não se recorda da presença Carlos Alberto Ustra na igreja, apesar de ter forte lembrança dos episódios em torno da morte do irmão José Augusto, por acidente de carro. Essa senhora disse ser vizinha de Glaucia Ustra, mas orientou que ela não fosse procurada porque se recusa a falar sobre o irmão.
Bereia ouviu também uma pessoa que foi membro da Igreja em Santa Maria nos anos 1960 e se tornou muito amiga da irmã do coronel Ustra, Glaucia Ustra. Ela diz que “a família era cristã, a mãe uma pessoa muito católica, praticante, e muito respeitada na cidade, bem como o marido”. Ela confirma que Célio Ustra era metodista, “muito ativo na igreja local e na organização regional da Igreja Metodista”. A amiga de Glaucia Ustra se recorda que nos cultos de 31 de dezembro, naqueles anos 60, “todos os membros da família, inclusive Carlos Alberto, participavam”. Ela confirma que Gláucia Ustra evita falar sobre o coronel Ustra e desrecomendou contato. Ainda assim, intermediários do Coletivo Bereia buscaram dialogar com a sra. Glaucia Ustra, em Santa Maria, e não obtiveram resposta.
Outra pessoa que participou da Igreja Metodista em Santa Maria nos anos 70, declarou ao ColetivoBereia que os pais do coronel Ustra eram acompanhados pastoralmente, pois sofriam com as histórias que envolviam o filho. O pai seguia metodista e a mãe, católica.
Sobre o coronel ter frequentado a Igreja Metodista Central de São Paulo (hoje Catedral Metodista de São Paulo), quando atuou pelo DOI-CODI, nos anos 70, Bereia procurou uma liderança da igreja, a Revda. Ana Carolina Chizzolini Alves. Ela não localizou qualquer registro de que o coronel tenha se vinculado formalmente àquela congregação. Sobre a possibilidade de ele ter sido um frequentador, um membro dessa igreja, que participava dela ativamente nos anos 1970, o procurador da República aposentado Antonio Carlos Rodrigues Ramozzi, declarou:
“Naqueles anos agitados, inclusive com o fechamento da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista [por conta da repressão interna que as igrejas viveram], nunca ouvi referências de que o referido militar frequentasse alguma de nossas igrejas protestantes. Tivemos jovens amigos presos na ocasião e, por certo, saberíamos de ‘milicos’ que frequentassem nossas igrejas. A única vez que vimos agentes policiais na [Igreja Metodista] Central foi quando levaram o Fernando [Cardoso] preso [um líderes de jovens metodistas, preso e torturado com o irmão Celso segundo o relatório da CNV], para que apontasse quem era o Domingos [Alves de Lima] que procuravam [outra liderança de juventude]. Era um sábado e se dirigiram ao pátio, onde havia um jogo na quadra. Domingos fugiu pelo portão, o que deve ter enfurecido os agentes”.
Antonio Carlos Rodrigues Ramozzi
Para Anivaldo Padilha, o coronel Ustra, como experiente torturador, pode ter “jogado com a informação de que seria metodista (de fato tinha raízes com o pai e irmãos metodistas em Santa Maria) para obter a confiança de Ana Maria Ramos, dando-lhe seu telefone, a fim de obter delação, ou, em outro sentido, torturá-la psicologicamente, como sendo alguém da sua igreja, que lhe estava causando mal”.
A mesma opinião é partilhada pelo cientista da religião prof. Leonildo Silveira Campos, também pastor da Igreja Presbiteriana Independente (IPI), que foi preso pelos órgãos da ditadura em São Paulo, quando era seminarista da igreja, entre 21 de julho e 4 de agosto de 1969. Ouvido pelo Coletivo Bereia ele declarou:
“Também acho que alguns torturadores poderiam assumir identidades falsas para conseguir suposta ‘intimidade’ com os torturados. Como diria Hamlet ‘mesmo na loucura há uma lógica’. No meu caso fui torturado por um jovem, pela voz podia-se perceber que não seria uma pessoa de mais idade. Ele dizia que estava penalizado em interrogar um jovem com a idade de seu filho com 22 anos. Por isso ele esperava que eu deixasse de mentir e oferecer informações falsas. O problema é que eu não tinha o que informar. Nesse caso os que não sabem de nada são os que mais sofriam e as vezes morriam! Fui salvo do ciclo de torturas pela intervenção de um coronel a pedido de meu pai.”
Leonildo Silveira Campos
Bereia levantou que o prof. Leonildo Silveira Campos se referiu, quanto à sua soltura, ao coronel José Walter Faustini, presbítero da IPI, destacado agente do serviço de inteligência militar no Estado de São Paulo, nomeado pelo Ministério do Exército para o Serviço Nacional de Informações mobilizado em 1968, aposentado em 1972. Em entrevista para a tese de Leandro Seawright, ele relata, nas p. 261 a 263, como, a pedido do pai, o coronel membro da IPI foi acionado para retirá-lo da prisão do DOI-CODI, e, consequentemente, das torturas. O prof. Leonildo Campos já havia registrado esta memória em artigo acadêmico (Estudos de Religião, n. 23, Universidade Metodista de São Paulo, dez. 2002).
A religião de Ustra
Nos livro de memórias de Carlos Alberto Ustra, “Rompendo o silêncio” (Editerra, 1987) e “Verdade Sufocada” (Editora Ser, 2013), não há qualquer menção a uma vinculação religiosa. Ele diz que viveu em Santa Maria até os 16 anos (1949), quando foi para um Colégio Militar em Porto Alegre, de lá foi para Resende (RJ), na Academia Militar e, em 1954, retornou para Santa Maria, para servir naquele regimento. De 1970 a 1974 foi comandante do DOI-CODI em São Paulo, órgão da repressão. Em 1974 foi para Brasília, como instrutor da Escola Nacional de Informações (ESNI). Em 1978 foi destacado para São Leopoldo (RS) e, com o fim do governo militar, virou adido militar no Uruguai, em 1985, quando foi reconhecido pela atriz Bete Mendes como o homem que a torturou. Com o escândalo, foi aposentado e passou a morar em Brasília. Carlos Alberto Brilhante Ustra depôs em Audiência Pública realizada pela CNV, em 10 de maio de 2013. Morreu em 2015, aos 83 anos.
Bereia verificou que foi realizada missa de 7º dia pela alma do coronel Ustra, em 21 de outubro de 2015, com convite aberto pela esposa Maria Joselita, por meio da página na internet que ela mantém. Houve também missa por um ano da morte dele. Todas as lideranças presbiterianas ouvidas pelo Coletivo Bereia consideram incomum que alguém ligado ao presbiterianismo tivesse missa de sétimo dia, ainda que a esposa fosse vinculada à Igreja Católica.
Bereia também submeteu a essas pessoas um trecho do livro “Rompendo o silêncio”, em que Ustra afirma:
“Nunca tomei conhecimento de que os setores progressistas da Igreja, os mesmos que defendem com tanto ardor os subversivos e os terroristas, tenham, como Pastores da Igreja, subido aos púlpitos para condenar, veementemente, as organizações terroristas que fizeram muitas vítimas, na sua quase totalidade católicos praticantes”.
Todas as pessoas consultadas, incluindo Anivaldo Padilha e o prof. Leonildo Silveira Campos, avaliam que um evangélico não usaria a linguagem do senso comum católico de se referir à Igreja Católica como “A Igreja’ e a seus padres e bispos como “Pastores da Igreja”. Portanto, o coronel usa a linguagem de um católico ao se referir à Igreja Católica.
Com base nesta avaliação e no levantamento da não-vinculação de Ustra ao presbiterianismo e ao metodismo, o Coletivo Bereia verificou a possibilidade de Carlos Alberto Brilhante Ustra ter seguido a mãe e ter-se feito católico.
Na recusa de contato da parte da irmã e de outros familiares do coronel, uma busca de fontes levou a um texto da revista Época de 26 de junho 2008 intitulado “Dá para perdoá-lo?”. De autoria de Matheus Leitão, Andréa Leal, Leandro Loyola e Wálter Nunes, a matéria relata o contexto da entrevista que o coronel Ustra concedeu à revista, tendo-os recebido em casa em Brasília. No perfil do coronel que a equipe descreve aparece:
“Quase sem cabelos, aos 76 anos, 1,74 metro, um coração frágil que já exigiu três stents – dispositivos implantados para desobstruir as artérias –, todas as tardes Ustra costuma ir à padaria. Continua católico, mas deixou de ir à missa. Diz gostar de ir ao banco pagar contas, faz compras no supermercado e vai ao correio. Afirma passar horas na internet. Abre a porta quando tocam a campainha”.
Revista Época, de 26 de junho de 2008
Bereia fez contato com o jornalista Matheus Leitão, que confirmou que, naquela entrevista, Ustra se declarou católico, vinculado à Igreja Nossa Senhora do Lago, em Brasília, na companhia da esposa Maria Joselita.
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Com base nesta verificação, o Coletivo Bereia classifica a informação de que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra teria sido membro e líder da Igreja Presbiteriana como imprecisa. Não há registros formais de que o coronel tenha se tornado membro dessa igreja e não foram localizadas testemunhas de que ele tenha sequer frequentado alguma congregação de denominação presbiteriana.
Ustra também não foi membro da Igreja Metodista como afirmou em interrogatório à, então, presa e torturada, Ana Maria Ramos Estêvão. Como Bereia levantou, o coronel, provavelmente, fez uso das informações que tinha sobre a igreja, por conta do relacionamento com pai e irmãos que eram membros em Santa Maria, sua cidade natal, para tirar vantagem da jovem que estava em situação vulnerável.
Ustra se declarou católico a jornalistas, se expressava com linguajar católico e teve missa de sétimo dia e de ano de morte. Estes podem ser considerados indícios da vinculação do agente da ditadura ao Catolicismo, tendo seguido a trajetória religiosa mãe, com quem tinha fortes laços, segundo sua biografia.
Apesar de o comandante da tortura no regime militar coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra não ter sido evangélico, o relatório final da CNV registra que houve, sim, casos de pastores metodistas e batista tanto informantes do sistema de repressão como torturador (p. 184 e 198). Há ainda documentos que comprovam a inserção de evangélicos nos quadros do regime da ditadura militar em cargos públicos, no sistema de repressão e nos cursos da Escola Superior de Guerra, levantados pela CNV e guardados no Arquivo Nacional, com toda a documentação utilizada pela comissão. Estas informações podem ser também encontradas em documentos e depoimentos atrelados a uma gama variada de pesquisas científicas, que podem ser localizadas por meio do Banco de Teses e Dissertações da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), bem como em livros como “Inquisição sem Fogueiras”, de João Dias de Araújo (ISER, 1982, relançado em 2020 pelo movimento Resistência Reformada, “Dogmatismo e Tolerância”, de Rubem Alves (Paulinas, 1982; Loyola, 2004), “Memórias Ecumênicas Protestantes”, de Zwinglio Dias (Koinonia, 2014) entre muitos outros.
Leonildo Silveira Campos, Estudos de Religião, n. 23, Universidade Metodista de São Paulo, dez. 2002.
Carlos Alberto Brilhante Ustra, Rompendo o silêncio, Editerra, 1987, https://conservadorismodobrasil.com.br/2017/05/livro-em-pdf-rompendo-o-silencio-carlos-alberto-brilhante-ustra.html )
O deputado federal Pastor Marco Feliciano (Republicanos-SP) postou no Twitter um questionamento quanto ao posicionamento da Organização das Nações Unidas a respeito de uma denúncia publicada pelo site Conexão Política.
O evento na prática consiste em um vídeo publicado, em 06 de outubro, no canal da organização Jubilee Campaign no Youtube. O canal conta com apenas 16 inscritos e o vídeo tinha 324 visualizações e cinco curtidas até o fechamento desta matéria em 09/10/2020 às 11:43. O canal está inscrito no Youtube desde 10 de novembro de 2011 e tem apenas 22 vídeos publicados num total de 2.166 visualizações em quase nove anos de existência.
A página da organização no Facebook conta com 825 seguidores e escassas interações em suas publicações.
O perfil no Twitter tem pouco mais de 480 seguidores e assim como no Facebook e Youtube, não tem grande interação em suas publicações.
O evento virtual foi a exposição de sete depoimentos, que, segundo a descrição no vídeo, seriam de “especialistas e testemunhas, consistindo de sobreviventes e representantes de quatro grupos religiosos diferentes na China: Cristãos, Muçulmanos Uigur, Falun Gong e tibetanos”.
Segundo relatos de alguns dos participantes, reproduzidos por Conexão Política:
“O Partido Comunista Chinês (PCC) tem violado consistentemente os direitos das crianças à liberdade de religião ou crença, e as crianças cristãs, budistas tibetanas, uigures e Falun Gong continuam a enfrentar perseguição e assédio em praticamente todos os aspectos de suas vidas” e “O presidente Xi Jinping e seu Partido Comunista Chinês realmente começaram uma guerra contra a fé das crianças. Desde que assumiu o poder, ele abriu pelo menos três frentes nesta guerra contra a fé das crianças e o acesso das crianças à educação religiosa e materiais religiosos”, observou Bob Fu, da organização não governamental de defesa de direitos humanos, ChinaAid”.
Assim como em outras matérias do Coletivo Bereia a respeito da perseguição religiosa na China, a matéria de Conexão Política, replicada pelo Deputado Pastor Marco Feliciano (Republicanos-SP), não apresenta fontes credenciadas e consistentes para verificação das informações que são registradas no texto veiculado. A matéria transmite a ideia de um grande evento paralelo à 45ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, no entanto, o que está disponível é um vídeo no Youtube de uma hora e 30 minutos com sete depoimentos, em um canal com apenas 16 inscritos e pouco mais de 300 visualizações.
Conexão Política, os demais veículos que circularam a notícia e o deputado Pastor Marco Feliciano, divulgam uma fonte que não oferece dados que corroborem o que se afirma em ternos acusatórios à China.
Além disso, o evento “China Proíbe a Fé para Todas as Crianças” não foi mencionado por qualquer agência de notícias internacional ou pela mídia noticiosa no Brasil (com exceção do Portal R7).
Portanto, Bereia avalia que a matéria de Conexão Política, também publicada em outros veículos ligados a grupos religiosos, e divulgada pelo deputado federal Pastor Marco Feliciano é imprecisa. Ela pode ser colocada no conjunto de matérias veiculadas intensamente, em 2020, para alimentar rejeição da opinião pública à China, país com qual os Estados Unidos encontram-se em guerra comercial. A submissão da política externa do atual governo do Brasil aos Estados Unidos, o coloca como aliado em ataques à China, centrados em desinformação disseminada em.diversos níveis. Influenciadores digitais e sites de notícias com identidade religiosa têm se alinhado a esta prática. Isto pode ser identificador em outras matérias do Coletivo Bereia sobre a China:
Alguns veículos como o G1, Noca portal de credibilidade e o portal evangélico CPAD News publicaram manchetes semelhantes à “Assembleia Legislativa do MA aprova projeto que diminui pena de presos que lerem livros da Bíblia”. Os sites não esclareceram, porém, se essa leitura era obrigatória ou se havia outros livros passíveis de ser escolhidos pelos detentos.
Originalmente, o projeto oferece ao detento a oportunidade de reduzir parte da pena pela leitura mensal de uma obra literária, clássica, científica ou filosófica, entre outras, que são previamente escolhidas pela Comissão de Remição pela Leitura, e pela elaboração de relatório ou resenha. Em artigo intitulado “Projeto Remição pela Leitura: atuação das bibliotecárias da Universidade Federal do Maranhão – Campus Grajaú na Unidade Prisional de Ressocialização”, Jaciara Marques Galvão Silva e Francinete Costa Primo comentam que o acervo é composto por livros didáticos, Bíblias e outras obras religiosas, da área de educação, dicionários e muitos paradidáticos, a maioria literatura brasileira. Isto é, não é apenas a Bíblia que está disponível para a remição de pena, e sim também a Bíblia.
Além disso, de acordo com o artigo décimo do documento do PL de origem, de 2017, “A participação do interno custodiado alfabetizado no Projeto Remição pela Leitura será voluntária, mediante inscrição no setor pedagógico ou social do Estabelecimento Penal”. O artigo 12 acrescenta: “O interno custodiado alfabetizado poderá escolher somente uma obra literária dentre os títulos selecionados para leitura e elaboração de um relatório de leitura ou resenha, a cada trinta dias”. Portanto, a proposta de leitura aos detentos, além de voluntária, é opcional, o acréscimo da Bíblia no acervo não induz a obrigatoriedade da leitura, e sim disponibiliza a opção de escolhê-la.
O PL 281/2019 não foi disponibilizado na plataforma de leis e projetos em votação da Assembleia Legislativa do Maranhão até o fechamento desta matéria. O Coletivo Bereia entrou em contato com o gabinete da deputada Mical Damasceno e conseguiu acesso à íntegra do documento aprovado recentemente. De acordo com o texto, não há indício algum de que a Bíblia seja o único livro que pode ser lido para reduzir a pena. É possível conferir o documento abaixo.
“É importante ressaltar, ainda, que o presente projeto não fere o Estado Laico, pois a leitura da Bíblia não está sendo imposta. O que se pretende aqui é garantir o direito de leitura deste livro tão importante. A Bíblia, além de ser o livro mais lido no mundo, tem sido agente transformador e possui maior influência do que qualquer outro semelhante”, explica a deputada Mical Damasceno, autora e precursora do projeto. Não consta no PL imposição da Bíblia aos detentos, no entanto pode haver interesse em estimular a leitura, considerando que o projeto prevê a obrigatoriedade no acervo.
No fim do documento do PL 281/2019, na seção de justificativa, pode-se notar que a deputada Mical Damasceno trouxe uma explicação compatível com a sua crença: “A Bíblia é a única Escritura sagrada que oferece salvação eterna como um dom totalmente gratuito da graça e da misericórdia de Deus. Contém os mais elevados padrões morais dentre todos os livros. Somente a Bíblia apresenta o mais realístico ponto de vista sobre a natureza humana, tem o poder de convencer as pessoas de seus pecados e a habilidade de transformar a natureza humana. Ela oferece uma solução realística e permanente para o problema do mal e do pecado humano”, justifica ela.
De acordo com o dispositivo legal, sendo a Bíblia a obra literária escolhida, esta será dividida em 39 livros (Velho Testamento) e 27 livros (Novo Testamento), considerando-se assim a leitura de cada um deles como uma obra concluída.
Medida similar em São Paulo
Na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) foi adotada medida similar. Segundo o Projeto de Lei n. 390/2017, as Escrituras também seriam divididas em 66 livros – 39 do Velho Testamento e 27 do Novo Testamento. Porém, o projeto foi vetado em fevereiro deste ano por ser considerado inconstitucional sob o argumento de que legislação penal é de competência do Senado e da Câmara, e não da Alesp como prevê a Constituição.
Em São Paulo, na época da aprovação do PL, em meados de 2018, houve um questionamento sobre a laicidade. O professor do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDPSP), Conrado Gontijo, relatou que o projeto esbarra na escolha da recomendação da Bíblia como livro indicado para leitura. “O Estado brasileiro é laico. Você não pode beneficiar alguém por ler a Bíblia e tirar o benefício de outra pessoa ler outro livro de sua religião”, diz ele.
Por outro lado, a Bíblia é uma coleção de livros religiosos de aproximadamente 1.500 páginas. Se for considerá-la como uma obra literária só, seria de fato muito grande em comparação com outras. Dada a extensão, a já comum divisão em livros com quantidades menores de páginas é um facilitador para que os detentos possam escolher o livro religioso.
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Bereia classifica as matérias que divulgam o PL 281/2019 como imprecisas por oferecerem conteúdos verdadeiros, porém sem considerar as diferentes perspectivas e não contextualizar a situação explicando que os livros da Bíblia são apenas parte do acervo que pode ser lido pelos detentos em progressão de pena.
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Foto de capa: Pixabay/Reprodução
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Referências de checagem
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO MARANHÃO. Aprovado PL que insere a Bíblia como livro obrigatório na remição de pena. Disponível em: https://www.al.ma.leg.br/noticias/40250. Acesso em: 13 ago 2020.
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO MARANHÃO. Deputada Mical apresenta projeto que inclui a Bíblia no acervo bibliográfico do projeto “Remissão pela Leitura”. Disponível em: https://www.al.ma.leg.br/noticias/38497. Acesso em: 13 ago 2020.
PROJETO REMIÇÃO PELA LEITURA: atuação das bibliotecárias da Universidade Federal do Maranhão – Campus Grajaú na Unidade Prisional de Ressocialização. Disponível em: https://portal.febab.org.br/anais/article/download/2192/2193. Acesso em: 13 ago 2020.