O vídeo-denúncia a respeito da “adultização” (abuso) de crianças e adolescentes na internet, publicado na última semana pelo youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, levou os poderes Executivo e Legislativo do Brasil a se apressarem para ampliar medidas de proteção a crianças e adolescentes nas mídias sociais.
Nesta semana, tanto o presidente Lula quanto o presidente da Câmara dos Deputados Hugo Motta (Republicanos-PB) concordaram que, para tornar as medidas mais efetivas e preventivas, é necessário, também, regular as grandes plataformas de tecnologia — que lucram com conteúdos
No entanto, líderes religiosos e parlamentares da ala direita esbarram no “elefante na sala”, e o ignoram, ao acatarem a denúncia de Felca: a regulação das plataformas. Bereia analisou os perfis de todos os deputados federais que se manifestaram a favor da pauta denunciada pelo influenciador e verificou que a totalidade foi contrária ao Projeto de Lei (PL) 2360/2020.
O projeto, apelidado de PL das Fake News, foi aprovado no Senado em 2022, depois de ampla discussão com organizações e fóruns de defesa da democratização das mídias. Este PL foi a proposição que mais avançou no Legislativo, até hoje, e visava responsabilizar as grandes empresas de tecnologia – as big techs – no Brasil, e não apenas usuários, pela publicação e lucro com conteúdo criminoso (pedofilia, racismo e xenofobia, misoginia, estímulo à intolerância, ódio e práticas violentas, entre outros).
O PL 2630 foi arquivado em 2024 na Câmara dos Deputados depois de grande lobby contrário das empresas (inclusive com propagação de falsidades sobre o processo) ser classificado por parlamentares da direita extremista como “PL da Censura”.
Reação da Bancada Evangélica
Em 2023, a Bancada Evangélica na Câmara Federal se destacava na oposição ao PL 2630. De acordo com um dos líderes do grupo, o pastor Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), 95% da bancada se colocava contra o texto aprovado pelo Senado Federal e que foi enfraquecido na Câmara dos Deputados.
Para esses parlamentares, o projeto tinha como objetivo limitar a privacidade e a liberdade de expressão online, pois enquadraria determinados conteúdos — amplamente sustentados pela extrema-direita — como discurso de ódio e desinformação.
Neste agosto de 2025, após a comoção nacional alavancada pela denúncia de Felca, a Bancada Evangélica divulgou uma nota de repúdio à “adultização, erotização e exploração econômica de crianças e adolescentes no Brasil”. Porém, mantendo a mesma postura de apoio às empresas que monetizam com esses conteúdos, diz que não aceitará “que um problema tão sério (…) seja usado como pretexto para restringir a liberdade de expressão e impor censura velada nas redes sociais”.

Alternativa também é recusada por extremistas de direita
A alternativa ao PL 2630 que ganhou força desde a publicação de Felca é o Projeto de Lei 2628, de 2022. Porém, ele também não tem recepção favorável dos políticos alinhados aos extremistas de direita, que são os que mais lançam mão dos espaços livres de controle social nas plataformas. Sóstenes Cavalcante, que se tornou líder do Partido Liberal na Câmara, já alertou que “se tiver qualquer sinal de censura, não vamos apoiar”.
O PL 2628 é de autoria do mesmo senador que apresentou o PL 2630, Alessandro Vieira (MDB-SE), e já foi aprovado no Senado e foi encaminhado à Câmara Federal, em dezembro de 2024. Apelidado “ECA Digital”, o projeto se restringe à proteção de crianças e adolescentes e estabelece regras para uso de aplicativos, jogos e redes sociais. O PL prevê multas de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil no ano anterior, ou de até R$ 50 milhões por infração, caso ausente o faturamento.
Para proteger crianças e adolescentes, o PL dispõe sobre verificação etária para restringir o acesso a conteúdo impróprio, restrição de publicidade direcionada com base em perfilamento comportamental, remoção imediata de conteúdos ilegais e obrigatoriedade de ferramentas de controle parental.
Contudo, a oposição liderada pela direita cristã, que alega proteger os interesses da família e, consequentemente, das crianças, já atuou para também afrouxar este projeto. Em matéria divulgada no último 14 de agosto, o jornal independente The Intercept Brasil apurou que não só a oposição trabalhou em bloco para enviar emendas para reduzir a força do PL 2628, como duas delas foram criadas diretamente pelo lobista Marconi Borges Machado, gerente de políticas públicas na Meta — empresa que gerencia Facebook, WhatsApp e Instagram.
De acordo com o Intercept, “uma das emendas de autoria do lobista tentou livrar as grandes plataformas da obrigação de disponibilizar relatórios sobre moderação de conteúdo. A segunda sugeriu excluir a possibilidade de aplicar sanções criminais às plataformas. Nenhuma delas está identificada como sendo de autoria de um representante da Meta”.
“Motivação da esquerda”
O deputado Pastor Marco Feliciano (PL-SP), destacado propagador de desinformação nas redes digitais, afirmou, em 13 de agosto, que ficou espantado com a “motivação da esquerda nesse momento” ao apoiar o projeto que defende a integridade dos jovens.
“Em 2017, quem apresentou aqui na Casa a denúncia sobre o homem nu no MASP (Museu de Arte de São Paulo) foi este deputado que aqui está. Eu fiz um vídeo falando na tribuna e o vídeo foi retirado da internet”, disse ao presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos – PB).
Outro conhecido influenciador que lança mão de conteúdo falso e enganoso em campanha, o deputado evangélico Nikolas Ferreira (PL-MG), sustentou, na última terça-feira (12), que ainda não há “projeto de censura” na pauta da Casa, e que o PL 2628 “nunca foi pelas crianças”.

O deputado, que fez uma mobilização entre parlamentares e eleitores pela rejeição à PL 2630, compartilhando informações falaciosas, havia apresentado, na véspera (11 de agosto), um projeto de lei à Mesa Diretora para “estabelecer medidas para prevenção, detecção, denúncia e responsabilização por crimes e condutas nocivas contra crianças e adolescentes no ambiente digital, garantindo, simultaneamente, a preservação da liberdade de expressão, da privacidade e da neutralidade tecnológica”.
Na proposta apresentada por Nikolas Ferreira, a remoção de conteúdo com base apenas no que ele denomina “juízos subjetivos ou discricionários da plataforma”, deverá ser vedada, cabendo às decisões terem fundamento jurídico e serem registradas para eventual auditoria ou revisão judicial.
Bereia verifica que a quase totalidade dos projetos prevê punições para usuários que publicam conteúdo criminoso e libera de responsabilidade as plataformas que veiculam tais publicações e lucram financeiramente com elas. A pesquisa mostra que são projetos punitivistas, sem tocar nos meios de propagação — o que significa prevenção.
Já existem leis em vigor
O projeto do deputado Nikolas Ferreira se soma a pelo menos outros 40 protocolados na Câmara dos Deputados apenas nos dias que se seguiram ao vídeo-denúncia de Felca, por representantes das diversas siglas partidárias, que tratam do tema. Enquanto alguns deputados mentem sobre a inexistência de uma lei para proteção das crianças e dos adolescentes, eles silenciam sobre a Lei nº 14.811/24, que prevê a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente, incluída na Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), e o Decreto nº 11.473/2023.
Com mais 35 anos desde que entrou em vigor, o ECA prevê a proteção integral de crianças e adolescentes, inclusive na internet, e tipifica como crime “quem exibe, transmite, auxilia ou facilita a exibição ou transmissão, em tempo real, pela internet, por aplicativos, por meio de dispositivo informático ou qualquer meio ou ambiente digital, de cena de sexo explícito ou pornográfica com a participação de criança ou adolescente”.
A Resolução Nº 245, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em vigor desde abril de 2024, é baseada nas duas normas e destaca a legislação existente para tratar dos itens já debatidos e repetidos hoje no Congresso Nacional. Entre eles, destaca a responsabilidade conjunta do Poder Público, famílias, sociedade civil e empresas de tecnologia na proteção dessa população, liberdade de expressão, verificação etária nas plataformas, criação de canais de denúncias, e a responsabilização das big techs por violações aos direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Dados recentes
De acordo com a Polícia Federal, somente entre 2023 e 2025 foram realizadas 2.306 operações de combate à pornografia infantil, expediu 2.834 mandados de prisão, e prendeu 793 criminosos em flagrante por crimes relacionados à exposição inadequada de crianças e adolescentes na internet.
O relatório TIC Kids Online Brasil de 2024, elaborado pelo Comitê Gestor da Internet, 23% das crianças entre 9 e 17 anos acessaram a internet pela primeira vez antes dos seis anos de idade, enquanto apenas 9% afirmaram ter acessado após os 12 anos — sendo que a idade mínima para criar um perfil em plataformas como Instagram, X e WhatsApp é 13 anos, conforme as diretrizes da Meta e do X.
Regulação de plataformas digitais não é censura
O discurso de que projetos como o PL 2630/2020 e o PL 2628/2022 representam censura faz parte de uma estratégia articulada por setores da direita e pelas big techs para barrar qualquer tentativa de controle público sobre o ambiente digital. Parlamentares alinhados à extrema direita se valem do discurso da defesa da liberdade de expressão para mobilizar suas bases, mesmo quando o que está em jogo é a proteção de direitos fundamentais, como a segurança de crianças e adolescentes.
As grandes empresas de tecnologia, por sua vez, resistem à regulação porque lucram diretamente com a ausência de regras claras e que coibem práticas criminosas, como a erotização de crianças e a pornografia infantil. O modelo de negócios dessas plataformas depende da coleta massiva de dados, da segmentação extrema de públicos e da amplificação de conteúdos que geram engajamento — entre eles, discursos de ódio, incitação à violência e material inadequado para crianças e adolescentes.
Ao se aliarem à retórica política contrária à regulação, essas multinacionais mantêm intocado um ecossistema que converte atenção em lucro, mesmo à custa da integridade de seres humanos ainda em formação. De acordo com o Google, por exemplo, o modelo atual de regulação proposto para o Brasil dá amplos poderes a um órgão governamental para decidir o que os brasileiros podem ver na internet, prejudica empresas e anunciantes devido às novas exigências de publicidade digital, e traz sérias ameaças à liberdade de expressão (por meio do “dever de cuidado”, princípio jurídico em que são adotadas medidas para prevenir a ocorrência de danos pela a atividade de uma empresa).
De acordo com o coordenador da Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD) Marco Schneider, a desinformação sobre a regulação das plataformas atrasa a votação acerca do tema e prejudica a população na medida em que desfavorece a mobilização pública, que poderia pressionar os parlamentares no sentido da regulação.
“De todo modo, a moderação de conteúdos e a penalização de quem promover conteúdo nefasto certamente há de minimizar o risco de crianças e adolescentes terem contato com esse tipo conteúdo, preservando sua saúde física e mental”, afirma.
O coordenador da RNCD acrescenta que a motivação da direita para impedir a regulação/responsabilização das plataformas digitais é a impunidade para mentir e acumular capital político e financeiro com a desinformação, de modo que continuem a difundir seus preconceitos.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) pediu, em 15 de agosto passado, urgência na aprovação do PL 2628/2022, em análise na Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados, que estabelece medidas de proteção de crianças e adolescentes nos ambientes digitais. A entidade, ao lado de organizações da sociedade civil, acompanha a tramitação e avalia que o projeto representa avanço na garantia da proteção integral prevista na Constituição e no ECA, diante da crescente presença desse público online. O texto incorpora recomendações recentes do Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança e reforça o compromisso do Brasil de prevenir qualquer forma de violência em qualquer ambiente.
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Bereia ressalta que a convergência entre interesses econômicos e políticos cria um terreno fértil para a manutenção da desinformação, e que a proteção de crianças e adolescentes nas mídias digitais não pode ser desvinculada da regulação dessas plataformas. Sob o rótulo enganoso de “defesa da liberdade”, perpetua-se um cenário onde a ausência de regras beneficia quem monetiza o ódio, a mentira e a vulnerabilidade alheia — enquanto a sociedade arca com os custos sociais dessa omissão.
Referências:
Intercept Brasil: Deputado bolsonarista apresentou emenda feita por lobista da Meta para afrouxar lei que protege crianças na internet. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2025/08/14/deputado-bolsonarista-emenda-lobista-meta-lei-criancas-internet/ Acesso em 14/08/2025
NetLab: A guerra das plataformas contra o PL 2630. Disponível em: https://netlab.eco.ufrj.br/post/a-guerra-das-plataformas-contra-o-pl-2630
Resolução nº 245 Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/blob/baixar/48630
Rede Nacional do Combate à Desinformação (RNCD). https://rncd.org/
TIC Kids Online Brasil – 2024