Um novo movimento de mulheres cristãs vem crescendo nas redes sociais digitais brasileiras. Chamado de antifeminismo cristão, ele reúne influenciadoras, autoras e figuras políticas que utilizam a linguagem da fé para oferecer às mulheres um “propósito” de vida centrado na família, na submissão e na virtude, enquanto atacam pautas feministas que denominam “ideologia de gênero” ou “agenda woke”.
Essas vozes têm presença marcante em redes sociais, podcasts, cursos on-line e congressos presenciais, e formam uma comunidade numerosa de seguidoras que se identificam com uma estética de pureza, maternidade e devoção. Porém, o movimento também se consolidou como mercado religioso e político: há venda de livros, clubes de assinatura, palestras, doações e eventos que movimentam milhares de reais.
Bereia buscou informações sobre esta nova dinâmica sociorreligiosa, uma vez que as mulheres são a grande maioria das participantes de igrejas e grupos cristãos no Brasil.
O que é o feminismo, alvo de antifeministas?
O feminismo é um movimento social e político, iniciado a partir do século 18, na Europa, com as pautas da Revolução Francesa e os ideais do Iluminismo, que busca a igualdade de direitos entre homens e mulheres e a garantia da inclusão das mulheres nas dinâmicas socioculturais, econômicas e políticas.
As pesquisadoras Luana de Oliveira Fernandes e Paula Gabriela dos Santos Almeida, explicam que o feminismo se desenvolveu em quatro grandes ondas históricas, que vão das lutas pelo direito ao voto, no século 19 (sufrágio universal), às mobilizações digitais contemporâneas em defesa da igualdade de gênero.
- Primeira onda (final do séc. 19 – início do 20): concentrada na conquista de direitos civis e políticos, especialmente o direito ao voto.
- Segunda onda (décadas de 1960–1980): ampliou a pauta para o direito ao corpo, ao prazer, ao trabalho e à autonomia, questionando papéis sociais e desigualdades.
- Terceira onda (anos 1990): incorporou o debate sobre diversidade e interseccionalidade (raça, classe e sexualidade), incluindo o feminismo negro.
- Quarta onda (anos 2010 em diante): marcada pela ação digital e coletiva, com movimentos como #MeToo e #EleNão, que denunciam abusos e a cultura da violência.
Cada uma dessas fases teve impacto concreto na vida das mulheres de diferentes partes do mundo, ampliando o acesso à educação, à saúde, ao mercado de trabalho e à política. Também nas religiões o efeito do movimento feminista abriu caminhos, como o reconhecimento de lideranças femininas, a ordenação de pastoras nas igrejas evangélicas e o desenvolvimento de teologias inclusivas, como a Teologia Feminista.
O que o antifeminismo combate?
Nos discursos de influenciadoras cristãs conservadoras, este percurso histórico e político aqui descrito é apagado. Como objeto de divergência, o feminismo é reduzido a uma caricatura e, de forma distorcida, é apresentado como uma doutrina de ódio aos homens ou de destruição da família.
Essa distorção transforma um movimento por igualdade em uma ameaça moral e espiritual, e é a partir dessa inversão que o discurso antifeminista se consolida nas redes e nos púlpitos.
Como as pesquisadoras Mayara Paula Atanásio Soares da Silva e Girlaine Pergentino Gomes mostram, essa estratégia discursiva é recorrente nas redes sociais. Influenciadoras e grupos antifeministas utilizam o Instagram, por exemplo, para “refutar e satirizar os ideais do movimento feminista, propagando a ideia de que o feminismo seria uma das maiores ameaças à civilização contemporânea”.

Fonte: Pietra Bertolazzi (Perfil do Instagram)
O antifeminismo cristão
Esta postura em ambientes cristãos define um conjunto de discursos e práticas que se opõem ao feminismo a partir de uma moldura teológica e moral. As antifeministas cristãs afirmam que o movimento feminista teria afastado as mulheres de seu papel “natural”, que seria cuidar do lar e submeter-se ao marido. Propagam ainda que a verdadeira liberdade feminina estaria em aceitar o modelo bíblico de complementaridade entre os gêneros.
Segundo a pesquisadora do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser, ouvida pelo Bereia, o fenômeno combina três dimensões principais:
- Interpretação bíblica literalista – toma o Gênesis como fundamento da diferença hierárquica entre homem e mulher.
- Retórica conspiracionista – marcada pela ideia de “batalha espiritual” contra o feminismo, o marxismo cultural e a ideologia woke.
- Nacionalismo moral – mistura fé cristã e identidade nacional para defender uma sociedade pautada em “valores familiares”, algo próximo do que estudiosas chamam de feminacionalismo.
O antifeminismo cristão, portanto, não é apenas um debate teológico, mas uma estratégia de comunicação e mobilização política. Ele atua em múltiplos campos – religioso, digital e legislativo – e se estrutura como rede de influência e monetização, pois as controvérsias que o tema oferece gera muito engajamento financiado nas plataformas digitais.
Pietra Bertolazzi: uma voz destacada do movimento antifeminista cristão
Em 2019, Pietra Bertolazzi ganhou notoriedade ao publicar críticas ao feminismo, enquanto ocupava um cargo no Fundo Social de São Paulo. As declarações resultaram em sua exoneração, mas também lhe deram visibilidade – a partir dali, Pietra passou a atuar como influenciadora conservadora católica.
Como ocorre com outras figuras da nova direita digital, Bertolazzi transformou a controvérsia em plataforma. Utilizando a linguagem das redes – frases de impacto, estética devocional e hashtags –, ela apostou em pânico moral e desinformação para conquistar e engajar seguidores. Os conteúdos que a influenciadora publica tratam de temas como antifeminismo, aborto, “ideologia de gênero” e masculinidade, frequentemente com uso de dados distorcidos ou comparações enganosas.

Fonte: Pietra Bertolazzi (Perfil do Instagram)
O discurso de Pietra Bertolazzi se apoia em três pilares principais: pânico moral, inversão de papéis e linguagem emocional. Estes elementos transformam debates de temas complexos em mensagens curtas, virais e moralmente impactantes.
1. O pânico moral como motor de engajamento
Bertolazzi recorre à ideia de que o feminismo seria uma ameaça à família e à fé cristã. Frases como “o feminismo é hipócrita” ou “se cada um tem o seu feminismo, então ele não existe” simplificam debates e criam o que estudiosos chamam de pânico moral – o medo coletivo de uma degeneração social.
2. A inversão de papéis: de opressores a oprimidos
Outra tática recorrente é a inversão discursiva: a influenciadora afirma que os homens seriam as verdadeiras vítimas da sociedade moderna. Ao compartilhar postagens como a que sugere que “quase o dobro de homens são mortos por violência doméstica”, sem oferecer dados científicos (desinformação), ela inverte a lógica da desigualdade de gênero, transformando o agressor em vítima e o feminismo em vilão.
3. A linguagem emocional e a estética da virtude
Com vídeos bem iluminados, tom confessional e hashtags como #antifeminismo e #propósito, Pietra Bertolazzi se apresenta como uma mulher “autêntica” e piedosa. A mensagem central é simples: ser submissa é uma forma de poder, e o verdadeiro empoderamento feminino está em “retomar o propósito divino da mulher”.
4. Um produto de fé e controvérsia
Pietra Bertolazzi transformou a polêmica em capital simbólico. Suas falas circulam em podcasts, eventos religiosos e colunas de opinião, sempre mobilizando a mesma fórmula: medo, moralidade e marketing. A retórica antifeminista, travestida de espiritualidade, se tornou um produto lucrativo, uma vez que promete respostas simples para dilemas complexos e reforça identidades religiosas em tempos de incerteza.
O caso de Pietra Bertolazzi ajuda a compreender como o antifeminismo cristão se tornou uma força discursiva nas redes. Ela representa o ponto de partida de uma geração de influenciadoras e políticas que transformaram fé e polêmica em modelo de engajamento e negócio.
A partir de exemplos como o dela, é possível identificar uma rede de mulheres conservadoras que atua em múltiplas frentes, da devoção doméstica à política institucional, todas unidas pela rejeição ao feminismo e pela defesa de um ideal de mulher “virtuosa” e “submissa”.
Outras vozes do movimento
Marina Brito Garschagen: a estética católica da virtude
Entre as mais conhecidas vozes católicas do movimento, Marina Brito combina linguagem litúrgica e estética de lifestyle. Em seus vídeos, fala sobre vestimenta, namoro e papel da mulher “segundo Deus”, contrapondo a “modéstia cristã” à “libertinagem feminista”.
Amanda Buttchevits: o antifeminismo devocional
Também surgida do meio católico, a influenciadora mistura espiritualidade, moda e casamento cristão em um formato híbrido de influência religiosa e marketing de estilo de vida. Seu discurso reforça o complementarismo e propõe uma “feminilidade restaurada” como resposta às “dores da mulher moderna”.
Ana Campagnolo: da influência à política
Na vertente evangélica e institucional, Ana Campagnolo é o elo mais articulado da rede. Deputada estadual em Santa Catarina pelo Partido Liberal (PL), autora de livros e criadora do Clube Antifeminista, Campagnolo, membro da igreja Presbiteriana, funciona como intelectual orgânica do movimento, traduzindo a pauta moral em projeto político.

Uma frente digital e moral unificada
Juntas, estas mulheres constroem uma rede antifeminista cristã que articula seguidoras e seguidores entre a internet, o púlpito e a política. Elas compartilham conteúdos, citam umas às outras e se apresentam como porta-vozes da “verdadeira mulher cristã”, usando o feminismo como inimigo central. O que as une é o mesmo tripé retórico que tornou Pietra Bertolazzi viral: pânico moral, apelo religioso e marketing da virtude.
📍 Na segunda parte desta matéria, Bereia mostra como essa rede opera: as bases teológicas, os modelos de monetização e os impactos sobre direitos e políticas públicas para as mulheres.
Referências:
Antifeminismo no Instagram: como conservadores atribuem ao movimento feminista uma corrupção moral, artigo de Fernanda Kemilly Silva Lira e Fabiana Moraes
https://sistemas.intercom.org.br/pdf/submissao/nacional/17/07202024222318669c63060175b.pdf
Artigo. “As garras do feminismo”: discurso de ódio antifeminista no Facebook e o senso de urgência controlada: https://www.scielo.br/j/interc/a/HJWF8BGsZzKZ3TMLcVGQXXC/?format=html&lang=pt
Antifeminismo brasileiro: I Congresso Antifeminista do Brasil, Trabalho de Conclusão de Curso de Alexsandra Ferreira Aquino https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/22054/TCC%20-%20Alexsandra%20-%20Alexsandra%20Ferreira%20Aquino.pdf?sequence=1&isAllowed=y
As quatro ondas do feminismo: lutas e conquistas, artigo de Luana de Oliveira Fernandes e Paula Gabriela dos Santos Almeida. .https://www.researchgate.net/publication/354044281_AS_QUATRO_ONDAS_DO_FEMINISMO_LUTAS_E_CONQUISTAS
Movimentos antifeministas e desinformação: uma análise dos discursos promovidos no Instagram, artigo de Maiara Silva e Girlaine Gomes https://www.researchgate.net/publication/362674562_Movimentos_antifeministas_e_desinformacao_uma_analise_dos_discursos_promovidos_no_Instagram
Coletivo Bereia
https://coletivobereia.com.br/o-que-e-panico-moral-bereia-explica/
https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-uma-estrategia-discursiva/