Bereia recebeu de leitores e leitoras pedido de checagem sobre vídeo postado pela influenciadora digital cristã Michelle Strazzeri,em seu perfil no Instagram. Na publicação, Strazzeri denuncia a retirada de versículos e trechos inteiros dos originais do livro sagrado nas novas versões da Bíblia. O vídeo teve ampla repercussão e outros perfis de evangélicos republicaram o conteúdo com alertas ao público sobre mais esse “duro golpe” na tentativa de “calar as Escrituras”.
Imagem: Divulgação/Instagram
Para embasar a teoria que levantou, a influenciadora utilizou uma Bíblia de estudos chamada English Standard Version/ESV, versão original,em inglês, e usou como exemplo, o texto de Mateus 17:21 (“Mas esta casta de demônios não se expulsa senão pela oração e por jejum”) que, de fato, não está no texto principal da Bíblia exibida, apenas em uma nota de rodapé.
Diante disso, Strazzeri relatou ter decidido pesquisar o que teólogos e especialistas pensam a respeito da questão. Segundo a influenciadora digital, ela descobriu que os estudiosos têm achado a situação normal e que nem todas as versões mais antigas incluem o versículo, então resolveram omitir o versículo 21. Para concluir, Strazzeri, em tom alarmista, aconselhou seus seguidores a estocarem Bíblias e livros cristãos. “Daqui para frente as coisas podem se complicar muito rapidamente”, lamenta.
Quem é Michelle Strazzeri?
Com cerca de 22 mil seguidores em seu perfil no Instagram, até a data de fechamento desta matéria, a influenciadora cristã divulga conteúdos em seu perfil como espiritualidade, família, fé, educação dos filhos e a importância da oração. Há um link para um canal no Telegram criado pela influenciadora intitulado “Mães que oram”, mas que não é atualizado desde 2022.
Michelle é casada com Jerry Strazzeri e juntos moram fora do Brasil desde 2006. Primeiro na Austrália, onde criaram o blog e redes sociais dedicadas a ajudar brasileiros que viviam no país. Hoje, o casal vive em Orlando, nos Estados Unidos, e tem duas filhas. Jerry também é influenciador digital na área de mídias sociais, tecnologia e vivência no exterior.
No perfil de Michelli no Linkedin, a influenciadora se apresenta como especialista em marketing digital e data analytics, colocando-se disponível para prestação de serviço nessa área.
Imagem: Reprodução do perfil de Michelle Strazzeri no Linkedin
Por que algumas versões da Bíblia suprimem versículos e até mesmo trechos inteiros do texto sagrado?
Para responder essa pergunta, Bereia conversou com dois doutores em Teologia e pesquisadores na área. De acordo com o teólogo e doutor em Exegese Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Ricardo Lengruber, as versões das Bíblias utilizadas para estudo e devoção nas igrejas e seminários, são traduções dos chamados “manuscritos originais”. Entretanto, segundo ele, diferente do que o senso comum possa imaginar, não há (nos museus, bibliotecas, Vaticano ou qualquer outro lugar) manuscritos efetivamente “originais”. “Os manuscritos saídos da mão de seus autores(as) (os autógrafos) não existem mais. Perderam-se no tempo. Os manuscritos antigos a que temos acesso são cópias – que, em geral, são cópias de cópias mais antigas. Por isso, o que ocorre é que há diversas cópias de um mesmo texto. E como são cópias muitas vezes ditadas, há razoáveis variações entre elas. Por isso, nas Bíblias de estudo, há notas de rodapé com a indicação dessas variações. O mesmo ocorre com alguns versículos (inteiros ou parciais) que não constam nos manuscritos considerados mais antigos”, explica Lengruber.
Segundo o biblista, para essa análise, a ferramenta utilizada é a Crítica Textual. “É a ciência que cataloga, compara e estuda os manuscritos antigos da Bíblia para determinação do texto mais exato ou mais antigo possível, apresentando ao final uma ‘edição crítica’ emendada e um ‘aparato crítico’ com um conjunto de variantes. É exatamente aqui que se identifica se um texto (versículo) pertence ou não a versões descobertas e mais antigas dos manuscritos. Há casos em que as Bíblias traduzidas mais utilizadas no passado continham versículos que hoje se sabe não estarem nos manuscritos mais próximos do original”.
O professor e doutor em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo, Marcelo Carneiro, também cita a crítica textual como causa dessas variações. Na verdade, não há divergência, polêmica ou estranheza por parte dos estudiosos dos textos sagrados quanto à questão levantada pela influenciadora. Esses estudos são realizados desde o início do século 20 e são objeto de pesquisa de vários pesquisadores da área.
“No decorrer do tempo, essas cópias foram sofrendo alterações, algumas involuntárias, outras intencionais. Entretanto, não eram por motivos ideológicos, mas teológicos. As pessoas que estavam copiando achavam que deveriam ajustar a linguagem do texto no sentido de melhorar o estilo e acabavam alterando em relação ao texto original”, afirma Carneiro.
O professor explica que muitas versões tradicionais da Bíblia, como a traduzida por João Ferreira de Almeida, a mais antiga dos protestantes no Brasil, passaram a adotar o mecanismo que identificam textos que não estão nos melhores manuscritos. Ou seja, os mais antigos, mais bem preservados, que atestam uma forma do texto mais antiga. “Eles colocam essas partes entre colchetes. Então, se eu pego uma Bíblia tradicional, usada nas igrejas, ela traz a seguinte informação na abertura. Os textos entre colchetes não constam do original. É assim que eles resumem para o grande público que, no original, essas partes que ficaram em colchetes não faziam parte, mas foram inseridas posteriormente”, resume.
Carneiro destaca o texto do Evangelho de João, capítulo 8, sobre a mulher flagrada em adultério, na qual Jesus citaria a célebre frase: Quem não tem pecado que atire a primeira pedra, como um exemplo de texto inserido posteriormente nas escrituras. “Os pergaminhos que começaram a ter esse texto são todos do século 3. No século 2, os pergaminhos de João não tinham essa história, entretanto, a tradição acabou incorporando, porque entendeu que esse texto faz sentido na tradição evangélica (dos evangelhos)”.
O doutor em Ciências da Religião ainda cita o exemplo da Bíblia de Jerusalém, uma versão de 2016, que também retira o verso 21 de Mateus 17, como é o caso da publicação apresentada por Michelle Strazzeri. “Já o texto de João 8, eles deixaram no corpo de texto, com uma nota de rodapé dizendo: ‘Esta perícope, omitida nos mais antigos documentos, colocada a Lures por outros, deixa transparecer o estilo sinótico e não pode ser de São João. Poderia ser atribuída a São Lucas. Sua canonicidade, seu caráter inspirado e seu valor histórico, no entanto, não sofreram ou não sofrem contestação’, percebe? Então, esse é um trabalho exegético, esse é um trabalho sério”, garante o professor.
Marcelo Carneiro chama a atenção para as teorias da conspiração que surgem a partir de questões como esta. “(Esse tipo de discurso) está ganhando muita força por conta desse pessoal que está nas redes sociais e transforma isso num cavalo de batalha. Ele (o evangélico comum que não conhece as pesquisas em torno dos manuscritos) fica escandalizado, diz que são Bíblias hereges, alguma coisa assim. Então, de fato, a gente tem que levar em conta que o texto bíblico sofreu transformação. Isso não tira o caráter sagrado dele, mas é preciso ter esse critério em relação ao texto mais antigo. É uma coisa que as pessoas vão ter que aprender a lidar”, aponta.
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Bereia classifica o conteúdo divulgado pela influenciadora digital Michelle Strazzeri como enganoso. Apesar de a publicação estar baseada em fatos verdadeiros ( o versículo 21 de Mateus 17 realmente não está no texto principal de algumas Bíblias, mas sim em notas de rodapé), a influenciadora busca levar seus mais de 22 mil seguidores a acreditar em uma falsidade sobre a motivação do fato. Conforme pode ser constatado com os depoimentos dos teólogos e doutores Marcelo Carneiro e Ricardo Lengruber, não há motivação conspiratória na supressão dos textos sagrados e sim adaptações após estudos dos melhores textos baseados nas cópias dos manuscritos originais.
Referências de checagem:
https://www.linkedin.com/in/michelle-strazzeri-8118197/ Acesso em 3 de dez 2023
Wikipédia
https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuscritologia_b%C3%ADblica Acesso em 3 de dez 2023
Gospel Mais
https://noticias.gospelmais.com.br/remocao-de-versiculos-teologos-ausencia-mateus-17-21-165536.html Acesso em 3 de dez 2023
SBS Portuguêshttps://www.sbs.com.au/language/portuguese/pt/podcast-episode/conheca-jerry-e-michele-strazzery-criadores-de-um-dos-maiores-facebooks-e-blogs-de-brasileiros-na-australia/uf66id3m6 Acesso em 3 de dez 2023
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Foto de capa: Luis Quintero/Pexels