
Série da Netflix “Adolescência” criminaliza jovens brancos conservadores: esta é a ideia transmitida pela deputada federal Bia Kicis (PL-DF) em publicação no Instagram, em 24 de março último. O texto da deputada católica cita os casos que vitimaram as jovens inglesas Ava White e Elianne Andam, em 2021 e 2023, respectivamente, como inspirações para a série e acusa a produção de ter alterado a identidade do assassino de Elianne Andam. Segundo Kicis, era um homem negro e usuário de drogas que foi trocado na série por um adolescente branco de perfil conservador, propositalmente, “para encaixá-lo em uma narrativa específica”.
Imagem: reprodução Instagram
O texto publicado por Bia Kicis questiona “a conexão da trama com a cultura incel” e afirma que a produção audiovisual faz uma “tentativa de encaixar o crime dentro de um discurso ideológico”. Além do texto, a publicação da deputada contém uma imagem manipulada com as fotos de Hassan Sentamu, jovem negro acusado de assassinato, e Owen Cooper, o jovem ator do seriado da Netflix.
A deputada federal do PL atribuiu os créditos da informação compartilhada ao perfil do programa Informação e Liberdade no Instagram. O programa é apresentado em canal do YouTube, por Lidiane Pacheco. Entre as publicações do perfil está a que foi reproduzida por Bia Kicis.
Imagem: reprodução YouTube
Em perfil no Instagram, Lidiane Pacheco se define como “americana, brasileira, Relações Públicas e comunicação política”. Há várias publicações elogiosas ao ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e ao deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Imagem: reprodução Instagram
Imagem: reprodução Instagram
Publicações como a do canal do YouTube, replicadas pela deputada, foram motivadas pela reação do proprietário da rede X Elon Musk a uma informação sobre a série “Adolescência” publicada na plataforma. Musk reagiu com uma expressão de surpresa à publicação, feita em 20 de março, por Ian Miles Chong, “o comentarista de direita preferido do Twitter”, segundo apuração do jornal indiano em língua inglesa The Times of India.
Na informação publicada no X, Chong diz que os autores da série trocaram “a raça do verdadeiro assassino de um homem negro/imigrante para um garoto branco”.
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A Revista Oeste também fez coro ao discurso com uma publicação ainda em 20 de março, e compartilhou interações de outras contas sobre o assunto na plataforma de mídia social X.
Imagem: reprodução Revista Oeste
Ao verificar o caso, Bereia teve acesso à publicação do núcleo de checagem de fatos do jornal O Estado de S. Paulo, Estadão Verifica, que classificou as informações como enganosas.
Do que trata a série Adolescência?
A produção audiovisual da Netflix Adolescência conta a história da investigação de um crime, na qual um garoto de 13 anos é acusado de assassinar uma colega de classe. A série de quatro episódios estreou em 13 de março passado e se mantém como a mais assistida da plataforma de streaming até o fechamento desta matéria.
Um dos personagens da trama orienta o detetive responsável pelo caso sobre a linguagem das culturas Incel e Redpill nas mídias digitais, e ajuda a elucidar o crime.
O que são as culturas Incel e Redpill?
O termo “Incel” começou a ser usado na década de 1990, e nos dias de hoje se tornou popular em comunidades online. “Incel” é a combinação das palavras involuntário e celibatário, utilizada para indicar um homem que sente insatisfação sexual. Frequentemente, essa expressão é empregada de maneira negativa.
Além do significado direto, este termo traz como partes de sua própria constituição, os debates acerca de gênero, misoginia, agressão e extremismo. Embora esteja associado à misoginia e a grupos majoritariamente masculinos, a origem da palavra “incel” pertence a uma mulher: Alana, que é conhecida apenas pelo primeiro nome.
O termo se tornou mais conhecido nos anos 1990, ao se integrar ao vocabulário que Alana utilizava em seu site, chamado Projeto de Celibato Involuntário de Alana. A jovem se dirigia aos seguidores enquanto compartilhavam mensagens sobre sentimentos de timidez e dificuldades sociais. Atualmente, o termo se popularizou, e adquiriu novos significados.
De acordo com o psicólogo e pesquisador Manoel Antônio dos Santos, o termo designa os homens que se sentem rejeitados por mulheres e acabam assumindo posturas misóginas e atitudes hostis contra elas, utilizando principalmente as comunidades on-line para disseminar seu ódio generalizado e purgar seu ressentimento.
É no ambiente virtual que se sentem acolhidos em sua vulnerabilidade e usam esse espaço para se manterem anônimos. O espaço virtual viabiliza o encontro entre os pares, que se identificam por meio da troca de mensagens e potencializam sua atuação.
Na série Adolescência, os termos redpill e incel são citados no contexto da trama ao tratar sobre a misoginia. Os redpills são os homens que “acordaram” para a realidade na qual as mulheres são de fato interesseiras, injustas e cruéis com a classe masculina.
Adolescentes brancos estão sendo criminalizados na série no lugar de negros?
O núcleo de checagem de fatos do Estadão concluiu que publicações como a da deputada federal Bia Kicis, que alegam que a produção da série Adolescência teria optado por um ator branco para retratar um criminoso negro e imigrante são enganosas.
Na verdade, a produção não teria sido baseada em um único caso, mas a partir de diferentes crimes que circularam nos noticiários, incluindo um cometido por um jovem negro. Tanto o roteirista Stephen Graham como o co-criador da série Jack Thorne já haviam refutado tais acusações e reiteraram que a obra tem como assunto principal a masculinidade.
Incels e redpills no Brasil
O “Relatório de recomendações para o enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo no Brasil”, elaborado por um Grupo de Trabalho criado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em 2023, alerta que a misoginia e o discurso de ódio contra as mulheres deve ser visto como um processo que está naturalizado no âmbito das relações, e no ambiente virtual o impacto acaba sendo muito maior.
De acordo com o relatório, “o discurso de ódio contra as mulheres está associado às desigualdades de gênero historicamente observadas no Brasil e no mundo, elemento fundante da opressão dirigida às mulheres, que resulta na disseminação e contágio de práticas e crenças misóginas, tratamento violento e indigno às mulheres.”
É nesse contexto que as comunidades masculinistas – composta pelos denominados incels e redpills – surgem com força violenta e opressora, disseminando discursos misóginos dentro e fora do ambiente virtual.
Para a pesquisadora e editora-geral do Coletivo Bereia Magali Cunha, que fez parte da equipe de pesquisadores para elaboração do relatório, o fato de o MDHC ter criado este grupo e produzido o relatório significa muito. Afinal, a cultura de ódio e os extremismos políticos ferem vários direitos cidadãos: o direito de ser e de existir com liberdade e segurança, que desafia a coexistência pacífica em meio às diferenças, à liberdade de opinião e de expressão, que deve ser garantido, mas não significa um direito de ofender e incitar violência; de não haver ataque à honra e à reputação; à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, entre outros.
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Bereia classifica as informações publicadas pela deputada federal Bia Kicis como enganosas, visto que tem elementos factuais, mas a apresentação deles é feita de forma distorcida para levar as pessoas a crerem que existe um discurso construído que criminaliza jovens brancos conservadores por crimes de violência de gênero.
A peça desinformativa foi construída para ofuscar dados reais e afastar uma discussão pertinente sobre os efeitos danosos de um discurso conservador misógino e focar, de maneira estrategicamente enganosa, na questão de raça, o que não é o foco do material original.
A deputada federal Bia Kicis (PL-DF) está entre os perfis religiosos mais checados da política brasileira pelo Bereia. Kicis já compartilhou informações falsas e enganosas sobre diversos assuntos, entre eles, presos do 8 de janeiro, combate ao vírus da covid-19, lei de incentivo à cultura, desmatamento na Amazônia, enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul, em maio de 2024, perseguição cristã no Brasil e antissemitismo.
Referências
BBC
https://www.bbc.com/news/articles/c2exnexw2gvo Acesso em 07 ABR 25
https://www.bbc.com/news/articles/ckg8ly1wr8ro Acesso em 07 ABR 25
https://www.bbc.com/news/uk-england-merseyside-62119537 Acesso em 07 ABR 25
Times of India
https://timesofindia.indiatimes.com/world/us/who-is-ian-miles-cheong-meet-twitters-favourite-right-wing-commentator/articleshow/111606114.cms Acesso em 07 ABR 25
CNN Brasil
https://www.cnnbrasil.com.br/lifestyle/o-que-e-incel-termo-citado-na-serie-adolescencia/ Acesso em 07 ABR 25
Incels e Misoginia On-line em Tempos de Cultura Digital – Periódicos de Psicologia
https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-428120220 00301081 Acesso em 07 ABR 25
Netflix
https://about.netflix.com/en/news/netflix-reveals-upcoming-us-series-films-and-games-for-2025 Acesso em 08 ABR 25
https://about.netflix.com/en/news/netflix-makes-adolescence-available-to-all-secondary-schools-across-the-uk Acesso em 08 ABR 25
Carta Capital
https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/sobre-a-imperativa-tarefa-de-enfrentar-a-cultura-de-odio-e-os-extremismos/ Acesso em 07 ABR 25
Estadão Verificahttps://www.estadao.com.br/estadao-verifica/serie-adolescencia-netflix-protagonista-branco-criminoso-negro-enganso/ Acesso em 09 ABR 25