A Justiça de Indaiatuba (SP) condenou a influenciadora digital Michele Dias Abreu por divulgar vídeos que vinculavam as enchentes no Rio Grande do Sul, que ocorreram em 2024, a religiões de matriz africana. Em decisão, proferida em fevereiro passado, um juiz considerou que o conteúdo estimula a intolerância religiosa e ultrapassa os limites da liberdade de expressão.
A ação civil pública foi movida pela Associação das Comunidades Tradicionais e de Cultura Popular Brasileira (Acoucai) após Michele Abreu publicar, em maio de 2024, vídeos em suas redes sociais. Neles, a influenciadora afirmou que as enchentes no RS seriam “a ira de Deus” devido à alta concentração de terreiros de religiões afro-brasileiras no estado. Em um dos trechos, ela declarou:
“Deus está descendo com a sua ira total… O Rio Grande do Sul é o estado com o maior número de terreiros de macumba, mais que a Bahia”.
Imagem: reprodução/Instagram
A associação alegou que as postagens incitavam ódio e intolerância, violando direitos coletivos. O juiz de Direito Glauco Costa Leite destacou na sentença que, embora a liberdade religiosa e de expressão sejam garantidas constitucionalmente, Michele Abreu ultrapassou esses limites ao “atribuir responsabilidade a grupos religiosos por uma tragédia climática”, estimulando discriminação.
A sentença
O juiz decidiu condenar a influenciadora ao pagamento de R$ 35 mil em danos morais coletivos, valor que será destinado ao Fundo de Direitos Difusos do Estado de São Paulo. A Justiça também manteve a decisão liminar que obrigou a remoção definitiva dos vídeos ofensivos das plataformas digitais.
Em relação a plataforma social Facebook, o juiz decidiu que a empresa não seria responsabilizada pelo conteúdo postado. A decisão foi baseada no Marco Civil da Internet (Lei Federal nº 12.965/14), que estabelece que os provedores de aplicações de internet só podem ser responsabilizados por conteúdos de terceiros se, após uma ordem judicial específica, não tomarem as providências para remover o material considerado ofensivo.
No caso, o Facebook cumpriu a ordem judicial de remover os vídeos de Michele Abreu de forma tempestiva, ou seja, dentro do prazo determinado pela Justiça. Portanto, o magistrado entendeu que a plataforma não teve culpa pela publicação original do conteúdo e que não havia motivos para responsabilizá-la civilmente, ainda que análises apontem como estas empresas lucram com desinformação e negacionismos que permitem circular
Intolerância religiosa e jurisprudência do STF
O caso ocorre em um cenário de aumento de 323% nas denúncias de intolerância religiosa no Brasil entre 2021 e 2024, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos. Religiões de matriz africana, como Umbanda e Candomblé, são historicamente alvo de ataques — 76% das ocorrências registradas em 2024 envolveram essas comunidades.
Em sua defesa, Michele Abreu alegou que seu discurso estava amparado na “liberdade de proselitismo religioso”. O juiz, no entanto, ressaltou que “criticar outras crenças com o intuito de rebaixá-las configura abuso”, citando jurisprudência do STF que diferencia debate religioso legítimo de discursos de ódio.
O juiz Glauco Costa Leite fundamentou a decisão especificamente no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 146.303/RJ, relatado pelo Ministro Dias Toffoli e julgado em 6 de março de 2018. Nesse caso, o STF estabeleceu que:
“Há que se distinguir entre o discurso religioso (que é centrado na própria crença e nas razões da crença) e o discurso sobre a crença alheia, especialmente quando se faça com intuito de atingi-la, rebaixá-la ou desmerecê-la (ou a seus seguidores). Um é tipicamente a representação do direito à liberdade de crença religiosa; outro, em sentido diametralmente oposto, é o ataque ao mesmo direito.”
O STF reforçou que, enquanto o debate religioso legítimo é protegido pela Constituição, o discurso que ataca outras religiões, especialmente com o intuito de desqualificá-las ou incitar ódio, não é tolerado.
Em nota, a Acoucai celebrou a decisão judicial:
“Para a Acoucai, essa sentença representa um importante avanço na luta contra a intolerância religiosa e na defesa das comunidades tradicionais. Seguiremos atuando para proteger os direitos das expressões culturais e espirituais que fazem parte do patrimônio brasileiro, promovendo ações de conscientização e combate a toda forma de preconceito.”
Desinformação sobre a tragédia do RS
Na época dos acontecimentos, Bereia repercutiu a pesquisa realizada pelo NetLab-UFRJ, que analisava a propagação de desinformação sobre as enchentes no Rio Grande do Sul. O relatório, divulgado em 16 de maio de 2024, mapeou influenciadores e conteúdos desinformativos em plataformas como Instagram, Facebook, YouTube e outras, identificando oito principais temas de mentiras e enganos que circularam durante a tragédia, entre eles o discurso de que as chuvas seriam um “castigo de Deus”.
Além de Michele Abreu, o relatório da NetLab também destacou o papel de influenciadores religiosos, como Pablo Marçal, o senador Cleitinho Azevedo (Republicanos/MG) e Eduardo Bolsonaro (PL/SP, atualmente licenciado), citados por disseminar falsas informações. Segundo análise do Bereia, “a associação entre tragédias naturais e práticas religiosas é uma estratégia recorrente para disseminar preconceito e intolerância”.
Como denunciar
Casos de intolerância religiosa podem ser reportados ao Disque 100 ou registrados em delegacias especializadas em cada região.
Referências
Conjur
https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2025/03/doc_118368253.pdf Acesso 19 março 2025
Acoucai
https://acoucai.org.br/wp-content/uploads/2025/03/COMUNICADO-ACOUCAI.pdf
Acesso 19 março 2025
Agência Brasil
Coletivo Bereia
https://coletivobereia.com.br/pesquisa-realiza-analise-da-propagacao-de-desinformacao-sobre-a-calamidade-no-rio-grande-do-sul/ Acesso 19 março 2025
UFJF
Desinformação e economia política nas plataformas digitais https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/download/44963/28365/206806
Acesso 19 março 2025