Pentecostalismos e participação política: implicações do caso “Bonde de Jesus”

O jornal Folha de São Paulo reproduziu na última quinta, 12, a matéria do Washington Post“Neopentecostais armados atormentam minorias religiosas brasileiras” – que denuncia a existência de uma quadrilha de cristãos evangélicos extremistas, chamada “Bonde de Jesus”, na comunidade pobre de Parque Paulista, no município de Duque de Caxias. A quadrilha dava conta de ações de ataque a terreiros de matriz africana. As implicações desse caso vão além da intolerância religiosa, elas descortinam aspectos ligados à própria formação do pentecostalismo e do neopentecostalismo.

A atuação dos movimentos pentecostais, que inclui a participação dos neopentecostais, envolve muito mais que o uso da linguagem, da experiência de culto e do carismatismo. Os muitos pentecostalismos têm desenvolvido discursos e práticas relativas às questões sociais que os segmentos mais progressistas não se deram conta: pautas morais, como rejeição ao aborto e uniões homoafetivas, a demonização do espiritismo e da religiosidade afro-brasileira, além de práticas mercadológicas e comunicacionais.

Há um tipo de pentecostalismo com maior penetração entre jovens de classe média, e há um movimento pentecostal com melhor adesão nas comunidades mais carentes. Esses movimentos não se misturam. Andando pelas periferias dos grandes centros, constata-se, sem muita dificuldade, que o pentecostalismo conquistou mais fiéis do que as Comunidades Eclesiais de Base, da Teologia da Libertação, ou qualquer outro segmento religioso.

O cristianismo, de um modo geral, tem se tornado mais carismatizado e mais pentecostalizado. A presença pentecostal é uma marca desse tempo. É um movimento que tem sua origem nos grupos cristãos pertencentes a igrejas protestantes históricas dos Estados Unidos, que buscavam uma renovação espiritual no final do século XIX e começo do século XX. A ênfase era desvendar a obra do Espírito Santo e aprofundar essa experiência a partir da manifestação do falar em línguas estranhas, semelhante ao episódio ocorrido entre os primeiros cristãos e narrado no livro de Atos dos Apóstolos. Esse episódio ocorreu no dia de Pentecostes, uma data do calendário judaico.

A primeira experiência pública dessa manifestação aconteceu historicamente em 1906, na igreja da rua Azusa, em Los Angeles, Estados Unidos. A propagação dessa experiência se deu sob a forma de contágio, na medida em que pessoas que visitavam aquela igreja e recebiam a manifestação do dom de línguas tornavam-se propagadores da mensagem dessa experiência para diversas partes do mundo.

Aquela igreja chamava-se Missão Apostólica da Fé, mas em 1914 passou a se denominar Assembleia de Deus. A Missão da rua Azusa é, por assim dizer, a mãe do movimento pentecostal. O trabalho dessa missão influenciou os principais pregadores que deram início ao movimento pentecostal no Brasil. Primeiramente, com o missionário Louis Francescon, que iniciou a Congregação Cristã do Brasil em São Paulo, em 1910. Depois, com Gunnar Vingren e Daniel Berg, que iniciaram a Assembleia de Deus no Brasil, em 1911, na cidade de Belém do Pará.

Uma das características da religiosidade pentecostal é procurar uma aproximação aos ensinamentos e ao estilo de adoração dos primeiros cristãos, com uma interpretação literal e alegórica da Bíblia. Hoje, o termo pentecostal abrange uma diversidade de grupos e igrejas, diferentes em termos de perspectiva teológica, formas de organização, costumes e liturgias. Trata-se de um movimento descentralizado, sem qualquer controle ou hierarquia, que pode estar presente em qualquer grupo cristão. O mais correto seria nos referirmos a pentecostalismos. O fator comum é a ênfase na experiência do charisma ou dom, recebido como uma experiência de iniciação chamado de batismo do Espírito Santo.

O pentecostalismo é um movimento essencialmente urbano. Outro aspecto relevante é que o movimento pentecostal teve sua origem em igrejas formadas por negros e pessoas de baixa renda, e ganhou maior projeção entre os mais pobres e excluídos da sociedade. Esse fato pode ser observado, inclusive, em sua expansão na América Latina. Também é preciso ressaltar o papel da mulher, que ao longo dos anos tem participado cada vez mais da vida eclesial da igreja, assim como os leigos, embora ainda haja uma resistência ao seu papel como pastora ou pregadora em alguns grupos. Há igrejas neopentecostais lideradas por mulheres, como bispas e apóstolas. Antes, elas eram tratadas apenas como profetizas, missionárias ou líderes de círculo de oração. Hoje, elas ocupam também os púlpitos, o que de início era proibido.

O desenvolvimento do pentecostalismo no Brasil, e de um modo geral na América Latina, pode ser compreendido através de três etapas:

a) O pentecostalismo clássico – de 1911 à década de 1950, com a Congregação Cristã do Brasil e a Assembleia de Deus.

b) O pentecostalismo de segunda geração – por meio da expansão de campanhas de evangelização pelo interior do país, que resultou no surgimento da Igreja do Evangelho Quadrangular e da Igreja Brasil para Cristo. Em 1960, surgem novos grupos, como a Igreja Nova Vida, Deus é Amor e Casa da Bênção.

c) Os neopentecostais – a partir da década de 1970, como a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça e a Igreja Renascer em Cristo.

A expansão dos grupos pentecostais se dá a partir das rupturas internas das igrejas, que se dividem por motivos políticos, doutrinários ou morais, dando lugar a uma infinidade de igrejas autônomas que se espalham por todas as localidades. O movimento pentecostal afetou diretamente a vida das chamadas igrejas protestantes históricas, ao promoverem movimentos de renovação, dando origem a novas igrejas pentecostalizadas ou igrejas renovadas.

Mas, mais do que isso, a participação dos pentecostais na sociedade tem afetado diretamente várias áreas, desde a relação com a criminalidade, interferindo na maneira de tratar ex-criminosos que se convertem, até a definição de candidaturas e de pautas políticas para o país.

Entre os muitos pentecostalismos, inclusive nos neopentecostalismos, há um projeto único de poder que inclui uma forma relativa de entender os Direitos Humanos, de tratar o estado laico com restrições, de suspeitar quanto à dinâmica do Estado Democrático de Direito, de questionar a garantia dos direitos das minorias, principalmente em relação às pautas identitárias, às questões de gênero e direitos reprodutivos, e de intolerância religiosa. Mas, acima de tudo, esse projeto de poder é alinhado aos interesses da direita, com um viés de demonização de qualquer ideologia de esquerda.

A influência desses movimentos se apresenta como uma resposta imediata ao crescimento da miséria provocada pelos muitos regimes de exceção na América Latina. Nesse sentido, adotaram um caráter fundamentalista para oferecer algumas respostas religiosas que permitem, ao menos em curto prazo, uma eficiente superação da crise. Trata-se de um tipo de fundamentalismo religioso que ajuda a enfrentar as incertezas com uma resposta absoluta e de forma imediata. Os pentecostalismos dessa natureza também têm a capacidade de transformar uma experiência de declínio em uma aquisição de poder. Uma crise social ou pessoal se converte em uma experiência religiosa de poder. Os conflitos sociais se projetam como expressões e interferências do sobrenatural, que contrapõem o bem e o mal. A mensagem pentecostal e neopentecostal é de cunho escatológico dispensacionalista, prometendo uma intervenção repentina do poder de Deus diante dos males do mundo.

Podemos afirmar que nos movimentos pentecostal e neopentecostal encontram-se departamentos sociais com interesses econômicos neoliberais e com um programa político de incorporação do Brasil e da América Latina à cultura norte-americana. Nesse sentido, esses movimentos, juntamente com o fundamentalismo evangélico que está presente nas igrejas protestantes históricas, é ao mesmo tempo cúmplice de exploradores e explorados, de dominadores e despojados, das elites e da pobreza. Por isso, o ecumenismo, que se mostra impossível em termos eclesiológicos e doutrinais, torna-se viável diante desse projeto de poder. São superadas, paulatinamente, as velhas fronteiras confessionais, de forma que os movimentos se juntam para polarizar em um ecumenismo do poder e um projeto político de controle da vida. O resultado é que a maioria dos fieis desse segmento votou a favor da ultradireita nas eleições de 2018.

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