Em meio às polêmicas de Frei Gilson, falsa noção de “cristofobia” volta à cena

Desde o início do tempo da Quaresma no calendário cristão, o religioso católico Gilson da Silva Pupo Azevedo, conhecido como Frei Gilson, tem reunido mais de um milhão de pessoas online, às 4h da manhã, para a oração do Terço do Rosário. As lives são transmitidas pelo YouTube e pelas redes sociais do religioso e chamaram a atenção de grupos que, até então, o desconheciam.

Para quem ainda não tinha ouvido falar em Frei Gilson, o número de fiéis que acompanha suas transmissões na madrugada pode impressionar, mas o líder religioso da Ordem das Carmelitas Mensageiras do Espírito Santo atrai multidões desde o período de maior reclusão social durante a pandemia de covid-19.

Hoje, apenas no Instagram, o perfil de Frei Gilson tem 8,4 milhões de seguidores (dos quais 840 mil foram adicionados nos últimos 15 dias). No YouTube, são 6,7 milhões de inscritos e, no Facebook, 2,4 milhões. Mesmo com números tão expressivos, porém, a popularidade do carmelita parecia restrita a nichos religiosos.

Imagem: reprodução Instagram

Isso mudou com a chegada da Quaresma, em 5 de março último, quando o fenômeno digital Frei Gilson “furou a bolha”. Em uma de suas pregações, o sacerdote criticou o empoderamento feminino, ao defender a submissão da mulher em relação ao homem. “É uma fraqueza da mulher: ela sempre quer ter mais. (…) Isso é ideologia dos mundos atuais. Uma mulher que quer mais… vou até usar a palavra que vocês já escutaram muito: empoderamento”.

À fala interpretada como misógina somaram-se antigas publicações do religioso, recuperadas e expostas nas redes. Vieram à tona não apenas a visão conservadora do frei, mas sua bandeira anicomunista, a retórica apoiada numa suposta “guerra espiritual” e o papel político jogado pelo líder religioso.

Diante das críticas propagadas por diferentes pessoas  da esquerda, travou-se um embate político em torno da figura de Frei Gilson, com boa parte da extrema direita brasileira com identidade cristã saindo em sua defesa. Os deputados federais Hélio Lopes (PL-RJ), Gustavo Gayer (PL-GO), Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG), os senadores Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Magno Malta (PL-ES), o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos), o presidente do Partido Liberal Valdemar Costa Neto, além do próprio Jair Bolsonaro (PL) e de inúmeras outras figuras do extremismo de direita manifestaram apoio ao religioso católico nas redes.

Imagem: reprodução Instagram

Apesar do crescimento da atenção sobre o líder religioso e do apoio recebido por políticos da direita, em meio às críticas, Frei Gilson removeu ou ocultou cerca de 1,4 mil vídeos de seu canal no YouTube. As remoções ocorreram, em sua maior parte, entre a sexta-feira (14 de março) e o sábado (15 de março). Os conteúdos retirados do ar haviam sido publicados entre 2018 e 2024. Entre os vídeos removidos, 370 foram publicados no ano eleitoral de 2022.

Rearticulação do termo ‘cristofobia’

A recente discussão política em torno de Frei Gilson foi acompanhada de uma articulação ideológica que trouxe à tona um termo há muito tempo usado pela extrema direita no Brasil: “cristofobia”. O próprio religioso e seus apoiadores, em especial políticos, passaram a divulgar que era um caso de perseguição a um cristão ou prática de cristofobia às críticas que lhe foram atribuídas na arena das mídias sociais.

Imagem:  Instagram. Perfil do vereador Alexandre Aleluia (DEM-Salvador, BA)
Imagem: Instagram. Perfil do deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ)

A palavra, no contexto brasileiro, transmite uma ideia enganosa, já que, como pesquisadores da religião demonstram, os fenômenos de perseguição por motivos religiosos no Brasil estão associados a outras manifestações, como o racismo contra as tradições de matriz africana, a islamofobia e a repressão interna em igreja cristãs.

Sobre a falácia do uso do termo no Brasil, a antropóloga e pesquisadora do tema Brenda Carranza explica que uma perseguição religiosa implica a negação da liberdade religiosa com ameaça ao direito de culto e expressão da fé, agressão física e simbólica a pessoas e a igrejas. No Brasil, o Cristianismo é, historicamente, religião de maioria demográfica, simbólica e cultural, portanto, para a pesquisadora, trata-se de um discurso construído em bases falaciosas, já que a perseguição embutida na ideia de “cristofobia” não ocorre na realidade brasileira.

Como demonstrado nas pesquisas, o engano é construído deliberadamente por lideranças religiosas ou não. A retórica serve tanto para dificultar ou impedir que cristãos sejam criticados em suas ações quanto para facilitar a livre exposição de discursos ou práticas intolerantes da parte de cristãos.

No cenário propiciado pelas discussões nas redes digitais, o termo foi defendido, por exemplo, em uma coluna do portal Gazeta do Povo, sob o título “Cristofobia não é mito; ela existe e precisa ser combatida no Brasil”.

Como exemplo da perseguição sofrida por grupos cristãos, o texto cita levantamento global da Organização Não Governamental (ONG) Portas Abertas, segundo o qual há 400 milhões de cristãos sob perseguição no mundo. A coluna omite, no entanto, que o Brasil não figura na lista de países divulgada pela ONG.

Mapa disponibilizado pela ONG Portas Abertas não inclui Brasil como local de perseguição contra cristãos – Imagem: reprodução site portasabertas.org

De acordo com a ONG, que é forte referência entre cristãos conservadores, 13 países vivem situação de “perseguição extrema” contra cristãos, 47 vivem “perseguição severa” e 18, “perseguição alta”. Do total de 78 países, os 50 primeiros integram a chamada “Lista Mundial de Perseguição 2025”, e os demais são considerados “países em observação”. O Brasil não está em nenhuma das categorias. A Portas Abertas foi fundada em 1955 e tem identidade cristã.

Porém, as articulações em torno do termo não ficaram apenas no campo da opinião. Em Sorocaba (SP), a “cristofobia” ganhou um dia para chamar de seu. Após um projeto de lei ter sido apresentado pelo vereador Dylan Roberto Viana Dantas (PL), entrou em vigor a Lei nº 13.153, de 13 de março de 2025, que instituiu o “Dia de Combate à Cristofobia” no município do interior paulista.

Imagem: reprodução site camarasorocaba.sp.gov.br 

A data será comemorada anualmente no dia 3 de abril e a lei que incluiu a cristofobia no calendário oficial sorocabano autoriza campanhas de promoção da fé cristã e “ações de conscientização contra qualquer forma de discriminação ou violência praticada contra cristãos”.

Ainda em meio à repercussão do caso Frei Gilson, estudantes extremistas vandalizaram símbolos atribuídos a “comunistas” no Centro Acadêmico de Artes Visuais (CAVis) da Universidade de Brasília (UnB). De acordo com o portal Metrópoles, jovens que se identificam com a direita política espalharam mensagens que condenam o “comunismo” e disseram que, na universidade, estão espalhados conteúdos de “apoio ao terrorismo” e à “cristofobia”.

Antigas polêmicas envolvendo Frei Gilson

Em setembro de 2024, conforme mostrou Bereia, Frei Gilson também esteve no centro de uma polêmica com disseminação de conteúdo enganoso nas redes. À época, ele teve o perfil no Instagram suspenso pela Meta (dona da plataforma) e não conseguiu transmitir suas lives com a reza do Rosário.

Plataformas da Meta, como Instagram e WhatsApp, contam com sistema de detecção de comportamento inautêntico e de conteúdos que possam ferir as chamadas “diretrizes da comunidade”. O Instagram tem, por exemplo, a prerrogativa de bloquear conteúdos quando há indícios de atuação fora dos padrões.

O perfil de Frei Gilson no Instagram ficou suspenso por menos de uma semana — cinco dias — e a Meta disse que havia ocorrido um engano. Embora a suspensão esteja prevista pelas diretrizes da plataforma e todos os perfis, religiosos ou não, estejam sujeitos a suspensões por diversos motivos, cinco dias foi tempo o bastante para que surgissem alegações de perseguição religiosa.

Imagem: reprodução/Instagram

Seguidores do frei carmelita criticavam a suposta perseguição com frases como “guerra espiritual!” ou “Não podemos deixar o inimigo nos derrotar”. O cunho político das alegações ficou claro em manifestações como “Nós avisamos em 2022”.

A referência ao ano eleitoral de 2022 ignora, no entanto, que Frei Gilson já se inseria no jogo político ideológico há mais tempo. Em julho de 2021, em Brasília, o religioso fez uma transmissão acompanhada por ao menos 30 mil pessoas. O púlpito, montado na Torre de TV da capital federal, um de seus pontos turísticos mais conhecidos, estava coberto com uma bandeira do Brasil (símbolo já amplamente utilizado pela extrema-direita) e, na fala, ficava claro o tom político da pregação.

“Vamos batalhar. Nós vamos orar e vamos clamar as poderosas bençãos de Deus e a intercessão de Nossa Senhora pela nossa pátria, pelo nosso Brasil (…) Não permitais Senhora e rainha de Nazaré que os erros da Rússia venham assolar o Brasil como bem afirmou Nossa Senhora em Fátima”, afirmou o frei.

A referência à Rússia disfarçava a crítica ao comunismo, criticado pelo líder religioso. Naquele dia, ele também criticou a prática do aborto, a desestruturação da família e o abuso de poder por autoridades, bandeiras instrumentalizadas pela extrema direita no Brasil.

Referências

Gazeta do Povo

https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/cronicas-de-um-estado-laico/cristofobia-existe-precisa-ser-combatida-brasil/ Acesso em: 19 mar 2025

Câmara de Sorocaba

http://www.camarasorocaba.sp.gov.br/newsitem.html?id=67d411ade6dec32bed3b591b Acesso em: 19 mar 2025

UOL

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/03/14/apos-criticas-a-frei-gilson-deputado-propoe-lei-para-criminalizar-ataques-a-religiosos.htm Acesso em: 19 mar 2025

Metrópoles

https://www.metropoles.com/distrito-federal/unb-direitistas-apagam-simbolos-de-comunistas-e-geram-polemica Acesso em: 19 mar 2025

O Globo

https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/post/2025/03/alvo-de-criticas-da-esquerda-frei-gilson-remove-14-mil-videos-de-seu-canal-no-youtube.ghtml Acesso em: 19 mar 2025

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/03/08/saiba-quem-e-frei-gilson-lider-religioso-que-reuniu-1-milhao-de-catolicos-em-live.ghtml Acesso em: 19 mar 2025

Portas Abertas

https://portasabertas.org.br/ Acesso em: 19 mar 2025

Nexo

https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/existe-cristofobia-no-brasil Acesso em: 19 mar 2025

Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/blogs/hashtag/2025/03/sucesso-de-frei-gilson-nas-redes-sociais-e-consolidado-e-atrai-fieis-de-outras-religioes-dizem-especialistas.shtml Acesso em: 19 mar 2025

Meta

https://transparency.meta.com/pt-br/policies/community-standards/ Acesso em: 19 mar 2025

CNN

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/parlamentares-de-direita-apoiam-frei-gilson-apos-ataques-da-esquerda/ Acesso em: 19 mar 2025

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