* Texto publicado originalmente no Medium.
Introdução
A primeira programação de início do meu feriadão de Finados foi assistir ao vídeo da pregação de Ed René Kivitz1, pastor presidente da Igreja Batista de Água Branca (IBAB) desde 1989, durante o culto online do dia 25 de outubro de 2020. Caso você ainda não tenha assistido ao vídeo inteiro, clique aqui. Só registrando que, no dia em que assisti ao vídeo, que tem por título “Cartas vivas contra letras mortas”, a quantidade de visualizações já tinha ultrapassado a marca de 260 mil. Uma coisa a observar nessa questão numérica destacada pelo YouTube é que, até o momento em que assisti, 9,9 mil pessoas informaram que gostaram do vídeo enquanto que 9,2 mil clicaram em “não gostei”.
Minha programação, no entanto, não se encerrou com os 49 minutos do vídeo. Acrescentando mais 50 minutos, eu também assisti ao vídeo que o próprio Ed René gravou na quinta-feira, dia 29 de outubro, a partir da produção de um projeto conhecido como “Movimento Casa”, projeto esse que fomenta a igreja como uma casa que se chama encontro. O “Movimento Casa” vai ao ar todas as quintas-feiras, às 20h30min, no canal do YouTube da denominação. Por conta da repercussão do primeiro vídeo, Ed René Kivitz apresentou os pontos explicativos de sua mensagem anterior. Veja aqui.
Fiz questão de assistir aos dois vídeos em sua inteireza porque acredito que, em tempos de consumidores de 30 segundos de vídeo e leitores de manchete nas mídias sociais, o contexto comunicativo fala muito mais do que a literalidade da palavra. E para quem já assistiu a mensagem do pastor Ed percebe que ele trata justamente dessa questão de literalidade e profundidade ao falar das linhas e entrelinhas da Bíblia.
Em números de comentários, em uma das postagens no perfil de Ed René Kivitz no Instagram, até o momento da escrita desse parágrafo, já tinha sido registrado 5.785 comentários. Não conseguimos informar o número do YouTube, pois os comentários dos vídeos foram desativados. Vale observar que esse número de comentários no Instagram é de apenas uma postagem no perfil oficial do pastor, mas imagina a quantidade se conseguíssemos somar os comentários publicados em todas as postagens de quem compartilhou o fragmento ou até mesmo o vídeo inteiro! Mas vamos lá! Confesso que escrevo este texto para que possamos pensar acerca dos atravessamentos sociais, digitais e religiosos que entram em cena quando um pastor ou qualquer pessoa publica seu discurso na internet. E apresento, como consideração, o meu posicionamento diante do lamentável fato.
A sociedade em rede e o apedrejamento virtual
O primeiro ponto que destaco aqui, enquanto pesquisador de Comunicação, precisamente dedicado a analisar os fenômenos gerados a partir da articulação entre mídia e religião, é que com o desenvolvimento das tecnologias sociodigitais, a pregação não se encerra na hora do “Amém”. Pensa comigo! Antes da cultura digital, o pastor pregava no templo e, em determinado horário, encerrava o culto e todo mundo ia embora para suas casas. O exemplo a que me refiro pode ser derrubado por vários outros pesquisadores e professores que trabalham com o conceito de Mediação, pois não necessariamente a pregação e o culto se encerravam, de fato, no templo. Bastava uma conversa de um fiel com seus familiares em casa sobre a mensagem que ele ouviu de seu pastor no templo.
É importante afirmar que não foi a internet quem inaugurou o contexto de circulação discursiva, porém é mais do que consenso entre os pesquisadores da área que a internet potencializou essa circulação. No contexto de uma pregação no ambiente digital, outras variáveis se apresentam como moduladoras de produção de sentido. Dentre elas, apresentamos algumas características potencializadas pelo ambiente digital:
- Na internet, a mensagem religiosa sempre está disponível (on-line) e você pode assisti-la em loop infinito, ou seja, pode ver e rever quantas vezes quiser e no horário que puder;
- Antes das mídias de gravação, toda e qualquer mensagem era datada, pois, se você perdesse o momento de ouvi-la naquele local e horário, era impossível ter acesso a ela novamente;
- Outra característica com o advento da internet é que o vídeo da pregação pode ser compartilhado para mais e mais pessoas, justamente por ser operacionalizado em fluxo de rede;
- O fato do “Amém” do pastor, hoje em dia, já não é mais suficiente para encerrar a pregação, pois a mensagem incorpora um status de circulação discursiva quando é publicada e compartilhada em rede e na rede;
- O próprio pastor Ed René percebeu isso a ponto de dizer, no segundo vídeo que indico acima, que o modo de fazer Teologia em rede é reconfigurado pelo processo de edição. E aqui é onde mora o perigo, pois a interpretação e reinterpretação de quem assiste ganha materialidade e força a partir do momento em que uma pregação de 49 minutos é ressignificada em apenas 1 minuto, por exemplo.
No caso de Ed René Kivitz, ele não é considerado apenas o pastor e influenciador de sua comunidade (IBAB). O motivo é que, em tempos de tecnologias de mídias digitais, um líder religioso não conta apenas com a audiência restrita dos fiéis dentro de um templo. No contexto de midiatização da cultura e da sociedade, a produção discursiva da liderança religiosa rompe as paredes do domínio exclusivo da igreja e atinge os níveis de audiência da sociedade conectada e interconectada por meio da internet.
O que percebemos na primeira semana em que o vídeo foi publicado tratou-se de um “apedrejamento virtual” em massa ao pastor Kivitz. E quando falamos em apedrejamento nos lembramos da mulher adúltera, fato narrado no capítulo 8 do Evangelho de João. Esse texto bíblico é um dos mais citados quando nos referimos a apedrejamento. No entanto, já destaco que a minha proposta aqui não é captar a literalidade do texto, até porque a tentativa de apedrejamento descrita em João 8 não tem nada a ver com o que estamos chamando aqui de “apedrejamento virtual”. Nossa apropriação é dialogar com o sentido das palavras em analogia com um ambiente no qual os protagonistas de agressões, conhecidos como “justiceiros digitais”, estão sempre de plantão para “linchar” ou até mesmo “cancelar” qualquer pessoa. Inclusive você e eu não estamos livres de sermos “queimados na praça digital” ao publicar algum pensamento que não atenda ao crivo dos justiceiros.
Esse tipo de comentários se configura como “apedrejamento virtual” pela falta de capacidade argumentativa, a qual é muito diferente de uma opinião. O direito à opinião e à argumentação é saudável para todo e qualquer debate. Se eu discordo de algum pensamento seu exposto publicamente, eu preciso fundamentar minha opinião no respeito, nos fatos levantados e no reconhecimento do contexto que envolve a nossa comunicação. Mas antes de falar sobre isso, vamos entender, resumidamente, o contexto cultural em que vivemos nessa pós-modernidade.
O teólogo de internet
Enquanto a internet nos proporcionou aquilo que podemos entender como um dos saltos qualitativos de nossa história humana, ao aproximar e conectar pessoas dos mais variados lugares do planeta, possibilitando uma conexão não só entre iguais, mas também entre plurais, ela também, enquanto ambiente, escancarou o pior e mais degradável comportamento humano: a agressão e o ódio.
No século XX, com a predominância do jornal impresso, do rádio e da TV, o polo produtivo da cultura midiática estava concentrado nos que detinham o poder midiático enquanto que a massa consumia passivamente suas informações e produtos. Com a democratização da internet, mesmo que o poder ainda esteja concentrado nas grandes empresas de tecnologia, a exemplo do Google e Facebook, a audiência agora conta com possibilidades de produção e reprodução, além do consumo.
Vamos criar aqui uma pequena linha do tempo para que sua compreensão faça conexão com o meu pensamento. Por ocasião dos 503 anos da Reforma Protestante, comemorado no dia 31 de outubro de 2020, nos tempos de Martinho Lutero, a Bíblia era uma mídia exclusiva do clero da Igreja Católica. O povo não tinha acesso a ela e a interpretação era mediada pela Igreja. Com a invenção da prensa pelo alemão Gutenberg, no século XV, e posteriormente apropriada pelas estratégias dos reformadores, o povo teve a possibilidade, após ser alfabetizado, de interpretar a Bíblia pessoalmente ao longo da história, porque agora “a mídia” estava em sua mão. É óbvio que a igreja continuava a ter a sua importância no campo da religião e continuou sendo uma forte mediadora do processo de interpretação bíblica no contexto social. No entanto, o transbordamento da interpretação pessoal não acontecia na potencialização social, pois a relação era de um para um, ou seja, não existia mídia alguma para as pessoas produzirem conteúdo teológico, apenas a igreja tinha esse poder. É a internet quem potencializa a força produtiva de sua audiência na relação todos-todos. De acordo com o professor André Lemos, a cibercultura liberou a emissão da palavra. É como se tudo que consumimos tivéssemos a obrigação de compartilhar, opinar, sugerir, criticar e hoje, ao percebemos tais fatos, eu acrescento mais um verbo a essa lista: agredir.
A internet também possibilitou que ao lado do reino dos especialistas esteja o reino dos amadores. São pessoas que nunca fizeram um curso teológico, por exemplo, mas ao participar de grupos na internet que discutem Teologia, já se autodenominam teólogos e debatem assuntos teológicos. Sobre isso, no trabalho de conclusão de curso, a jornalista Manuela Maria Patrício Cunha afirma que “a facilidade em obter informação não é proporcional à aquisição do conhecimento por parte dos usuários das mídias sociais, na medida em que, por vezes, valoriza-se a opinião acima da informação. Isto, consequentemente, gera a superficialização dos conteúdos disseminados no ciberespaço, fazendo surgir o teólogo de internet” (CUNHA, 2017, p. 57).
Considerações finais
Se convém ao servo do Senhor ensinar com mansidão, e não contender, por que estamos fazendo da internet uma máquina de ódio, conforme destacou a jornalista Patrícia Campos Mello? É óbvio que isso não é um comportamento exclusivo dos religiosos e nem muito menos dos cristãos. Mas é um comportamento próprio do (des)humano, pois o linchamento não escolhe suas vítimas. Toda semana estamos presenciando alguém sofrendo com a violência digital.
Ao compartilhar nos meus stories sobre a minha postura em relação ao Ed René Kivitz, recebi a seguinte mensagem: “não se trata de debate teológico, se trata de pura heresia, doutrina de demônio como disse Paulo e que deve ser reprovada com toda a veemência”. Pergunto: quais são os critérios que alguém estabelece para condenar o seu irmão ao inferno? Quem sou eu para dizer que o outro está condenado ao inferno? O Evangelho que conheço não me permite isso porque a mensagem pelo qual fui ensinado é uma mensagem de vida, de perdão, de amor, de estender a mão. É muito triste ver que Ed René Kivitz foi entregue a Satanás pelos próprios irmãos na fé.
O ambiente digital é plural e por isso a respeitosa discordância é sempre bem-vinda. Com exceção das pessoas que usaram da argumentação para discordar do pastor Ed René Kivitz, incluindo aí os especialistas teólogos, muitas outras, em nome de uma falsa defesa do texto bíblico, condenaram o pastor ao inferno. Isso, na mais simples palavra que podemos imaginar, é conhecida como hipocrisia, porque, enquanto condena um, outros são endeusados. Nas palavras do próprio pastor, a maior tristeza é perceber que a “igreja” é capaz de proferir tantas palavras de mortes e ainda possuir no seu seio muitos atores e promotores da condenação ao inferno.
Que o Senhor, na sua infinita bondade, nos livre das agressões dos justiceiros digitais! Pois eles não discordam, eles agridem.
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Referências
1 Ed René Kivitz é teólogo, conferencista e escritor. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Idealizador do Fórum Cristão de Profissionais. Possui uma conta no Instagram com 222 mil seguidores, um canal no YouTube com 114 mil inscritos, um perfil no Twitter com 102 mil seguidores e uma conta no Spotify em que mantém um podcast chamado “Qohélet”.